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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.10 no.20 São Paulo dez. 2010

 

DOSSIÊ

 

O método de investigação na psicologia histórico-cultural e a pesquisa sobre o psiquismo humano

 

The method of research in psychology and the historical-cultural survey human psych

 

El método de investigación en psicología y la pisque histórico-cultural la encuesta humano

 

 

Maria Eliza Mattosinho Bernardes*

Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo – São Paulo, SP – Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste estudo teórico é explicitar os pressupostos teórico-metodológicos da pesquisa sobre a constituição e o desenvolvimento histórico do psiquismo humano segundo a psicologia histórico-cultural e o método materialista históricodialético. Apresentam-se os elementos essenciais sobre a constituição e do desenvolvimento histórico do psiquismo humano, explicitam-se as bases metodológicas implícitas no método de investigação e aborda a mediação na constituição da individualidade humana. Os resultados levam-nos a considerar que a superação da compreensão do ser individual pressupõe a compreensão do ser universal, que não pode ser identificado apenas como produto da condição particular própria do processo de culturalização que medeia a condição humana, mas ocorre a partir da apropriação da condição humana constituída histórico-culturalmente. Concebe-se que a compreensão do fenômeno na dimensão histórico-cultural exige uma posição ética e política na organização de ações que criem possibilidades para a superação das condições alienantes instituídas na sociedade contemporânea.

Palavras-chave: Psicologia histórico-cultural, Método, Psiquismo humano, Materialismo histórico dialético, Mediação.


ABSTRACT

The goal of this theoretical study is to explicit the theoretical-methodological assumptions of the research about the constitution and the historical development of human psychologism according to historical-cultural psychology and the materialistic historical-dialectic method. The essential elements about the constitution and historical development of the human psychologism are presented, the research method implicit methodological bases are explained and the mediation in human individuality constitution is tackled. The results drive us to the consideration that the overcoming of the comprehension of the individual being assumes the comprehension of the universal being, that cannot the identified just as an product of the own particular condition unique of the enculturation process that mediates the human condition, but in fact it occurs from the appropriation of the human condition historically-culturally built. It is conceived that the comprehension of the phenomena in the historical-cultural dimension demands an ethical and political position in the organization of actions that create possibilities for the overcoming of alienating conditions instituted in contemporary society.

Keywords: Historical-cultural psychology, Method, Human psyche, Historical dialectical materialism, Mediation.


RESUMEN

El objetivo de este artículo es hacer explícitos los fundamentos teórico-metodológicos de la investigación acerca de la constitución y del desarrollo histórico del psiquismo humano según la psicología histórico-cultural y el método materialista histórico dialéctico. Se enseñan los elementos esenciales sobre la constitución y el desarrollo histórico del psiquismo humano, se hacen explícitas las bases metodológicas implícitas en el método de investigación y se aborda la mediación en la constitución de la individualidad humana. Los resultados nos llevan a considerar que la superación del ser individual presupone la comprensión del ser universal, que no puede ser identificado solamente como producto de la condición propia del proceso de culturalización que media la condición humana, pero ocurre desde la apropiación de la condición humana constituida histórico-culturalmente. Se concibe que la comprensión del fenómeno en su dimensión histórico-cultural exige una posición ética y política en la organización de acciones que críen posibilidades para la superación de las condiciones alienantes presentes en la sociedad contemporánea.

Palabras clave: Psicología histórico-cultural, El método, La psique humana, El materialismo histórico y dialéctico, La mediación.


 

 

Introdução1

No estudo da história das ciências, verifica-se que a concepção de homem e de mundo, assim como os pressupostos teórico-metodológicos assumem, de forma direta ou indireta, um papel protagonista na definição do problema de pesquisa e no encaminhamento de ações que criem possibilidades de análise e interpretação da realidade.

Trata-se da explicitação das diretrizes para definição do método científico como um conjunto coerente de procedimentos racionais ou prático-racionais que orienta o pensamento para serem elaborados conhecimentos considerados válidos (Köche, 1997) nos campos acadêmico e científico. Também conceituado como meio de obtenção de resultados no campo do conhecimento e da prática, Kopnin (1978:91) afirma que “todo método compreende o conhecimento de leis objetivas. As leis interpretadas constituem o aspecto objetivo do método, sendo o subjetivo formado pelos recursos de pesquisa e transformação dos fenômenos, recursos esses que surgem como base naquelas leis”.

No movimento de delimitação do método, constata-se, na produção do conhecimento científico, a influência de diferentes concepções filosóficas que influenciam na definição dos métodos empregados pelos pesquisadores contemporâneos que desenvolvem pesquisas a partir dos paradigmas do pós-positivismo, das teorias críticas e do construtivismo social.

Os precursores históricos desses paradigmas, segundo Alves-Mazzotti (1998), são os estudos elaborados principalmente por Popper, Kuhn, Lakatos e Feyerabend que atingem diretamente os pilares do positivismo: a objetividade da observação e a legitimidade da indução; outra influência histórica é desencadeada a partir da crítica elaborada pela Escola de Frankfurt relativa aos aspectos ideológicos e à atitude científica dominante em busca de uma ciência comprometida com a transformação social.

A compreensão histórica da produção científica, em particular na contemporaneidade, leva-nos a conceber que o conhecimento produzido segundo as diferentes abordagens de pesquisa, que empregam diferentes métodos de investigação, atende às necessidades das diferentes áreas de conhecimento. No entanto, nas ciências humanas, verifica-se que o produto do processo de pesquisa atende a finalidades distintas, correspondentes a diferentes visões de homem e de mundo por parte dos pesquisadores responsáveis. Tais finalidades têm cunho revolucionário ou reacionário, ou seja, visam à transformação dos processos e da ordem social instituída, ou promovem a institucionalização dos mesmos apesar de, em alguns casos, promover a crítica à própria sociedade, sem apresentar encaminhamentos para superá-la.

Diante do contexto citado, este texto traz ao debate os pressupostos da pesquisa sobre o psiquismo humano, fenômeno estudado por diferentes linhas teóricas que produzem conhecimentos distintos, tendo-se em vista as particularidades do problema de pesquisa e do método empregado nas investigações científicas. No entanto, este estudo teórico não tem como intenção explicitar as bases científicas das diversas linhas teóricas, mas tem como objetivo explicitar os pressupostos teórico-metodológicos da pesquisa sobre a constituição e o desenvolvimento histórico do psiquismo humano a partir da psicologia histórico-cultural que se organiza pelo método materialista histórico dialético.

Estes pressupostos teórico-metodológicos visam à superação das condições instituídas na realidade para além da crítica aos elementos próprios da sociedade, buscando identificar, na historicidade dos fenômenos estudados, as condições necessárias para que a potencialidade do gênero humano se objetive na individualidade dos sujeitos. Assim, o estudo da conduta do homem vincula-se diretamente às condições objetivas criadas pela vida em sociedade.

Têm-se como tese central no estudo do desenvolvimento do psiquismo humano pelo enfoque histórico-cultural que o desenvolvimento humano ocorre por meio da atividade mediada decorrente do processo de socialização. Este processo não é considerado pelo enfoque teóricometodológico em questão como contexto para o desenvolvimento humano, mas como elemento determinante no processo de humanização. Tal concepção nos reporta à tese marxiana de que a vida em sociedade é que determina a consciência e a conduta do homem, e não o seu inverso. Na objetividade da vida em sociedade, como construção histórica e produto de múltiplas determinações, é que o homem encontra as condições e possibilidades reais para desenvolver-se.

Assume-se, a partir dos pressupostos de pesquisa citados, a posição revolucionária e, concomitantemente contraditória, diante da condição humana instituída na sociedade. Ao mesmo tempo em que se visa garantir a universalização da condição humana pela democratização das ações nas atividades em geral, a organização da sociedade capitalista contemporânea não se organiza para que tais fins se objetivem. Desta forma, a finalidade deste estudo é explicitar os motivos que levaram à produção do método geral na psicologia (Vygotsky, 2004) que contemplasse as possibilidades de universalização da condição humana expressa nas singularidades dos sujeitos, mediada pelas condições particulares criadas pela vida em sociedade.

 

O Desenvolvimento do Psiquismo Humano

De uma forma geral, a pesquisa sobre o psiquismo humano, em sua dimensão epistêmica, é mediada pela questão do método que se organiza segundo diferentes princípios lógicos. Recebendo influência tanto dos princípios lógicos quanto dos métodos de investigação, são definidos os problemas a serem pesquisados e são encaminhadas as possibilidades de respostas num contexto particular da ciência.

A relação entre a definição de problemas de pesquisa, métodos de investigação e os princípios lógicos que os organizam recebeu especial atenção de Vygotsky no início do século XX ao investigar as diversas tentativas de análise dos fenômenos psicológicos, identificando que tanto as concepções idealistas quanto as mecanicistas não explicavam o fenômeno psicológico em sua totalidade. Entre as diversas linhas teóricas, o embate entre o subjetivismo e o objetivismo define os problemas de pesquisa e as explicações dos fenômenos psíquicos. Em decorrência da influência dos pressupostos teórico-metodológicos que permeiam os estudos sobre o psiquismo humano, são definidas as linhas teóricas como o behaviorismo e a psicanálise que, além de operarem com diferentes conceitos, também investigam fatos diferentes.

Este cenário, na história do estudo do psiquismo humano, é identificado por Vygotsky (2004) como a “crise da psicologia”, caracterizada por uma “crise metodológica”, que somente poderia ser superada pela via da metodologia científica que resgatasse a história do desenvolvimento humano.

Tendo como foco principal em sua pesquisa o estudo da constituição e do desenvolvimento das funções psicológicas superiores, Vygotsky aponta para uma nova necessidade: identificar o método que atendesse a este novo problema.

Para tanto, a possibilidade de superação das concepções idealista e naturalista pelo método materialista histórico dialético no estudo do psiquismo humano é dada pela concepção de que a natureza que influi exclusivamente sobre o homem são as condições históricas e que o homem atua sobre a natureza e a transforma, criando, assim, novas condições de existência. Segundo Marx e Engles (2009:24), “podemos distinguir os homens dos demais animais pela consciência, pela religião – por tudo o que se quiser. Mas eles começam a distinguir-se dos animais assim que começam a produzir os seus meios e subsistência (Lebensmittel), passo esse que é requerido pela sua organização corpórea. Ao produzir os seus meios de subsistência, os homens produzem indiretamente a sua própria vida material”.

No movimento de produção dos meios de subsistência, o trabalho e a comunicação são considerados os elementos essenciais no processo de constituição e de transformação da natureza do homem.

Sobre a constituição histórica do gênero humano, Leontiev (1998) salienta a importância da natureza social do homem na sua conformação atual, como homem cultural, e concebe que todos os aspectos que entram em sua constituição advêm da vida em sociedade, por meio da cultura criada pela humanidade. Ao referir-se à obra de Engels, o autor afirma que:

[...] sustentando a idéia de uma origem animal do homem, [Engels] mostrava ao mesmo tempo que o homem é profundamente distinto dos seus antepassados animais e que a hominização resultou da passagem à vida numa sociedade organizada na base do trabalho; que esta passagem modificou a sua natureza e marcou o início de um desenvolvimento que, diferentemente do desenvolvimento dos animais, estava e está submetido não às leis biológicas, mas a leis sócio-históricas. (Leontiev, 1998:28)

O processo lento de constituição do homem passa por estágios gradativos, não lineares, que vão desde o estágio da “preparação biológica” ao estágio de “passagem” ao homem definido pela fabricação de instrumentos e formas embrionárias de trabalho e sociedade. Nesse estágio, a formação do homem ainda está sujeita às leis biológicas transmitidas hereditariamente. Por meio da influência do desenvolvimento do trabalho (atividade produtiva não alienada) e da comunicação pela linguagem (instrumento simbólico), as leis sócio-históricas passam a gerir o desenvolvimento do homem como ser humano integrado à sociedade pela cultura. Esse estágio é identificado por Leontiev (1998:281) como etapa essencial de viragem, definida como “o momento com efeito [sic] que a evolução do homem se liberta totalmente da sua dependência inicial para com as mudanças biológicas inevitavelmente lentas, que se transmitem por hereditariedade. Apenas as leis sócio-históricas regerão doravante a evolução do homem.”

O processo de hominização ocorre, segundo o autor, diante da necessidade de subsistência do próprio homem, pela luta em manter-se vivo. O homem não só se adapta ao meio, mas, principalmente, promove transformações no meio em que vive. Nesse processo, o homem constrói habitações e produz bens materiais por meio da atividade criativa e produtiva, que se caracteriza como a atividade humana fundamental, o trabalho. Essa, por sua vez, promove mudanças na constituição do próprio homem, desenvolvendo aptidões motoras, complexidade fonética e transformando os órgãos dos sentidos e da percepção humana em órgãos “sociais” na sua constituição.

Marx (1974) afirma que, diante das relações humanas, os sentidos em geral (visão, audição, gustação, olfação, tato), assim como o pensamento, a contemplação, os sentimentos, a vontade, enfim, as relações que estabelecem a individualidade do homem, são elaboradas por órgãos sociais no movimento de apropriação da realidade objetiva. O significado social dos objetos somente é apropriado pelos herdeiros da cultura por meio das relações interpessoais com os demais participantes da sociedade.

Vygotski e Luriá (1996:53) não identificam as mudanças no comportamento humano numa sequência linear, mas afirmam que a passagem de um momento a outro “[...] começa precisamente no ponto em que termina o anterior e serve como sua continuação em nova direção. Essa mudança de direção e no padrão de desenvolvimento de modo algum exclui a possibilidade de conexão entre os dois processos, mas, ao contrário, antes pressupõe essa conexão.” Os autores identificam etapas críticas que promovem a mudança na linha do desenvolvimento humano. Essas etapas são apontadas da seguinte forma:

O uso e ‘invenção’ de ferramentas pelos macacos antropóides é o fim da etapa orgânica de desenvolvimento comportamental na seqüência evolutiva e prepara o caminho para a transição de todo desenvolvimento para um novo caminho, criando assim o principal prérequisito psicológico do desenvolvimento histórico do comportamento. O trabalho e, ligado a ele, o desenvolvimento da fala humana e outros signos psicológicos utilizados pelo homem primitivo para obter o controle sobre o comportamento significam o começo do comportamento cultural ou histórico no sentido próprio da palavra. Finalmente, no desenvolvimento da criança, vemos claramente uma segunda linha de desenvolvimento, que acompanha os processos de crescimento e maturação orgânicos, ou seja, vemos o desenvolvimento cultural do comportamento baseado na aquisição de habilidades e em modos de comportamento e pensamento culturais. (Vygotski & Luria, 1996:52)

A análise das etapas críticas que desencadeiam mudanças no desenvolvimento humano a partir do uso de instrumentos, do trabalho e do uso de signos psicológicos e da apropriação da cultura, como o modo pelo qual se torna possível a dimensão ontológica nos indivíduos, identifica o processo histórico da evolução do homem.

No estudo do desenvolvimento das funções psicológicas superiores, também identificado por Vygotsky como o estudo do desenvolvimento cultural da criança, o indivíduo é entendido como um ser social. A compreensão Vygotskyana do termo “social”, tendo-se como referência os pressupostos filosóficos e científicos que organizam o pensamento e a investigação na psicologia histórica cultural, não ocorre numa dimensão imediata de sociedade, mas numa dimensão histórica que coloca o homem em relação aos bens materiais e intelectuais produzidos pelo conjunto dos homens ao longo de sua história, ou seja, produzidos pelo gênero humano.

Trata-se da relação entre a dimensão universal, própria da genericidade humana, e a dimensão singular, caracterizada pela individualidade dos sujeitos, mediada pelo particular,
condições e circunstâncias criadas pela vida em sociedade. Considera-se que a objetivação da relação entre o singular e o universal ocorre pela participação ativa dos indivíduos no processo de apropriação dos bens materiais e pela transformação das condições instituídas culturalmente por meio da organização das sociedades.

A figura, a seguir, ilustra o movimento de constituição da individualidade humana, segundo o método materialista histórico dialético.

 

 

A relação entre singular-universal, presente na relação entre indivíduo-genericidade, objetiva-se entre a realidade própria em que se encontram os indivíduos e a essência humana decorrente dos movimentos social e histórico de constituição de sua natureza.

O movimento entre a realidade objetiva própria dos indivíduos e a essência humana institui-se a partir de diferentes mediações decorrentes das atividades humanas nas quais os sujeitos se inserem e que medeiam os bens culturais. Tais mediações ocorrem pela via das condições e circunstâncias resultantes do processo educativo em geral, seja pela vida em família, pelo processo pedagógico escolar ou pelas inter-relações decorrentes da participação dos indivíduos em diferentes grupos sociais.

No entanto, concebe-se que a relação entre o indivíduo e o gênero humano não ocorre de forma direta nem imediata devido às condições alienantes próprias da sociedade contemporânea. Tal relação vincula-se às possibilidades de mediação das significações sociais instituídas historicamente no processo de culturalização. Trata-se da implicação da dimensão interpessoal na dimensão intrapessoal decorrente da vida em sociedade. Este movimento constitui a socialidade concreta do indivíduo que, segundo Duarte (1993), nem sempre garante a objetivação do indivíduo como ser genérico decorrente do processo de fragmentação vigente na sociedade em geral.

A socialização, como condição essencial no processo de constituição do gênero humano, estabelece a dimensão ontológica do ser, o que de fato, devido às desigualdades econômicas e de classe, não ocorre, pois nem todos os indivíduos têm a possibilidade de acessar a produção humana elaborada historicamente.

Ao analisar o processo de alienação na sociedade capitalista, Duarte (2004) reporta-se à análise do fenômeno realizada por Leontiev2 e afirma que existem duas origens para a alienação. A primeira refere-se à “[...] dissociação entre o significado e o sentido das ações humanas” 3; outra origem da alienação é a “[...] impossibilidade existente, para a grande maioria dos seres humanos, de apropriação das grandes riquezas materiais e não materiais já existentes socialmente” (Duarte, 2004:56)4.

O autor assume uma posição pessoal diante da relação entre o sentido e o significado da atividade de trabalho ao afirmar:

Penso que tanto para o indivíduo como para a sociedade ocorre essa ruptura entre o significado e o sentido da ação. Se considerarmos o significado como sendo o conteúdo da ação e o sentido como sendo as ligações entre esse conteúdo e o conjunto da atividade, a primeira cisão que aparece é de fato, como analisou Leontiev, aquela entre o conteúdo da ação do operário e o sentido que essa ação tem para o próprio operário. Acontece que também para a sociedade o trabalho do operário apresenta uma cisão entre o conteúdo e o sentido [segunda cisão]. Como estamos falando de uma sociedade capitalista, o sentido que a atividade do operário tem é o de parte necessária do processo de reprodução do capital, ou seja, o sentido é dado pelo valor de troca da força de trabalho. (Duarte, 2004:58) [grifo nosso].

A dissociação entre o sentido e o significado do trabalho, segundo o autor, não ocorre apenas para operário em si, mas também ocorre para a sociedade. “Na verdade, o sentido pessoal que o trabalho tem para o operário é uma conseqüência do sentido que esse trabalho tem para a sociedade capitalista.” (Duarte, 2004:58).

Na análise do processo de alienação para além da relação com o trabalho, Oliveira (2005:31) aponta três relações estruturais da atividade humana: “1) a relação do indivíduo com a produção, isto é, com a execução da atividade; 2) a relação do indivíduo com o produto da atividade executiva; 3) a relação do indivíduo com o gênero humano”. Nesta última relação, a autora inclui uma nova relação existente entre o homem e outros no processo de socialização dos indivíduos. Aponta a quarta relação no processo de alienação como sendo a dimensão ontológica da formação dos indivíduos que é considerada “ineliminável” no processo de formação do próprio homem.

Em síntese, considera-se que a possibilidade de desenvolvimento das funções psicológicas superiores por meio das interações sociais promovidas nas atividades humanas em geral vincula-se diretamente à superação da alienação. Compreende-se que a apropriação do conhecimento elaborado historicamente, como parte da produção humana pelos sujeitos, seja um elemento necessário para que tal processo se estabeleça na sociedade; no entanto considera-se que somente a partir de transformações de ordem político-econômica que a produção humana, material e ideal, possa ser acessível e apropriada pelos sujeitos. Tal fato implica a análise da produção do conhecimento em geral e do conhecimento científico que buscam a explicação e as possibilidades de superação dos fenômenos sociais e naturais instituídos pelas agências sociais oficializadas na sociedade contemporânea que têm a finalidade de criar condições para a promoção do homem como o fim desejado no processo de socialização.

Tem-se em consideração que a socialidade, como a estrutura social em que o indivíduo está inserido,5 torna-se o elemento essencial e determinante na constituição da natureza humana e, consequentemente, no desenvolvimento do psiquismo humano. Define-se, a partir de tais pressupostos, o método de investigação que busca atender às necessidades do objeto de estudo – a constituição e o desenvolvimento histórico do psiquismo no gênero humano.

 

O Método

Os princípios metodológicos da indução e da dedução, que consideram como ponto de partida da investigação científica os fatos e as abstrações, são superados na investigação psicológica pela via dos pressupostos do método materialista histórico dialético que concebem que o conhecimento não é um reflexo simples, passivo e inerte da realidade, mas um processo histórico e dialético, complexo, regido por leis universais.

Salientam-se, como princípios metodológicos da psicologia histórico-cultural, a concepção de unidade presente na conexão universal de objetos e fenômenos que se faz no estudo
dos fenômenos psíquicos, além das noções de movimento e de desenvolvimento que expressam as contradições internas dos objetos e fenômenos. Tais princípios estão ligados a leis do materialismo dialético expressas pela unidade e luta de contrários, da transformação da quantidade em qualidade e vice-versa e da negação da negação, manifestas num movimento de transformação em espiral ascendente (Kopnin, 1978; Richadson, 1999).

Estes princípios e leis da dialética são considerados integrantes do materialismo histórico e se objetivam no método de investigação da psicologia histórico-cultural como elementos fundamentais para a compreensão e explicação da constituição e do desenvolvimento do psiquismo humano.

Como manifestação da compreensão do conceito de totalidade no psiquismo humano, Vygotsky (2001) concebe que as funções psicológicas superiores, tais como a memória, o pensamento, a abstração, a linguagem, a generalização entre outras se constituem numa relação interfuncional, sendo impossível decompor a unidade complexa do psiquismo humano em elementos isolados.

Vygotsky faz uso da analogia da molécula da água em sua complexidade para justificar a necessidade da não decomposição da mesma em elementos químicos que isoladamente não podem expressar todas as propriedades da água; assim também se justifica, segundo o autor, a impossibilidade de se decomporem as funções psicológicas superiores como partes de um todo. Neste sentido, para entender as propriedades da água, não é possível compreendê-la a partir das propriedades de seus elementos (hidrogênio e oxigênio), assim como não é possível compreender o psiquismo humano por meio do estudo fragmentado das funções, sejam elas elementares ou superiores.

Outra categoria da dialética, fundamental para a compreensão do método na psicologia histórico cultural, é o movimento. Nesta abordagem teórica, estudar o desenvolvimento do psiquismo significa estudá-lo historicamente, ou seja, no movimento histórico de constituição pelo processo de hominização e pelo processo de humanização, possibilitados pelas mediações simbólicas elaboradas pela humanidade. A este respeito, o autor afirma que:

Estudar algo historicamente significa estudá-lo em movimento. Esta é a exigência fundamental do método dialético. Quando numa investigação se abarca o processo de desenvolvimento de algum fenômeno em todas as suas fases e mudanças, desde que surge até que desapareça, isso implica manifestar sua natureza, conhecer sua essência, já que somente em movimento demonstra o corpo que existe. Assim, pois a investigação histórica da conduta não é algo que complementa ou ajuda o estudo teórico, mas consiste seu fundamento. (Vygotsky, 2001, v.3:67-68)

A relação entre as categorias de unidade e de movimento, próprias do método dialético, objetiva-se na compreensão de que as funções psicológicas superiores, além de serem compreendidas como uma unidade interfuncional, estão em constante processo de transformação, ou seja, em movimento constante possibilitado pela apropriação dos elementos da cultura como mediadores da constituição de novos nexos entre as funções. Esta compreensão é explicitada na obra de Vygotsky ao afirmar que:

A idéia principal (extraordinariamente simples) consiste em que durante o processo de seu desenvolvimento histórico, o que muda não são tanto as funções, tal como havíamos considerado anteriormente (esse era nosso erro) nem sua estrutura, nem sua linha de desenvolvimento, mas que o que muda e se modifica são precisamente as relações, quer dizer, o nexo das funções entre si, de maneira que surgem novos agrupamentos desconhecidos no nível anterior. (Vygotsky, 2001, v.1:72-73)

Manifesta-se nesta concepção o processo de mudança de qualidade e quantidade nas múltiplas relações estabelecidas quando se fundem os nexos presentes nas funções superiores, ampliando as condições anteriormente constitutivas no psiquismo, num movimento ascendente que promove sua superação. No entanto, a superação da condição anterior não a nega em si mesma, mas amplia as possibilidades de conexões entre as funções. Este movimento de superação das condições anteriores é caracterizado como sendo de negação da negação. O processo de transformação ocorre de acordo com o método num movimento constante, histórico. Tal processo se manifesta por meio da filogênese e ontogênese como constitutivo e constituinte da genericidade e da individualidade humanas.

Estes princípios, assim como uma das teses do materialismo histórico dialético que afirma que a atividade especificamente humana pressupõe o uso de instrumentos na transformação da natureza externa e interna do homem, medeiam a definição do método de investigação na psicologia histórico-cultural.

O ponto de partida da investigação na psicologia histórico-cultural é considerado por Vygotsky como sendo os fatos, entendidos como fatos da história das ciências. Afirma, ainda, que “é através da análise da realidade científica e não por meio de raciocínio abstrato que pretendemos obter uma idéia clara da essência da psicologia individual e social – como aspectos de uma mesma ciência – e do destino histórico de ambas” (Vygotski, 2004:210). Assim, a realidade objetiva identificada por Vygotsky, como o ponto de partida na pesquisa sobre o desenvolvimento do psiquismo humano, é a realidade que se transforma ao longo da própria história da produção humana e identificada pelo materialismo histórico dialético como a realidade concreta.

Esta realidade concreta, identificada por Marx (1996) como o concreto caótico, é mediada por abstrações essenciais no processo de apropriação da produção humana pelo homem, fato que cria condições para que esta realidade seja compreendida numa dimensão mais ampla e complexa. Nesta condição, tal realidade passa a ser identificada pelo autor como o concreto pensado. O movimento constante de compreensão e de apropriação da realidade objetiva, que ocorre de forma cada vez mais ampla e complexa, é mediado pelas generalizações conceituais como formas elaboradas do pensamento humano acerca da realidade.

Trata-se de elaborações humanas que projetam no plano ideal a vida da realidade investigada. São abstrações que medeiam o movimento de transformação da realidade pelo homem e, ao mesmo tempo, criam condições de transformação do próprio homem em virtude das condições e circunstâncias que medeiam sua existência.

Estes pressupostos teórico-metodológicos foram apropriados por Vigostski e objetivados na elaboração do “método funcional de dupla estimulação” que pressupõe o estudo do psiquismo humano a partir da transformação da natureza interna e externa ao homem, numa relação dialética no processo de interação entre o homem e a natureza, por meio das mediações dos objetos materiais e ideais elaborados historicamente pelo próprio homem. Este método foi utilizado por Vygotsky no estudo do desenvolvimento das funções superiores em crianças e nas investigações transculturais com adultos (Vygotsky & Luria, 1996).

Vygotsky (1989) apresenta três traços fundamentais no método de investigação que o diferencia dos métodos utilizados em outras abordagens teóricas: 1) análise de processos em substituição à análise de objetos; 2) explicação do fenômeno em substituição à descrição do mesmo; 3) investigação do “comportamento fossilizado”.

O primeiro traço substancial, a análise de processo, refere-se à exposição dos principais aspectos que constituem a história dos processos envolvidos na investigação. Vygotsky considera o enfoque evolutivo do processo psicológico como um componente essencial da pesquisa em psicologia, pois cria condições para a reconstrução de cada estágio no desenvolvimento do mesmo.

A substituição da descrição pela explicação fundamenta-se na característica da lógica dialética que procura a essência do conceito por meio das suas características internas e não das características perceptíveis, aparentes. No entanto, Vygotsky não exclui da investigação psicológica as manifestações externas do fenômeno, mas subordina-as à descoberta de sua origem real, ou seja, à sua essência.

A investigação do movimento de instituição do comportamento fossilizado refere-se ao estudo da conduta humana como “formas psicológicas petrificadas, fossilizadas, originadas em tempos remotíssimos, nas etapas mais primitivas do desenvolvimento cultural do homem, que se tem conservado de maneira surpreendente, como vestígios históricos em estado pétreo e ao mesmo tempo vivo na conduta do homem contemporâneo”. (Vygotsky, 2001, v.3:63).

O estudo da conduta humana pela psicologia histórico-cultural, considerada como “comportamento fossilizado”6 segundo Vygotsky, deve ser compreendido como ações que são perpetuadas pelas significações que medeiam o movimento de apropriação da produção humana. Trata-se de considerar condutas instituídas no comportamento do homem como ser universal que, mediadas pelas condições particulares pertinentes à vida em sociedade, constituem a sua individualidade.

Diante da complexidade do objeto de investigação proposto por Vygotsky, o método necessário para investigação do desenvolvimento histórico-cultural do psiquismo humano é entendido como premissa e produto da investigação, como instrumento e resultado da pesquisa. Trata-se de abordar o novo problema a partir do novo método de investigação e, para tanto, é essencial que este seja elaborado segundo os fundamentos gnosiológicos, ontológicos, epistemológicos e lógicos que atendam as estas necessidades.

 

A Mediação na Constituição da Individualidade Humana

A respeito da constituição da individualidade humana, Vygotsky (2001) concebe que esta ocorre tendo-se como referência os “dois pólos extremos” de um mesmo sistema de condutas – as funções rudimentares ou elementares e as funções superiores. Os princípios que regem tais funções não são coincidentes, mas devem ser entendidos como uma unidade dialética dentro do mesmo sistema. Para o autor, são pontos que “marcam os limites dentro dos quais se situam todos os graus e formas das funções superiores. Ambos os pontos, tomados em conjunto, determinam a seção da figura histórica de todo o sistema de conduta do indivíduo”. (Vygotsky, 2001, v.3:67). Este pressuposto sobre a conduta humana leva a um entendimento dialético do fenômeno que somente pode ser compreendido se levada em conta a história da conduta.

O aspecto central na diferenciação entre as funções elementar e superior é a existência de estímulos artificiais que medeiam o domínio das próprias reações. Estes estímulos são criados pelos homens como meios de dominar a própria conduta e a conduta alheia. Na psicologia histórico-cultural estes estímulos são os signos que modificam a atividade interna dos indivíduos.

Os signos e os instrumentos, como construção elaborada historicamente pelo próprio homem, assumem a finalidade comum de serem mediadores no processo de apropriação da realidade e, ao mesmo tempo, criam condições para a transformação da natureza. Os signos orientam a transformação da atividade interna e os instrumentos orientam a transformação da atividade externa ao homem.

A mediação das significações é entendida como o traço distintivo entre a conduta humana e dos demais animais, uma vez que ocorre na forma de adaptação ativa entre o indivíduo e a realidade e, ao mesmo tempo, é manifesta por um sistema de códigos, muitas vezes identificado pela linguagem ou fala, porém não se limitando a ela.

As significações conferem significado à conduta humana e criam novas conexões no cérebro, ampliando as possibilidades no desenvolvimento humano. Assim, o desenvolvimento das funções psíquicas superiores não pode ser entendido como partes de um sistema que se desenvolve de forma fragmentada, mas como unidade interfuncional que é desenvolvida pela transformação das conexões internas entre as funções superiores.

Na relação entre os signos e a constituição da consciência, Leontiev (1970?) salienta a relação entre significado social e sentido pessoal. O significado social é resultante das apropriações efetivadas pelo homem, historicamente. O sentido pessoal, ou subjetivo, é resultante da interação real existente entre o homem e o mundo. Vygotsky (2000) diferencia significado de sentido ao afirmar que “o significado é apenas uma dessas zonas do sentido que a palavra adquire no contexto de algum discurso e, ademais, uma zona mais estável, uniforme e exata.” (p. 465). Entendendo ser o significado um produto do movimento histórico de apropriação da realidade que evolui diante da própria história do conceito, o significado é também considerado pelo autor como “ponto imutável e estável” diante de todas as mudanças de sentido da palavra em diferentes contextos, o autor reporta-se ao sentido como sendo “inconstante”, ou seja, é dinâmico. Para Vygotsky (2000:466), “o sentido real da palavra é determinado, no fim das contas, por toda a riqueza dos momentos existentes na consciência e relacionados àquilo que está expresso por uma determinada palavra.”

Concebe-se que não existem sentidos “puros”, mas sim o sentido de alguma coisa relacionada a alguma condição ou circunstância. Ambos, significado e sentido, fundem-se na consciência, pois estão intrinsecamente ligados um ao outro. No entanto, estes dois conceitos devem ser distinguidos.

O significado tem uma gênese supraindividual (Martins, 2001), que se objetiva na prática social, representativo da experiência humana generalizada. O sentido depende do motivo da atividade social à qual o indivíduo se vincula. A relação entre ambos é expressa por Leontiev (1970?:104) ao afirmar que é “[...] o sentido que se exprime nas significações (como o motivo nos fins) e não a significação no sentido”.

A atividade mediada na psicologia histórico-cultural é considerada por Rivière (1998) como a base do movimento de apropriação da realidade e a unidade de construção da consciência.

Sobre a questão de a consciência estar relacionada à linguagem, Rubinstein (1965:371) afirma que a consciência, como forma exclusivamente humana de refletir a realidade objetiva, vincula-se ao significado generalizado dos objetos implícitos na palavra. Afirma ainda que “a linguagem é a forma social da consciência do homem em sua condição de ser social” (Rubinstein, 1965:371). No entanto, de acordo com o próprio autor, seria incorreto correlacionar, de forma simples, a consciência com a linguagem sem considerar a relação existente entre a consciência e a atividade social das pessoas e com o conhecimento apropriado ao longo da mesma. Sobre este aspecto da relação entre linguagem e consciência, o autor afirma que “não é a palavra por si mesma o que constitui o eixo da consciência, mas os conhecimentos socialmente acumulados e objetivados na palavra. A palavra é essencial para a consciência precisamente porque nela se sedimentam, se objetivam, e através dela se atualizam os conhecimentos graças aos quais o homem adquire consciência da realidade (Rubinstein, 1965:372).

Assim, a consciência relaciona-se ao conhecimento do mundo objetivo e, pelo processo mediado, descobre novas qualidades dos objetos ao estabelecer conexões com a realidade por meio do pensamento.

Sobre a relação entre o indivíduo e o mundo dos objetos, Leontiev (1983) afirma que não se pode considerar que a consciência dos indivíduos se reproduza automaticamente como produto sócio-histórico, como reflexo consciente do mundo. Esta relação não é resultado da projeção direta sobre os sistemas de representação elaborados pelas generalizações anteriores. Segundo o autor, a consciência humana “[...] é também o produto de sua atividade no mundo dos objetos. Nesta atividade, a que medeia a comunicação com outras pessoas, tem lugar o processo de apropriação (Aneígnung) por parte delas, das riquezas espirituais acumuladas pelo gênero humano (Menschengattung) e plasmada na forma sensitiva objetal.” (Leontiev, 1983:23-24).

Neste sentido, a consciência é entendida como produto das relações sociais estabelecidas pela vida social. Ao mesmo tempo a consciência é mediada pelas significações elaboradas pela própria sociedade no seu movimento histórico. Para o autor, o materialismo histórico dialético cria novas possibilidades de investigação sobre a transformação da consciência. Tais possibilidades são consideradas essenciais para a compreensão e explicação da consciência como fenômeno humano por resgatar o problema das condições do desenvolvimento da divisão social do trabalho, da dissociação entre a atividade produtiva e o produto desta atividade criada pelos meios de produção e da fragmentação entre a atividade teórico-prática. Estes elementos presentes na obra marxiana trazem ao estudo da consciência a possibilidade de compreendê-la como um fenômeno humano objetivado pelas relações sociais como particularidades que medeiam a individualidade humana (o singular) e as potencialidades elaboradas historicamente pelo gênero humano (o universal).

Rubistein (1977) também relaciona o problema da consciência humana ao trabalho, para além da linguagem, quando afirma que:

Graças aos instrumentos de trabalho e a linguagem, a consciência do homem se desenvolveu como produto do trabalho social. Por meio dos instrumentos como trabalho socializado, a experiência que a humanidade havia recorrendo foi transmitida em forma objetivada de generalização em generalização, e esta transmissão se deu através da linguagem. Para o trabalho social se requereu a consciência social materializada na linguagem, desenvolvendo-se também esta no processo de trabalho social. (Rubinstein, 1977:157)

No entanto, na sociedade contemporânea (capitalista), o trabalho social a que se refere Rubinstein, não se objetiva plenamente devido às relações alienantes e alienadoras decorrentes da fragmentação entre o processo de produção dos bens materiais e ideais e o produto desse trabalho. Os valores mediados nas relações sociais, na sociedade em questão, são os decorrentes do movimento de exploração, de individualização e de consumo que se impreg nam na conduta do homem, muitas vezes de forma não consciente. Trata-se da influência determinante da dimensão interpsíquica na dimensão intrapsíquica.

Como fenômeno psíquico em geral, a consciência regula a conduta do homem quando vincula a necessidade das pessoas às condições objetivas em que a conduta se manifesta, ou seja, na vida em sociedade. Diante da concepção de a consciência relacionar-se à atividade social como unidade processual de constituição da dimensão ontológica do ser humano, resgata-se a tese fundamental do enfoque histórico-cultural que consiste em conceber que o desenvolvimento humano ocorre por meio da atividade mediada decorrente do processo de socialização, não pode como contexto para o desenvolvimento humano, mas como elemento determinante no processo de humanização.

A socialização, como condição essencial no processo de constituição do gênero humano, estabelece-se na dimensão ontológica do ser, o que de fato, devido às desigualdades econômicas e de classe, faz com que os indivíduos não tenham acesso ao conjunto de bens produzido historicamente.

 

Algumas Considerações

Diante das diversas concepções de homem e de mundo que influenciam na elaboração das diferentes teorias sobre o psiquismo humano, a psicologia histórico-cultural apresenta que a realidade presente no fenômeno humano deve ser compreendida, levando-se em conta a historicidade da condição humana, os fatos da ciência e a socialidade como elementos integrantes que não podem ser eliminados no estudo da constituição e do desenvolvimento histórico do ser humano.

O significado de tal concepção vincula-se à relação entre o gênero humano, constituído ao longo do processo histórico e contínuo de formação e transformação dos homens junto à realidade objetiva, e a individualidade do ser, constituída pelas atividades humanas possibilitadas pela vida em sociedade. Assim, concebe-se que o tempo, como parte integrante da história do próprio homem em sua genericidade, não pode ser desconsiderado no estudo do psiquismo humano.

Shuare (1990:59), ao comentar a origem histórico-social do psiquismo humano na obra de Vygotski, afirma que o autor “introduz o tempo na psicologia ou, melhor dizendo, ao invés disso, introduz o psiquismo no tempo.” Nesta perspectiva histórica, o tempo é considerado como o vetor que define a essência do psiquismo humano.

Não se trata do estudo do psiquismo a partir das particularidades da individualidade humana, considerando-se o contexto ou o ambiente em que o indivíduo forma e é formado. Também não se trata de compreender o psiquismo humano numa dimensão material vinculada às condições biológicas como a universalidade do homem.

A psicologia histórico-cultural, ao resgatar os fatos da ciência, o tempo numa dimensão ontológica do ser e a unidade dialética entre as funções elementares e superiores, explicita a necessidade de se investigarem os fenômenos psíquicos na relação universal – singular, mediada pelo particular. Ou seja, estuda a constituição da individualidade humana mediada pelo conjunto dos bens produzidos historicamente. Esta relação coloca o homem numa dimensão universal, a do gênero humano. Nestas condições, o homem humaniza-se ao tomar posse da produção humana elaborada historicamente.

Assim, o homem se forma e se transforma no processo de humanização, assim como forma e transforma a realidade a que pertence.

Compreender o homem nesta concepção dialética, histórica e social do ser é determinante no processo de superação, ainda que parcial, das condições alienantes em que vivemos na sociedade contemporânea. Pode-se dizer ainda que seja a condição essencial para que o indivíduo se compreenda e compreenda aos demais não como indivíduos isolados, mas como produto de uma sociedade que se organiza a partir de interesses particulares instituídos historicamente.

Considera-se que a superação da condição imediata do próprio ser somente pode ocorrer por meio da compreensão da condição humana como decorrente da apropriação do significado do movimento histórico de constituição do gênero humano integrado aos processos contínuos de transformação da natureza interna e externa ao homem. Entender-se como indivíduo isolado, fragmentado do processo histórico de constituição da própria sociedade, não permite aos indivíduos superar a condição imediata. A compreensão do ser em sua individualidade, considerando-se as relações particulares da sociedade que interferem sobre sua formação e transformação, possibilita apenas uma análise particular do psiquismo humano que não pode ser considerada como universal.

Ter como referencial teórico-metodológico o materialismo histórico dialético e a psicologia histórico-cultural como o instrumento que medeia as atividades práticas na vida em sociedade requer a objetivação de compromissos políticos e sociais. Exige-se, por parte de quem promove a intervenção ou por parte de quem analisa as práticas objetivadas nas ações humanas, ter consciência de como se fundem no homem contemporâneo as potencialidades do gênero humano. Este processo ocorre por meio das atividades educativas em geral quando são mediadas as generalizações que possibilitam a apropriação da complexidade da constituição do ser humano com ser histórico e cultural. Neste sentido, torna-se premente que pesquisadores integrados a esta abordagem teórica cumpram, por meio de ações organizadas intencionalmente, compromissos éticos e políticos no movimento de formação pessoal e profissional dos indivíduos para que os mesmos se apropriem da relação singular-particular-universal presente na compreensão da condição humana. Tais ações devem ser objetivadas por meio de agências de formação profissional nos campos da saúde e da educação.

Superar a compreensão do ser individual pressupõe a compreensão do ser universal. No entanto, a universalidade não pode ser identificada apenas como a condição particular própria do processo de culturalização que medeia a condição humana. A compreensão do ser universal se dá a partir da apropriação da condição humana constituída histórico-culturalmente, mediada pelas condições postas na socialidade.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Maria Eliza Mattosinho Bernardes
E-mail: memberna@usp.br

Recebido em: 24/12/2009
Revisado em: 10/06/2010
Aceito em: 21/10/2010

 

 

* Professora do Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo – São Paulo, SP – Brasil.
1 Este artigo é uma adaptação do texto apresentado no IV Congresso Internacional de Psicologia, X Semana da Psicologia da UEM – CIPSI 2009 – Simpósio Psicologia Histórico-Cultural: Método e produção do conhecimento.
2 Leontiev ([1970?]:131), ao explicitar o processo da alienação, descreve a situação de trabalho de um artesão na sociedade capitalista: “A tecelagem tem [...] para o operário a significação objetiva de tecelagem, a fiação de fiação. Todavia não é por aí que se caracteriza a sua consciência, mas pela relação que existe entre estas significações e o sentido pessoal que têm para ele as ações de trabalho. Sabemos que o sentido depende do motivo. Por conseqência, o sentido da tecelagem ou da fiação para o operário é determinado por aquilo que o incita a tecer ou a fiar. Mas são tais as suas condições de existência que ele não fia ou não tece para corresponder às necessidades da sociedade em fio ou em tecido, mas unicamente pelo salário; é o salário que confere ao fio e ao tecido o seu sentido para o operário que o produziu.”
3 Um dos fatores que caracterizam o processo de alienação, segundo Duarte (2004), é a desconexão entre o significado social que é posto pelo conteúdo da ação – a produção do fio ou do tecido para suprir as necessidades sociais – e o sentido pessoal que é produzido pelas condições objetivas da vida do operário – vender sua força de trabalho em troca do salário. O sentido do trabalho do operário não corresponde à utilidade social do que é fabricado, ou seja, independe do produto produzido, uma vez que para o operário o sentido é dado pelo valor de troca atribuído à sua força de trabalho.
4 Quanto à alienação decorrente da impossibilidade de apropriação das riquezas materiais e não materiais por parte da maioria dos seres humanos é identificada a influência determinante na constituição das funções psicológicas superiores dos indivíduos. O fato de os indivíduos serem privados do conhecimento e dos bens materiais elaborados sócio-historicamente promove as diferenças individuais entre os seres humanos. As desigualdades entre os indivíduos, segundo Vygotski (2001b, v. 2) e Leontiev [1970?], são decorrentes das (im)possibilidades de apropriação da cultura por meio da mediação simbólica. As diferenças individuais, segundo a base teórico-metodológica do materialismo histórico dialético, não podem ser entendidas como decorrentes de fatores biológicos. Devem ser entendidas como consequência das diferentes possibilidades de os indivíduos participarem da sociedade como herdeiros da produção material e cultural por meio das atividades humanas em geral e, especialmente, por meio da educação escolar.
5 Aqui se adota o conceito de socialidade tal como é tratado por Lukács (1978), Duarte (1993) e Oliveira (2005) e refere-se à estrutura social em que o indivíduo está inserido. Recomenda-se a leitura de Oliveira, Betty (2005). A dialética do singular-particular-universal. Em Abrantes, A. A.; Silva, N. R. da; Martins, S.T. F. Método histórico-social na psicologia social. Petrópolis: Vozes, cap. 2: 25- 51.
6 Por comportamento fossilizado entendem-se os elementos da conduta humana organizados pela própria historicidade da vida em sociedade. São comportamentos instituídos na sociedade que se perpetuam nas relações entre os homens e se transformam ao longo da história da produção humana e das relações de classe.