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Revista Psicologia Política

versión On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.11 no.21 São Paulo jun. 2011

 

ARTIGOS

 

Banheiros, travestis, relações de gênero e diferenças no cotidiano da escola

 

Bathrooms, travestites, gender relations and differences in school’s daily life

 

Baños, travestis, relaciones de g énero y diferencias en el cotidiano de la escuela

 

 

Elizabete Franco Cruz*

Universidade de São Paulo, São Paulo, SP – Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Em qual banheiro uma travesti deve "fazer xixi" na escola? No banheiro dos meninos? No banheiro das meninas? Esta questão, presente no cotidiano das escolas e relatada em aulas do curso de especialização em gestão educacional por diretores(as) da rede estadual de ensino de São Paulo é o fio que puxa as problematizações deste artigo. Entrelaçando os relatos dos diretores e diretoras, pistas do filme Transamérica, textos sobre relações de gênero e algumas ideias do filósofo francês Michel Foucault desenho um mosaico de reflexões que convidam à desconstrução de uma perspectiva binária e fundamentacionalista que hegemonicamente domina fazeres e saberes sobre as identidades de gênero no cotidiano e deixo o convite para a (re)invenção de novos modos de tessitura dos sujeitos e das relações no interior da escola.

Palavras-chave: Travestis, Relações de gênero, Cotidiano da escola, Identidades trans, Poder.


ABSTRACT

Which bathroom should a transvestite "pee" at school? In the boys’ bathroom? In the girls’ bathroom? This issue, present in everyday life of schools and class rooms, was raised in a specialization course in educational administration for principals of São Paulo’s state schools and the bases of this study. Using the stories of school principals, elements taken from the film Transamerica, texts about gender relations and Foucault's ideas, a mosaic of reflections that led to the deconstruction of a binary perspective that dominates the knowledge about gender identities. The article likewise is an invitation to (re) invention of new ways to weave individuals and gender relations within the school.

Keywords: Transvestites, Gender relations, School routine, Trans-identities, Power.


RESUMEN

Qué baño debería un travesti hacer "pipí" en la escuela? En el baño de los chicos? En el baño de las niñas? Esta pregunta, presente en la vida cotidiana de las escuelas y las clases relacionadas en el curso de especialización en administración de la educación para los directores(as) de las escuelas del estado de São Paulo es el objeto que inicia el cuestionamiento deste artículo. Entretejiendo las historias de los directores, elementos de la película Transamerica, textos sobre las relaciones de género y las ideas del filósofo francés Michel Foucault, el dibujo de un mosaico de reflexiones que invitan a la deconstrucción de una perspectiva binaria y fundamentacionalista hegemónica y dominante actividades y el conocimiento de las identidades de género en la vida cotidiana y dejar la invitación a la (re)invención de nuevas formas de tejer los sujetos y las relaciones dentro de la escuela.

Palabras clave: Travestis, Relaciones de género, Cotidiano escolar escuela, Identidades trans.


 

 

1. Banheiros e Identidades1

O objetivo deste ensaio é problematizar identidades de gênero, em especial algumas consideradas marginais, levando à reflexão a respeito de como tais construções podem ser significativas no contexto das escolas.

Como ponto de partida, esclareço que tenho ciência das diferenças entre travestis, transexuais e transgêneros. Com vistas à melhor circunscrever a que me refiro quando da utilização destes termos, empresto a breve definição de Peres (2009):

[...] De modo bastante rápido, defino as travestis como pessoas que se identificam com a imagem e o estilo feminino, apropriando-se de indumentárias e adereços de sua estética, realizando com frequência a transformação de seus corpos, quer por meio da ingestão de hormônios, quer através da aplicação de silicone industrial e das cirurgias de correção estética e de próteses. As transexuais são pessoas com demandas de cirurgias de mudança de sexo e de identidade civil, demandas que não encontramos nas reivindicações emancipatórias das travestis. Já as transgêneros são pessoas que se caracterizam esteticamente por orientação do gênero oposto, não se mantendo o tempo todo nesta caracterização como o fazem as travestis e as transexuais. Como exemplo destas últimas podemos elencar as/os transformistas, as drags queens,os drag kings etc. (Peres, 2009:236)

Em que pese esta breve circunferência nos conceitos devo dizer que isto é mais ou menos ao que estou me referindo. Mais ou menos porque há uma pluralidade discursiva e de sentidos atribuídos à cada uma destas identidades, por exemplo, podemos encontrar travestis com demanda para mudança de identidade civil, ou que ao menos querem ser chamadas pelo nome que escolheram. A tentativa de descrevê-las serve apenas para nortear quem se propõe a me acompanhar por este texto e não para classificá-las, porque certamente a todas as classificações escapam as pluralidades das identidades e de cada ser dentro de cada identidade. Além disto, existem relações de tempo/espaço a configurar os sentidos que são dados a estas identidades.

Três experiências me levaram à reflexão sobre esta temática: ministrar aulas em curso de especialização, assistir a um filme e organizar um encontro de jovens. O que faço neste texto é pensar, estas experiências à luz dos estudos da área das relações de gênero.

A pretensão não é analisar as especificidades identitárias, nem cada uma das experiências que me trouxeram até este texto. A pretensão aqui é mais modesta: partir de situações concretas e cotidianas para criar problematizações sobre a construção de identidades de gênero e suas possíveis implicações para a educação. O que interessa aqui, portanto, é pensar, refletir que nestas experiências identitárias há algo em comum: o rompimento de uma visão binária dos gêneros estabelecida a partir do biológico e a reinvenção das possibilidades masculino-feminino.

Limites e pretensões demarcados, começo apresentando brevemente cada um das experiências que serviram de ponto de partida para este texto e posteriormente teço algumas ponderações teórico-reflexivas.

 

1.1. Travestis e Banheiro no Cotidiano da Escola

A motivação inicial para a escrita deste ensaio teve como ponto de partida a experiência como professora do módulo "O cotidiano da Escola" em um curso de especialização em gestão educacional para diretores de escolas da rede estadual de São Paulo, realizado pela UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas (2005/2006).

Nesta experiência docente observei que a presença de travestis na escola provoca uma grande inquietação. Em uma das primeiras turmas, uma aluna/diretora trouxe uma questão:

Tem um aluno, o João, que se veste como uma menina e disse que agora é Joana2. Desde então, surgiu uma questão. Qual banheiro ele deve usar? O dos meninos ou das meninas? Deu a maior confusão! As meninas não querem que ele use o banheiro delas, os meninos também não. Como resolvemos? Ele usa o banheiro da diretora. Mas agora, a partir de sua aula, estou pensando será que resolvemos a questão? Será que demos o melhor encaminhamento?

Nesta turma e em todas as outras que se seguiram abri este debate e pude perceber que as travestis têm muitas dificuldades no cotidiano da escola - desde a resposta da chamada, até o relacionamento com colegas, professores e direção. Sua diferença não é bem recebida no cotidiano da escola. E, tal qual gays, lésbicas, negros, portadores de HIV e todos aqueles tidos como "os anormais", sua cidadania e direitos são frequentemente violados.

E esta violação não está pautada, necessariamente, no descaso dos(as) dirigentes das escolas, ao contrário, em todas as turmas existiam diretores(as) comprometidos(as) preocupados, buscando caminhos. No entanto esta busca quase sempre era pautada por uma perspectiva binária (ou isto ou aquilo, ou homem ou mulher) em premissas religiosas, ou científicas – classificatórias e patologizantes.

Nas diferentes turmas observei algumas nuances do debate. Quando surge esta questão a maioria das escolas oferece como solução o uso do banheiro de professores(as)/funcionarios( as)/ direção. Grande parte das escolas também não discute abertamente com alunos(as) e familiares, não pensa propostas educativas com a comunidade escolar. Há uma grande dificuldade para abordar o tema com professores(as) e alunos(as), mas, segundo os relatos, principalmente com a família3.

Uma das turmas brincou com a expressão "Abafa o caso" e tivemos a oportunidade de debater como "abafar o caso" significa não se confrontar, não somente com as diferenças ligadas às relações de gênero, mas também com outras diferenças que perpassam o cotidiano da escola. Percebemos que muitos outros "casos" (não somente das travestis) são "abafados" no dia a dia.

Neste texto trago algumas reflexões e problematizações que fiz junto às(e aos) diretoras( es) e que se pautam principalmente nas perguntas de inspiração foucaultiana: por que o lugar no qual a travesti "faz xixi" se tornou uma questão para nós? Como lidamos com as diferenças no cotidiano da escola? Quais sujeitos são constituídos com os dispositivos que vigoram no cotidiano? O que ensinamos quando a travesti não tem lugar para "fazer xixi"?

Talvez seja importante destacar que não estou procurando "culpados" pela existência da situação, nem querendo que a escola ocupe o lugar de "salvadora" dos conflitos sociais, culturais e identitários que existem em nossa sociedade. Sem dúvida temos que considerar as condições de trabalho dos(as) diretores(as) com exigências e demandas de todo tipo: administrativas, políticas, sociais, relacionais, estruturais.

No entanto, também não podemos desconsiderar que existem travestis nas escolas e que nossas práticas discursivas e não discursivas produzem determinados efeitos de realidade. "Abafar o caso" não seria um silenciamento, um apagamento das diferenças? Foucault assinala que as produções discursivas também organizam silêncios (p. 17) e, portanto é interessante que observemos não somente o que se diz, mas também o que se silencia, o que se diz com o silêncio. Deste modo, cabe perguntar: ao "abafar o caso", o que estaríamos falando no cotidiano da escola? Resolver a questão do banheiro sem "mexer" com o tema dentro da escola não seria uma estratégia de manutenção de uma referência binária? Não seria uma exclusão? Ou ainda esta "exclusão" não seria uma estratégia de poder que confere um lugar que mantêm o "anormal" dentro da norma? (Veiga-Neto, 2003).

Na medida em que debati este tema com diferentes grupos de alunos deste curso e depois com alunos/colegas de outros cursos e de outros espaços (como profissionais de saúde e do movimento social) observei várias posições:

1. o banheiro adequado era o "dos meninos", porque ele tinha pênis, então tinha que usar o banheiro dos meninos;

2. o banheiro que deveria ser utilizado era o "das meninas" porque ele agora era mulher, se vestia como uma mulher;

3. o banheiro a ser utilizado era o "da diretora", ou "dos(as) professores(as), funcionários( as)" que significava uma proteção, porque podiam bater no(a) aluno(a) no banheiro dos meninos;

4. o banheiro a ser utilizado era o "da diretora" porque era difícil debater este tema com as famílias da escola;

5. o banheiro a ser utilizado era o "dos meninos" porque ele não podia ferir o direito das meninas a ter privacidade;

6. o banheiro a ser utilizado era "o das meninas" porque os meninos zombavam e podiam bater nele;

7. o banheiro a ser utilizado era o da diretora porque os professores/as não gostavam da ideia de vê-lo utilizando o seu banheiro;

8. ele(a) poderia usar o banheiro que quisesse (poucas pessoas com esta visão);

9. talvez precisássemos de um terceiro banheiro;

10. talvez pudéssemos ter nas escolas um banheiro só (para alunos e alunas) (poucas pessoas com esta visão).

A maioria das opiniões se dividia entre os pareceres acima, no entanto, duas posições minoritárias são difíceis de adjetivar, mas as nomearei como, no mínimo, inquietantes. Uma aluna de um curso de psicologia sugeriu "faz xixi em casa" e algumas diretoras pensaram em colocar horário para que a travesti fosse ao banheiro (um pouco antes ou depois do intervalo). Uma diretora comentou que as crianças da escola disseram: "Mas isto não é preconceito?". E foi então que ela percebeu a dimensão do que propunha.

Um dos debates particularmente interessa e pode dar pistas para nossa problematização: E se ele fizer "a cirurgia" pode usar o banheiro das meninas? Ah! Pode! Porque então ele é menina! Intensificando e provocando os debates indagava: [...] mas, em nossas casas, homens e mulheres não usam o mesmo banheiro? E a resposta: mas são familiares, são conhecidos. Uma das diretoras definiu: Nossa! Do modo como esta questão é tratada parece que o banheiro é o RG do aluno na escola!

Nosso binário modo de funcionar dividiu os meninos- pênis para um banheiro e as meninas - vaginas para outro. Quando no cotidiano da escola (e das sociedades) surgem aqueles que fogem ao processo classificatório estabelecido a confusão se estabelece. Não há banheiro para uma Joana com pênis. Porque a Joana com pênis não é familiar é "estranho" E o que fazemos então?

"Abafamos o caso" e, como a Constituição garante-lhe os direitos, organizamos um modo de amenizar sua diferença e deixar tolerantemente o anormal conviver conosco, dando menos trabalho: no banheiro da diretora! E o que isto significaria? O banheiro de diretores e diretoras, professores e professoras seria um território assexuado?

Transamérica- pensando a transexualidade

O filme Transamérica é uma produção cinematográfica de 2005 que narra a trajetória de Bree uma transexual que (nos dizeres da divulgação do filme) "sonha se tornar mulher uma mulher de verdade". Quando está prestes a realizar a cirurgia Bree descobre que é pai e, seguindo a recomendação de sua terapeuta, vai em busca do filho de 17 anos. O filme aborda o tema da transexualidade e traz uma imagem (apresentada no banner do filme e na capa do DVD) que captura e representa com perfeição a questão que ora debatemos. (Figura I anexa).

A imagem de Bree parada diante das portas de banheiros que trazem desenhos sinalizando masculino e feminino remete à mesma questão que identifiquei na escola: Seu corpo está exatamente "entre" os dois banheiros, deixando subliminarmente a pergunta que a sociedade se faz: qual banheiro deve utilizar alguém que tem pênis e está vestido de mulher?

Desde a educação infantil, como aponta o trabalho de Teixeira e Raposo (2007) o banheiro surge como um espaço emblemático da constituição das diferenças de gênero, um espaço marcado por jogos sexuais, descobertas, ameaças e potencialidades. Nas palavras das autoras:

Os banheiros são espaços de alta densidade simbólica para a investigação das relações de gênero e sexualidade no contexto público e escolar. Materializam e expressam concepções e práticas de cuidado do corpo e do meio ambiente - já que são locais de depósito das excreções – marcadas por significados de sexo e gênero: como são arquitetados e organizados? Como são usados? Quem os mantém limpos? Tais questões sugerem reflexões que articula gênero, sexualidade, corpo e educação. (Teixeira & Raposo, 2007:1)

 

1.2. Travesti no Encontro de Jovens

Em 2006 organizamos4 um encontro de jovens que vivem com HIV e tivemos a presença de uma jovem travesti de 18 anos. Em uma reunião para a organização da viagem que a levaria até este encontro indagou: em qual quarto irei dormir (dos meninos ou das meninas?). Perguntamos, então: Em qual quarto você quer dormir? No quarto das meninas, foi a resposta. Qual menina compartilha um quarto com a travesti? As meninas sabem quem são as travestis? Estas foram as questões que surgiram para o debate. Fomos explicar: a travesti se sente uma mulher... E ela nos corrige: não me sinto, sou uma mulher.

Uma garota de 14 anos diz que com tranquilidade divide o quarto com sua nova colega. Afinal cresceu conhecendo várias travestis e não vê problemas nisto. O contexto social em que viveu (frequentando uma ONG) não tratava travestis como seres estranhos...

 

2. Caleidoscópio de Pistas: a anormalidade produzida nos fios do fundacionalismo biológico, binarismo e heteronormatividade

Ao rodarmos um caleidoscópio, temos inúmeras possibilidades, muitos desenhos e configurações de peças coloridas. Diante do contexto acima descrito, com a pluralidade de elementos (das identidades, banheiros, cotidiano da escola, filme, outras experiências) e girando meu caleidoscópio, quero dialogar apenas com algumas problematizações que escolho fazer dentro dos limites do espaço/tempo que possuo neste texto. Interesso-me aqui em movimentar peças e cores que historicamente foram desenhando "verdades", aquelas que Foucault (2004) tão bem nomeou como Regime da Verdade: "Por verdade entender um conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados. A "verdade" está circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e apoiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem. "Regime" da verdade." (Foucault, 2004:14).

Quais jogos de poder/saber/verdade existem sobre corpos e identidades? Os corpos definem os sujeitos? Quantos e quais corpos são possíveis? Dois? Diferenças são somente diferenças, ou são elementos carregados de sentidos socioculturais?

Buscando pistas para estas questões e tomando ideias de Foucault e dos estudos de gênero, em especial aqueles de origem feminista e pós-estruturalista, podemos dizer que histórica e culturalmente foi construída a noção de que existe a "verdadeira" identidade sexual e que ela está associada ao "verdadeiro" sexo, que é considerado o biológico. Travestis, transexuais, transgêneros configuram possibilidades identitárias e modos de viver a experiência da existência e da sexualidade, que ganham status de anormalidade numa sociedade em que vigora o binarismo, a heteronormatividade e o fundacionalismo biológico. Examinemos brevemente a que me refiro quando convido para que observemos estas "peças coloridas" do mosaico formado com o giro do meu caleidoscópio.

No célebre "Os anormais" Foucault (2002) mostra como exercícios de poder, técnicas de exame, descrição e disciplinas como a psiquiatria e o direito produziram figuras de anormalidade a serem contidas, controladas e regidas por instituições normativas:

A grande família indefinida e confusa dos "anormais", que amedrontará o fim do século XIX, não assinala apenas uma fase de incerteza ou um episódio um tanto infeliz na história da psicopatologia; ela foi formada em correção com todo um conjunto de instituições de controle, toda uma série de mecanismos de vigilância e de distribuição; e quando tiver sido quase inteiramente coberta pela categoria da degeneração, dará lugar a elaborações teóricas ridículas, mas com efeitos duramente reais." (Foucault, 2002:413)

Estes efeitos reais a que Foucault se refere podem ser sentidos ao observarmos a discursividade técnico-teórica que envolve as diferenças, no caso em debate, aquelas ligadas à sexualidade. Dito de outro modo, ainda há um predomínio – nos campos da saúde, educação e justiça – das concepções que pressupõe a existência de sexualidades desviantes, fora do padrão natural/normal. E a anormalidade é vista como uma ameaça, algo que precisa ser excluído5.

É interessante notar que o lugar de anormalidade conferido aos homossexuais faz parte de uma racionalidade que produz aquilo que Judith Butler (2003) denomina de "gêneros inteligíveis" que mantêm a continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo (p. 38). Esta matriz cultural produz oposições binárias (masculino/feminino, macho/fêmea) e entende que as identidades que fogem desta continuidade são fora dos padrões, portanto "anormais".

Louro (2009) aponta que desde a metade do século XIX as sociedades ocidentais dão especial atenção a sexualidade e a um conjunto de práticas e saberes que conduziram a construção da figura do homossexual e da homossexualidade aponta que a "heterossexualidade só ganha sentido na medida em que se inventa a homossexualidade e comenta: "Esse alinhamento (entre sexo – gênero - sexualidade) dá sustentação ao processo de heteronormatividade, ou seja, à produção e à reiteração compulsória da norma heterossexual." (Louro, 2009:90)

A autora ainda nos leva a pensar que existem resistências em relação à heteronormatividade, principalmente oriundas de movimentos sociais e de intelectuais. Contudo, a heteronormatividade predomina na racionalidade que vigora nos espaços sociais e, na medida em que não há garantias que a heterossexualidade aconteça naturalmente, são feitos vários esforços para afirmar e reafirmar a regra heterossexual.

A partir destas ideias temos que a oposição binária e controlada do uso de banheiros faz parte desta lógica heteronormativa, como um elemento que compõe o dispositivo da sexualidade6. Beatriz Preciado (s/d) debate o modo pelo qual a organização dos banheiros - mais do que simples organização arquitetônica - funciona como tecnologias do gênero. Seu texto é importante para pensarmos como os banheiros funcionam como elementos de regulação da masculinidade/feminilidade e:

[...] No es casual que la nueva disciplina fecal impuesta por la naciente burguesía a finales del siglo XIX sea contemporánea del establecimiento de nuevos códigos conyugales y domésticos que exigen la redefinición espacial de los géneros y que serán cómplices de la normalización de la heterosexualidad y la patologización de la homosexualidad. En el siglo XX, los retretes se vuelven auténticas células públicas de inspección en las que se evalúa la adecuación de cada cuerpo con los códigos vigentes de la masculinidad y la feminidad. En la puerta de cada retrete, como único signo, una interpelación de género: masculino o femenino, damas o caballeros, sombrero o pamela, bigote o florecilla, como si hubiera que entrar al baño a rehacerse el género más que ha deshacerse de la orina y de la mierda. (Preciado, s/d, s/p)

A autora assinala que o modo de organização dos banheiros funciona como a reiteração de modelos de masculinidade heterosexual:

[...] Dos lógicas opuestas dominan los baños de señoras y caballeros. Mientras el baño de señoras es la reproducción de un espacio doméstico en medio del espacio público, los baños de caballeros son un pliegue del espacio público en el que se intensifican las leyes de visibilidad y posición erecta que tradicionalmente definían el espacio público como espacio de masculinidad. Mientras el baño de señoras opera como un mini-panópticon en el que las mujeres vigilan colectivamente su grado de feminidad heterosexual en el que todo avance sexual resulta una agresión masculina, el baño de caballeros aparece como un terreno propicio para la experimentación sexual. En nuestro paisaje urbano, el baño de caballeros, resto cuasi-arqueológico de una época de masculinismo mítico en el que el espacio público era privilegio de los hombres, resulta ser, junto con los clubes automovilísticos, deportivos o de caza, y ciertos burdeles, uno de los reductos públicos en el que los hombres pueden librarse a juegos de complicidad sexual bajo la apariencia de rituales de masculinidad. Pero precisamente porque los baños son escenarios normativos de producción de la masculinidad, pueden funcionar también como un teatro de ansiedad heterosexual. En este contexto, la división espacial de funciones genitales y anales protege contra una posible tentación homosexual, o más bien la condena al ámbito de la privacidad. (Preciado, s/d, s/p)

Temos, portanto, que o modo de organização dos banheiros não é algo tão "inocente" ou "natural" como poderíamos supor. A racionalidade que vigora nestes espaços está a serviço de reafirmar a heteronormatividade e a perspectiva binária do gênero. Justo o espaço do banheiro, tão dedicado as funções "naturais", disfarçadamente (?) precisou ser esquadrinhado para controle dos corpos, das sexualidades e dos gêneros!

Maia (2010) a partir do artigo de Preciado (s/d) produziu um trabalho no qual observou banheiros da UFBA – Universidade Federal da Bahia e discorda da autora quanto ao fato de que há uma dicotomia entre os espaços do mictório e da cabine (que segundo Preciado corresponde a dicotomia entre funções genitais e anais). A partir da análise dos textos escritos nas portas dos banheiros masculinos da universidade, o autor aponta uma maior fluidez entre tais espaços, contudo observa que os escritos reverberam mensagens homofóbicas e que legitimam modelos de identidades e práticas de masculinidade heterossexual. Neste sentido, é possível pensarmos que, mesmo com pluralidades e contextualidades os banheiros são espaços nos quais as identidades são reiteradas, enunciadas.

Aprofundando a analítica desta temática e em especial a dificuldade da escola diante das travestis podemos ainda pensar a regulação dos gêneros no contexto do uso dos banheiros a partir do conceito de fundacionalismo biológico debatido por Nicholson (2000) em um instigante artigo no qual comenta a construção do conceito de gênero e suas relações com a biologia.

Segundo a autora ao longo das construções teóricas feministas o conceito de gênero passa a valorizar aspectos sociais e culturais e surge como um elemento que se opõe a concepção de que fatores biológicos eram fundantes das diferenças entre homens e mulheres. No entanto, esta construção também é capturada, ao menos de algum modo, pela dimensão biológica que está negando, na medida em que a ideia de gênero aparece como complementar ‘a ideia de sexo: "Assim o conceito de gênero foi introduzido para suplementar o de "sexo" não para substituí-lo. Mais do que isso não só o gênero não era visto como substituto de sexo como também sexo parecia essencial à elaboração do próprio conceito de gênero." (Nicholson, 2000:11).

Deste modo sobre o corpo (biológico) existiria um processo de socialização que promoveria o desenvolvimento da personalidade e do comportamento, ou seja, "o sexo ainda mantinha um papel importante: o de provedor do lugar onde o "gênero" seria supostamente construído." (Nicholson, 2000:11, grifo nosso)

A autora sinaliza que o que nomeia como fundacionalismo biológico não equivale ao determinismo biológico na medida em que inclui questões do construcionismo social, como elementos culturais e sociais. No entanto, argumenta que ainda que o fundacionalismo biológico permita o reconhecimento das diferenças entre as mulheres ele o faz de forma limitada (posto que ainda preso ao corpo-sexo).

Estas reflexões são particularmente interessantes no escopo das discussões deste ensaio. Em que pesem estas diferenças, estou interessada aqui em problematizar se travestis e transexuais "podem" ser mulheres, ou dito de outro modo, se "podem" viver numa sociedade que as reconheça como mulheres.

Neste ponto é muito interessante notar que nem todas as travestis se sentem ou querem ser vistas como mulheres e a travestilidade pode ser percebida também como outra forma de viver o gênero - o que também é interessante - porque rompe com o binômio masculino-feminino, abrindo novas possibilidades. Entretanto, lembrando aqui das muitas possibilidades podemos pensar que há travestis que se sentem mulheres, que se sentem travestis, que se sentem homens, que se sentem homem/mulher e travestis que podem se sentir também o que não pensamos ou nomeamos7.

De todo modo, a problematização que foco aqui é a possibilidade que pensar que não somente o gênero é uma construção discursiva ao redor de um sexo imutável, mas o próprio sexo é uma construção discursiva: porque afinal ter pênis é o que define os machos e vulva/vagina é o que define as fêmeas? Avançamos ao pensar o gênero como construção sociocultural, mas ainda nos mantivemos presos aos ditames do sexo biológico como algo inquestionável.

Vejamos: no filme (e na vida real) a personagem transexual diz que é uma mulher, nas escolas muitas travestis também dizem que sim! E nos, os/as "outros/as" das travestis e das transexuais, nos que nascemos com vaginas ou que nascemos com pênis e não queremos ser nem travestis, nem transexuais, podemos compreender a existência de mulheres que não nasceram com vaginas?

Até certo ponto sim, até certo ponto não. Tomemos a ideia que surgiu nos debates sobre o cotidiano da escola: se fizer a cirurgia, tudo bem ir ao banheiro das mulheres! Deste modo, com o que aqui denominarei ludicamente de "vagina nascida" ou "vagina produzida" "tudo bem"?8

O que está em jogo no cotidiano da escola parece ser o debate ao redor de qual banheiro se destina à travesti, mas, se examinarmos com cuidado, perceberemos que pode ser isso e ao mesmo tempo o entrelaçamento de outros elementos mais profundos. Elementos como tecnologias do controle dos gêneros, conforme descreve Beatriz Preciado (s/d), elementos que mantêm a binário e o heteronormativo.

Entretanto, também precisamos nos perguntar se seremos capazes de desconstruir o lugar do biológico como fundante da constituição de homens e mulheres.

Para grande parte da sociedade é inconcebível que alguém que nasceu com um pênis, e portanto é tido como homem, possa ser uma mulher (e vice versa). À luz desta reflexão, podemos ter pistas a respeito do mal estar de meninas e mulheres com travestis em seus banheiros: não só elas ocupam o "seu espaço" como também sua presença denuncia que podem existir mais pessoas incluídas na categoria "mulher", pessoas que sob uma ótica calcada no fundacionalismo biológico estão erradas porque negam sua verdadeira natureza (criada por Deus e referendada pela ciência, ou seja, apoiada em algum discurso que lhe confere o lugar de verdade).

No sentido inverso, também podemos pensar nos meninos/homens: o quanto suportam a ideia de que alguém com pênis pode se transformar em mulher (com ou sem cirurgia) e o de quanto esta presença "perturbadora" de transexuais e travestis não os interpela a respeito de si mesmos – seja pela possibilidade de relacionar-se com mulheres de "outro tipo", seja porque abre a possibilidade de que eles próprios, que estão assentados na construção da masculinidade que o pênis lhes confere , poderiam "transformar-se em mulheres".

A própria Nicholson (2000) ao debater os sentidos de ser mulher aponta:

Não podemos pressupor que o sentido dominante em sociedades ocidentais industrializadas deva ser verdadeiro em qualquer lugar ou através de períodos históricos de limites indefinidos. Assim, essa postura não refuta a idéia de que o corpo "bissexuado" deve seu importante papel na estruturação da distinção masculino/feminino, e, portanto no sentido de "mulher", ao longo de uma parte da história humana. Entretanto ela exige que sejamos claros sobre qual foi exatamente esta parte, e até mesmo dentro dela, sobre os contextos nos quais esta distinção não se aplica. [...]. Por assumir que o sentido de "mulher" se alterou ao longo do tempo, essa postura assume também que aquelas/es que atualmente defendem formas não tradicionais de compreendê-lo, como os transexuais, por exemplo, não podem ser deixados de lado sob a simples alegação de que suas interpretações contradizem os padrões usuais. Raymond defende que ninguém nascido sem vagina pode dizer que teve experiências comparáveis ‘as dos que nasceram com uma. Como pode ela saber disso? (Nicholson, 2000:36)

Seja numa perspectiva estritamente biológica, ou ainda naquela que aqui com Nicholson (2000) chamamos de fundacionalismo biológico, as construções ao redor dos gêneros estão intimamente vinculados à dimensão biológica e a uma perspectiva binária a ela associada. E, este pode ser mais um dos elementos que leva a presença da travesti nas escolas ser tão desafiadora: temos banheiros para homens ou mulheres e as pessoas "podem" ser homens ou mulheres. Para os valores que hegemonicamente vigoram fica difícil decidir o que fazer com aqueles(as) que ousam escapar ao binarismo. A figura da travesti aparece como problemática porque se tomamos o corpo dizemos que é homem, mas se podemos considerar o que já aprendemos com o fundacionalismo biológico (comportamento, vestimenta etc.) podemos pensar que é mulher. Relembremos que:

A travestilidade é a expressão da fluidez dos desejos e, por conseguinte, dos corpos e dos sexos, revelando a incongruência dos sistemas que buscam relacionar sexo/ sexualidade/gênero/identidade sexual. Mais importante do que compreender do que é feito o corpo ou a sexualidade, talvez seja observar como os saberes sobre estas instâncias vêm sendo construídos, aplicados e distribuídos. Como estão sendo construídos e por quem estão sendo validados os discursos pretensamente investidos de verdade sobre os sexos e as sexualidades? (Jimenes e Adorno, 2009:365)

Foucault (2004) comentando sobre o hermafroditismo aponta que ao longo história, médicos e juristas tiveram a preocupação em descobrir qual seria o "o único e verdadeiro sexo" dos hermafroditas. Esta ideia do verdadeiro sexo é ainda presente em vários saberes disciplinares (medicina, psiquiatria, psicologia) e ainda incorpora a ideia de "que é no sexo que se deve procurar as verdades mais secretas e profundas do indivíduo;" [...] (Foucault, 2004b:85)

No filme Transamérica uma amiga brinca com a personagem principal quando esta confunde uma mulher com uma mulher transexual, rindo diz: ela é uma GG, garota genuína. Ideias como "genuíno" e "verdadeiro", são totalmente atreladas ao corpo, remetendo à ideia de "algo natural" (tomado com frequência como o biológico). Precisamos ainda encaixar as pessoas no seu verdadeiro sexo, por isso talvez as transexuais como Bree, possam se sentir melhor após a cirurgia.

Contudo, não podemos esquecer que existem matizes e pluralidades nos debates identitários. Ramires (2008) em artigo no qual debate o filme Transamérica comenta que a transexualidade pode ser vista como uma forma de negação da suposta base biológica, mas problematiza que ao mesmo tempo:

[...] por exemplo, uma transexual feminina diz que, a despeito de ter nascido com um pênis, sente-se uma mulher, por onde passam estas sensações? Não seriam elas o sinal de apego, adesão e cumprimento das normas culturais convencionalmente designadas a homens e mulheres? Enfim, poder-se ia dizer que o caráter altamente transgressivo da transexualidade traz consigo uma boa dose de conformidade aos estereótipos de gênero. (Ramires, 2008:7)

partir desta consideração poderíamos pensar que, quando fazem a cirurgia, as transexuais sentem-se "mais mulheres" e que, portanto, realmente se conformam aos estereótipos (agora sou uma mulher) e à marcadores do corpo. Também poderíamos pensar que as travestis estariam menos conformadas aos ditames do biológico porque não fazem a cirurgia. No entanto, é preciso cuidado com os raciocínios lineares, pois há multiplicidade de sentidos e podemos agregar outros elementos reflexivos, como o fato de que a cirurgia para algumas pessoas pode significar a busca de um corpo que combine com a ideia que a pessoa tem de si e ainda a busca por um lugar de pertencimento diante de uma sociedade bastante estigmatizadora: "Os/as transexuais que reivindicam as cirurgias não são motivados, principalmente, pela sexualidade, mas que as mudanças nos seus corpos lhes garanta a inteligibilidade social. Se a sociedade divide-se em corpos-homens e corpos mulheres, aqueles que não apresentam essa correspondência fundante tendem a estar fora da categoria do humano." (Bento, 2004:127)

Berenice Bento (2004) ainda destaca que os profissionais de saúde diante de uma pessoa que decide pela cirurgia para mudança de transgenitalização são guiados pela expectativa de que após a cirurgia a sexualidade do(a) transexual seja marcada pela heterossexualidade, e quando descobrem que suas expectativas não serão atendidas acham estranho:

"Então, para que fazer a cirurgia? Qual é o sentido de se ter uma vagina se o que deseja é manter relações com uma mulher?" Para muitos médicos e especialistas no tema, a homossexualidade está totalmente descartada entre os/as transexuais. Porém, quando uma pessoa afirma: "Eu tenho um corpo equivocado sou um/a homem/mulher/aprisonado/a em corpo de homem/mulher" não significa que ser mulher/homem é igual a ser heterossexual. Quando a sociedade define que a mulher de verdade é heterossexual se deduz que uma mulher transexual também deverá sê-lo. (Bento, 2004:126)

No que se refere aos sentidos das identidades trans há pluralidades – de corpos, desejos e identidades – e como mencionei anteriormente, apesar de reconhecer que existem diferenças entre quem fez / faz /quer fazer a cirurgia e entre quem não fez / não faz e não quer fazer a cirurgia, a discussão nesta oportunidade é outra. Estive até aqui tentando problematizar como estamos capturados pela heteronormatividade e por um fundacionalismo biológico que nos leva, no cotidiano das escolas, a interpelar as identidades das pessoas e a (in)adequação de sua presença nos banheiros binariamente constituídos. Um eixo central do debate é o que Buttler (2003) aponta: há uma matriz de pensamento que prevê a continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo. A questão do banheiro nas escolas fica candente porque esta matriz se pretende universal, contudo, esta universalidade escorre pelos dedos diante da pluralidade de configurações que a relação entre estes elementos pode desenhar. A escola fica impactada diante daquilo que lhe escapa pelas mãos e o que vai acontecer em cada cotidiano dependerá de muitos fatores – das políticas públicas ao modo como se estabelecem as relações de saberpoder no microcosmo da sala de aula.

 

Singularidades Plurais

No filme Transamérica associada à imagem dos dois banheiros e da mulher parada em frente a eles temos a chamada: a vida é uma viagem precisamos apenas que escolher um caminho. Bree nos conta, a história de uma pessoa que faz uma viagem para encontrar a si mesma. Em que pese a complexidade de pensarmos no que seja "si mesma" poderíamos debater que em nossa sociedade estão disponíveis alguns vidrinhos de conserva com rótulos para pessoas. Refletimos pouco sobre o fato de que as pessoas não cabem em conservas e assim tentamos preservar uma ideia de que o "si mesmo ‘ de cada um deve existir - desde que absolutamente controlado nas possibilidades de vidrinhos que hegemonicamente foram tidos como verdadeiros. De preferência um "si mesmo" homem ou mulher, heterossexual, branco, "comportado" e classe média. Um si mesmo fixo e imutável e mais do que isto: nomeável, classificável, identificável.

Mas há os que escapam, não querem ficar, nem nas conservas, nem nos vidrinhos e, para eles, não temos banheiro na escola. Evidentemente estou sendo severa. Isto não acontece em todos os lugares, mas a inquietude se instala porque acontece em vários lugares. E diante destas questões, cabe pensar o que a escola (e a sociedade) faz com pessoas que são diferentes?

Louro (2004) nos traz pistas:

[...] aqueles e aquelas que transgridem as fronteiras de gênero ou sexualidade, que as atravessam ou que, de algum modo, embaralham e confundem os sinais considerados "próprios" de cada um desses territórios são marcados como sujeitos diferentes ou desviantes. Tal como atravessadores ilegais de territórios, como migrantes clandestinos que escapam do lugar onde deveriam permanecer, esses sujeitos são tratados como infratores e devem sofrer penalidades. Acabam por ser punidos, de alguma forma, ou na melhor das hipóteses, tornam-se alvo de correção. Possivelmente experimentarão o desprezo ou a subordinação. Provavelmente serão rotulados (e isolados) como "minorias". (Louro, 2004:87)

Pensar estes processos no interior da escola é relevante porque as ações educativas têm consequências na vida das pessoas. Seffner (2009) ao comentar a inclusão escolar da diversidade sexual destaca dimensões como a formação dos/das professores/as, a necessidade de preservar a escola como espaço público e laico e o desafio de fazer com que a chamada inclusão deixe de ser percebida como um problema e aponta: "O que queremos não é o simples acesso a educação. A diferença entre acesso e inclusão é enorme." (Seffener, 2009:134).

Pessoas que denominamos de transexuais, travestis, quer são como vimos acima nas palavras de Louro (2009) atravessadores de territórios, e podemos dizer que no cotidiano da escola rompem as fronteiras binárias e heteronormativas dos banheiros, abrindo portas que exalam cheiro fétido do preconceito pautado no fundacionalismo biológico. E, então, o banheiro "das travestis" passa a ser uma questão.

Tomando ideias foucaultianas como dispositivo9 e tecnologias10 do eu poderíamos pensar a escola como um espaço no qual tecnologias do eu produzem subjetividades e poderíamos perguntar: O que a escola esta dizendo para alunos e alunas sobre a travesti quando diz que não há lugar para seu xixi? O que a escola estará dizendo para professores(as) comunidade? E o que estará dizendo para a travesti sobre si mesma? O que alguém vai poder dizer de si mesma quando a escola tem dúvida sobre o banheiro que está autorizado a usar? Seria a escola dona do banheiro, dona dos corpos e dona das identidades? O sujeito é posse da escola? Quais sujeitos cabem na escola?

Ainda poderíamos problematizar que urinar é uma necessidade fisiológica, portanto biológica e é justamente esta necessidade que não encontra espaço num território que defende o biológico como fundador das diferenças.

Penso que não deveríamos subestimar os possíveis impactos deste contexto na constituição dos sujeitos. Chamo atenção para esta violência simbólica que aparece disfarçada de episódio cotidiano sem maior importância. É no cotidiano das relações instituições que se produzem subjetividades e realidades.

A travesti que foi ao encontro de jovens que vivem com HIV/aids citado no início deste artigo ao confrontar-se com a necessidade de preencher a ficha de entrada no hotel, interpelou-me: Você pode escrever o meu nome para mim? Aos 18 anos estava fora da escola e não sabia escrever o próprio nome (ou o nome próprio?).

No cotidiano, tematizamos seu banheiro, mas não sua expulsão velada e os resultados deste processo em sua vida, seja em termo analfabetismo, dificuldades com a escolaridade ou ainda em relação ao que poderão dizer de si mesmas. Por que a o banheiro a ser utilizado por uma travesti pode gerar mais polêmica do que o fato de que as escolas podem estar contribuindo para a exclusão (explicita ou implícita) de travestis?

Diante deste contexto as reflexões de Ferrari (2010) são relevantes:

Parece possível pensar que essas relações estão reforçando os discursos elaborados em outros tempos, mostrando como estamos presos a repetição, entendendo as relações que se estabelecem no interior da escola mais como produtos do que produtoras de uma sociedade e uma cultura. Assim, a dedicação ao enquadramento, ao disciplinamento e ao controle está colocando em funcionamento mecanismos de interdição, dando significado a homossexualidade fornecendo um lugar para cada um deles (Ferrari, 2010:416-417)

É importante que possamos pensar na extensão dos nossos atos educativos e também que vejamos que existem micro resistências políticas constituindo, no entanto, novas realidades11. Profissionais de saúde, educação, membros de comunidades que sabem que, ao invés de uma viagem e um caminho, podemos ter várias viagens e vários caminhos (e várias viagens e caminhos feitos pelo mesmo indivíduo). Entretanto, como regra de prudência, talvez seja preciso mantermo-nos em constante rasura e darmos conta de que captura e resistência, manutenção e revolução estão presentes a todo tempo, em nós e nos espaços que vivemos.

Para finalizar novamente recorro a Nicholson (2000):

[...] Articular o sentido de uma palavra no contexto em que há ambigüidade, e no qual diferentes conseqüências surgem de diferentes articulações é um ato político. Assim a articulação do sentido de muitos conceitos em nossa linguagem, como "mãe" "educação", "ciência" e "democracia", embora vista como ato meramente descritivo, é na verdade estimuladora. Com uma palavra emocionalmente tão carregada quanto "mulher", da qual tantas coisas dependem se considerarmos o modo como seu sentido é articulado, qualquer proposta de articulação de sentido deve ser vista como um intervenção política." (Nicholson, 2000:37)

Pois então que possamos perceber como temos articulado não somente a palavra mulher, mas também as palavras homens, travestis, transexuais, gays, léxicas, transgêneros. Que que sejamos capazes de revistar nosso repertório linguístico, nossas práticas, nossa relação espaço/tempo de inventar novas articulações poéticas e políticas no cotidiano da escola!

Imagino que algum(a) leitor(a) derradeiramente ainda pode me perguntar: mas afinal em qual banheiro a travesti deve fazer xixi? E eu arriscaria dizer: tem certeza de que esta é a questão?

 

Referências

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Endereço para correspondência
Elizabete Franco Cruz
E-mail: betefranco@usp.br

Recebido em: 18/08/2008
Revisado em: 19/11/2009
Revisado em: 22/09/2010
Aceito em: 14/03/2011

 

 

* Psicóloga, doutora em Educação pela Universidade de São Paulo – Brasil. É professora do Bacharelado em Obstetrícia, do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Psicologia Política, Políticas Públicas e Movimentos Sociais e do Programa de Pós-Graduação (mestrado) em Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP – Brasil.
1 Este texto é uma versão revisada e ampliada do texto: A identidade no banheiro: travestis, relações de gênero e diferenças no cotidiano da escola – apresentado no 8º Seminário Internacional Fazendo Gênero (Florianópolis, 2008).
2 Nomes fictícios.
3 Quem trabalha com educação para a sexualidade conhece a argumentação, pois, geralmente, a família é tida como impedimento para realização do trabalho. Mesmo considerando que as famílias podem criar oposição é importante ponderar que existem famílias que esperam que este trabalho seja feito pelas instituições. Poucas vezes a escolas convidam as famílias para participar, construir, aprender, compartilhar. Em geral as famílias são chamadas para apresentação de notas ou resolução de "problemas" apresentados pelos alunos/as. Além disto, a temática da sexualidade está incluída nos Parâmetros Curriculares Nacionais, sendo assim, supostamente, não deveriam existir dúvidas sobre a pertinência da abordagem desta temática na escola. Por outro lado, é possível também pensar que o cotidiano escolar é complexo, dinâmico e sobrecarrega educadores(as) e a sexualidade ainda é tema tabu e considerado como pertinente à família, ao âmbito do privado.
4 O Encontro foi organizado por ONG que trabalham com aids-GIV, ANIMA, PELLAVIDDA RJ e NITERÓI, FORUM ONG AIDS SP.
5 Sobre inclusão exclusão das identidades trans e homossexuais ver também: Moskolci (2002/2003), Silva e Barboza (2005), Cardozo (2008), e Silva e Barbosa (2009).
6 A este respeito ver, por exemplo, Foucault (2003) e Foucault (2004a).
7 Remeto à leitura de trabalhos que podem contribuir para compreensão das pluralidades do universo das travestis: Silva (1993), Benedetti (2005), Silva e Barboza (2005), e Silva (2007).
8 Esta brincadeira se coloca porque nas argumentações deste texto tanto a "nascida" como a "produzida", são construídas culturalmente. Entretanto também vale pensar que nesta racionalidade a cirurgia possibilitaria o uso do banheiro porque o corpo do sujeito passa a ser "corrigido" e adequado a lógica dos gêneros.
9 Ver por exemplo: Foucault (2003) e Foucault (2004a).
10 Ver Foucault (1990) e Larrosa (2002).
11 Vários autores debatem e buscam romper com a homofobia na escola, ver, por exemplo, Ferrari (2003), Vianna e Diniz (2008), Jesus (2008), Xavier Filha (2009), Junqueira (2009), e Ferrari (2010).