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Revista Psicologia Política

On-line version ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.10 no.20 São Paulo Dec. 2010

 

ARTIGOS

 

Violência entre parceiros íntimos: uma análise relacional

 

Intimate partner violence: a relational analysis

 

La violencia en parejas: un análisis relacional

 

 

Mirian Béccheri Cortez* ; Lídio Souza**,I ; Sávio Silveira de Queiróz***,I

I Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo – Vitória, ES – Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Com base em um enfoque relacional investigou-se como as relações estabelecidas entre casais em situação de violência são descritas por eles e de que modo práticas e concepções de gênero dos casais se articulam na configuração dos episódios de violência. Para tanto, foi realizada análise de conteúdo temática de oito entrevistas realizadas com quatro casais cujos relacionamentos eram marcados por violência conjugal. A análise resultou na identificação de três categorias: 1) “Concepções de gênero”, que reúne as descrições de práticas e concepções sobre gênero; 2) “Conflitos – os desacordos entre os parceiros” e 3) “Descrição e avaliação de brigas com agressão física”. Identificou-se o questionamento de alguns padrões tradicionais de gênero pelas esposas e reafirmação dos padrões tradicionais pelos maridos. Avaliamos que a perspectiva relacional utilizada possibilitou identificar conteúdos compartilhados e contradições e discordâncias presentes nas falas dos casais, permitindo a compreensão de uma dinâmica complexa que permaneceria inacessível por meio de uma análise unilateral da relação.

Palavras-chave: Violência conjugal, Violência entre parceiros íntimos, Perspectiva relacional, Gênero, Relações de gênero.


ABSTRACT

It was investigated, based on a relational approach, how couples on a violent relationship describe their relationship and how their practice and conceptions of gender are connected on the configuration of violence episodes. We examined eight interviews of four couples whose relationships were characterized by violence episodes. The analysis resulted in the identification of three categories: 1) “Conceptions of gender”, which brings together the descriptions of practices and conceptions of gender, 2) “Conflict – disagreements between partners” and 3) “Description and evaluation of fights with physical aggression”. We identified that some traditional gender patterns were broken by wives while husbands reaffirm traditional patterns. It was evaluated that relational approach is a way to identify shared points of agreement and contradictions and disagreement present in the discourse of couples, allowing the comprehension of a complex dynamic that remains inaccessible by a unilateral focus of the relationship.

Keywords: Marital violence, Intimate partner violence, Relational approach, Gender, Gender relations.


RESUMEN

Apoyados en un enfoque relacional se investigó cómo parejas en una relación violenta describen su relación y cómo sus prácticas y concepciones de género están conectadas con los episodios de violencia. Se examinaron ocho entrevistas de cuatro parejas cuyas relaciones se caracterizan por episodios de violencia. El análisis resultó en la identificación de tres categorías: 1) “Las concepciones de género”, cuyo contenido son las descripciones de las prácticas y concepciones de género, 2) “El conflicto” – los desacuerdos entre los miembros de la pareja” y 3) “Descripción y evaluación de los combates de asalto”. Se verificó el cuestionamiento de algunos patrones tradicionales de género por las mujeres mientras que los hombres reafirmaran los patrones tradicionales. Se evaluó que el enfoque relacional es una forma de identificar los puntos comunes de acuerdo y desacuerdo y presentar las contradicciones en el discurso de las parejas, lo que permite la comprensión de una dinámica compleja, que sigue siendo inaccesible en un enfoque unilateral de la relación.

Palabras clave: Violencia conyugal, Violencia en la pareja, Enfoque relacional, Género, Relaciones de género.


 

 

Introdução

Estudos sobre a temática da violência nas relações íntimas, de um modo geral, enfocam principalmente a perspectiva das mulheres que sofrem a violência, sendo ainda recentes estudos voltados para o homem autor desse tipo de violência. A inserção do homem nos estudos enriquece o campo de pesquisa e de discussões científicas, além de possibilitar a construção de novos e mais completos conhecimentos sobre tal fenômeno. Entendemos, todavia, que perspectivas de análise unilateral (que consideram principalmente a mulher e, às vezes o homem, separadamente) embora importantes para o campo de produção, deixam de contemplar aspectos relevantes do fenômeno ao abordar separadamente os dois protagonistas. Se as investigações sobre as mulheres fortalecem essa categoria e o próprio movimento feminista, dando visibilidade a esse problema, e o foco sobre os homens permite reconhecer nesse grupo aspectos que merecem atenção e maiores discussões, entendemos que olhar separadamente para cada um dos protagonistas dificulta o acesso a um aspecto relevante para a compreensão do estabelecimento (e, muitas vezes, da sua manutenção) de relacionamentos com tais características: a constituição relacional do fenômeno.

Tal perspectiva relacional refere-se à compreensão de que a violência entre parceiros íntimos envolve relações de poder historicamente constituídas e utilizadas para delimitar características do masculino e do feminino. Essas especificidades qualificam, diferenciam e também atuam no sentido de estreitar os laços de dependência dos gêneros masculino e feminino, uma vez que, se opostos, se complementam.

A utilização deste enfoque no estudo da violência entre parceiros íntimos pode contribuir para a compreensão de sua complexidade, ao permitir, a partir da análise conjunta dos pontos de vista dos envolvidos, a visualização de um quadro amplo de fatores (histórico-sociais e afetivos) que agem sobre ambos os parceiros.

Ao se compreender violência como conversão da diferença em desigualdade visando a dominação e a exploração do outro, por meio de sua reificação (Chauí, 1985; Cortez & Souza, 2008; Rosa, Boing, Büchele, Oliveira & Coelho, 2008), e gênero como construção social que determina uma relação hierárquica de poder entre o homem e a mulher, pode-se discutir a violência nas relações conjugais como manifestação perversa dessa distribuição desigual de poder. Assim, apesar das conquistas alcançadas pelo movimento de mulheres, a violência conjugal ainda hoje se apresenta como prolongamento dos processos de exclusão sofridos por essa categoria em nossa sociedade.

Diversas pesquisas, com base em diferentes perspectivas, contribuem para a identificação de fatores relacionados ao uso violência do homem contra a mulher. Além da naturalização de valores patriarcais, identificada por diversos autores, são apontados também: histórico familiar de violência (abuso ou testemunho de violência), baixa autoestima (tanto do marido quanto da esposa), uso de drogas ilícitas ou não, dificuldades financeiras do casal (Santos & Costa, 2004; Winstok, Eisikovits & Karnieli-Miller, 2004).

A relevância do estudo de relacionamentos conjugais violentos já é bastante ressaltada na literatura acadêmica, bem como o fato de a violência contra as mulheres ser um sério problema de saúde pública. Ainda assim, Dantas-Berger e Giffin (2005) constatam que a escassez de pesquisas e estudos prejudica “um melhor conhecimento sobre este fenômeno e suas consequências em saúde” (Dantas-Berger & Giffin, 2005:419). Acreditamos também que reconhecer a relevância do problema implica necessariamente em demandar e participar de discussões mais profundas que proporcionem a construção de novos conhecimentos na área, sejam teóricos, conceituais, metodológicos ou sobre intervenção.

O volume de publicações de estudos e discussões acerca do homem que comete agressões contra sua companheira, tanto nacional quanto internacional, pode ser considerado reduzido quando comparado com o montante de produções sobre violência entre parceiros íntimos. Confirmando essa escassez, Carrasco-Portiño, Vives-Cases, Gil-González e Álvarez-Dardet (2007) publicaram uma revisão sistemática de artigos cujo foco era a violência de homens contra suas parceiras. A busca foi realizada nas seguintes bases de dados: EconLit, Embase, Eric, Francis, Índice Médico Español, ISI Web of Knowledge – Web of Science y Current Contents –, Medline, Psicodoc, PsycInfo e Sociological Abstracts, considerando-se publicações de 2000 a 2005. Dos 944 estudos encontrados que discutiam o tema da violência entre parceiros íntimos, apenas 61 (6,5%) centravam-se nos homens autores da violência.

Apesar de o estudo de Carrasco-Portiño e cols. (2007) indicar a publicação de apenas um artigo com foco no autor de agressão na América Latina, um levantamento inicial de artigos brasileiros sobre violência de homens contra suas parceiras, identificou três trabalhos publicados entre 2002 e 2005 (Alvim & Souza, 2005; Cortez, Padovani & Williams, 2005; Padovani & Williams, 2002) e outros dois publicados no ano de 2008 (Rosa e cols., 2008; Lima; Buchele & Climaco, 2008). Dois outros estudos investigam a violência conjugal sob a perspectiva de homens que não estavam envolvidos em relacionamentos violentos: Alves e Diniz (2005) e Diniz, Lopes, Gesteira, Alves e Gomes (2003).

De um modo geral, nos artigos citados acima, e também em algumas outras publicações internacionais recentes (Boonzaier, 2008; Mullaney, 2007; Wood, 2004) encontramos descrições de características sociodemográficas de autores de violência, análises de suas percepções sobre os eventos agressivos (descrições, tipos de agressões, justificativas, minimizações), algumas propostas de intervenção com essa população, bem como descrições de novas possibilidades metodológicas para o estudo do fenômeno, conteúdos esses identificados também por Carrasco-Portiño e cols. (2007). A análise das pesquisas mais atuais nos revela uma tendência à ampliação do debate sobre tal temática. Ampliação essa que, a nosso ver, deve-se, ao menos em parte, à entrada do homem nos debates e pesquisas sobre gênero, seja através dos estudos sobre a masculinidade seja na utilização de uma perspectiva relacional que substitui o ponto de vista polarizado que, em geral predominava nos estudos, como bem descreve Giffin (2005). Assim, se antes se privilegiava o enfoque no feminino e nas questões de subordinação da mulher, hoje encontramos debates que revelam que a análise da configuração de um relacionamento violento negligencia aspectos importantes se considerar apenas a perspectiva das vítimas (ou dos autores da violência).

No presente estudo, partimos do pressuposto de que a violência ocorre obedecendo a uma dinâmica estabelecida entre os parceiros, e as agressões são resultado de um jogo de forças entre homem e mulher, mesmo que na maior parte das vezes os danos físicos e emocionais sejam maiores na mulher. Desse modo, a dinâmica dos relacionamentos em que ocorre violência pode ser mais bem compreendida se as duas partes do casal forem consideradas como sujeitos. Esse ponto de vista vai ao encontro de autores como Jenkins e Aubé (2002), Alvim e Souza (2005) e Boonzaier (2008), cujos trabalhos se afastam da discussão polarizada (foco apenas no homem – agressor, ou na mulher – vítima) e analisam a violência entre parceiros íntimos a partir de uma perspectiva relacional, também adotada neste trabalho.

Vale ressaltar, como afirmam Izumino e Santos (2005), que tal perspectiva não tem, como se poderia pensar à primeira vista, o objetivo de culpabilizar as mulheres vitimadas pela situação de violência. Acreditamos que, como descreveram essas autoras, devemos entender a vitimização como um “instrumento necessário para sensibilização dos agentes de Estado” (Izumino & Santos, 2005:15), ou seja, a vitimização é um dispositivo necessário às agências do Estado, uma vez que evita a culpabilização da mulher e a consequente descriminalização desse tipo de violência. Como consequência, viabiliza políticas públicas voltadas aos que estão em situação de violência. Por outro lado, ressaltamos que a compreensão de uma reciprocidade na construção do relacionamento violento do casal, permite a integração, não apenas da mulher e de seus filhos nessas políticas, mas também abrem espaço para que os homens também possam ser acolhidos e atendidos.

Sabemos que as concepções mais tradicionais de gênero ainda são predominantes, o que pode ser observado tanto nos modelos de masculinidade e feminilidade mais aceitos (e comumente difundidos em nossa sociedade), como também em diversos estudos que polarizam as análises, ora discutindo questões sobre o feminino ora sobre o masculino. Por outro lado, se relações de gênero são processo, as transformações também estão presentes em nosso cotidiano, o que pode ser observado no forte movimento de inserção das mulheres no mercado de trabalho e nas tentativas de reverter as restrições sociais às quais estão submetidas. Nesse sentido, o conceito de empoderamento feminino, discutido por Léon (2001) e Kabeer (2005), nos pareceu bastante importante, visto que se refere ao reconhecimento de exclusões e às lutas por mudanças, tanto em dimensões coletivas (como inserção em cargos políticos e educação não sexista) como em dimensões individuais (aumento de autoestima, autonomia, independência financeira e afetiva).

Acreditamos que, apesar das diversas conquistas já alcançadas pelas mulheres, a situação atual das relações de gênero é ainda de transição, de busca de equilíbrio entre valores tradicionais e necessidades atuais de ajustamento. Tal contexto pode ser desencadeador de conflitos, como identificado em outros estudos (Cortez & Souza, 2008; Dantas-Berger & Giffin, 2005; Giffin 2002). Assim, o conceito de empoderamento feminino possibilita compreender parte da dinâmica apresentada pelas transformações ocorridas nas relações de gênero nas últimas décadas, uma vez que, ao possibilitar mudanças, esse movimento cria nos homens e mulheres a necessidade de adoção de determinadas dinâmicas que lhes são muito dificultosas, posto que implicam na inserção e atuação de ambos em espaços tradicionalmente associados ao outro gênero. Verifica-se que tal inserção é dificultada por concepções de masculino e feminino historicamente construídas e fortalecidas em nossa organização social, as quais regulam práticas sociais.

Connell (1995) propõe um conceito bastante interessante para analisar tal dificuldade. Segundo ele, a masculinidade hegemônica é uma “configuração de práticas de gênero [...] a qual garante (ou é utilizada para garantir) a posição dominante dos homens e a subordinação das mulheres” (Connell, 1995:77). Tal conceito, criticado por alguns estudiosos, foi revisto por Connell & Messerschimit (2005) que salientam o caráter plural da masculinidade, por se configurar de acordo “com as relações de gênero em um contexto social particular” (Connell & Messerschimit, 2005:836). Se masculino e feminino coexistem e se complementam, entendemos que diversas masculinidades e feminilidades podem se configurar de acordo com contextos culturais, econômicos e sociais específicos, ora afastando-se ora se aproximando de padrões histórica e socialmente fortalecidos.

Destacamos que a perspectiva relacional aqui adotada não é a mais difundida e que a compreensão tradicional da configuração de gênero, na qual o masculino se impõe ao feminino como contraponto, é ainda a mais prevalente em nossa cultura: a ideia de que o “homem de verdade” deve ser forte, agressivo, heterossexual, exercer poder sobre as mulheres e controlar as atividades públicas é descrita criticamente por diversos autores (Bourdieu, 2003; Nolasco, 1997; Camino & Ismael, 2004). A construção do feminino tradicional (sensível, frágil, passivo sexualmente) se dá concomitante à construção social do masculino: uma complementa e se contrapõe à outra em suas características, reforçando a constituição binária e polarizada das relações de gênero. Avaliamos, pois, que feminino e masculino só podem existir num constante movimento de aproximações e, principalmente, afastamentos que fortalecem determinados aspectos característicos de homens e mulheres em uma dada época. Considerando esse processo e diante dos avanços feministas, notamos que reorganizações das relações de gênero, antes latentes, estão ganhando terreno e que arranjos que alterem certos aspectos dessas relações se fazem cada vez mais presentes e necessários.

Com base nessa necessidade de novos arranjos e na dificuldade em lidar com tais demandas é que situamos as respostas masculinas violentas. Alguns estudos (Boonzaier, 2008; Cortez & Souza, 2008; Wood, 2004) já avaliaram que, diante de tal situação – e apesar da possibilidade de adaptação do homem a tais modificações também estar presente – a manutenção da ordem tradicional das relações de gênero por meio do assujeitamento da companheira que “foge à regra” das configurações de gênero patriarcais é de grande relevância nas ocorrências de violência entre parceiros íntimos.

Apesar das análises já descritas na literatura, acreditamos que a investigação da situação anteriormente descrita possa ser mais ricamente explorada partindo-se das perspectivas de casais em situação de violência, uma vez que apenas um dos estudos encontrados também utiliza a proposta aqui empregada (Boonzaier, 2008). Entendemos que somente uma análise que articule as percepções e avaliações de ambos os parceiros sobre suas vidas conjugais e situações de violência pode oferecer uma visão mais completa da dinâmica do casal no que diz respeito, mais especificamente, às situações violentas construídas e vivenciadas por eles.

 

Objetivo

Propusemos investigar, com base em um enfoque relacional, como as relações estabelecidas entre casais em situação de violência são vivenciadas e descritas por eles e de que modo práticas e concepções de gênero dos casais se articulam na configuração dos episódios de violência. Para tanto, se procurou identificar e analisar: a) as expectativas de gênero de cada entrevistado; e b) as descrições dos conflitos descritos (contextos, motivos, brigas com agressões físicas, sexuais ou psicológicas e suas consequências).

 

Método

Material Analisado

Os dados analisados são provenientes de um conjunto de oito entrevistas realizadas no primeiro semestre de 2006 com quatro casais que possuíam histórico de violência na relação e que mantinham o relacionamento conjugal após denúncia de agressão física realizada pela mulher. O convite para participação na pesquisa foi realizado ao final de Audiências de Conciliação nos Juizados Especiais Criminais (Jecrins) ou no início das sessões de grupo com casais, desenvolvidas por um serviço de atendimento a apenados. Os casais que concordaram em participar foram contatados posteriormente, por telefone, para agendamento das entrevistas. O tempo de relacionamento dos casais variou de 3 (três) a 25 anos, e a renda familiar média variou de 2 a 5 salários mínimos (R$ 350,00, no período da coleta).

As entrevistas, realizadas individualmente após assinatura de Termo de Consentimento Informado e Esclarecido, seguiram um roteiro semi-estruturado que visou coletar dados sociodemográficos e sobre características de gênero relacionadas a aspectos gerais (ser homem e ser mulher) e também a aspectos específicos de relacionamentos afetivos e conjugais (ser marido, esposa, mãe e pai). Questões sobre a violência existente em seus relacionamentos envolveram tanto descrições de episódios de violência física, (contexto, tipos de violências presentes) como as avaliações (motivos identificados pelos entrevistados, sentimentos, consequências).

Procedimento

Na análise dos dados, foram realizadas leituras das transcrições das entrevistas, visando identificar no conteúdo declarativo dos entrevistados aspectos relacionados ao relacionamento do casal e expectativas em relação aos companheiros na condição de pai, mãe, esposa e marido. Foram coletadas também descrições das situações de violência e do modo como cada um percebia essas experiências (motivos, desenvolvimento do conflito e consequências). O conteúdo foi organizado procurando-se identificar categorias que abarcassem objetivos específicos indicados anteriormente. Os resultados da análise são apresentados com a atribuição de nomes fictícios aos entrevistados, cuidando para manter os parceiros com as mesmas iniciais (entre parênteses a idade de cada um, no período da entrevista): Rose (32) e Roberto (33), Ana (31) e Ailton (43), Cássia (42) e Cassiano (38) e Bruna (25) e Breno (39).

 

Resultados

A análise dos dados, baseada nos objetivos anteriormente estabelecidos, originou três grandes categorias: uma que reúne as descrições de práticas e concepções sobre gênero, denominada “Concepções de gênero”, e duas relacionadas às situações de conflito e violência na relação, “Conflitos – os desacordos entre os parceiros” e “Descrição e avaliação de brigas com agressão física”. Entendemos que estas categorias, mesmo interligadas, guardavam características específicas que puderam ser discutidas separadamente com base na literatura.

a) Concepções de gênero

A análise do conteúdo revela o compartilhamento de diversas concepções relacionadas ao ser homem e ser mulher dentro dos contextos familiar e doméstico. Os relatos dos entrevistados revelaram a presença de concepções tradicionais/patriarcais das funções do homem e da mulher, sendo ressaltads as obrigações de cada um para serem considerados bons pais, maridos, esposas e mães. Segundo Ana, seu marido é muito bom, pois “Cuida das crianças, paga as contas em dia, não deixa atrasar nada”, funções essas que Ailton assume que são suas: “[...] a obrigação do homem é o quê? Proporcionar o lar, trabalhar, manter as coisas, tudo certo”. Em acordo com essa fala, que ressalta a importância do homem ser bom cuidador e provedor da família, encontramos também o relato de Roberto: “um bom homem precisa fazer pela família” e de Bruna “marido ruim [...] deixa faltar coisa dentro de casa”.

O conteúdo revela que a condição para que sejam consideradas boas esposas e mães as mulheres devem cuidar bem da casa – mantê-la organizada, cozinhar, lavar roupa – dos filhos e do marido – ser atenciosa e carinhosa, como descreve Breno, após afirmar que Bruna era uma boa esposa: “[Bruna] Gostava assim, de inventar coisa diferente, fazer um pudim, fazer um bolo, [...] cuidava bem da casa, [...] não era assim, uma mulher relaxada”. As descrições das mulheres entrevistadas partilham esse conteúdo, como ilustramos com a fala de Cássia: “Quando ele [marido] chegar a comida [deve] estar pronta, né? E ter os filhos todos limpinhos, tudo certinho. Acho que isso é ser uma boa esposa.”

Ainda com relação às atividades domésticas, Rose e Ana revelaram que julgam necessária a divisão de tarefas em casa (em situações em que os dois tenham empregos externos, ou quando o marido está de folga): “se dispor a colaborar dentro de casa, nos afazeres da casa, né? [...] Eu acho que um bom marido faz isso, se estiver de folga, né?” (Rose).

Descrições e comportamentos femininos menos tradicionais (que não correspondem ao papel de dona-de-casa) também foram identificados nas falas dos participantes, mas avaliados de forma diferente. Enquanto as mulheres descrevem esses novos padrões de forma positiva, esses são descritos negativamente ou são pouco valorizados pelos homens. Verifica-se que além dos aspectos tradicionais ainda valorizados, as esposas têm procurado exercer outras atividades de interesse: assumindo um trabalho assalariado, cuidando mais de si (saúde, beleza), saindo com amigos e amigas e mesmo escolhendo manter ou não uma relação sexual com o marido. Estes comportamentos serão discutidos na categoria seguinte, pois apesar de terem sido descritos por esposas e maridos como fatores que desencadeiam desentendimentos entre o casal, foram avaliados diferentemente por eles.

b) Conflitos – os desacordos entre os parceiros

Entre os motivos para as discussões e brigas do casal, os entrevistados (homens e mulheres) descreveram comportamentos dos parceiros que avaliam como prejudiciais para o relacionamento do casal e também para a convivência e manutenção da família. Segundo os homens, os comportamentos inadequados das esposas envolvem trabalho remunerado, vaidade e cobranças com relação a alguns comportamentos dos próprios maridos. Roberto afirma que determinadas roupas que Rose veste o incomodam (“... eu não gosto conforme uma roupa que ela veste, aí eu fico...”). Já Ailton se coloca na posição de exigir que sua esposa, e não uma empregada doméstica, cuide de sua casa, o que implica em descontentamento com o emprego de Ana: “...eu pagar uma empregada pra tomar conta, pra cuidar dos meus filhos, eu acho isso feio”. Ainda, observa-se que trabalhar fora de casa, sair com amigas ou se embelezar indicam para esses homens a possibilidade de a parceira estar envolvida ou interessada em se envolver com outros homens. Nesse sentido, o ciúme e o medo de ser traído são “aguçados” pela participação e exposição da parceira no ambiente público, como afirma Cássia: “A única ameaça que ele faz é assim ‘o dia que eu ficar sabendo que você está com alguém eu te levo pro mato e te mato’”.

Os comportamentos considerados pelas parceiras como prejudiciais à família e ao relacionamento do casal são alvo de reclamações e descontentamento, entre os descritos pelas entrevistadas temos: traição ou possibilidade de ser traído, falta de atenção para com filhos e esposa, abuso de bebida alcoólica ou droga ilícita. A análise das falas das esposas confirma os relatos de seus companheiros sobre aspectos que causam descontentamento e conflitos entre o casal. Em situações em que os parceiros expressam tais discordâncias, notamos que as respostas das parceiras tendem a ser de oposição, de enfrentamento, como a resposta de Bruna a seu marido, Breno, que cortava suas roupas para que ela não as usasse: “Ele falava ‘não usa’ aí é que eu usava, se falava que não era pra eu usar aí é que eu usava mesmo, entendeu?”. A violência psicológica exercida pelo marido é respondida por Bruna, que veste as roupas que Breno “proíbe”. Temos aqui uma situação na qual Bruna, ao mesmo tempo em que se posiciona como pessoa de direito (sobre seu corpo, suas roupas), parece também fazer uso disso para questionar a autoridade do parceiro (“aí é que eu usava mesmo”). Nesse sentido, podemos entender tal situação como uma troca de agressões entre os parceiros, ainda que a queima de roupas seja a mais visível.

Outra situação que também caracteriza tal oposição/imposição feminina é exemplificada por relatos como os de Rose, que se incomoda com o que julga descaso do marido com a família, por ele não “ver o que está faltando e trazer pra dentro de casa”. Por essa razão, ao conversarem sobre isso geralmente discutem: “mas parece que ele não liga [para a família]. E eu falo mesmo pra ele”.

A relação ou interação conflituosa continua: às respostas das esposas, seguem-se outras de seus maridos: “E muitas vezes quando ela não responde tudo termina bem, mas quando ela responde...” (Breno). Importante ressaltar que as mulheres identificam os pontos de tensão que irritam seus maridos e se engajam num “jogo de forças” com os parceiros para reivindicarem seus direitos. Ao cuidar de sua aparência, preservar seu emprego, manter suas conversas com amigas e amigos e insistir nas cobranças com relação ao desempenho do parceiro como pai e marido, essas mulheres tentam impor condições que, segundo descrevem os entrevistados, são “negociadas” por meio de brigas e discussões.

A análise dos dados nos permite considerar, como afirmam Rosa e cols. (2008), que diversos conflitos “menores”, tendem a se acumular no dia-a-dia e “eclodem em atos que configuram a violência conjugal do homem contra a companheira” (Rosa e cols., 2008:158). Permitimo-nos complementar tal afirmação: os conflitos entre os casais aqui entrevistados são construídos e mantidos por ambos os parceiros que, com pouco ou nenhum repertório ou estrutura para negociação, aliviam as tensões acumuladas nos atritos diários sob a forma de eventos violentos de maior dimensão. Tais desentendimentos são reconhecidos pontos de tensão que parecem naturalizados na relação – mesmo as cobranças em relação a algum tipo de mudança do parceiro ou da parceira são realizadas de tal forma que a expectativa de desentendimentos, ou mesmo de um conflito mais violento, já está presente.

c) Descrição e avaliação de brigas

Dos conflitos às brigas com violência física, descritos pelos entrevistados, identificamos o continuum descrito por Rosa e cols. (2008): a violência mais notável (física) eclode após o acúmulo de pequenos conflitos, às vezes mal negociados e, muitas vezes, sequer notados pelos companheiros.

Todos os casais reconhecem e descrevem a existência de violência física e psicológica. A violência física é frequentemente referida como praticada pelos homens contra a mulher, apesar de Breno e Ailton terem revelado agressões ou tentativas de agressões por parte de suas companheiras (“nisso que ela me deu um tapa eu fui e dei um chute na, na perna dela assim” – Breno; “pelo fato de ela ter avançado duas vezes pra cima de mim com uma faca” – Ailton).

A violência psicológica é descrita principalmente pelas mulheres que relatam humilhações e xingamentos sofridos, como os descritos por Bruna: “falava muito isso pra mim, entendeu? E que eu era horrível, ridícula ‘você é gorda, horrorosa’ isso ele falava muito, entendeu? Como mulher ele me ofendeu muito”. Em alguns casos a violência psicológica não é nomeada pelas entrevistadas, mas pode ser facilmente identificada dado o efeito negativo que causa (medo, sentimento de humilhação). Cássia, por exemplo, não nomeia a ameaça de morte feita por seu marido como um tipo de violência psicológica, porém, revela: “eu tenho medo de ele me matar no mato”.

Ailton, que admite praticar violência física e psicológica contra a esposa, é o único homem que declara sofrer violência psicológica praticada por sua companheira: “eu acho que há, por minha parte uma pressão psicológica em determinadas circunstâncias. E há dela também, eu acredito que há. Essa violência psicológica, essa pressão pra poder, te irritar, te deixar nervoso, te provocar”.

Apesar de apenas um dos homens mencionar violência psicológica exercida pela esposa, encontramos estudos que indicam a presença desse tipo de agressão com bastante frequência (Jenkins & Aubé, 2002; Kelly, 2004).

Todos os homens negaram ter exercido qualquer tipo de violência sexual contra suas parceiras, mesmo tendo-se clarificado, durante as entrevistas, que toques indesejados e/ou ameaças para que a mulher ceda também são assim qualificados. As negativas foram bastante curtas e, em alguns casos, demonstravam indignação com relação a tal ato, como Cassiano que afirmou haver muito respeito entre ele e Cássia: “Deus me livre. Quando um não quer dois não briga. Quando um não quer então tá bom, ‘deixa eu dormir’”.

Apesar das negativas masculinas, Rose e Ana descreveram situações de abuso sexual. O que difere no relato dessas mulheres é que apenas Rose identificou o ato como uma violência que poderia ser denunciada – mas não foi: “e ele me segurou e falou que eu era mulher dele, [...]. E mesmo sem eu querer, [...] se eu quisesse ter denunciado ele, né, porque ninguém é obrigado a fazer o que ele quer”.

Em uma pesquisa recente, Schraiber, D’Oliveira e França Junior (2008) investigaram a ocorrência de violência sexual cometida entre parceiros íntimos hetero, homo e bissexuais, considerando como violência sexual relações sexuais descritas como fisicamente forçadas degradantes/humilhantes ou sexo por medo. Ana afirma que Ailton nunca tentou ter relações sexuais à força com ela. Porém, encontramos relatos de situações em que Ana denota sujeição ao marido: “... fazia mesmo pra satisfazer a ele, pra poder evitar de ele falar que eu estava com outro homem, ...”. Ela afirma que, após satisfazer seu marido, sentia-se mal: “Eu me sentia suja, corria pro banheiro e ia tomar banho”. Para Ana, a diferença entre conceder e ceder não parece clara, apesar do sofrimento que relata. Descrições semelhantes foram encontradas também no estudo de Dantas-Berger e Giffin (2005) e, do mesmo modo, a ausência de nomeação desse ato como violento. Com base nas descrições de Ana, analisamos que não nomear o ato como violação pode decorrer da compreensão de que detém algum controle da situação e que “escapou de algo pior”: acusações de traição, ameaças e violências físicas. Ainda assim, fica evidente que a violência ocorreu, pelo fato de a relação sexual ter sido cedida (e não consentida) em função do medo de reações mais violentas do parceiro.

Esses dados corroboram os encontrados no estudo que Schraiber e cols. (2008) realizaram sobre a ocorrência da violência sexual com forte base nas relações de gênero. Segundo esses autores, a agressão contra a mulher é “própria e identificadora da subordinação das mulheres em suas relações com os homens” (Schraiber e cols., 2008:129).

Retomemos aqui a entrevista do marido de Ana, Ailton, que assumiu já ter mantido casos extraconjugais e acredita que o bom relacionamento sexual do casal é necessário para a manutenção da relação e meio para impedir a parceira de trair o marido. Segundo ele, sexo é “uma das coisas mais importantes no relacionamento de um casal”. Ele afirma tentar proporcionar sempre orgasmos à esposa, pois acredita que a partir “do momento que ela está traindo o marido, ele não está satisfazendo ela sexualmente”.

Se há satisfação sexual por parte de Ailton, esta não é relatada; o que aparece com frequência em sua entrevista é a necessidade de cuidar para que a esposa fique suficientemente satisfeita e não precise se envolver em relações extraconjugais, como ele já fizera. Segundo Ailton, a traição por parte da companheira é uma grande ameaça, posto que resulta da insatisfação sexual da parceira e facilita o envolvimento sexual e afetivo dela com outra pessoa. Diferentemente do homem, “que é mais carne”, a mulher “costuma se envolver mais” nas relações sexuais, observa Ailton, cujas considerações revelam uma compreensão bastante tradicional das sexualidades de mulheres e homens: a primeira relacionada a carências afetivas (maiores do que as sexuais) e a segunda restrita a necessidades biológicas (“da carne”). É nesse sentido que Ailton afirma que a satisfação sexual da esposa é uma obrigação do marido: é um dos modos pelos quais ele procura manter seu relacionamento com a parceira.

O conteúdo declarativo do casal nos permite avaliar como a relação sexual se tornou para eles um contrato silencioso de “minimização de conflitos”, aparentemente não negociado entre o casal: a mulher se submete para evitar agressões e acusações e o marido se coloca sempre pronto a satisfazê-la, acreditando evitar traições por parte da esposa e, assim, manter o relacionamento.

As descrições realizadas pelos homens e mulheres das situações de violência física (mais facilmente identificada e assumida pelos casais do que a violência psicológica e a sexual) apresentaram conteúdos bastante característicos. De um modo geral, nos relatos das mulheres há menções a sentimentos negativos, ferimentos e tipos das agressões que ocorreram. Já no relato dos homens, observa-se uma descrição mais breve do episódio de violência e tanto as consequências físicas e afetivas na companheira como os sentimentos negativos são minimizados.

O consumo de bebida alcoólica é utilizado para “justificar” a falta de controle sobre o comportamento violento e aparece em todos os relatos (“na maioria das vezes rolava bebida, na maioria das vezes. [...] quando eu não bebo, eu não, dificilmente eu tenho uma postura agressiva” – Ailton).

Observamos que o contexto descrito pelos maridos compreende comportamentos da esposa considerados “inadequados” e que causam embaraço e/ou irritação. Apesar de citarem algumas agressões desferidas contra as parceiras (tapas, empurrões e chute) entre os aspectos que contextualizam as situações de violência, os entrevistados argumentaram que o uso de agressões físicas é raro e de pouco, ou quase nenhum, poder ofensivo. Diversos estudos (dentre eles os de Cavanagh, Dobash, Dobash & Lewis, 2001; Cortez e cols., 2005; Rosa e cols., 2008) informam ser comum a tentativa masculina de minimizar as consequências das violências praticadas, como podemos observar no relato de Breno: “...não é assim constantemente, [...] aconteceu durante esses três anos e pouco umas três ou quatro vezes, (..) mas assim, de deixar olho-roxo, ou assim, [...] com hematomas [não]...”. Considerando que esses homens já foram condenados pelas agressões que cometeram, indagamos o que os levaria a ainda minimizar as agressões.

Como Rosa e cols. (2008), observamos que no relato dos homens estão presentes tanto o autor da violência (ainda que minimizem as agressões, todos assumem tê-las cometido) como o homem vitimado pela parceira, que é responsabilizada por eles pela agressão por provocar tal reação no seu parceiro. Tal observação pode ser ilustrada pela seguinte descrição, realizada por Cassiano:

“... eu tava jogando dominó no bar do pai dela, [...] ela chegou no meio de todo mundo, ela falou, ‘ah, você tá jogando, porque você não ficou em casa?’. [...] Aí, não sei o quê, eu viro uma canecada na testa, aí ‘pou’...”

A nosso ver, a miminização das consequências, bem como a responsabilização da parceira, são uma tentativa desses homens de se afastar do rótulo de “homens que batem em mulheres”, característica essa que vai de encontro à do “homem protetor das mulheres”, culturalmente bem avaliada. Desse modo, os entrevistados tentam mostrar-se como “bons homens” para o entrevistador e também para eles mesmos, apesar das ocorrências de abuso.

Entendemos que a pouca ou nenhuma identificação, por parte dos homens entrevistados, de avaliações das consequências negativas da violência nas esposas e no relacionamento devese ao fato de eles menosprezarem as agressões e negarem possíveis efeitos graves decorrentes das brigas. Ao mesmo tempo em que se dizem arrependidos pela violência cometida, os maridos relatam desconhecer ferimentos ou danos emocionais significativos nas esposas. Ao ser questionado sobre como se sentiu após um dos episódios de agressão, Roberto responde: “arrependido [...] eu fiquei doendo por dentro. [e ela?] revolta, né, raiva”. Cassiano resume o que parece ser uma compreensão comum entre os homens entrevistados: “é briga de casal, discute e depois resolve tudo na cama, né”.

Assim, por considerarem que os efeitos da violência são mínimos e temporários, os maridos avaliam positivamente seus relacionamentos e suas parceiras, destacando aspectos afetivos e/ou domésticos: “ela é muito gente boa, eu gosto muito dela”. (Roberto); “ela é uma boa esposa. Assim ó, as tarefas de casa, assim, eu estou falando assim, né.” (Breno). A matriz das relações de gênero talvez acentue o processo de minimização das consequências da violência, mas esta tendência pode ser observada também em outros contextos de violência, inclusive naqueles onde esta é praticada contra crianças e adolescentes. Nestas situações, contextos em que os envolvidos raramente reconhecem que foram violentos e quando não há como negar apresentam justificativas pedagógicas.

Ao contrário dos homens, as falas de suas companheiras sobre as situações de violência foram mais detalhadas em termos de sentimentos negativos (sofrimento, medo, humilhação) e também de agressões e ferimentos. Breno, companheiro de Bruna, além de não detalhar a situação de violência como ela o fez, afirmou, em um dado momento de sua entrevista que ela “nunca demonstrou medo não”, o que não corresponde à descrição de uma das brigas do casal:

“e eu falava ‘pára’, parecia uma pessoa possuída, que não adianta você falar nada. E aconteceu que eu fui orando, rezando e ele saiu. Aquele dia eu quase me defequei no banheiro, eu nunca senti um medo tão grande na minha vida.” (Bruna)

As esposas revelam com mais detalhes os tipos de agressão que sofreram e as consequências que foram minimizadas pelos homens, ou sequer foram mencionadas por eles: dentes quebrados, hematomas, arranhões e contusões.

“até ele mesmo [médico] me deu o laudo, que, devido a queda provocada por ele [marido], eu tinha machucado os rins.” (Ana)

No relato das esposas surge também a frustração e o descontentamento com o relacionamento amoroso. Diferentemente dos maridos, elas se revelam desencantadas e/ou indiferentes com relação a seus pares.

“O sentimento que fica depois é que o amor que você sente por essa pessoa vai se acabando. Acabando, acabando... e aquela angústia, aquela dor.” (Cássia)

“eu não acho um bom marido, acho que nunca se preparou pra ser um marido. Ele nunca levou a vida familiar a sério.” (Rose)

 

Considerações Finais

Em estudo sobre vivências e percepções sobre violência sexual, Dantas-Berger e Giffin (2005:418) afirmam que tal violência será percebida e vivida de modo diferente por cada mulher, uma vez que “gênero se conjugará com outros elementos como idade, condições familiares, sociais, econômicas e culturais, sem existir um caráter universalizante, mas socialmente estruturado no modo como esses elementos se associam ou não em suas vidas”. A análise dos dados confirma alguns aspectos desse caráter socialmente estruturado e, longe de trazerem respostas que possam ser generalizadas e aplicadas diretamente a qualquer grupo, permitem, em alguns momentos, o acesso a aspectos singulares ora de um participante, ora de um determinado casal.

Os dados fornecidos pelos quatro casais entrevistados possibilitaram avaliar algumas características de suas relações conjugais, bem como das situações de violência nas quais se envolveram. Partindo-se de uma perspectiva relacional de gênero, podemos ressaltar a identificação de contestações femininas com relação a certas convenções tradicionais de gênero e, ao mesmo tempo, a reafirmação de algumas tradições no que tange aos papéis domésticos e de cuidadora. Estes mesmos padrões são constantemente reafirmados pelos maridos, que rechaçam comportamentos das esposas que não atendem às regras tradicionais de gênero. Ainda assim, esposas e maridos procuram delimitar claramente seus papéis e funções como cuidadores do lar e da família, mesmo quando relatam a existência de uma divisão mais igualitária de tarefas. Desse modo, entendemos que os relatos evidenciam concordâncias entre as esposas e maridos no que se refere aos modos de pensar e agir tradicionalmente prescritos ao homem e à mulher.

Por outro lado, verificamos que as entrevistadas descrevem comportamentos que visam maior acesso ao espaço público e também maior autonomia na relação com o marido ao mes mo tempo em que revelam anseios pela manutenção dos papéis tradicionais domésticos e familiares. É importante destacar que, apesar da inserção da mulher no mercado de trabalho não ser uma conquista nova, é ainda recente e, nos casos analisados, é um assunto delicado e criticado pelos maridos, que sentem sua função de provedor-chefe da casa ameaçada e ainda vislumbram a possibilidade de serem traídos por suas esposas, que agora se expõem no “mundo de fora”. Avaliamos que as ambiguidades e tensões que caracterizam tal condição ilustram um difícil momento de transição para estas mulheres, que tentam ultrapassar os limites impostos por um espaço que culturalmente lhes confere certo poder e valor (doméstico-familiar) em busca de mais autonomia.

No conteúdo analisado também foi possível identificar a existência de certo descompasso do “tempo de gênero” (Dantas-Berger & Giffin, 2005:419), que parece ser decorrente da inserção de novas concepções de gênero no discurso e nas ações das mulheres. Essas concepções provocam reações violentas dos maridos que ainda avaliam a maior autonomia feminina como uma ameaça às práticas inerentes à masculinidade tradicional. Consideramos assim que apesar de entendermos que a masculinidade não é um conceito rígido e restrito, ela assim parece ser percebida pelos homens entrevistados, uma vez que eles demonstram não reconhecer, nas relações com a nova mulher que começa a se expor, outras possibilidades positivamente valorizadas de ser homem.

Avaliamos que os resultados possibilitam verificar que a violência se dá na relação, e as agressões são resultado de um jogo de forças que ocorre nos relacionamentos de casais nos quais conflitos são naturalizados e outros modos de negociação não são considerados ou não parecem possíveis. Nas entrevistas analisadas, a transição da masculinidade hegemônica, fortemente enraizada em nossa cultura, para a masculinidade que as novas estruturas familiares, conquistas e demandas femininas requerem, parece ainda bastante difícil. Os “homens de verdade”, sentem-se ameaçados por manifestações femininas de autonomia, mostrando-se despreparados para transformar suas concepções de masculinidade com base em uma nova proposta de feminino.

Os dados obtidos informam a existência de um conflito entre a masculinidade ideal compreendida e almejada pelos homens entrevistados e sinais de empoderamento feminino, identificados nas iniciativas de autonomia das mulheres em contextos de trabalho, relações com amigos, cuidados consigo e reivindicações sobre o relacionamento. Vale ressaltar que, enquanto o conceito de masculinidade se constitui como configurações de práticas (Connell, 1995), o conceito de empoderamento refere-se à avaliação de um processo. Tal processo, que “empodera” as mulheres, pode ser avaliado do ponto de vista individual ou de uma categoria (León, 2001), o que nos permite vislumbrar o empoderamento em manifestações como aquelas identificadas nas entrevistas analisadas.

Considerar tal perspectiva, a nosso ver, pode significar considerar também um movimento importante para muitas mulheres e uma possibilidade positiva para reestruturação de sua vida social e afetiva, por meio de intervenções que as fortalecem fornecendo-lhes instrumentos e condições para a conquista novos espaços. , Entendemos ainda que o empoderamento feminino traz benefícios ao homem, no sentido de lhe permitir o acesso a direitos antes negados ou pouco valorizados socialmente (por exemplo, demonstração de sentimentos e fraquezas, inserção afetiva na família), ou seja, a possibilidade de exercer uma masculinidade não mais baseada apenas em pressupostos estritamente tradicionais: deve ser provedor, deve proteger, não pode ser dependente, não pode se envolver emocionalmente, não pode sentir ou expressar sentimento de ternura, não pode “faltar com a família”.

Devemos considerar, por outro lado, que tanto os ganhos femininos como os masculinos vêm acompanhados de perdas e da necessidade de negociação dos novos e antigos espaços. Homens e mulheres vivenciam as dificuldades em lidar com e aceitar as novas possibilidades de feminino e masculino que nossa organização social tem demandado: os homens passam a competir por empregos com as mulheres e, em alguns casos não são mais os únicos ou principais provedores da família; as mulheres podem precisar equilibrar suas atividades profissionais com as de esposa e mãe – a famosa “dupla jornada feminina”, ou mesmo ter que escolher entre projetos profissionais ou familiares. Entendemos que estas perdas e dificuldades, bem como os ganhos, são irremediáveis quando se trata do processo de construção dos gêneros e deveriam ser reconhecidas e negociadas nas relações em função de um convívio igualitário. Por outro lado, reconhecemos a inexistência de relações de gênero plenamente equilibradas, dado que compreendemos a construção do feminino e do masculino como processo que exige uma constante reorganização de valores e práticas.

Retomando as questões sobre violência conjugal e desempenho de funções tradicionais de gênero, destacamos dois pontos que revelam características contraditórias do processo de construção dos gêneros e ilustram a coexistência de aspectos tradicionais e contemporâneos nas relações conjugais dos casais que participaram do estudo. O primeiro ponto diz respeito ao movimento por autonomia das esposas entrevistadas, que se depara com um contra movimento de seus parceiros, que objetivam “frear”, por meio de violências, comportamentos que impliquem em alterações das relações tradicionais de gênero e, portanto, em novas formas de exercício do masculino e do feminino. O segundo ponto a ser destacado é o fato de essas mesmas mulheres que exigem mudanças, também cobrarem a presença do marido-provedor, função ainda hoje fortemente valorizada.

Lidar com demandas contraditórias (do companheiro ou da sociedade) colabora para o aumento da tensão entre o casal e facilita a ocorrência de desentendimentos e de situações de violência. Se a violência conjugal reflete a reafirmação de uma masculinidade que se aproxima da hegemônica no confronto com reivindicações de direitos pelas mulheres, entendemos que também nos revela as dificuldades masculinas e femininas em lidar com as mudanças nas posições do homem e da mulher na sociedade e na família. Parece-nos, pois, de grande relevância a utilização de uma perspectiva relacional na análise da configuração da violência nas relações conjugais. A identificação de pontos compartilhados e destoantes, de concordâncias e contradições nas falas dos casais, possibilita a compreensão de uma dinâmica complexa que não seria acessível por meio da análise do conteúdo oferecido por apenas um dos membros do casal em situação de violência conjugal.

 

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Endereço para correspondência
Mirian Béccheri Cortez
E-mail: mibecz@yahoo.com.br

Lídio Souza
E-mail: lidio.souza@uol.com.br

Sávio Silveira de Queiróz
E-mail: savioqueiroz@terra.com.br

Recebido em: 20/03/2009
Revisado em: 23/05/2009
Aceito em: 30/06/2009

 

 

* Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo – Vitória, ES – Brasil.
** Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo – Vitória, ES – Brasil.
*** Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo – Vitória, ES – Brasil.