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Revista Psicologia Política

versión On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.10 no.20 São Paulo dic. 2010

 

DOSSIÊ

 

Ensinar e aprender a linguagem escrita na perspectiva histórico-cultural

 

Teaching and learning the written language from the cultural-historical approach

 

Enseñar e aprender el lenguaje escrito desde la perspectiva histórico-cultural

 

 

Suely Amaral Mello*

Programa de Pós-Graduação em Educação na Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Marília, SP – Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, a partir do método de investigação da psicologia histórico-cultural e sua concepção sobre a formação e o desenvolvimento do psiquismo humano, procuro refletir sobre o sentido que o sujeito atribui às apropriações que realiza, condicionado pela relação que estabelece com o objeto em processo de apropriação. Essa relação é mediada pelas experiências que o sujeito acumula ao longo de sua vida e implica concretamente na unidade afetivo-cognitivo. Sendo a escrita um instrumento cultural complexo, de cuja apropriação depende o acesso do sujeito a parcela importante da herança cultural da humanidade – essencial para a reprodução das qualidades humanas em cada ser humano –, sua apropriação é elemento essencial no processo ontogenético de humanização por que passam todos os seres humanos. Diante desses pressupostos, discuto os riscos da apropriação da escrita quando esta acontece de forma alienada, ou seja, quando o sentido atribuído à escrita, pelo sujeito que dela se apropria, foge de sua função social. Discuto também algumas possibilidades de realização de seu ensino e aprendizagem de modo a criar condições adequadas para sua efetiva apropriação.

Palavras-chave: Linguagem escrita, Sentido, Teoria histórico-cultural.


ABSTRACT

In this paper, considering the historic-cultural psychology research method and its conception on the formation and development of human psyche, I aim to discuss about the personal sense that human beings relate to their learning conditioned by the relations they establish with the object being appropriated. Such relation is mediated by the experiences lived along life and points out the unity affection-cognition. Considering that writing is a complex cultural instrument, and also considering that people’s access to mankind cultural heritage depends mostly on reading and writing – which is essential for reproducing the human qualities in every human being –, I draw a brief discussion about the risks of writing appropriation when the personal sense of the student is directed from outside the writing social function. I also briefly consider the possibilities of teaching and learning the written language on the basis of adequate conditions for its effective appropriation.

Keywords: Written language, Personal sense, Historic-cultural theory.


RESUMEN

En este articulo, considerando el método de investigación de la psicología histórico-cultural y su concepción acerca de la formación y desarrollo del psiquismo humano, busco reflexionar acerca del sentido personal que el sujeto atribuye a sus aprendizajes, condicionado por las relaciones que establece con el objeto. Tal relación es, a su vez, mediada por las experiencias del sujeto al largo de su vida e implica concretamente en la unidad afectivo-cognitivo. Siendo la escrita un instrumento cultural complejo, de cuya apropiación depende su acceso a parcela importante de la herencia cultural de la humanidad – esencial para la reproducción de las calidades humanas en cada ser humano –, su apropiación como esencial al proceso ontogenético de humanización. Frente a tales principios reflexiono acerca de los riesgos de la apropiación alienada de la escrita, o sea, cuando el sentido personal a ella atribuido huye de su función social. Reflexiono también acerca de las posibilidades de realización de su enseñanza y aprendizaje que críen las condiciones adecuadas a su efectiva apropiación.

Palabras clave: Lenguaje escrito, Sentido personal, Teoría histórico-cultural.


 

 

Introdução

Este artigo se constrói sobre as reflexões realizadas no grupo de pesquisa “Implicações Pedagógicas da Teoria Histórico-Cultural”, a partir de estudos de autores dessa vertente teórica e de pesquisas realizadas e orientadas por membros do grupo. Preocupados com a mediação entre teoria e prática (Mello, 1981) e com a naturalização de processos que são históricos e socialmente produzidos (Mello, 2000), temos assumido como meta do grupo de pesquisa tomar a teoria histórico-cultural como subsídio para as práticas docentes intencionais que constituem condição necessária, ainda que não suficiente, para o processo de humanização que pode ser promovido na escola para formar as máximas qualidades humanas nas novas gerações (Duarte, 1996; Leontiev, 1978ab).

Com essa perspectiva, a apropriação da linguagem escrita pelas novas gerações tem sido objeto de nossos estudos e reflexões. Entendemos a escrita como instrumento cultural que desempenha, como afirma Vygotsky (1995:183), “enorme papel [...] no processo de desenvolvimento cultural da criança”, seja pelo acesso que possibilita à experiência cultural da humanidade registrada sob a forma escrita, seja pelas funções psíquicas superiores reproduzidas em sua apropriação.

Os resultados das avaliações educacionais nacionais e internacionais não deixam dúvida em relação ao fato de que a escola brasileira tem problemas com os processos de ensino e de aprendizagem dos conteúdos escolares. Os dados relativos ao analfabetismo funcional no final do ensino médio denunciam problemas no processo de aquisição da linguagem escrita. Com a aproximação desses dois elementos, entendemos que o processo de aquisição da linguagem escrita deve merecer estudos e reflexões com a perspectiva de buscar evidenciar possíveis obstáculos à sua plena apropriação.

Nesse sentido, passamos a discutir um aspecto que, a partir dos estudos realizados pelo grupo de pesquisa, pode contribuir para aprofundar o pensar e o agir de professores e professoras que atuam no processo de alfabetização. Trata-se do sentido que a criança aprende a atribuir à linguagem escrita em seus primeiros contatos com a escrita e que condiciona a formação de seus motivos de estudo.

Numa sociedade letrada como a nossa, a criança pode encontrar-se muito cedo com a escrita. Encontra-se com “um sistema de significados já preparado, historicamente conformado, que vai assimilando da mesma forma como vai dominando um instrumento, esse portador material do significado.” (Leontiev, 1978b:214). No entanto, o que chega a ser para a criança esse instrumento dependerá de que sentido tenha para ela esse significado. Conforme Leontiev (1978b:215), “o sentido consciente, psicologicamente concreto, é criado pela relação objetiva, que se reflete na mente do sujeito, daquilo que o impulsiona a agir com aquilo para o que está orientada sua ação como resultado imediato desta. Em outras palavras, o sentido expressa a relação do motivo da atividade com a finalidade imediata da ação.”

Assim, na relação que estabelece com a linguagem escrita por meio das experiências vividas, a criança vai construindo para si um conceito sobre a escrita. Esse sentido é condicionado pelo lugar que ela própria ocupa nessas situações e igualmente pelo lugar que a escrita ocupa nessas situações. Como afirma Vygotsky (1994:339), “os casos de crianças que temos estudado nos permitem dizer com mais precisão que os fatores essenciais que explicam a influência do meio sobre o desenvolvimento psicológico das crianças e sobre o desenvolvimento de sua personalidade consciente são suas experiências emocionais.” [tradução nossa].

Traduzindo esta afirmação para a escrita, temos que o sentido de escrita é produzido de acordo com a maneira como as crianças percebem e vivenciam as situações em que entram em contato com a escrita e esse sentido orientará sua relação com a escrita e o conjunto de tarefas escolares que envolvem o exercício da linguagem escrita. Desse ponto de vista, somos levados a pensar que, se até esse momento, a criança tiver vivenciado situações em que a escrita é utilizada em sua função social para escrever histórias, bilhetes ou registrar experiências vividas, ela aprenderá a pensar a escrita em sua função social, como instrumento cultural para escrever histórias, bilhetes, registros dos fatos vividos, enfim, como um instrumento de expressão. Muito possivelmente, terá uma relação interessada e curiosa em relação ao texto escrito e iniciativa em relação ao texto por ser escrito. Por outro lado, se as experiências vividas com a escrita tiverem ensinado a criança a pensar que escrita é algo que se faz para atender uma instrução da professora ou do professor, suas relações futuras com a escrita serão condicionadas por esse sentido que é estranho à escrita em sua função social, ao significado desse instrumento cultural chave no processo de aprender na escola.

Retomando a discussão entre motivo e sentido apontada acima, entendemos que esse sentido inicial aprendido pela criança com os atos de escrita que testemunha ou de que participa vão condicionando a constituição dos motivos de estudo na criança. Como afirma Leontiev (1978b:234),

Os motivos vão se formando na vida real da criança; a unidade da esfera motivacional da personalidade concorda com a unidade da vida, por isso, os motivos não podem se desenvolver seguindo linhas isoladas, não vinculadas entre si. Por conseguinte, trata-se de que as tarefas de educar os motivos de estudo estejam ligadas com o desenvolvimento da vida, com o conteúdo das verdadeiras relações vitais da criança; apenas com essa condição os objetivos apontados serão suficientemente concretos e, o que é fundamental, reais. [tradução nossa]

Da citação acima concluímos que o sentido que a criança atribui à escrita ou os motivos de estudo que nela vão se constituindo podem ser modificados por novas vivências. No entanto, para isso, na escola, se faz necessária uma atitude intencional da professora ou do professor voltada para diagnosticar o sentido que a escrita tem para as crianças ao chegarem ao ensino fundamental.

 

O Significado Social da Escrita e as Práticas Escolares

Conforme discutimos acima, há um significado coletivo partilhado pela sociedade sobre “para que serve a escrita”. Num grupo de alunos de graduação do curso de pedagogia, as respostas sobre a função social da escrita foram comuns ao grupo: escrevemos para expressar, comunicar, registrar algo para alguém. No entanto, corroborando a afirmação de Leontiev sobre a formação do sentido, o levantamento da memória das experiências iniciais de cada membro do grupo com a linguagem escrita demonstrou que, apesar do enunciado comum aprendido socialmente, a experiência pessoal que cada um viveu com a escrita produziu percepções individuais diferentes do que seja a escrita.

A força do sentido é mais forte na criança pequena, pois a formação e o desenvolvimento inicial dos conceitos se alimentam da sensação e da percepção muito mais que de processos mentais (Venguer, 1976). Assim sendo, o sentido depende menos dos conceitos verbalizados e mais dos conceitos partilhados socialmente. Como lembra Leontiev (1988), a vida explica o longo processo de desenvolvimento da personalidade e da inteligência da criança.

Essa compreensão do desenvolvimento humano é essencial na escola em relação à forma como entendemos as crianças e suas dificuldades escolares. Uma atitude comum é explicar as dificuldades das crianças a partir de uma determinação biológica ainda muito presente entre pais e mães e também entre os professores e as professoras – uma vez que presente, para esses últimos, em sua formação inicial – e que explica as dificuldades como naturais e dadas por herança biológica. Dessa forma, escola e sociedade se retiram do cenário e a culpa da não aprendizagem recai sobre as crianças e suas famílias.

Do ponto de vista histórico-cultural, a aptidão ou a falta de aptidão para a escrita não existem a priori. Essa não é uma questão de herança biológica, mas sim do lugar que a escrita tem na vida da criança e de como esse instrumento cultural é apresentado às novas gerações, uma vez que, a necessidade e as capacidades necessárias à aquisição da escrita são formadas nas crianças por suas condições materiais de vida e educação.

Com Vygotsky1, vimos que a influência do meio – a experiência humana acumulada sob a forma de cultura – é filtrada pela percepção, pela experiência direta da criança (Vygotsky, 1994). A relação que se estabelece entre a criança e os elementos da cultura com que convive é mais complexa do que aprendemos a pensar. Conforme vimos acima, para Vygotsky “devese considerar o meio não como uma circunstância do desenvolvimento, por encerrar em si certas qualidades ou determinadas características que já propiciam, por si próprias, o desenvolvimento da criança; é sempre necessário abordá-lo a partir da perspectiva de qual relação existe entre a criança e o meio em dada etapa do desenvolvimento.” (Vygotsky, 1994:338) [tradução nossa, grifo no original].

Vivência é o conceito que, para Vygotsky, sintetiza a unidade de elementos do meio e de elementos da personalidade, uma unidade do subjetivo e do objetivo.

A vivência é uma unidade na qual, por um lado, de modo indivisível, o meio, aquilo que se vivencia está representado – a vivência sempre se liga àquilo que está localizado fora da pessoa – e, por outro lado, está representado como eu vivencio isso [...] Desta forma, na vivência, nós sempre lidamos com a união indivisível das particularidades da personalidade e das particularidades da situação representada na vivência. (Vygotsky, 1994:341) [tradução nossa, grifos no original]

As particularidades da personalidade a que se refere o autor são formadas sóciohistoricamente, o que implica que as experiências condicionam a formação dessas particularidades – que, por sua vez, condicionam as vivências da criança com a cultura.

Assim, ao longo de sua história de contato com a escrita, quando vive ou testemunha situações em que a escrita é utilizada pelas pessoas – em sua função social (como cultura escrita) ou apenas em seu aspecto técnico (como hábito motor) –, dependendo do lugar que ocupa nessa relação e da vivência que estabelece com esse instrumento cultural, a criança forma para si um sentido do que seja a escrita.

O diálogo abaixo, relatado por Paixão (2004), acontece entre uma pesquisadora e uma criança de seis anos de idade que já acumula dois anos de experiências com escrita na educação infantil e concretiza a apresentação dessa preocupação com o sentido alienado que as crianças podem aprender a atribuir à escrita.

Na situação relatada, ao perceber a pesquisadora que escreve no fundo da sala, a criança se aproxima curiosa e pergunta:

Moça, o que você está fazendo?

Estou escrevendo! – responde a pesquisadora.

Por quê? – pergunta o menino.

Nessa pergunta se explicita o desconhecimento da criança em relação à função social da escrita.

Para eu ler mais tarde e me lembrar do que eu vi aqui na sua sala. – responde a pesquisadora.

Quem mandou? – pergunta o menino. Essa pergunta explicita o sentido que a criança aprendeu a atribuir à escrita e denuncia a relação que construiu nas situações vividas com a escrita.

Essa criança, que pensa que a escrita como algo que se faz quando alguém manda, denuncia a ausência de um motivo próprio para a escrita. Como afirma Leontiev (1978b:217),

O desenvolvimento dos sentidos é um produto do desenvolvimento dos motivos da atividade; por sua vez, o desenvolvimento dos motivos da atividade é determinado pelo desenvolvimento de relações reais que o sujeito tem com o mundo, que dependem das condições históricas objetivas de sua vida. A consciência como relação: este é precisamente o sentido que tem para o sujeito a realidade que se reflete em sua consciência. Por tanto, o que distingue o caráter consciente dos conhecimentos é, justamente, que sentido estes têm para o sujeito. [tradução nossa].

Desse ponto de vista, o sentido que se forma para a criança a partir da atividade que realiza, condicionado ao motivo que a impulsiona a agir, pode ser considerado como um dos elementos que condicionam o êxito ou fracasso escolar. Sendo assim, voltando ao exemplo da criança, apontado acima, cabe perguntar: Que situações vivenciadas com a escrita terão levado essa criança a pensar que a escrita é algo que fazemos quando alguém manda? Identificar as situações que produzem tal sentido é fundamental para superar esse resultado, uma vez que permite planejar novas situações de convivência com a escrita que transformem a concepção de escrita apropriada pela criança que protagoniza o exemplo acima – e, possivelmente, por tantas outras – e preparem as formas adequadas de apresentação da escrita para as crianças de modo a criar nelas um sentido de escrita que articule motivos de estudo.

Na perspectiva histórico-cultural, as relações que a criança estabelece com a cultura são sempre mediadas socialmente e, dessa forma, são condicionadas também pelo mediador e pela relação que este tem com a cultura – assim como por sua concepção de criança, de educação, de escola. Por isso, o mediador tem papel essencial nessa relação que a criança estabelece com a cultura – com os objetos, os instrumentos, o conhecimento, as técnicas, com a língua e as linguagens, com a lógica e os valores – e tal relação favorece ou obstaculiza sua apropriação da cultura e das qualidades humanas postas na cultura (Leontiev, 1978a). Da mesma forma que a criança tem sua relação com a escrita mediada pelo sentido que atribui à escrita, também o mediador – que na escola é representado pelo professor e pela professora – tem suas relações mediadas pelas concepções que orientam seu pensar e agir, e que refletem os sentidos aprendidos nas situações de vida e educação.

Em síntese, três elementos protagonizam o desenvolvimento infantil. A cultura, o professor ou a professora e a própria criança. A cultura, como a fonte das qualidades humanas criadas ao longo da história pela atividade humana no mesmo processo em que foram criados os objetos materiais e não materiais que constituem a herança cultural da humanidade (Vygotsky, 1994). O mediador apresenta a cultura para as novas gerações e faz isso a partir do acesso que ele próprio tem a essa herança cultural, histórica e socialmente acumulada, do sentido que atribui à cultura e das concepções que orientam seu pensar e agir, em especial, nesse caso, o conceito de criança. A criança é o terceiro elemento ativo que condiciona essa relação dialética que resulta na humanização. Como vimos acima, sua experiência anterior condiciona a influência que o meio exerce sobre seu desenvolvimento. Nas palavras de Vygotsky, “não é esse ou aquele elemento tomado independentemente da criança, mas sim, o elemento interpretado pela vivência da criança que pode determinar sua influência no decorrer de seu desenvolvimento futuro.” (Vygotsky, 1994:338) [tradução nossa].

O conceito de vivência estruturado por Vygotsky assim como o conceito de sentido estruturado por Leontiev estabelecem a unidade do cognitivo e do afetivo, afirmam o lugar da emoção e das particularidades da personalidade no processo da criança relacionar-se com a cultura e aprender. Essa nova compreensão revoluciona a concepção que tínhamos do processo de aprendizagem e, consequentemente, revoluciona a forma de pensar e propor o ensino. Conforme Gomes (2008), a dicotomia entre afetivo e cognitivo, presente na escola, exime a educação escolar de sua responsabilidade na formação da personalidade sob o pretexto de que considerar o afetivo extrapola a função da escola cuja responsabilidade é o cognitivo. Quando afirmamos “o caráter histórico e social da formação humana e a unidade afetivo-cognitivo no desenvolvimento das funções psicológicas” (Gomes, 2008:11), rompemos com a ideia “das disposições intrínsecas do sujeito que aprende” e avançamos na superação da concepção naturalizante da dimensão afetiva. Do ponto de vista histórico-cultural, passamos a perceber “os mediadores sociais – as relações interpessoais, o conhecimento, o meio – como elementos transformadores dos afetos”. E entre esses mediadores, situa-se em posição de destaque a educação escolar intencional (Gomes, 2008:11).

Por tudo isso, a atitude do professor e da professora se potencializa quando se assume que, como afirma Davidov (1988:57), “a educação e o ensino [“apropriação”] são as formas universais do desenvolvimento psíquico do homem”. No entanto, e como discutimos ao longo deste texto, para concretizar um ensino desenvolvente, é fundamental considerar também a afirmação de Leontiev (1978b:234): “A aprendizagem, os conhecimentos que se adquirem, educam, e isto não se deve subestimar. Mas, para que os conhecimentos eduquem, é preciso educar uma atitude frente aos conhecimentos.”

Desse ponto de vista, cabe perguntar: Como educar nas crianças uma atitude positiva frente ao conhecimento? Como formar crianças interessadas em aprender mais? Como formar na criança uma concepção de escola como lugar do conhecimento e da cultura?

Com a ampliação do compromisso do Estado de oferta de vagas para todas as crianças a partir dos 4 anos de idade, formar nas novas gerações a vontade de saber mais, o desejo de conhecer, ou nas palavras de Leontiev, “educar nas crianças uma atitude frente aos conhecimentos”, pode se tornar um dos maiores desafios da educação das crianças pequenas. Desde o início da relação das crianças pequenas com o conhecimento, é possível ensinar uma atitude positiva frente ao conhecimento e uma relação curiosa e interessada com a escola. A criança pequena frequentadora da escola infantil que afirma com entusiasmo que “ni (sic) biblioteca tem tudo!” demonstra uma atitude que favorece seu desenvolvimento na escola, pois aponta um motivo que potencializa sua aprendizagem e desenvolvimento. Essa atitude resulta, conforme Leontiev (1978b:233), de situações vivenciadas pela criança em que o conhecimento assume importância em sua vida e não quando este é apenas uma condição externa imposta por alguém. Ainda segundo o autor, para superar a assimilação formal dos conteúdos de estudo, é necessário que o estudo tenha para a criança um sentido vital e não seja apenas um requisito a cumprir.

O ensino antecipado da escrita – situação típica para muitas crianças brasileiras entre 3 e 6 anos e sustentada, muitas vezes, pela pressão de pais e mães – implica, de um modo geral, o sacrifício do tempo de convivência com a cultura que é necessário à formação dos motivos de estudo, da vontade de saber. Partilhar com a sociedade os conhecimentos produzidos que desvelam as condições adequadas para formar a criança como leitora e produtora de textos pode contribuir para o sucesso desse processo.

Desse ponto de vista, compreender a linguagem escrita como um instrumento cultural complexo implica em rever as formas de apresentação da linguagem escrita para as crianças e almejar a formação de leitores e produtores de texto. Vygotsky, na década de 30 do século passado, já criticava a forma de apresentação da escrita para as crianças que partia de seu aspecto técnico, que enfatizava incialmente a relação entre letra e som, quando o domínio da linguagem escrita exige, como condição inicial para a formação da atitude leitora, a compreensão da relação entre texto e mundo real ao qual o texto se reporta. Práticas de apresentação da escrita para as crianças a partir de seu aspecto técnico, ainda comuns em escolas brasileiras, dificultam a formação de leitores potenciais, pois ao enfatizar inicialmente o reconhecimento de letras, sílabas e palavras, mas não as ideias do texto, tendem a formar um pseudoleitor capaz de reconhecer letras e sílabas num texto, mas não sua mensagem. Nesse sentido, contribuem mais para a formação do analfabeto funcional que do leitor.

Visitas a escolas de educação infantil em diferentes cidades brasileiras mostram o lugar de destaque do alfabeto em letras grandes como presença obrigatória nas salas onde as crianças passam a maior parte do dia. Em muitas situações, é a única referência à escrita – que não se constitui como cultura escrita, uma vez que não comunica ideias, não informa sobre os fatos vividos pelo grupo, não expressa experiências compartilhadas.

Com essas observações, não negamos a necessidade dos processos de automatização da escrita que exigem a apropriação de seu aspecto técnico, isto é, da compreensão e utilização do alfabeto em suas múltiplas combinações em sílabas que constituirão palavras que formarão textos. No entanto, concordamos com Vygotsky quando afirma que, quando se inicia a relação da criança com a escrita por seu aspecto técnico, ocupa-se uma grande parte do tempo da criança na escola com o treino motor, ao mesmo tempo em que a linguagem escrita fica relegada a segundo plano. Criticando essa atitude presente nas escolas de seu tempo, o autor afirma que “Diferentemente da linguagem oral, na qual a criança se integra por si mesma, o ensino da linguagem se baseia em uma aprendizagem artificial que exige enorme esforço do professor e do aluno, devido a que se converte em algo que se basta si mesmo; a linguagem escrita viva passa a um segundo plano.” (Vygotski, 1995:183). Isso acontece porque aprender a relacionar a grafia das letras aos sons correspondentes é uma tarefa que, de um modo geral, não faz sentido para a criança que a realiza antes de compreender a função social da escrita. Ao fazer a tarefa de escrita – em geral, repetitiva, e sob a forma de cópia – sem poder atribuir ao que faz um sentido adequado à função da escrita, a criança acaba realizando a tarefa moti vada por algo que é exterior ao ato de escrever. Por exemplo, copia letras, sílabas, palavras ou textos para receber como recompensa, ao final da tarefa, um tempo para brincar. Ou seja, do ponto de vista da estrutura da atividade (Leontiev, 1978b), faz o treino de escrita como um obstáculo a ser vencido para, aí sim, realizar a atividade almejada e verdadeira motivadora do seu agir. Nessa situação, a criança faz uma coisa pensando em outra. Ao realizar uma ação que se configura não como processo de aproximação ao fim desejado, mas como obstáculo a ser vencido para a aproximação a esse fim almejado, a atividade se constitui como atividade alienada. Sem lugar para o afetivo – desejo, vontade ou motivo que se concretiza como fim imediato da ação que se realiza –, a aprendizagem fica comprometida: fazer exercício de escrita motivado por ir brincar retira a atenção da criança do processo de aprendizagem. Dessa forma, a criança realiza a tarefa sem estar presente inteiramente naquilo que realiza porque motivada por algo que é externo ao resultado esperado para a ação e, consequentemente, sem realizar uma aprendizagem desenvolvente (Davidov, 1988). Em outras palavras, a expectativa do brincar é o motivo eficaz que move a ação de escrita da criança, no entanto, não é gerador de sentido para a apropriação da escrita como um instrumento cultural com função social específica.

Como afirma Leontiev (1978a), no processo de realização de uma ação tal como a descrita acima, é possível a formação de novas necessidades e novos motivos na criança e, portanto, a constituição da escrita como atividade. Conforme Leontiev (1978a:299), isso acontece quando o resultado da ação passa a contar mais para a criança que o motivo que suscita a ação. Para que isso aconteça de forma sistemática, no entanto, a intencionalidade do professor ou da professora é condição essencial. Essa intencionalidade, subsidiada pela compreensão do processo de constituição da atividade, pode orientar a criação de condições para a criança em que a escrita deixa de ser um obstáculo a ser vencido para a concretização de uma outra atividade que motiva a criança (ir brincar) e passa a ser seu motivo.

Quando a criança compreende a função social da linguagem escrita – o que decorre de vivências com a cultura escrita –, ela cria para si a necessidade de ler e escrever como verbos bitransitivos: escrever alguma coisa para alguém e ler alguma coisa de alguém. Nesse caso, considerando a estrutura da atividade (Leontiev, 1978b; Leontiev, 1978a), as ações que a concretizam – mesmo ações de treino de escrita de palavras isoladas – têm uma relação direta com o fim almejado para a atividade.

Quando se introduz à criança a linguagem escrita iniciando por seu aspecto técnico, outro problema ainda se apresenta: as tarefas de escrita, pela ausência de motivos geradores de sentido, em geral se tornam longas e cansativas tomando o tempo da atividade lúdica – que é a forma explicita da comunicação da criança com o mundo, a modo como a criança melhor se apropria do conhecimento do mundo e objetiva sua interpretação do que aprende sobre o mundo da cultura humana (Leontiev, 1988; Mukhina, 2000, Vygotsky, 2009). Sem a atividade lúdica que é a atividade principal até os 6 anos (Leontiev, 1988; Leontiev, 1978a) – por meio da qual a criança mais aprende e se desenvolve –, as crianças são prejudicadas em um conjunto de funções que se encontram, nessa idade, em formação e desenvolvimento. Funções como o pensamento, o autocontrole da conduta, a função simbólica da consciência e a previsão de fins para a atividade se formam justamente ao longo da idade pré-escolar por meio do brincar e das demais atividades de expressão como o desenho, a pintura, a dança, a modelagem. Não tendo essas funções formadas, é maior o esforço que o professor ou a professora e as crianças têm que fazer para a execução das tarefas de escritas. Isso acaba por tomar o tempo do parque, da brincadeira, do faz-de-conta, do movimento nos espaços abertos, do tempo livre, do estar à toa em pequenos grupos comentando experiências e conferindo os significados e sentidos que vão formando – o que Mario de Andrade costumava chamar de culturas infantis (Faria, 1999).

Enfim, com a antecipação da escrita e com o abreviamento da infância, retiramos da criança a possibilidade de objetivar-se. Em outras palavras, ao transformarmos as crianças em alunos, retiramos delas o direito a viver a infância e de se relacionar com o mundo da forma adequada à sua situação social de desenvolvimento (Vygostki, 1996) e aprender e se desenvolver.

Por isso, o compromisso com o máximo desenvolvimento das qualidades humanas nas crianças exige a apropriação de uma teoria que perceba o papel desenvolvente e humanizador da educação. Exige, ainda, informar e debater com pais e mães sobre as formas adequadas da educação na infância. Professores e professoras, assim como pais e mães, querem o melhor para suas crianças quando defendem a ideia de que quanto mais cedo a criança é introduzida de modo sistemático nas práticas da escrita, melhor a qualidade da escola da infância; de que quanto mais cedo a criança transformar-se em escolar e apropriar-se da escrita, maiores suas possibilidades de sucesso na escola e na vida. No entanto, isso não é verdadeiro do ponto de vista do desenvolvimento humano e dos processos de aprendizagem.

Ao longo da vida, mas mais especialmente durante a infância, ao mediar a apropriação da experiência humana acumulada, a educação forma a inteligência e a personalidade das novas gerações. Em outras palavras, o processo de aquisição da leitura e da escrita é, também, processo de formação da inteligência e da personalidade, formação da disposição e das atitudes em relação ao conhecimento. Desse ponto de vista, a última coisa que querem pais, mães, professoras e professores é formar na criança um sentido de que a escrita é algo que não responde a suas necessidades, dadas as consequências que isso traria para a vida futura da criança na escola e na vida.

Daí a necessidade de buscamos estudos e pesquisas desenvolvidos acerca da aquisição da escrita e do processo de desenvolvimento humano entre 0 e 10 anos que ajudem a compreender esses processos e a propor procedimentos adequados para o desenvolvimento harmonioso da personalidade e a formação da inteligência no mesmo processo em que se forma a criança para ser leitora e produtora de textos.

Há quase um século, Vygotsky (1995) já criticava os processos de introdução das crianças no universo da escrita. Tal crítica permanece atual para muitas realidades escolares brasileiras: ensina-se as crianças a traçar as letras, mas não se ensina a linguagem escrita. Criticava, com isso, o ensino do mecanismo da escrita antes da compreensão de sua função social. Ao ser apresentada à criança como um conjunto de procedimentos que não respondem à necessidade de expressão da criança e não partem de sua a iniciativa de comunicação – uma vez que se apresentam como escrita de letras, sílabas ou textos articulados para treino das letras e sílabas aprendidas –, a aprendizagem da escrita lembra a aquisição de um hábito técnico: cartas de autores fictícios para pessoas fictícias sobre assuntos fictícios e que não serão enviadas, redações sobre situações não vivenciadas. Por isso, não expressam o verdadeiro desejo de expressão da criança; chegam de fora, como um dever a ser realizado para cumprir uma instrução do professor. Ao vivenciar procedimentos artificiais e ao gastar grande parte do tempo na escola com tarefas que não fazem sentido, a criança percebe a escrita como uma técnica que relega a linguagem viva a um segundo plano. Ainda que sem uma intenção explícita, a escola cria condições para a criança perceber a escrita como uma tarefa desagradável, que pode fazer sentido para a professora ou o professor, mas não faz sentido para criança, uma vez que não nasce de e não responde a sua necessidade de expressão. Com isso, e sem que haja a intenção de fazê-lo, compromete-se a relação que a criança tem com a cultura escrita. Assim apresentado, ler significa traduzir os grafismos em sons. Ler não chega a ser a busca de significado ou a compreensão da mensagem de um texto escrito. Da mesma forma, escrever se torna grafar sons. A isso se referia Vygotsky (1995) quando afirmava que a linguagem viva fica em segundo plano.

Por tudo isso, perceber que sentido tem a escrita para a criança ao iniciar as séries iniciais é condição para desmontar preconceitos sobre a escrita, quando necessário.

 

A Escrita como Instrumento Cultural Complexo

Conforme Vygotsky (1995), escrever exige dominar um sistema simbólico complexo que, por um lado, cria um conjunto de neoformações no cérebro que possibilitam um salto qualitativo nos reflexos psíquicos e, por outro lado, permite o acesso ao conhecimento elaborado pertencente à esfera mais complexa da atividade humana. Nessa esfera, a esfera da atividade não cotidiana (Heller, 1977), encontram-se a filosofia, a ciência, a política, a arte. Por ser um sistema complexo, sua apropriação é igualmente complexa. É preciso, por isso, entender tanto os aspectos linguísticos como os psicológicos envolvidos em sua apropriação. A compreensão das exigências do processo de aprendizagem e das especificidades do objeto a ser apropriado permite planejar formas adequadas à sua apresentação às crianças de modo a melhor promover sua formação como leitoras e produtoras de textos (Mello, 2006).

A escrita é um simbolismo de segundo ordem, uma vez que "se forma por um sistema de signos que identificam convencionalmente os sons e palavras da linguagem oral que são, por sua vez, signos de objetos e relações reais" (Vygostki, 1995:184). No entanto, ainda segundo este autor, para que sua aquisição se dê de forma efetiva, é preciso que, para o sujeito que lê ou escreve, o nexo intermediário representado pela linguagem oral desapareça e a escrita se transforme em um sistema de signos que simbolizam diretamente os objetos e as situações designadas. Pode-se compreender, a partir daí, que, para formar leitores e produtores de texto, o ensino da leitura deve focar a mensagem expressa pelo texto lido e não os sons expressos pelas letras aí grafadas. Da mesma forma, o sujeito que escreve deve ter como foco seu desejo de expressão e não sons que serão grafados sob a forma de letras.

Provoca-se na criança essa atitude de buscar o sentido do texto lido quando a escrita é apresentada por meio de sua utilização social, ou seja, quando a criança é inserida no mundo da cultura escrita muito tempo antes de se chamar sua atenção para o aspecto técnico, para o mecanismo da escrita que exige a relação som/letra e que, vale destacar, será necessário no que poderíamos chamar de segundo passo no processo de aquisição da escrita.

Para Vygotsky (1995), a história da aquisição da escrita pela criança é a própria história do desejo de expressão da criança – que começa com o gesto, considerado pelo autor como escrita no ar, se manifesta pelo desenho, pela fala, pelo faz-de-conta e chega à linguagem escrita.

Assim, a criança, ao longo da idade pré-escolar, com a ajuda do gesto, da fala, do desenho e do faz-de-conta, vai tornando mais elaborada a forma como utiliza as diversas formas de representação de sua expressão. Com isso, entende-se que a representação simbólica no faz-de-conta e no desenho é uma etapa anterior e uma forma de linguagem que leva à linguagem escrita: desenho e faz-de-conta compõem uma linha única de desenvolvimento que leva às formas superiores de expressão representada pela linguagem escrita.

Nessa nova perspectiva de compreensão da escrita, o desenho e o faz-de-conta passam a gozar de um novo status na escola da infância e a merecer uma atenção especial da professora e do professor. Deixam de ser atividades de segunda categoria e assumem o lugar de atividades essenciais no processo de desenvolvimento das formas superiores de expressão que levam à aquisição da linguagem escrita. Assim, o desejo de que as crianças se apropriem efetivamente da escrita – não de forma mecânica, mas como uma linguagem de expressão e de conhecimento do mundo –, deve estimular o faz-de-conta e o desenho livre, como formas de expressar o que aprende e os sentidos que atribui ao que vai conhecendo no mundo da cultura e da natureza.

Percebido do ponto de vista histórico-cultural, parece claro que o lugar da aprendizagem do aspecto técnico da escrita – do como se escreve e se lê – não é a educação infantil. A educação infantil provoca a criança para conhecer o mundo e para expressar esse conhecimento nas múltiplas linguagens por meio das quais é capaz de se expressar em sua relação lúdica com o mundo: a fala, o desenho, o faz-de-conta, a pintura, a modelagem, a dança, a música, o teatro.

Ao longo da educação infantil, podemos formar uma criança curiosa que tenha uma larga convivência com as práticas de leitura e escrita, uma densa experiência com a cultura escrita. Para isso, a convivência com pessoas que leem para as crianças e para si mesmas e que escrevem e registram para si e para as crianças aquilo que elas querem registrar sob a forma de texto escrito é condição necessária. Essa convivência com a cultura escrita permite que a criança atribua à escrita um sentido adequado à sua função na sociedade e, assim, saiba para que se lê e se escreve. Para além disso, quanto mais experiências significativas tiver, mais terá o que expressar por meio de diferentes linguagens. Dessa maneira, formamos uma criança que, ao final da educação infantil, esteja ávida por aprender a ler e a escrever e não cansada de treinos de escrita. Este pode ser um indicador de sucesso da atividade docente com as crianças pequenas.

Isso, no entanto, é o inverso do que sucede em muitas escolas infantis e agora, também, no ensino fundamental com crianças de seis anos nas salas de primeiro ano. São comuns as notícias na mídia sobre crianças estressadas, desinteressadas, indisciplinadas e medicalizadas ao final da idade pré-escolar e início da idade escolar2. Crianças que não gostam da escola ou que resistem a continuar frequentando a escola na idade escolar são indicadores de que algo de errado se está fazendo com a educação das crianças (Mello, 2007).

 

À Guisa de Conclusão

A tese sobre como se dá o processo de conhecimento humano contribui para apontar alguns elementos de práticas de educação intencionalmente orientadas para a formação de leitores e produtores de texto. De acordo com o enfoque histórico-cultural, as novas gerações se apropriam dos instrumentos culturais criados pelos seres humanos ao longo da história – entre eles, a linguagem escrita – à medida que realizam com esses instrumentos a atividade para a qual foram criados (Leontiev, 1978a). No caso da escrita, sua utilização para escrever com a finalidade de registrar vivências, expressar sentimentos e emoções, comunicar-se e informar sobre fatos constituem situações que realizam seu fim social. Considerando esse pressuposto, é possível perceber práticas utilizadas em muitas escolas para ensinar a escrever que pecam por sua finalidade e pelo sentido que imprimem à escrita quando enfatizam a cópia de textos alheios à experiência vivida pelas crianças ou o treino motor de letras e sílabas.

Esse mesmo pressuposto defende o caráter ativo do sujeito que aprende. Isto implica que a criança não aprende apenas por que o educador queira ensiná-la, mas quando aquilo que lhe é apresentado faz sentido para ela; no caso da escrita, quando o resultado da escrita responde a uma necessidade de comunicação criada na criança. Como afirma Vygotsky (1995), da mesma forma que a linguagem oral é apropriada pela criança naturalmente, a partir da necessidade de expressão nela criada por sua vivência social numa sociedade que fala, a escrita precisa se fazer uma necessidade natural da criança numa sociedade que escreve e lê.

Nesse sentido, muda o caráter do trabalho do professor e da professora. Em lugar de impor às crianças atividades de escrita em situações que para elas não fazem sentido, professor e professora se tornam criadores de situações que produzam novas necessidades nas crianças, como, por exemplo, a necessidade de escrever.

As contribuições da teoria histórico-cultural permitem ver o sujeito psicológico como um sujeito inteiro e não mais fragmentado: isto implica que não basta o exercício motor para a aprendizagem de um instrumento tão complexo como a escrita. O ser humano é movido pela necessidade. Essa necessidade cria motivos (desejos e interesses) que movem a ação humana. Ao mesmo tempo, a atividade humana é sempre uma atividade dirigida a um fim. O fim, sob a forma de resultado, se apresenta ao sujeito, mesmo antes do início da ação, sob a forma de ideia que dirige sua ação (Leontiev, 1978a; Leontiev, 1978b). No caso da atividade escolar, é preciso que se considere o objeto que responde à necessidade da criança e que, transformado em seu motivo, move o fazer da criança para o objetivo projetado para essa atividade. Essa relação entre resultado previsto e o motivo dá sentido à ação. Quando há uma correspondência direta entre eles, a ação é plena de sentido para a criança.

Nesse caso, quando realiza uma tarefa movida pelo desejo de chegar ao seu resultado, a criança realiza uma atividade plena de sentido, que a envolve afetiva e cognitivamente. Quando escreve ou participa da escrita de uma carta em que se solicita algo considerado necessário para o grupo, ou quando registra um fato que chama sua atenção e que deverá ser afixado no jornal da classe que todos os colegas vão ler, a criança se envolve profundamente. Corpo e mente! Inteiramente voltada para essa atividade.

Isso é diferente de quando a criança faz cópia de um texto que não lhe diz respeito, que não registra seu desejo de expressão, não responde a nenhuma necessidade, não tem um fim verdadeiro. Nesse caso, ela copia de forma mecânica, motivada por necessidades estranhas ao que realiza.

Sintetizando as contribuições da teoria histórico-cultural acerca da apropriação efetiva da escrita pela criança de tal modo que ela se torne uma leitora e produtora de textos, podemos destacar a importância de que na escola se crie nas crianças a necessidade da escrita. Quando se utiliza a escrita não de forma artificial, mas de acordo com o uso social para o qual ela existe, possibilita-se que a escrita se torne uma necessidade natural da criança, da mesma forma como a necessidade de falar foi para ela constituída. Isso se faz quando a criança teste munha e participa de situações coletivas de escrita registrando o que vê e vive, planejando atividades futuras, registrando o plano das atividades no início de cada dia, fazendo o jornal da classe, o jornal da turma, escrevendo para uma turma de outra escola, outra cidade, outro estado ou outro país. Nesse caso, se ela ainda não escreve, a professora ou o professor escrevem por ela o texto que ela produz e que corresponde a seu desejo de expressão.

Importante ainda lembrar que, para que a criança queira escrever, é preciso ter o que dizer. Para ter o que dizer, é preciso estimular as várias formas do dizer, as várias linguagens de expressão e registro que preparam a escrita sem, no entanto, considerá-la como a única forma importante de linguagem. Por isso, a entrada da criança na escola fundamental, não pode significar o abandono do lúdico, do desenho, da pintura, do faz-de-conta. É preciso manter um tempo para a atividade lúdica que pode ser aproveitada no trabalho significativo com a escrita: o registro individual ou coletivamente do que se faz, as regras das brincadeiras, as listas das brincadeiras realizadas e das que se planeja realizar, as listas de brincadeiras e jogos pesquisados com pais e avós, a memória das brincadeiras aprendidas na escola.

Essencial nesse processo é não reduzir a escrita a um ato motor, mas tratá-la como uma atividade cultural complexa. Como afirma Vygotsky (1995:183), “o domínio da linguagem escrita significa para a criança dominar um sistema de signos simbólicos extremamente complexo” e, para o autor, o desafio maior desse processo é ensinar à criança a linguagem escrita e não as letras.

Observações e coleta de dados realizados em escolas de educação infantil e em escolas de ensino fundamental, no último ano, permitem afirmar que o desafio maior desse processo é trazer a cultura escrita – assim como a cultura elaborada – para dentro do ambiente escolar. Portadores de texto – como livros infantis e infanto-juvenis, dicionários, gibis, revistas, jornais, livros de consulta sobre diferentes campos do conhecimento, enciclopédias, mapas, filmes legendados e murais, assim como paredes que contam as histórias do grupo e de suas experiências vividas – que constituem o universo letrado que faz da escola o lugar da cultura escrita, estão, de um modo geral, ausentes do espaço da escola. A cultura, do ponto de vista histórico-cultural, é a fonte da formação e desenvolvimento das qualidades humanas e, por isso, referência essencial no processo de educação-humanização que se realiza na escola. Trazer esse material para as escolas infantis e escolas de ensino fundamental depende de uma atitude de coleta e organização de material vastamente presente em nossa cultura letrada. Essa atitude, no entanto, depende de uma nova compreensão da formação e do desenvolvimento do psiquismo humano assim como da compreensão – para além do senso comum – do papel que os motivos desempenham nos processos de aprendizagem.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Suely Amaral Mello
E-mail: suepedro@terra.com.br

Recebido em: 13/04/2010
Revisado em: 16/09/2010
Aceito em: 20/10/2010

 

 

* Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação na Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Marília, SP – Brasil.
1 Esse autor terá seu nome grafado na forma como aparece aqui, respeitando-se, nas citações, a forma como seu nome é grafado no texto de referência da citação.
2 A venda de remédios para o que se identifica na escola como distúrbios do comportamento infantil cresceu de 2000 para 2008 da ordem de 70.000 para 1.100.000 caixas (Palestra proferida pela prof.ª Dr.ª Marisa Mellilo Meira, VIII Jornada do Núcleo de Ensino/ Marília/Unesp/2009).