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Revista Psicologia Política

On-line version ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.10 no.19 São Paulo Jan. 2010

 

DOSSIÊ

 

Sexuação na adolescência: um ato performativo

 

Sexuation in the adolescence: a performative act

 

La sexuación en la adolescencia: un acto performativo

 

 

Ana Costa*, I, II, III ; Maria Cristina Poli**, II, III, IV, V

I Universidade Estadual do Rio de Janeiro – Brasil
IIAssociação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA)
III Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq – Brasil
IV Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil
V Universidade Veiga de Almeida – Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo se propõe a abordar a noção psicanalítica de sexuação como movimento central da clínica com adolescentes. Destaca-se, para tanto, os impasses da elaboração freudiana acerca da bissexualidade histérica. Estes impasses produziram efeitos problemáticos nas abordagens dos movimentos adolescentes na direção da escolha de objeto, da identificação sexual e da constituição das estruturas clínicas. Por fim, busca-se destacar o retorno de Lacan aos fundamentos da linguagem na clínica freudiana, no qual a afirmação sexuada se apresenta como um ato performativo. Propõe-se assim essa leitura como resolutiva dos impasses ideológicos que o tema da sexuação na adolescência acarretou na história da psicanálise.

Palavras-chave: Psicanálise, Adolescência, Sexuação, Linguagem, Ato.


ABSTRACT

The aim of this article is to address the psychoanalytic notion of sexuation as a central movement of the clinic with adolescents. To that end, we highlight the impasses of the Freudian propositions about hysterical bisexuality. These impasses caused difficulties in the approaches to adolescents’ movements toward the choice of object, the sexual identification and the constitution of clinical structures. To that end, the article highlights Lacan’s return to the bases of Freud’s clinical language, in which sex affirmation presents itself as a performative act. This reading is proposed as a solutionto the ideological impasses that this topic has brought to the history of psychoanalysis.

Keywords: Psychoanalysis, Adolescence, Sexuation, Language, Act.


RESUMEN

Este artículo se propone a discutir la noción psicoanalítica de sexuación como un movimiento central de la clínica con los adolescentes. Se destaca para tanto, los impasses en el desarrollo freudiano acerca de la bisexualidad histérica. Estos impasses produjeran dificultades en el abordaje de los movimientos adolescentes en la elección del objeto, de la identificación sexual y de la constitución de las estructuras clínicas. Por último, queremos destacar el retorno de Lacan a los fundamentos del lenguaje en la clínica freudiana en el que la afirmación sexual se presenta como un acto performativo. Se propone entonces esta lectura como resolutiva de los impasses ideológicos que el tema de la sexuación en la adolescencia ha carreado en la historia del psicoanálisis.

Palabras clave: Psicoanálisis, Adolescencia, Sexuación, Lenguaje, Acto.


 

 

Introdução

Mas me permitirei, primeiro, alguns comentários que me parecem urgentes
para a atual direção de nossos esforços de elaboração teórica,
e isso na medida em que eles dizem respeito às responsabilidades
a nós conferidas pelo momento da história que estamos vivendo,
não menos do que pela tradição de que somos guardiães
(Lacan, 1966/1998:215)

 

Quando trabalha a exposição de Freud sobre o caso Dora – no texto do qual extraímos a epígrafe acima – Lacan (1966/1998) valoriza o impacto da revolução freudiana sobre as condições de objetivação do ser humano estabelecidas pela psicologia. É o conceito de transferência como suporte do trabalho do psicanalista e da própria noção de inconsciente que é salientada como promovendo a ruptura com o pensamento cartesiano e promovendo, como ele denomina nesse texto, “uma experiência dialética”. Nesta, a verdade é indissociável da dimensão de diálogo colocada em causa na práxis analítica, sendo seus efeitos auferidos pela série de “inversões dialéticas” promovidas pela presença do analista.

Essa proposição é bem identificada pela frase na qual Lacan sintetiza o convite que Freud dirige a Dora para se introduzir no trabalho analítico: “qual a sua parte na desordem da qual você se queixa?”. O autor nos indica aí o quanto o procedimento de Freud é condizente, mesmo nesse período precoce de seu trabalho, com o preceito da abstinência, não se deixando apanhar nas malhar do discurso vitimizado da paciente.

Dora, como sabemos, era na época de sua breve análise uma jovem de 18 anos, envolvida, como a maioria dos casos relatados por Freud, com questões atinentes a sua passagem adolescente. Em especial, o tema da sexualidade se faz ai presente diante da eminência do início do exercício de uma sexualidade genital. Encontramos sob a pena de Freud os conflitos daí decorrentes, as escolhas a serem feitas, as identificações que marcam sua posição na partilha dos sexos; enfim, um cálculo ainda incipiente e hesitante do gozo possível e dos impossíveis com os quais terá de se haver em seus sintomas.

Nesse tempo da constituição do sujeito, a adolescência, trata-se do tempo de um ato, a iniciação sexual, e de uma tomada de posição na referência sexuada. Afirmar-se homem ou mulher, sem que esses significantes possam tirar sua consistência nem da anatomia, nem da escolha do objeto sexual e amoroso, é um dos principais desafios com o qual o jovem se confronta.

Propomos ler assim a tese freudiana de que a adolescência corresponde ao declínio do Édipo enquanto recalque de uma das posições da bissexualidade (Freud, 1905b/1973). Escolha que tem as características de uma confirmação, da reafirmação ou não de um movimento já realizado na primeira infância e que tem por pivô a interdição do incesto. Sexuação – neologismo proposto por Lacan (1972-1973/1985) – que assinala o quanto é um ato do sujeito que está contido nesse movimento, também denominado por ele em outro momento de “declaração de sexo” (Lacan citado por Allouch, 1997).

 

Iniciação e Declaração de Sexo

O tema da iniciação diz respeito a uma mudança de estado, o qual incide diretamente na passagem adolescente. Nesse momento, é reconhecido um levantamento de véu que diz respeito ao mistério do sexo e do desejo, no qual a referência a um saber assume uma função diretiva. A iniciação – nas tradições – vinha acompanhada de rituais sociais, muitas vezes com sentido religioso. Apesar de termos perdido, em grande parte, as funções dos rituais, todo adolescente se depara com uma via necessária nessa passagem: a aquisição e domínio de um saber sobre um determinado enigma – o enigma do Outro sexo – e a colocação em ato dessa posição do saber. Essas duas condições aparecem interligadas e a possibilidade de transposição mais ou menos bem sucedida está colocada em que socialmente se produza um laço possível entre elas. Esse laço pode se amarrar de muitas maneiras, sendo seus extremos expressos, muitas vezes, nas passagens a ato do lado da violência.

Os “mistérios” trazem também a condição adolescente de reconstituir o lugar e função do ideal, incidindo na construção da fantasia. A sexualidade não tem um desdobramento que obedeça a um desenvolvimento, trazendo sempre junto um real que excede as condições de representação. Nesse sentido, o que pertencia ao campo da curiosidade infantil, no qual era suportado o sexual, perde a âncora das relações primárias nesse momento de passagem. Torna-se necessário, então, constituir algo que restabeleça essa função. Não sem antes passar pelas reações de pudor, que revelam algo de uma privação. É ali que entra em causa a função da fantasia. A relação ao “mistério” suporta a tessitura de um véu, necessária nos laços eróticos. Como se sabe, o sonho tem também essa função: pelo sonho torna-se possível uma saída de experiências que atualizam um trauma originário. A experiência corporal na puberdade também se situa como uma atualização deste trauma.

No pequeno texto “Prefácio a ‘O Despertar da Primavera’” Lacan (2001) aborda essas questões a partir da peça do dramaturgo Wedekind, de 1891. Nela, Lacan sublinha como Wedekind antecipa questões sobre as quais Freud se debruçará na proposição da função fálica como reconstituição de um véu. Wedekind situa isso de duas formas: na primeira, colocando que os rapazes não pensariam em fazer amor com as mocinhas se não tivessem primeiro sonhado com isso (função de véu da antecipação). Na segunda, situado na cena do personagem Melchior no diálogo com um mascarado. E a função da máscara tem aqui grande interesse. Nessa cena Melchior – um adolescente de 14 anos – encontra-se no cemitério, depois de ter fugido de um reformatório, para onde havia sido mandado em função da gravidez da garota com quem tinha se iniciado no exercício sexual. A garota morre fazendo um aborto. Na cena do cemitério surge a figura de um homem mascarado, “o Senhor Disfarçado”. Ele entra na cena para salvar Melchior, que estava caindo na conversa do fantasma de seu amigo Moritz, que se suicidara. Melchior se encontra no cemitério com o fantasma desse amigo que tenta, de todas as formas, seduzi-lo para que ele o acompanhe. Promete todas as facilidades, mostrando as vantagens de estar morto. Coloca-se acima do bem e do mal, acima da dor, acima do sofrimento. Melchior está por ceder, porque não tem onde se amparar. “O Senhor Disfarçado” afasta o fantasma e se propõe a enviar Melchior para a casa de seus pais. Melchior lhe pergunta: “quem é o senhor? O senhor é... o meu pai?” O Senhor Disfarçado pede-lhe confiança e não lhe diz quem é. Nega, no entanto, que fosse seu pai, porque se o fosse, Melchior teria reconhecido sua voz.

Apesar de pertencer a uma época distante da nossa, essa peça traz a alegoria de alguns temas que nos são familiares ainda hoje. No recorte destacado há uma refração de elementos que normalmente estão sobrepostos e unificados, tal qual um prisma faz com a luz, dispersando-a em cores. Em razão desta dispersão, não os reconhecemos em suas sobredeterminações. O cemitério é esse representante de lugar nenhum, umbral entre vidas, cenário de sombras, retorno de espectros. Frequentemente povoa os sonhos, que se recheiam de aparições no cemitério, relatados em sessões pelos analisantes. Talvez uma aparição, que adquire contornos daquilo que obseda, possa situar-se como um “nunca vivo”, ou “nunca realizado” que faz retorno (Lacan, 1964/1990). Então, como um não vivido que puxa para um limbo da experiência, fazendo com que as condições daquilo que se esperaria para o futuro – o tempo da antecipação, de uma espera – fique em suspenso. É importante destacar a função da antecipação, porque faz parte das possibilidades de projetar um futuro e representar a experiência. Interessa destacar esse fantasma do amigo, esse que também é um duplo do personagem, e que faz seu retorno espectral. Essa função do duplo como espectro merece uma análise mais detida.

O tema do duplo pode ser pensado como vindo no lugar de uma ruptura do espelho. Esse tema surge para alguns, como efeito de uma ruptura na função fálica. Faz parte de momentos de crise nos quais a imagem perde sua função unificadora e o sujeito fica atrelado ao duplo, como uma referência clivada de si mesmo, impossibilitado, por essa razão, de bancar qualquer desejo. São muitos os exemplos, entre os clínicos e os literários. Desde o caso clássico freudiano – “o Homem dos Ratos” (Freud, 1909/1998) – prisioneiro do fantasma do pai, no seu duplo do espelho; passando pela “Traumnovelle”, de Schnitzler (1987), atualizada a nossos tempos pelo cineasta Kubrick, no seu “De olhos bem fechados”.

A “Traumnovelle” traz muitos elementos em comum com a peça de Wedekind: o duplo e a máscara, o vagar pelos lugares espectrais, lugares dos mistérios em que se precisa ter a chave de entrada. Lugares de sacrifício, de desejos e gozos. O tempo inteiro o mistério ameaça o personagem, impossibilitado de levar um ato até o final. Talvez sua maior diferença em relação à peça de Wedekind diga respeito ao final não tão “paternal”. Um outro elemento interessante coloca-se nessa relação ao sonho. O título “Traumnovelle” leva-nos novamente a pensar na afirmação de Wedekind, de ser necessário antes sonhar para que os rapazes acedam ao sexo com as meninas. O sonho embutido no título da “Traumnovelle” (novela de sonho) não parece ser da mesma envergadura. Aqui se precisa fazer a diferença entre fantasia, que surge como um elemento propiciador do jogo do enigma, e sonho de repetição, como esse que traz o retorno do espectral.

É preciso, neste momento, diferenciar melhor espectro e fantasia. A fantasia e a máscara trazem como referência as faces da falta e do jogo, enquanto o espectro – na sua condição de um duplo, de um corpo que vagueia – é da ordem do excesso. E a condição de excesso é o que mantém lugares duplicados – esses lugares “endemoniados” por onde vagueiam os personagens dessas histórias. Temos também o espectro em Hamlet, dizendo respeito a um luto não realizado, sendo isso que o mantém numa errância e numa impossibilidade de afirmação do desejo.

A incidência do “duplo” povoa também algumas infâncias. Faz parte, por exemplo, da construção do amigo imaginário. O amigo imaginário não é somente uma fantasia, sendo mais próximo a uma construção de delírio. Por que será que na infância essa “aparição” é “amiga”, não vem como obsessão? Pode-se pensar que esse “nunca realizado” do amigo imaginário não interpela, diferentemente do obsedado – como no espectro do pai de Hamlet. O amigo imaginário não interpela justamente porque ali não se coloca em causa o exercício do sexo como está na adolescência.

Vamos ao nosso segundo termo: declaração do sexo. Lacan se utiliza dessa expressão para propor que o sujeito é um termo sempre resultante de três modalidades temporais. Isso porque o sujeito dependeria de um determinado encontro de enunciação e real, que implica em diferentes trânsitos da experiência. Assim, não seria suficiente que o sujeito fosse um iniciado num código qualquer para que a representação de si, no interior desse código, incluísse sua experiência singular. Esse domínio, por exemplo, poderia ser simplesmente delegado a um outro, mantendo, desta maneira, sua condição de anonimato. É assim que a iniciação não garante a um sujeito a apropriação de um lugar para inclusão de sua experiência singular num código compartilhado. Cedo ou tarde, de uma maneira ou de outra, algumas experiências – como a subjetivação do sexo e da morte – produzem desgarramento. São elas que definem a passagem adolescente.

Outra questão que merece ser situada diz respeito à proposta freudiana de bissexualidade. Faremos, a seguir, um cotejamento entre essa proposição e a abordagem lacaniana sobre a sexuação. Nesta veremos que o tema da declaração de sexo assume tintas inovadoras.

 

Bissexualidade e Sexuação

Muitos são os trabalhos que já se ocuparam do tema da bissexualidade na psicanálise: suas origens e derivações freudianas. Traremos, aqui, a lembrança de alguns elementos que nos ajudarão a situar essa questão. Em primeiro lugar, o termo “bissexualidade” traz embutido alguns pressupostos: a de que haveria duas sexualidades – masculina e feminina – já determinadas a priori, fazendo parte, desde o início, do psiquismo. É o que podemos deduzir com a proposta freudiana de “bissexualidade constitutiva”. Em segundo lugar, se é constitutiva então está próxima de uma proposição biologicista. E aqui encontramos suas origens na relação de Freud com Fliess. Foi exatamente na proposição da bissexualidade que encontraremos um ponto da herança freudiana, no qual podemos parafrasear Kierkgaard: “a herança do pai é seu pecado” (citado por Lacan, 1964/1990).

O tema da bissexualidade em Freud traz inúmeros impasses. Mesmo que sua proposta não seja equivalente à de Fliess e que Freud o faça perder algo do determinismo flisseano, seu uso mais atrapalha do que ajuda nas elaborações. Um dos impasses, no qual se reconhece uma perda na precisão teórica, fica bem expresso em seu artigo “Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade” (1908/1973), no qual o autor propõe que os sintomas histéricos têm duas correntes de conflitos: uma decorrente de uma fantasia de caráter heterossexual e outra de fantasia homossexual. Se após a interpretação da primeira ainda restarem sintomas, então se trataria da corrente homossexual que precisaria ser analisada. Reconhecemos, aqui, os impasses surgidos na análise do “caso Dora” (Freud, 1905a/1973), referido acima.

Não deixa de chamar atenção a puerilidade da solução freudiana, na proposição de interpretações distribuídas para um lado e outro, sem que se encontre uma precisão a respeito do que seria o conflito. Ela resulta de uma série de paradoxos que estão em causa na abordagem do conflito inconsciente. Por outro lado, Freud parece, aqui, não tirar as devidas consequências das abordagens desenvolvidas já no texto “Três ensaios para uma teoria sexual” (1905b/1973), no qual propõe que a pulsão não tem objeto determinado. Ou seja, Freud parece ter escorregado na confusão entre identificação e uma determinação para o objeto da pulsão. Ele mesmo coloca como o sujeito está em ambos pólos de sua fantasia, como sujeito e objeto, de tal maneira que é impossível restringir a interpretação no que diz respeito ao exercício da pulsão (Freud, 1908/1973). Exemplifica com o caso de uma mulher, em que com uma mão encenava uma agressão sexual, tentando tirar seu vestido no lugar de um agressor, e com a outra mão sujeitava o vestido contra o corpo, como a mulher atacada. No exemplo mencionado, a caracterização de “masculino” e “feminino” são ligados aos princípios de ativo e passivo. Ou seja, a designação de “sujeito” e “objeto” está mais de acordo com a expressão da fantasia, na medida em que “ativo” e “passivo” não é suficiente para designá-la.

Outro elemento importante – e que já mencionamos – é a origem da abordagem freudiana na sua relação com Fliess. Foi sobre a disputa envolvendo o conceito de bissexualidade que a relação Freud-Fliess se rompeu, quando este acusou Freud de plágio. Mesmo que somente de passagem, vale a pena lembrar algumas questões que fizeram parte da produção de Fliess e que, de alguma maneira, capturaram Freud. Já veremos em que interessa ao nosso tema.

Alguns autores já se detiveram na análise das proposições de Fliess como sendo a construção de um sistema paranoico. Entre eles Erik Porge em seu livro “Roubo de idéias?” (Porge, 1998). A dita bissexualidade flissiana dizia respeito à proposição que todo humano portaria um princípio do sexo oposto, funcionando por meio de ciclos, de 28 ou 23 dias. Algo que merece ser destacado – como sendo diferente das análises freudianas – é de que esses princípios opostos não funcionam em desarmonia, ou seja, exclui completamente o tema do conflito, fundamental na proposição freudiana. Outro elemento que cabe destacar é de onde parte o sistema paranoico de Fliess: é situado numa correlação entre o nariz e o sexo feminino, o fluxo sendo seu paradigma, como a menstruação, que vai abarcar justamente a referência à periodicidade e aos ciclos. Todo o delirante de seu sistema o faz afirmar ter “roubado” um segredo da Natureza e também que essa lei natural seria passada da mãe para o filho. Em termos lacanianos, diríamos que ali se instituiria um princípio da crença na existência da relação sexual, como uma transmissão fora da castração.

Então, das propostas da bissexualidade resta-nos tirar algumas consequências, que vão ajudar-nos a situar questões que ainda nos interessam:

▪ primeiro: é uma proposição que traz embutida uma suposição de dois princípios – feminino e masculino – completamente diferenciados e bem constituídos já a priori;

▪ segundo: tal diferenciação ilusória parece buscar definição pela via de uma Natureza. A tirarmos consequência das propostas precedentes, chegaremos a essa natureza pela via da forclusão da castração, como a ciência sexual de Fliess.

Freud era fascinado pela ilusão da possibilidade de uma totalidade nas abordagens sobre a sexualidade, totalidade esta que poderia compor com Fliess: este último tratando da ciência biológica e Freud dos processos psíquicos. A partir da ruptura na troca que mantinham em suas respectivas elaborações, Freud se dedicou a um trabalho importante – ainda hoje – para a psicanálise: a análise sobre a paranoia de Schreber (Freud, 1911/1996). Em suas correspondências Freud deixa entrever que o trabalho sobre o caso Schreber surge como tentativa de transposição de sua relação com Fliess, na medida em que reconhece neste o desenvolvimento de uma paranoia (constante da acusação de plágio). Nesse sentido, a interpretação freudiana para a paranoia de Schreber carregou ainda um elemento de difícil precisão: a proposta de que a paranoia seria resultante do recalcamento de uma homossexualidade. Neste ponto o termo “homossexualidade” é herdeiro da imprecisão do termo “bissexualidade”, na medida em que a expressão do delírio de Schreber não tem a ver com uma escolha de objeto, mas incide basicamente na transformação de seu corpo num corpo de mulher. Esse “detalhe” faz toda a diferença na nossa abordagem e nas precisões que mais tarde foram se fazendo, a respeito da sexuação, a partir da teoria lacaniana. Ou seja, a colocação de Schreber sobre a transformação de seu corpo num corpo de mulher não tem a ver com a proposição de uma homossexualidade recalcada. O termo “homossexualidade”, aqui, partiria do mesmo ponto de ambiguidade que o referente “bissexualidade”, na medida em que, neste caso, não se trata da referência a um desejo, mas a uma interpelação.

 

Sexuação e Adolescência

Retomando o tema da adolescência, temos então alguns termos que implicam caminhos e posicionamentos distintos. A proposição de Freud (1905b/1973) acerca das pulsões como não tendo objeto definido, implica o exercício de uma sexualidade polimorfa na infância, o que situa uma condição completamente avessa à proposta da bissexualidade. É pela via das identificações, a partir da construção edípica, que Freud se orienta na constituição de uma condição sexuada nada definida a priori. As estruturas sintomáticas, nesse sentido, constroem as saídas conflitivas para um exercício sexual, tanto quanto da assunção das identificações, que implicariam numa posição frente ao sexo.

Avançando nessa via, tomaremos agora o tema da sexuação. Esta proposição está desenvolvida pelas conceituações lacanianas. Quero pinçar somente alguns de seus elementos, na medida em que são proposições bastante complexas e extensas para serem abordadas nesse trabalho.

Em primeiro lugar, a partir dos desdobramentos dados por Lacan nas questões da clínica psicanalítica, vamos encontrar que o exercício da sexualidade não implica no estabelecimento de uma continuidade com o tema da sexuação. Temos, de um lado, tudo o que implica o suporte do corpo, sua erótica apoiada nas bordas, no funcionamento dos orifícios, como um determinante do exercício da pulsão. Certamente esse funcionamento não é simples. Mesmo que não haja continuidade entre termos, esse funcionamento depende da articulação a uma posição sexuada. O que implica, de alguma maneira, a possibilidade de registro e nomeação da singularidade do gozo do sujeito.

Propomos, aqui, uma leitura que podemos encontrar no seminário sobre “O Sinthome” (Lacan, 1975-1976/2007). Apesar de exaustivamente tratado pelas produções mais recentes, precisaremos retomá-la, para indicar uma faceta que não é evidente. Situa-se especificamente na proposição lacaniana da relação de Joyce com seu corpo. Trata-se do momento, analisado por Lacan, de uma ausência de Joyce em relação a seu corpo, produzida no episódio em que ele relata ter levado uma surra (Joyce, 1916/1998). Essa indiferença, segundo Lacan, sustenta uma determinada relação com o corpo, em que este se situa numa condição de estrangeiridade. Lacan se apoia nessa passagem, em que não há expressão de afeto a uma violência sofrida corporalmente, para afirmar a proximidade dessa posição e a psicose. No entanto, para além de uma discussão diagnóstica concernente a Joyce, Lacan destaca que isso concerne mais amplamente a todos os sujeitos, do que pode ter de louco para cada um. Essa estrangeiridade situa-se na forma como designamos a relação ao corpo: “temos” um corpo, não “somos” esse corpo.

De que forma, então, Lacan vai sustentar o tema do “ser”? Aqui vamos encontrar um desvio, na medida em que nessa posição diz respeito a toda a ordem de exílios. O “ser” se situa, então, na enunciação, na proposição do “ser falante”. A partir desse momento em que essas duas referências constituem descontinuidades, que nunca teremos condições de estabelecer univocidades e consistências nesses dois registros, temos o estabelecimento de um gap difícil de conciliar entre “ser falante” e “ter um corpo”. A singularização de um sinthoma, resultante da inscrição de uma posição sexuada, tenta dar conta desse gap, produzindo uma amarração desses registros heterogêneos e descontínuos.

Algo dessa descontinuidade Lacan vai abordar a partir da referência a uma “declaração de sexo”, ou seja, diz respeito ao que se atém, em ato, o ser falante na falta da relação sexual – a dita proporção intercambiável entre os sexos. Numa passagem de “Pequeno discurso aos psiquiatras”, de 1967, Lacan (citado por Allouch, 1997) escreve o seguinte: “É porque o significante mostra manifestar falhas eletivas nesse momento em que se trata de que aquele que diz ‘eu’ se diga como macho ou como fêmea” (p. 336). Ou seja, segundo o autor, o sujeito, ao precisar dizer isso, faz surgir um “escamoteamento simbólico do órgão da copulação”. O que implica – acrescentaríamos – que só se consegue dizer “eu” a partir de uma narrativa ficcional, situada num jogo de máscaras.

Algo disso pode-se acompanhar na passagem pubertária. A puberdade como acontecimento cria um gap, uma falha, nas condições de representação. Esse acontecimento atualiza o traumatismo originário, retornando percepções de despedaçamento do corpo. O retorno de uma unificação acontece nos exercícios de iniciação e no jogo com as “máscaras”. No entanto, como uma consequência de um exercício, das diferentes faces da experiência, retorna ao sujeito a interpelação de uma escolha sexuada. Os efeitos dessa interpelação colocam ao sujeito em crise, numa relação direta ao recalcamento originário, manifestando o que de louco faz parte de qualquer estrutura.

Pois bem, seguindo o desenvolvido até aqui, pode-se pensar que a psicanálise se dispõe a acompanhar o sujeito na sua construção singular, a fim de que permita, por um lado, um exercício de sua erótica e – por outro lado – condições de sua afirmação num laço discursivo. Se formos radical nesse ponto, não se trataria de afirmar – a priori – nem uma bissexualidade, nem heterossexualidade, nem homossexualidade. Frisamos bem o “a priori”, porque não podemos desconhecer as dificuldades que esse tema das “identidades” e “escolhas” sexuais implica. Como, por exemplo:

▪ se não há uma constituição de natureza que defina, a priori, uma posição como homem ou como mulher, por outro lado, há sim uma escolha erótica que sustenta UMA posição. Assim, o apanágio da indiferença nessa escolha somente encobre a dificuldade de bancá-la, ou seja, de estar referido à castração. Logo, as brincadeiras entre os homens, ou mesmo entre as mulheres, que sempre carregam algo de erotismo, ou mesmo de exercícios sexuais, não definem a dimensão dessa escolha a que estamos nos referindo. O que temos acompanhado na mídia de brincadeiras dos jovens com um e outro sexo, apesar de não definir uma posição, não implica numa indiferenciação. Não é indiferente o sexo do parceiro/parceira numa escolha sexuada. Os caminhos por onde se fixa essa escolha seguem os meandros da escolha do sintoma;

▪ por outro lado, temos o que faz laço social e as dinâmicas a partir do que fica excluído da circulação desse laço e que, de uma maneira ou de outra, retorna. Em relação a isso a psicanálise também não pode abster-se. Ali, encontramos as expressões da violência. É importante lembrar a diferença entre agressividade e violência (Lacan, 1948/1998). Esta última situa-se na injúria. Ou seja, quando um termo pode vir no lugar de um denotativo impossível de recusar. Silenciar sobre a importância que adquirem os ganhos sociais no franqueamento de possibilidades ao sujeito seria atestar uma indiferença. Ou seja, consentir na violência.

A psicanálise, assim nos parece, tem responsabilidade com essas questões. Não se pode sustentar uma indiferenciação e indefinição sexual com base no argumento da maleabilidade do objeto da pulsão. Há consequências importantes no ato de sexuação que a passagem adolescente nos faz acompanhar e que solicita igualmente a nossa tomada de posição. Que ela seja pautada pela ética do bem-dizer, sem desconhecer seus impactos políticos e sociais, eis todo desafio.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Ana Costa
E-mail: ammcosta@terra.com.br

Maria Cristina Poli
E-mail: mcrispoli@terra.com.br

Recebido em: 30/08/2009
Aceito em: 21/11/2009

 

 

* Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – Brasil, analista membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e pesquisadora do CNPq – Brasil.
** Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil – e do Mestrado Profissional Interdisciplinar Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida – Brasil. Analista membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Pesquisadora do CNPq – Brasil.