SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.11 número22Modernidade e comunidades tradicionais: memória, identidade e transmissão em território quilombolaA política educacional como espetáculo: a construção dos Centros Educacionais Unificados em São Paulo índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.11 no.22 São Paulo dez. 2011

 

ARTIGOS

 

Histórias de pescadores: estudo com ribeirinhos desalojados por uma hidrelétrica

 

Fishermen's histories: a study with riparians ousted by a hydroelectric power station

 

Historias de pescadores: un estudio con los ribereños desalojados por una central hidroeléctrica

 

 

Andreia Duarte Alves*; José Sterza Justo**,I

I Universidade Estadual Paulista – Júlio de Mesquita Filho, Assis, SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Nesta pesquisa, realizada com ribeirinhos desalojados pela construção de uma hidrelétrica, foram recolhidas histórias do tempo em que habitavam as margens do rio e da vida atual na vila construída em substituição ao antigo povoado alagado pela barragem. Nas tantas histórias que contam, proliferam imagens de um tempo de fartura, de pesca abundante e da terra fértil que cultivavam à beira do rio. Descrevem a antiga vila, com riqueza de detalhes, e relatam, com entusiasmo, suas proezas na pesca e no enfrentamento dos mistérios da mata e da ferocidade dos bichos selvagens. Falam do cotidiano da antiga vila como uma comunidade na qual todos eram próximos e solidários. Nas narrativas atuais restam o protesto e a revolta contra a construção da hidrelétrica que lhes retirou o rio e a rica vida ribeirinha, colocando-os num lugar que consideram estéril e desvitalizado.

Palavras-chave: Pescadores, Histórias, Ribeirinhos, Memória, Cotidiano.


ABSTRACT

In this research, made with riparians ousted by the construction of an hydroelectric power station, were gathered histories of the time when they were living in the edges of the river and of the current life in the town constructed in substitution to the ancient village flooded by the dam. In the histories, they proliferate images of a time of abundance, of fishing and of the fertile land that they were cultivating on the edge of the river. They describe the old village, with wealth of details, their achievements in the fishing and in the challenge of the mysteries of the forest and of the ferocity of the wild animals. They talk about the daily life of the ancient village like a community in which they were near and supportive. In the current narratives the protest and the revolt remain against the construction of the hydroelectric power station that took away the river and the rich riverside life, placing them at a place that they find sterile and devitalized.

Keywords: Fishermen, Histories, Riparians, Memory, Daily life.


RESUMEN

En su encuesta de ribereños desplazadas por la construcción de una central hidroeléctrica, se recogieron historias de la época que habitaban las orillas del río y la vida actual en la ciudad construida para reemplazar el antiguo pueblo inundados por la presa. En las muchas historias que contar, la proliferación de imágenes de una época de abundancia, la pesca y la abundancia de tierras fértiles que creció a lo largo de la orilla del río. Describir el casco antiguo, con detalles ricos, e informar con entusiasmo, su destreza en la pesca y frente a los misterios de la selva y la ferocidad de los animales salvajes. Hablan todos los días de la antigua ciudad como una comunidad en la que todos estaban cerca y de apoyo. En las narraciones siguen siendo actuales protesta y la rebelión contra la construcción de la presa que se llevó el río y la vida del río rico, colocarlos en un lugar que consideran estéril y sin vida.

Palabras clave: Pescadores, Historias, Ríos, Esmemoria, Cotidiano.


 

 

Introdução

Pescaria e pescadores constituem uma verdadeira instituição nacional. O hábito da pesca encontra-se profundamente enraizado na cultura brasileira, mesmo com as dificuldades cada vez maiores para a realização de pescarias, seja a profissional, a esportiva ou a praticada como lazer.

A grande extensão da costa marítima e a quantidade de rios favoreceram bastante a atividade da pesca. Em várias localidades ribeirinhas ou litorâneas, constituía a principal fonte econômica e em tantas outras representava um importante meio de complementação do orçamento familiar ou da alimentação. Mesmo nos lugares mais distantes do mar ou de grandes rios, a pescaria se mantinha, ainda que como forma de lazer. Não havia distância que não pudesse ser superada para a realização de uma boa pescaria ou, então, um pequeno córrego, que sempre havia por perto, bastava para a realização do desejo de pescar.

Ao longo do tempo, a pescaria passou por profundas transformações, com a urbanização; com a drástica diminuição dos peixes nos rios, por causa da poluição, assoreamento e desmatamento das margens; com a expansão do capitalismo na atividade pesqueira, que impôs a sofisticação tecnológica e modificou profundamente as relações sociais e as produções subjetivas constituídas em torno da pesca. Os chamados "Pesque e Pague", da atualidade – locais com tanques de peixes aonde se pode pescar mediante pagamento – expressam muito bem a forte presença do capitalismo nessa atividade, transformando até o lazer e a diversão da pescaria em mercadorias, em lucrativas atividades comerciais.

Outra transformação importante da pescaria e de toda forma de vida de comunidades de ribeirinhos foi provocada pela construção de barragens nos rios para geração de energia hidrelétrica. A água farta, jorrando pelos rios do país, que possibilitou a existência dos ribeirinhos, foi a mesma que tornou atraente e vantajosa sua utilização como fonte de energia elétrica, para a alimentação do voraz progresso industrial capitalista. As barragens dos rios e a formação dos lagos sacrificam inteiramente o modo de vida daqueles que habitam suas margens e que têm suas vilas, povoados e sua própria cultura completamente inundados, inteiramente submersos.

O represamento das águas dos rios altera completamente as vidas que neles existem e também aquelas que proliferam à sua volta: os peixes, a vegetação, os animais e o próprio homem.

O impacto da construção das hidrelétricas tem sido minuciosamente avaliado e bastante discutido. Pesquisas realizadas em diversas áreas do conhecimento destacam a enorme gama de consequências nefastas das hidrelétricas para o meio ambiente, com seus trágicos desdobramentos para a vida humana (Alves, 2007; Bermann, 2007; Junk, 1990; Koifman, 2001; Cruz & Silva, 2010; Zhouri & Oliveira, 2007). A substituição do rio de águas correntes pelo lago de água parada impõe mudanças radicais na práxis dos ribeirinhos, partindo da modificação da atividade pesqueira e se irradiando para os demais planos da vida: o cotidiano, os relacionamentos sociais e afetivos, a subjetividade e a cultura.

A diminuição da atividade pesqueira, com a construção de hidrelétricas, é um duro golpe na cultura produzida pela pescaria, não somente aquela que brota nas colônias e comunidades de pescadores como também aquela cultivada por pescadores amadores. Sem o peixe e a pesca, sem a vida à beira do rio, se vai também a socialidade e a subjetividade criadas nesse espaço. Se vão as narrativas, as histórias, os causos, a imaginação, o pensamento, os afetos que têm a pesca e a pescaria como seus disparadores e referentes materiais. O represamento dos rios estanca uma importante via de constituição do sujeito e talvez seja esse o impacto e o prejuízo maior causado pela construção das hidrelétricas.

Neste artigo pretendemos destacar a potência da narrativa na vida dos ribeirinhos, intimamente ligada à pesca. Pretendemos demonstrar como os "causos", contados a cântaros, denotam uma verdade ao destacar ou até exagerar feitos no cotidiano, sobretudo, da pesca, apresentando-os como gestos bravios, grandiosos e heroicos. A verdade subjacente às narrativas de feitos grandiosos na pesca é a aquela referida a um personagem que age combativamente na produção de suas condições de vida. Tentaremos mostrar, ainda, o entrelaçamento das histórias de pescaria com outras histórias do cotidiano que acabam compondo um amplo imaginário e cenário simbólico mediante os quais a vida é significada e compreendida.

 

Aportes metodológicos: dedos de prosa com os ribeirinhos

A pesquisa da qual deriva o presente artigo, apresentada e defendida como dissertação de mestrado (Alves, 2997), foi desenvolvida junto aos habitantes de um pequeno distrito, chamado Nova Porto XV de Novembro, com cerca de dois mil moradores, parte deles, remanescentes de uma antiga vila, com o mesmo nome, que existia à beira do Rio Paraná e que foi alagada com a construção de uma hidrelétrica.

Porto XV, como é conhecida a pequena vila, é um distrito do município de Bataguaçu (MS), localizado a sudeste do Estado de Mato Grosso do Sul, na divisa com o Estado de São Paulo. O projeto urbano da pequena vila foi concebido e implementado pela Construtora Camargo Corrêa, licenciada pela Companhia Energética de São Paulo (CESP), como indenização à comunidade ribeirinha pela submersão da antiga vila, atingida pela barragem da Usina Hidrelétrica (UHE) Engenheiro Sérgio Motta – Porto Primavera (SP).

Elegemos como participantes de nossa pesquisa, moradores que haviam vivido na antiga vila, à beira do rio, submersa pelo lago, e que passaram por todo o processo de transição do modo de vida ribeirinho para o modo de vida tipicamente urbano, na nova vila edificada pela Cesp.

Por meio da compilação de relatos dos participantes, procuramos organizar uma história coletiva na qual nacos de lembranças de cada um puderam compor traços básicos de significação do que foi substituir a água pela terra, como fonte da vida. Importou, sobretudo, adentrar as lembranças, a imaginação, os devaneios, tomados como via de acesso às vivências mais básicas, à subjetividade, às imagens e signos que retrataram, no plano da realidade vivida, essa transformação profunda que retirou o trabalho, o lazer, as produções simbólicas, e tudo mais, de suas referencias à água e ao rio.

Construímos a base empírica da nossa pesquisa à feição da etnografia. Fomos nos acercando das pessoas do lugar, realizando visitas, entabulando conversas nas ruas, nas calçadas, nos bancos em frente à casas, onde, segundo o costume local, a vizinhança e os conhecidos se encontram para compartilhar o tereré.

O tereré é uma bebida que não se toma só, ela é permeada por rituais de grupo. Além de ser servida numa "cuia" e sorvida por meio da "bomba", ainda precisa ser passada, vez-a-vez, a todos os membros da roda. Aquele que serve a cuia conduz a conversa e a repassa no sentido horário. A bebida faz parte do cotidiano da vila, inspira as narrativas, facilita a comunhão dos acontecimentos da vida, dos anseios e frustrações dos pescadores.

Os grupos se acomodavam em bancos sob a sombra das árvores ou de coberturas improvisadas. Quem passava na rua parava e, se desejasse, se integrava à roda de conversa. A família toda podia até sair da casa para receber aqueles que chegavam; as crianças chamavam os vizinhos, e aos poucos, a intimidade das casas se integrava ao espaço e à vida da rua. No fundo, nosso procedimento, pautado nas apropriações da etnologia pela psicologia, (Sato & Souza, 2007), bem pode ser chamado, à maneira caipira, de "um dedo de prosa".

As conversas nas rodas de chimarrão, ocorridas nas calçadas, foram gravadas e transcritas. Esse procedimento permitiu a elaboração de uma crônica coletiva, construída entre narrativas interpostas durante as conversas informais, formando uma história de pescadores ampla e compartilhada. Nos diálogos, sempre bastante animados, as vozes de cada um iam compondo um coro que conduzia a narrativa e dava inteligibilidade às experiências vividas naquele lugar. "A memória opera com grande liberdade escolhendo acontecimentos no espaço e no tempo, não arbitrariamente, mas porque se relacionam através de índices comuns. São configurações mais intensas quando sobre elas incide o brilho de um significado coletivo." (Bosi, 2003:31).

De acordo com Halbwachs (1990), a memória não é individual, mas múltipla e condicionada pela convivência social. Mesmo quando se manifesta como um relato pessoal, é necessário considerar o processo social no qual seus conteúdos foram gerados e elaborados. "A memória oral, longe da unilateralidade para a qual tendem certas instituições, faz intervir pontos de vista contraditórios, pelo menos distintos entre eles, e aí se encontra a sua maior riqueza. Ela não pode atingir uma teoria da história e nem pode pretender tal fato: ela ilustra o que chamamos hoje a História das Mentalidades, a História das Sensibilidades" (Bosi, 2003:15).

A necessidade de confrontar a memória individual com a memória coletiva é muito frequente nas conversas entre os pescadores ribeirinhos. Na informalidade das calçadas, é comum surgirem contradições e serem feitas correções no conteúdo das narrativas visando à aprovação dos relatos pelos ouvintes. A vozes, no diálogo coletivo, não ecoam como um uníssono, mas sim apresentam dissonâncias, divergências, acompanhadas por disputas pela posse da palavra (Thelen, 1990: XVI). Em nossos "dedos de prosa" com os ribeirinhos polêmicas, dissensos e consensos se alternavam na conversação e enriqueciam a narrativa.

Serão citados pequenos trechos desses diálogos com a identificação do participante pelo seu próprio nome ou codinome, conforme a opção que cada um fez, quando foram consultados sobre o assunto.

 

Histórias de pescadores e a imaginação material em Bachelard

As histórias de pescadores ribeirinhos apresentadas neste trabalho, não são apenas as tradicionais narrativas sobre as aventuras da pesca, mas também indagações, críticas e desabafos dos pescadores sobre o cotidiano. A linguagem do pescador é sempre fundamentada em narrativas. Sob este aspecto, tentamos romper o lacre cultural que classifica as narrativas sobre a pesca e sobre a vida do pescador como fantasiosas. Este trabalho mergulha nas histórias relatadas tomando-as como produto da imaginação material do ribeirinho. Tomaremos tais histórias como devaneios ou sonhos diurnos, profundamente conectados com a materialidade da vida, conforme nos ensina Bachelard (2006).

O devaneio é uma atividade onírica das mais importantes na qual subsiste uma clareza de consciência. O sonhador de devaneio está presente em seu devaneio. Mesmo quando o devaneio dá a impressão de uma fuga para fora do real, para fora do tempo e do lugar, o sonhador do devaneio sabe que é ele que se ausenta – é ele, em carne e osso, que se torna um "espírito", um fantasma do passado ou da viagem (Bachelard, 2006:144).

Neste sentido, o devaneio emerge de um profundo apego ao real, não somente aos elementos da matéria, mas às palavras e à sua poesia. Bachelard fala de uma atividade que se enraíza no concreto, rompendo com as abstrações próprias do sonho noturno. O devaneio é composto pelo desejo que se debruça sobre o real, é ele que dá movimento à vida e permite ao homem agir e criar.

O devaneio seria a proteção contra as hostilidades do mundo que permitiria ao homem fazer poesia, apesar da vida. Diferentemente do sonho com seu caráter trágico e seu sentido despersonalizador, como se fosse uma trama que se apossasse do sonhador, ele é reconhecido inteiramente pelo sujeito como seu e, mais ainda, carrega um sentido de repouso e felicidade. O devaneio brota do repouso da vida, como um fenômeno de abandono e prolongamento da vigília. O sono ilustra o repouso do ser, o devaneio é a busca de equilíbrio e bem-estar. Assim, quando o devaneio vem acentuar o repouso, a alma experimenta a felicidade (Bachelard, 2006).

Com dobra do sono iluminado pela clareza do dia, o devaneio mistura-se aos conteúdos da razão presentes na consciência do homem, à cultura, aos mitos, à religião, ao imaginário e a toda matéria diurna que compõe o pensamento humano. Diferentemente do sonho noturno, sempre atrelado a um desejo reprimido que insiste em se realizar, o devaneio traz consigo o devir que permite ao ribeirinho romper a concretude dos sofrimentos corriqueiros e tornar-se humano, poeta e pensador.

Esse caráter aniquilador do sonho noturno ou da fantasia opõe-se à natureza das histórias de pescador. Nelas o homem não é um pré-sujeito, pois ele tem a posse de si, recria a natureza, compõe sua história, transformando a construção do possível. As narrativas dos ribeirinhos sobre a comunidade ultrapassam o que chamaríamos de lembranças, elas são compostos da imaginação material.

O sonho da noite não nos pertence. Não é bem nosso. É em relação a nós um raptor, o mais desconcertante dos raptores: rapta o nosso ser. As noites, as noites não tem história. Não se ligam uma a outra. [...] A noite não tem futuro. Sem dúvida há noites menos negras, nas quais o nosso ser do dia ainda está suficientemente vivo para traficar com suas lembranças. O psicanalista explora essas semi-noites. Nelas o nosso ser ainda está ali, arrastando dramas humanos, todo o peso das vidas mal feitas. Mas nessa vida abismada abre-se um abismo de não-ser onde se dissipam certos sonhos noturnos. Nesses sonhos absolutos somos restituídos a um estado pré-subjetivo. [...] O sonho noturno dispersa o nosso ser sobre fantasmas de seres heteróclitos que não passam de sombras de nós mesmos. As palavras: fantasmas e sombras são demasiado fortes. Ainda estão excessivamente ligadas a realidades. Impedem-nos de ir até o extremo da aniquilação do ser, até a escuridão do nosso ser dissolvendo-se na noite. (Bachelard, 2006:139-140)

Quando um ribeirinho fala de suas epopeias, conta suas histórias, não está, como um sonhador, sendo levado à deriva pela torrente de forças de um passado que o domina, que impõe imagens, cenas e determina o curso de sua atividade anímica, de sua viagem como se fosse um simples passageiro de uma barcaça carregada de conflitos de um dia ou de toda uma vida mal vivida. O pescador, mesmo sobressaltado com a força e com os enigmas que cercam a misteriosa origem, o destino e as profundezas da água, sente-se no comando de sua rota ou, pelo menos, sabe-se sujeito do enfrentamento daquilo que o carrega na sua superfície.

Enfrenta a correnteza, abre caminhos, navega rumo aos alvos pretendidos, às vezes abandona o barco e se lança diretamente na água, mergulha nas suas profundezas, estabelecendo com ela uma relação íntima na qual se deixa envolver inteiramente, porém, sem se entregar às suas forças. Relaciona-se com ela como sujeito, agindo prospectivamente sobre as imagens que irrompem nesse encontro.

Existe nas narrativas dos ribeirinhos uma relação especial com a história. Não a história oficial, mas uma história composta de imagens que ultrapassam o concreto, ainda que derivadas dele. As narrativas não são avaliadas sobre méritos de veracidade, mas em sua capacidade de se tornar matéria viva implicada nas práticas.

É verdade que ao narrar uma experiência profunda nós a perdemos também naquele momento em que ela se corporifica (e se enrijece) na narrativa. Porém, o mutismo também petrifica a lembrança que se paralisa e sedimenta no fundo da garganta (Bosi, 2003:35).

Os relatos do passado presentes nesta pesquisa são singulares, rompem o território da lembrança e da memória, são produtos de uma atividade não contemplativa. A imaginação material afronta a resistência e as forças do concreto, num corpo-a-corpo com a materialidade do mundo, numa atitude dinâmica e transformadora. Pois outra é a reação da mão operante, instrumento da vontade de poder e da vontade de criar, mão artesã, mão trabalhadora (Pessanha, 1986: XIX).

Nas conversas informais que compreenderam as entrevistas, os pescadores fizeram mais do que lembrar, contar ou opinar, eles devanearam, sonharam acordados, fizeram poesia. Sonho e poesia, no entanto, que não navegam facilmente como um flaneur que desliza pela superfície das paisagens mundanas, mas sim que afrontam todo tipo de resistência que se coloca à imaginação. Resistência da própria memória que esbarra no sentimento de perda de uma vida tranquila, feliz e prenhe de realizações; resistência das percepções da vida atual que trazem imagens de um cotidiano extremamente solidificado num modo de existência rude e impiedoso que impõe um ritmo e uma forma de trabalho, lazer e convivência constritivo, que não deixam margem para prospecções do pensamento e da ação.

Devanear e recordar, nesse contexto, é equivalente ao ato de um escultor que precisa vencer a resistência do material, como o mármore, fazendo surgir a forma ideal para expressar suas emoções. "[...] a imaginação é colocada no seu lugar, no primeiro lugar, como princípio de excitação direta do devir psíquico. A imaginação tenta um futuro. A princípio ela é um fator de imprudência que nos afasta das pesadas estabilidades. Veremos que certos devaneios poéticos são hipóteses de vida que alargam a nossa vida dando-nos confiança no universo." (Bachelard, 2006:8).

O ato de lembrar está, inevitavelmente, ligado à busca de um fato passado. As lembranças em algum momento tentam reproduzir, repetir, resgatar a essência do acontecido. Não são desse tipo as narrativas que suscitamos em nossa pesquisa. Elas são devaneios sobre o passado, o presente e o futuro, sobre a história, sobre a vida. Surgiram das imagens que se constroem no cotidiano, como a massa criada pelas mãos do oleiro. É esta massa fértil perceptível nas histórias de pescadores que engendra a força psíquica necessária para que essa gente sinta-se detentora de seu próprio destino e do ambiente de vida imposto.

A imaginação não é, como sugere a etimologia, a faculdade de formar imagens da realidade; é a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade. É uma faculdade de sobre-humanidade. Um homem é um homem na medida em que é um super-homem. Devemos definir um homem pelo conjunto das tendências que o impelem a ultrapassar a condição humana. Uma psicologia da mente em ação é automaticamente a psicologia de uma mente excepcional, a psicologia de uma mente tentada pela exceção: a imagem nova enxertada numa imagem antiga. A imaginação inventa mais do que coisas e dramas; ela inventa vida nova, inventa mente nova; abre olhos que têm novos tipos de visão. Verá, se tiver "visões". Terá visões se educar-se com devaneios antes de educar-se com experiências; se as experiências vierem depois, como provas de seus devaneios. "[...] A verdadeira poesia é uma função de despertar" (Bachelard, 1989:17-18).

A imaginação que move o pescador a criar histórias, sejam elas memorialistas ou não, é a mesma que inspira o poeta. Na cultura popular, nenhum personagem encarna mais a figura do contador de histórias do que a figura do pescador, tida como a daquele que excede e que ultrapassa a realidade. Como um poeta de cordel, o pescador fabula, inventa, aumenta, num exercício criativo da imaginação. Curiosamente, é representado como um contumaz mentiroso, porém, não um mentiroso execrado e visto como pernicioso, mas sim um mentiroso cativante, que desperta simpatia e admiração. No fundo, é reconhecido como um imaginativo, aquele que age prospectivamente sobre a realidade, adensando a ela desejos e ilusões coletivas que expressam miragens de um futuro.

A figura do pescador e as histórias de pescarias ainda exaltam o sujeito, aquele heroico e persistente lutador que enfrenta sozinho o perigo das águas e a bravura do pescado para levar adiante sua missão, para consumar seus propósitos. Para o pescador, tão difícil e desafiador quanto enfrentar as mazelas da pesca é enfrentar a descrença do interlocutor no relato de seus feitos heroicos. É exatamente como um contador de histórias ou como um devaneador que ele se faz como um grande herói, enfrentando destemidamente a suspeita, a desconfiança, o ceticismo e, muitas vezes, as chacotas do outro.

 

Água, práxis e imaginação

As histórias e contos populares revelam a forma como a comunidade constrói a sua relação com o mundo e sua subjetividade. Para compreender esse processo tomaremos as proposições de Bachelard sobre a imaginação dos elementos materiais, em especial a água e a terra.

Água, terra, fogo e ar são materialidades vitais pra o homem. A sobrevivência humana e o desenvolvimento da cultura e da civilização se fizeram mediante ações e transformações nesses quatro elementos da natureza. A conquista do fogo, o controle sobre ele e sua domesticação representou um passo fundamental para a ampliação dos recursos e instrumentos utilizados na labuta diária para a manutenção e expansão de vida, como para a ampliação do poder na luta contra todo tipo de adversidades. O ar está intrinsecamente ligado à vida. É a fonte do oxigênio e veículo de trocas ininterruptas entre o organismo e o ambiente que lhe circunda. A respiração pode ser tomada como paradigma do intercâmbio entre o homem e seu mundo. É o ato principal e mais elementar da inevitável relação do ser vivo com o mundo mediante o qual traz para si o que lhe é exterior (inspiração) e coloca para fora resíduos do funcionamento do seu corpo (expiração), num autêntico processo de metabolização.

Mas não é apenas no plano da objetividade da matéria que fogo e ar se conectam com o homem e se fazem indispensáveis para a vida. São, também, matéria prima para a imaginação, para os pensamentos, para os sonhos, enfim, para toda a atividade anímica, possibilitando ao ser humano transcender sua condição de organismo reflexo e subordinado às condições materiais da vida e elevar-se como sujeito, ou seja, como organismo capaz de fazer história, de modificar seu mundo e se modificar na relação com ele. Fogo e ar, portanto, assim como a terra e a água, fizeram com que o homem tivesse que se debruçar sobre eles, utilizar todos seus recursos afetivos e cognitivos, toda sua imaginação criativa, para apropriar-se deles e estabelecer relações mais eficientes e gratificantes.

Como os ribeirinhos têm a água e a terra como as principais materialidades do seu mundo e como principais referentes de sua linguagem, pensamento e imaginação, nos deteremos neles para analisar as produções ideativas dos participantes de nossa pesquisa.

Bachelard descreve o universo simbólico da cultura que está assentado nesses dois elementos e aprofunda-se na relação entre eles. Analisa a função da imaginação sobre as manifestações das matérias fundamentais na vida emocional do homem e seus desdobramentos no pensamento e na subjetividade. "[...] o verdadeiro tipo da composição é, para a imaginação material, a composição da água com a terra" (Bachelard, 1989:15).

A vida do pescador é composta de terra e água, é produto dessa massa que nem sempre é equilibrada ou perfeita, mas que representa o símbolo maior da atividade criadora e transformadora. Os impactos das barragens sobre a água e a terra provocam rupturas nas imagens primordiais que dão sustentação ao pensamento e à atividade criadora dos ribeirinhos. Novas imagens passam a ser construídas e, consequentemente, manifestas nas histórias e narrativas do cotidiano.

 

Histórias de pescadores

Cada uma das prosas, cujos trechos serão transcritos, possuiu sua singularidade. Cada uma teve seu ambiente, sua melodia, seu acolhimento, sua dramaticidade, seu humor. Claro que muito desse cenário e desse enredo dependia do narrador, em parte da pesquisadora, mas muito também das pessoas presentes que frequentemente eram entusiasmadas e participativas.

As narrativas são dramatizadas e frequentemente compostas por cenas, onde aparecem as falas dos personagens de forma direta. Esse recurso, comum entre os ribeirinhos, nos aproxima do passado e dá veracidade ao fato narrado. É possível perceber as idas e vindas do pensamento, as hesitações, as contradições, o exagero, o humor, a imaginação.

Os ribeirinhos falam uma linguagem ritmada e coloquial, alguns definem seu modo de falar como próprio do linguajar caboclo. Conforme diz Mello (1988) em seu estudo com trabalhadoras domésticas vindas do interior:

Falam como aprenderam a falar, como ouvem falar ao seu redor. A fala é um instrumento eficaz de comunicação e isso basta. O uso diário da liguagem suprime o que não é necessário ao entendimento: as concordâncias complicadas, o arremate final dos erres e dos esses e outras letras cujo som não é muito claro, muito nítido. (Mello, 1988:26)

Ao transcrever as narrativas a partir das gravações procuramos manter o ritmo da fala dos pescadores, sendo o mais fiel possível ao que ouvia. O intuito era aproximar-se ao máximo da linguagem cotidiana do ribeirinho.

 

A fartura da pesca na antiga vila

Eu mesmo, vou te falá a verdade, eu Russu e minha mulher a gente fica sempre recapitulano nossa vida no Porto Quinze. E eu digo pra você, podia ser a melhor casa, o melhor apartamento, o que quer que fosse eu não daria de novo pela minha casa lá no Porto Quinze. Por dinheiro nenhum no mundo, nenhum palacete, fazenda, prédio coisa nenhuma neste mundo. Nada, nada. Uma porque eu acabei de criá minhas duas filha lá e outra porque lá foi um lugar que eu tive uma vida fantástica, uma vida... Como se diz? Uma vida de sonho, só num sonho eu posso tê de novo uma vida daquela. Sempre muita fartura na minha casa, muita criação, tinha lá minhas plantação, eu ficava bem pertinho do rio, pescava muito, ganhava meu dinheiro, era carrinho véio, mas eu tinha dois carro, tinha a casa toda mobiliadinha, tinha tudo que eu precisava pra vive [...], o custo de vida pra mim ali era muito mais barato que hoje, não tem nem comparação. Apesar que eu tenho minha casa, vivo bem com minha esposa, com minhas filha, com meus neto, tenho uma família maravilhosa. Mas mesmo assim, eu não daria. Primeiro porque aqui é um lugar seco e nóis fomo acostumado a viver na beira d'água, nóis não acostuma com lugar seco. Nóis somo igual peixe, você tira da água e ele morre. (Russu)

Nas lembranças de todos, a antiga Porto XV, hoje submersa, era um lugar simples, com pouca infraestrutura, com casas de madeira, boa parte delas na barranca, e um pedaço de terra para a agricultura de subsistência, mas um lugar do qual sentem uma enorme saudade. Ali, dizem que eram felizes, que tinha de tudo e se identificavam profundamente com um modo de vida que entremeava a atividade na água, a pesca, com o cultivo da terra, plantando, colhendo e criando animais para o próprio consumo.

O rio era essencial em suas vidas, eram como peixes, como afirmou Russu, um dos antigos moradores. Representava a fonte da vida. Fornecia a água para beber e para os demais usos; nele os peixes se reproduziam aos montes; os animais e a vegetação vicejavam fartamente e até turistas eram atraídos por ele para pesca em finais de semana e em temporadas, reforçando a economia local e o orgulho dos ribeirinhos por se sentirem num lugar desejado e valorizado por outros.

A idealização da vila antiga parece se acentuar ainda mais pela comparação que, inevitavelmente fazem com a vila atual, construída pela Cesp, tida como um lugar ruim e responsável pela pelo declínio e depontencialização de suas vidas.

No diálogo seguinte de um casal, é possível ver o quanto a memória e a imaginação irmanava todos numa profunda identificação com aquele lugar que habitavam intensamente.

Du Ó: O que eu te falo é o seguinte que lá era melhor que aqui. Haveno qualqué coisa, era melhor que aqui. Porque cê ia lá e trazia o peixe, aqui você vai e num traz, só traz despesa. Num adianta tê um motor bom e não trazê nada. Lá nóis tinha um motorzinho ruim, mas nóis ia e trazia. Era barco de madeira, motor de 100.

Teresa: Todo mundo tinha barco assim, e todo mundo sobrevivia assim né? Mas aqui... [...]

Tudo ali fazia sentido, dizia respeito a uma prática coletiva fundamental para a vida. Até mesmo as mulheres, normalmente relegadas às funções e papéis secundários ou desvalorizados, podiam se potencializar para além da função de dona de casa, de mãe e esposa. Uma senhora contava, com muito orgulho, suas habilidades de pescadora e suas descobertas de técnicas de conservação do pescado.

Cheguei à casa de Dona Vicença num final de tarde nublado e a encontrei sentada na porta da casa com um copo de café numa mão e um cigarro na outra. Sentei ao seu lado e me apresentei. Sua voz gravemente rouca e a fala ritmada me obrigaram a uma escuta atenta.

Dona Vicença é uma senhora já idosa de corpo franzino, mãos calejadas, pele ressecada pelo sol e marcada pelo sofrimento. O olhar distante e quase cego pelo diabetes faz sua narrativa parecer pesada e imensa, ainda que em alguns momentos a rouquidão impeça a compreensão de algumas palavras. Sua filha, Dorotéia, a acompanhou na reconstrução de algumas memórias, com muita simpatia e cordialidade.

A mulher de corpo frágil teve uma vida dura. Criou sete filhos, praticamente sozinha, trabalhando na terra, no rio e como empregada em ranchos e restaurantes. Dona Vicença é uma mulher destemida, audaciosa e forte, não tem receios de dizer o que pensa e sente. Seus relatos revelam uma vida construída sobre tribulações e muita luta, sempre com poucas expectativas além do direito de exercer seu trabalho. Hoje lamenta não poder gozar na velhice os prazeres que na mocidade apreciava, principalmente por causa das penúrias da doença.

Andréia: A senhora pescava?

Vicença: Vixe... pescava muito. Eu gostava de pescá hein?

Andréia: E a senhora disse que nem gosta de peixe.

Vicença: Pro cê vê. Num gostava de peixe, mas gostava de pesca e de cozinhá peixe. (risos) Ce precisa de vê quando cê joga a rede na água e quando olha ela cheia de peixe... mais ce fica tão contente. É muito bão. Dependendo do dia que cê vai voltá se não embalá tudo...Peixe, eu vô te falá, dava gosto lá embaixo.Quando cê ia subino de bote e começava a pula os peixe dentro do bote, já subia todo mundo animado. Mas pescadô é assim se um desanimá já desanima todo mundo. Um vai desanimano o outro.

Andréia: Chegava a perder peixe?

Vicença: Tinha gente que perdia. Eu não perdia não porque eu charqueava tudo. Mas se não charqueasse perdia. Eu nunca perdi nenhum peixe. Eu charqueava os peixe de casa, charqueava os peixe do Du Ó, charqueava pro Zé Alvarenga. Eu pegava de todo pescado aí. Eu charqueava de quinze em quinze dia. Tinha veiz que o peixe já tava morto e assim mesmo eu charqueava. O peixe pode tá morto, mas se ele não criá aquela pelinha nos óio cê pode come que ele tá a mesma coisa que um novo. Agora se ele esbranquejá os óio, aí o peixe já começou a virá carniça.

Andréia: E era só a senhora que charqueava peixe no Quinze?

Vicença: Só eu que charqueava. Lá no maçarico mesmo, às veiz perdia tanto peixe. Um dia eu falei:'Não é melhor nóis charqueá esse peixe aí, não?' A primeira que inventô esse negócio de charqueadera lá no Maçarico fui eu. (risos) Depois disso não tinha um peixe que começava a secá no fríze que ele não mandava charqueá.

Andréia: E muita gente procurava pra comprar?

Vicença: Na semana santa era demais. O povo procurava muito. Pintado que eu deixo charqueado por dois mês não tem quem não coma e não fale que é bacalhau. Só pensava quem fez ele mesmo e que sabe, né? Tinha gente que vinha em casa e eu fazia e ainda teimava comigo que era bacalhau. E era pintado.

As histórias desses ribeirinhos trazem, inevitavelmente, alusões ao rio, à pesca ou à barranca com suas terras férteis e à exuberância da natureza e da fauna. Um lugar onde se reconheciam plenamente como sujeitos, como aqueles que detinham o conhecimento do rio, de suas margens e dominavam a arte da vida ribeirinha.

 

Mistérios da mata

São muitas histórias, muitos "causos" que emergem nas animadas rodas de prosa relembrando a vida na antiga vila. Dentre elas, várias falam de fantasmas, espíritos, enigmas, acontecimentos incompreensíveis, assustadores que permeavam as aventuras pelo rio, pela mata e o confronto com animais selvagens.

Vixe, história de pescador... Tem é muita história de pescador, não dá nem pra mentir. [...] Tem uma história, mas não é mentira. Aconteceu mesmo. Um dia a gente vinha vino... rodano né? Porque a gente subia lá na ponta do... quando a pesca tava aberta. A gente subia... Você conhece ali? Subindo pelo Rio Pardo? Aí a gente vinha rodano, roda o dia inteiro e quando chega lá pelas três ou quatro hora, cê encosta os barco pra armá as barraca, as cozinha, assim pra podê pescá aquela noite e depois vim. Aí teve um lugar que a gente encostamo... Não, nóis ia encostá. Era uma mata fechada, muito fechada, não tinha como tê sobrevivência num lugar daquele. Não tinha como tê uma pessoa pra ficá lá dentro. Aí nóis fomo encostano os barco e aí... sabe quando parece que quebra um pau assim? Um barulho alto como se uma pessoa tivesse quebrado um pau... mas grosso assim. E depois tacou assim na água, a gente viu caí na água. O outro pescadô olhô pra mim, eu olhei pra ele. Eu fiz assim com a mão. Aí de novo, outro pau. Ele: 'Não vamo encostá ai não, Marisa'. Mas era uma mata, Andréia. Aquilo arrepiava a gente assim de medo. Não tinha como ali te alguém. E nóis fomo embora e paramo bem mais pra baixo e pro outro lado. Já não acampamo mais daquele lado do rio. E aquela semana nóis não peguemo nada. Parece até coisa, num peguemo nada. Foi que nem um azar aquilo lá. Foi viage perdida. E aquele tempo não acontecia isso de ficar uma semana sem pescar nada. Cê ia e pegava. Hoje sim acontece muito de perdê a viage. (Marisa)

A fauna representa ou fonte poderosa de incitação à imaginação e à narrativa de feitos heróicos.

Eu tava pegano piau com uma dessas varas da ponta grossa e o barranco era assim. E eu levei a espingarda pra matá uma... uma capivara, né? Eu tô pescano, aí o piau puxô e ele pulou na frente assim do barranco. Eu corri pra pegá ele, no que eu agaixei pra pegá opiau antes dele caí n'água... que levanto assim e a cobra: vapt! Já enrolô assim pelo braço. E dessa vez ela veio e eu não vi ela. Vi depois que ela me pegô. Limpa e eu num vi a filha da puta, parece que ela atrai mesmo, né? E vai daqui e vai acolá. E eu puxava e ela puxava. E eu puxava e ela puxava. Acho que aí ela viu que num ia... dá conta, né? E danô a subiá. Daí eu escutei caí do outro lado. E os mais velho falava que quando uma cobra pegava um cara que ela num dava conta, ela danava a subiá pra podê chamá outra. E ela assubiano. Aí o que que acontece? Eu já pensei comigo: é a outra. E sabe que era verdade? Pensei certo. E eu danei o dente nessa cobra. Danei o dente nela e enchi a boca de... de escama. Porque ela tem uma escama. E danei o dente, e vai, e vai, e vai... E os braço tava preso. Aí eu senti que ela tava... ela aliviô né! E eu: dente, dente, dente, dente... Aí ela deu um sobete e chit, soltou de uma vez. No que ela soltou de uma vez, eu mergulhei assim. Aí já mergulhei pro lado da espingarda. Aí atirei nela. Atirei e ela saiu rolando, rolando, rolando e caiu n'água. O barranco era assim... E tô ali, ponhei os cartucho e fiquei. E aquele amargo, ai! Aquela natureza ruim na boca. Ah, coisa ruim! Aquilo amargava por dentro tudo e lutano pra saí aquilo lá. Que eu olho assim, uma cabeça desse tamanho olhano pra mim. A outra dessa largura assim... tinha engolido uma capivara. Ela vinha afundada só por causa que tava viva, porque quando eu matei ela, ela saiu assim boiando com a barriga desse tamanho. Eu falei: será que ela queria me engolí ainda? (Du Ó)

Espíritos enigmáticos rondavam e perturbavam a mente dos pescadores, principalmente à noite, quando temores são despertados com mais facilidade até pelas dificuldades em se lidar com as águas, com a mata e com os bichos na escuridão.

Um dia eu tava subino no rio. Meu irmão ia três dia na minha frente. Eu acabei de arrumar o barco e saí era umas dez da noite. A gente ia subino o Rio Pardo. E subi, subi. E tinha uma árvore grande... com uns cipó assim na árvore. E eis que eu enxergo uma tocha grande assim na árvore. A tocha subia e descia, subia e descia, subia e descia... Era onze horas da noite... já beirano a meia noite. Bom tá, eu já ia pelo outro lado do rio e a tocha do lado de cá. E toquei, né? Lá na frente tinha uma corredera de sudoeste. Quando eu tô virano pra descontá a corredera o motor vrum... pára. E vinha bão. E vem rodano e vem rodano e vem rodano e vem rodano e ia pro lado da tocha, né? E eu falei prá lá não. E o barco vinha voltano e rodano pra tocha. Aí eu amarrava o bote e ia arrumá o motor, e seguia... Três vezes no mesmo lugar e o motor vrum... parava. E vinha bom, mas chegava e pifava. Chegava ali, falhava. Na quarta vez, o barco pára e vem rodano e vem rodano e vem rodano e vem de novo pro lado da tocha... 'Ah, desgraça. Eu vô tê que peitá a desgrama dessa tocha aí. Sozinho e Deus...' Eu pensei comigo: 'Eu vou peitá essa tocha'. Mas quando chegô bem perto assim da tocha de novo o motor pegô, aí eu saí e passei pelo lado de cá, já não passei pela corredera lá, e aí fui pará aonde eu ia. E não parô mais. Não paro mais, mas eu num passei pelo mesmo lugar não. [...] Mas quando num via essa tocha na beira do rio, a gente via a tocha andano pelo varjão. [...] Uns acha que era ouro, outros acha que era fogo selvagem, outros fala que é o cumpadre mais a cumadre... sabe como é? O cumpadre que transa mais a cumadre. Então... as veiz cê via o bote passá assim ó... jogano tarrafa e cê via, só via o vulto. Aí cê chegava lá perto e não via mais nada, ninguém. Aconteceu várias vezes... [...] Não dava medo nada, a gente já tava acostumado. Dava arrepeio só. Mas não dava aquele medo não. Tinha que ficá, né? Fazê o quê? (Du Ó).

 

As festas

Não só da labuta diária viviam esses ribeirinhos. Ao lado do cotidiano de trabalho, brotavam a diversão, o lazer, a religiosidade, a produção simbólica expressa em festas, danças, músicas, bailes, artesanatos, contos orais e tantas outras formas de linguagem. Esse é outro tema sobre o qual os ribeirinhos se animam e contam, com bastante vivacidade, como organizavam e viviam os festejos.

Duas grandes festas ocorriam anualmente e eram aguardadas com muita ansiedade. A festa do dia do trabalho, no dia 1º e maio, e a festa de Nossa Senhora dos Navegantes. Ambas tiveram seu apogeu nas décadas de 30 e 40 e eram conhecidas em toda a região.

Era a maior festa da região, quando os moradores desde a cidade de Assis, vinham de trem e caminhões passar o 1º de Maio nas barrancas do rio Paraná. As pessoas começavam a festa no lado paulista, mais precisamente no Parque Figueiral, que o chefe do distrito mandava limpar para receber os usuários. Inicialmente a Cia. De Viação São Paulo Mato Grosso e depois o Serviço de Navegação Bacia do Prata – SNBP, por sua vez, colocavam embarcações à disposição da população para levá-las até o Porto XV, no atual Mato Grosso do Sul, onde havia corrida de cavalo, futebol, brincadeiras, música e um grande piquenique. Era o dia todo um leva e trás de pessoas aproveitando o feriado. (Godoy, 2002:315)

A festa de Nossa Senhora dos Navegantes é realizada até hoje na vila, no dia 15 de agosto, e é caracterizada pela travessia de nove imagens de santos católicos, do Porto XV de Novembro até o Porto Tibiriçá de Presidente Epitácio.

Na antiga vila, a novena tinha início no dia sete de agosto e os nove dias que se seguiam eram de muita comida, música e diversão. No dia quinze de agosto a festa era encerrada pela procissão de barcos que realizavam a travessia no rio. Pescadores da região e moradores das cidades próximas vinham participar da festa e pagar promessas à santa.

As festas do XV era muito boa, o pessoal acudia demais, então vinha gente de São Paulo, Campinas, Maringá, Ponta Porã... Dia 6 você já via muito carro de turista, ônibus tá? Tudo pra assisti a procissão no rio que o povo atravessava com a balsa. Com a balsa o povo saía do porto XV até a igreja lá no Porto Epitácio e voltava por água. Então tinha muito turismo que frequentava, aquilo eu me recordo muito. Aquilo enchia o salão da igreja. (Chiquinho Palhaço)

Na travessia, a multidão seguia, na balsa, e os pescadores acompanhavam com seus barcos rezando o terço, declamando ladainhas e canções sacras. Ao longo do tempo, pescadores e moradores da vila, devotos de outros santos, foram acrescentando outras imagens ao cortejo.

No período da Festa de Nossa Senhora dos Navegantes, aos moradores da vila aproveitavam a presença do pároco para realizar batizados, casamentos e outros sacramentos. O rito religioso era símbolo de agradecimento do povo ribeirinho. Muitas prendas eram oferecidas em gratidão à fartura retirada da terra e do rio. Os nove dias de festa eram marcados por inúmeros rituais e costumes com as quais era selada a relação do homem com as águas e com a terra.

Antigamente a festa era feita assim: era mais o povo da comunidade que organizava, os baranqueiro, o pessoal das ilhas. Todo mundo vinha e trazia frango, novilha. Não precisava comprar nada. As prenda é que era leiloada. Mas tudo era ganhado e o dinheiro das prenda ficava pra reformar a igreja. Aí um vinha comia na casa de outro. Vamo supor, o cumpadre seu Nelso digamo assim morava lá no Cantinho do Céu, lá pra Barra Preta e ele vinha de bote, ele subia de bote com a família três, quatro, cinco dias antes da festa. Então ele já trazia, por exemplo, pra doar lá na festa, duas, três leitoas. Cinco seis frango, cada um daqueles. Trazia banana pra leiloá, abóbora, mandioca, abóbora que parecia um... um museu, mandioca de dois três metro, de grande que era. Guardava o pé de mandioca três quatro ano só pra depois arrancá e trazê na festa. Porque era uma alegria leiloá uma mandioca daquela. Fazia um baita de um festão. (Russu)

No baile, práticas profanas exteriorizavam a sensualidade e desejos inaceitáveis que se esquiavam pelas tradições e por enigmáticas simbologias para poder alcançar alguma visibilidade. A Rosa da Meia Noite, por exemplo, era uma dessas formas esquivas de se declarar algum desejo ou sentimento para uma cobiçada dama.

Russu: E aí tinha a chamada Rosa da meia-noite, que era uma das prendas mais cara que tinha. Aí povo ficava esperando o ultimo dia da festa. O sujeito, por exemplo, eu ia lá e arrematava a Rosa da meia-noite, por qualquer preço, o povo brigava pra arrematá aquela rosa. Só que tinha uma coisa, por exemplo, eu passava o ano inteiro com vontade de dançar com você, e com aquela rosa se você estivesse na festa você não podia negar de dançá comigo. Era como se fosse um ritual, uma promessa. Então eu arrematava aquela rosa por qualquer preço, mas você tinha que dançá comigo depois. Entendeu? Aí eu tinha que levantá e ia até você e te oferecia a rosa e você tinha que dançá aquela valsa comigo. Não era mais ou menos assim dona?

Helena: Quem recebia a Rosa da meia-noite tinha que dançá com o cavalheiro. As mulher todas queriam ganhar a rosa, era uma honra. Ave Maria! (Russu e sua sogra Dona Helena).

A preparação da festa começava meses antes, cada detalhe era organizado com alegria e empenho. Cada uma das nove imagens era ornamentada por seu padrinho ou madrinha, pessoas da vila ou de outras cidades próximas que vinham homenagear seus santos de devoção. A preparação envolvia a comunidade que enfeitava os barcos com bandeirolas de papel, laços de fita e flores para acompanhar a balsa na travessia no rio.

A procissão fluvial era embalada por cânticos e rezas. Os ribeirinhos e gente vinda de outros lugares participavam com profundo respeito e devoção. A festa social, que acontecia nas nove noites após as novenas, era de responsabilidade de nove grupos de Festeiros que se organizavam por laços familiares ou de amizade. Cada grupo de moradores era encarregado de um dia da festa. Arrecadavam as prendas para a quermesse, os prêmios para os leilões, as comidas, organizavam as brincadeiras e escolhiam os músicos que tocariam no baile daquela noite.

 

O sonho acabou: histórias trágicas ou a Cesp e a morte do rio

Em frente à casa de Marisa, sob a sombra da árvore, na calçada, Mangabinha, Marisa e eu iniciamos a conversa sobre as lembranças do Quinze Velho. Em pouco tempo outro pescador, Paulinho, passa de bicicleta e, sabendo da pesquisa, se integra à discussão. Os três pescadores debatem as questões políticas e administrativas do distrito, a questão da emancipação e as políticas assistenciais.

Marisa é uma pescadora cativante, de olhar astuto e afável. Conheci essa senhora na minha primeira visita à vila em 2004. Sua conversa melodiosa e a simpatia convidam os que passam a pararem para uma prosa.

Mangabinha é presidente de bairro, foi oleiro no antigo Porto Quinze e atualmente se define como pescador profissional. Sempre muito envolvido com as questões políticas da vila, costuma ser aplaudido por muitos e criticado por outros. No início da conversa, mostrou-se receoso e formal, mas rapidamente, se tornou bastante amável e prestativo. Paulinho é um pescador simpático e falante, seu jeito simples mostra inteligência e ponderação. Chegou de bicicleta, encostou no meio fio, e apesar do pouco tempo que permaneceu ali, sua presença trouxe contribuições importantes à conversa.

O ambiente é agradável e a conversa é animada, em alguns momentos a indignação toma conta dos pescadores e é expressa pelo tom de voz e expressões faciais. Esse diálogo foi bem longo e, frequentemente, vizinhos e conhecidos passavam por ali para dar sua pequena contribuição à prosa.

Mangabinha: Aqui modificô muito, modificô muito. Aqui é o seguinte, igual a vida lá no PortoQuinze não é. Ah, não é... Porque aqui a CESP colocô todo mundo aqui e essa área do Porto Quinze que eles pretendia fazê... nossa praia, que nóis tinha o direito. E aqui nada disso foi feito. O Porto Quinze era rico no papel, tinha o projeto de uma praia aí, ó. Ia sê aí... E hoje se alguém quer entrar na água, tem que entrar no lodo, na lama. Não existe mais aquela areia na beira d'água que nem antes tinha. Agora é uma água morta.

Mangabinha: Sabe o que virô esse Quinze aqui? Pasto para gado de fazendeiro. Olha lá. Eles larga o gado aí quebrano as arvinha, acabano com tudo. E o prefeito não toma providência.

Marisa: Aqui do Porto XV de verdade só restô o nome porque o resto não tem mais nada a vê.

Mangabinha: Porto XV eu vô te fala, é uma cidadezinha infeliz...

Marisa: E era uma cidade tão antiga, né? Não era pra ser assim.

Marisa: Andréia, cê acredita que a CESP não deixa os pescadô acampá nas terra dela nas marge do lago? Agora pescadô tem que ficá acampado dentro do barco. Se você armá os barraco nas terra deles e eles encontrá, eles expulsa tudo. Faiz desarmá tudo. Subindo aí pelo RioPardo umas duas horas pra frente, onde nóis acampa pra pescá a gente põe as cozinha e as coisa, eles chega e tira tudo. Esses dia eu falei pra eles: 'Agora nóis também não pode mais pescá? Cê qué que nóis faiz o quê?' Eles notifica você, aí cê ranca, eles fala que cê ta invadindo as terra da CESP e obriga cê í embora. A gente põe a lona e as coisa de cozinha assim na beira do rio pra podê pescá, mas nem isso eles não deixa. A própria CESP tira você e manda cê pro fórum responder por invasão. A gente num fica mais do que três ou quatro dia no mesmo lugar, depois já acampa em outro lugar. E a gente não faz casa, a gente só põe uma lona assim tipo sem-terra. A gente faz a barraca da cozinha e outra pra gente dormir e aí eles chega com os helicóptero e manda tirá tudo.

Mangabinha: Deixa mesmo não, se pegá pescadô acampado eles notifica.

Marisa: Que nem eu falei pro jurídico da CESP no dia que eles veio notificá a gente aqui: 'Então a gente agora vai tê que acampá dentro do barco? Como é que nóis vai cozinhá, pescá e dormi tudo no barco? Tem cabimento?' Aí ele falou: 'É a lei'. 'Mas que lei é essa? Me diz, eu falei, que lei é essa que deixa a CESP tirá a gente do lugar que nóis tava na beira do rio, onde nem precisava saí de casa pra pescá e agora nóis num pode nem parar o barco na beira do rio?'. Já não tem peixe aí, e como eles ainda qué que a gente viage duas hora de barco todo dia e volte pra dormir em casa toda noite? Você vai tirá dinheiro de onde pra podê í e voltá todo dia?

Mangabinha: E se dá uma maré? Cê não pode pará?

Marisa: Vai pescá só pra pagá a gasolina, não come e nem vive, só paga a gasolina. É isso que eles qué, que nóis morre. É o mesmo que falá que cê não pode mais trabalhá.

Mangabinha: Como eles qué que alguém acampe dentro de um bote pequenininho assim? E se vem uma chuva de noite? Uma ventania? Eles nunca pescaro pra sabê o que estão falano. Eles faiz isso porque sabe que nóis não conhece a lei. Então eles fica botano medo.

Marisa: Lá no Quinze Véio cê pudia acampá em qualqué lugar que cê quisesse, ninguém mexia c'ocê, as pessoa respeitava o trabalho dos pescadô. Até os fazendeiro não esquentava de vê os pescadô acampado na beira do rio. Agora que encheu a gente não pode pará o barco em lugar nenhum.

(Paulinho passa de bicicleta na rua, pára na calçada e entra na conversa).

Marisa: Paulinho, conta aí, não é verdade que a CESP tá expulsando os pescadô que acampa aí nas terra dela?

Paulinho: Não tiraro ainda, mas vão tirá. E quem construiu vai perdê as casa. Eu não tenho medo, se eles vêm eu acampo cem metro pra cima ou cem metro pra baixo e eles não pode fazê mais nada.

A revolta e a indignação vêm associadas, principalmente, à sensação de perda do poder sobre si e sobre o espaço. Na nova vida imposta ao homem, ele é impedido de atuar e se torna vulnerável e impotente. Essa dificuldade de familiarização com o espaço e com a nova situação das águas é expresso através das imagens que o pescador lhes atribui. A água deixa de ser a mãe-amorosa e torna-se uma ameaça à vida e à sobrevivência do pescador.

Aqui é um lugar muito doentio. Aqui é um lugar doentio demais. [...] Essa água é contaminada. Essa água é contaminada. Aí tem ó, cemitério enterrado, lagoa enterrada, erva braba, veneno de fazenda, raiz braba, aí tem de tudo. Aquele veneno de fazenda que tinha, fossa, tudo ficou debaixo dessa água aí. Se você for examiná essa água cê acha doença, pode olha que cê acha doença. Você vê um lodo verde que fica por cima da água. Aí,é por baixo daquele lodo que tá os micróbio da doença: fogo-selvagem é uma, é doença que dá na pele também, que descasca que nem ferida. E tem aí, nessas água aí. Já morrero vários das doença que pega aí nessas água podre. Tem doença que não tem cura. (Chiquinho Lambari)

O ribeirinho manifesta uma grande resistência ao espaço destinado a eles na nova vila construída como compensação pela submersão da anterior. Sente-se desalojado do seu antigo e aconchegante lar. Paira um sentimento de desalento, pois a água do lago significa para eles uma natureza mortífera, enquanto a terra da cidade é tida como estéril. Quando indagados sobre como gostariam de ser indenizados pela CESP as respostas são sempre parecidas:

Eu num queria nada. Eu queria só na beira do rio isso assim. Eu não queria nem tudo que eu tinha antes. Eu queria que eles me desse... Eu queria nem que fosse assim uns 30, não uns 50 m de largura com... uns 100 de cumprimento. Na barranca de um rio. Só a barranca. Só, porque aí só com um pedacinho de terra perto do rio eu plantava mais umas coisa, eu sobrevivia. Dava até pra eu plantar uns pé de mandioca, e comia. E ainda pescava sem saí de casa. Nem precisava saí de casa não... (Chiquinho Lambari)

Os pescadores não imaginavam que a barragem construída no rio pudesse devastar com tanta intensidade a vida, o trabalho e o cotidiano da comunidade. Sentem-se enganados e ardilosamente convencidos a aceitar, sem qualquer garantia, trocar sua terra farta pela miséria e a escassez da nova vila.

Para o pescador, a CESP violou um ciclo sagrado da natureza e do homem, ao se apropriar indevidamente de algo sagrado. Interrompeu o ciclo planejado desde sempre, segundo eles, por Deus para garantir a prosperidade e a sobrevivência dos homens na terra.

Eu acho que eles tão explorano o rio, o que ainda resta do rio. Mas o hôme carece do rio, e quem feiz o rio foi Deus. Eu acho que ninguém pode mandá nisso aí. Eu acho que é a mesma coisa que vendê água. Não se deve vende água, porque água é dada por Deus pra todos. Quem feiz a água foi Deus, não foi nóis. Então, eu acho que tem muita coisa errada. [...] Porque eu... eu digo sinceramente, eu preferia morá no XV até hoje, tá lá até hoje no XV. Véio do que tá aqui nesse Novo XV. (Mangabinha)

 

Considerações finais: reflexões de um ribeirinho

Russu foi meu principal guia, apoiou meu trabalho e me apresentou a praticamente todos os pescadores de Nova Porto XV. Dona Arasília, sua esposa, me abriu sua casa, ofereceu sua deliciosa comida e me acolheu como a uma filha. Seria impossível registrar as inúmeras conversas e histórias contadas em sua casa e durante nossas caminhadas. Russu é um senhor de meia idade, alegre e bem-humorado, que participa ativamente dos problemas da vila. Acompanhou de perto o processo de desapropriação e reassentamento, desde as primeiras reuniões com a CESP até as lutas atuais por políticas públicas eficazes. Em diversos momentos assumiu a liderança e a representação de grupos comunitários. Contador de histórias e causos, Russu, é uma pessoa afetuosa que gosta de longas prosas, onde pára logo se reúnem pessoas para ouvi-lo. O ribeirinho é uma figura polêmica na vila, conquista grandes amizades e algumas inimizades também.

Certo dia, enquanto estávamos sentados na calçada de um bar à espera do ônibus para Bataguassu, Russu exprimiu suas reflexões sobre a vila e sobre a situação do povo. Seu jeito caboclo e o linguajar ritmado revelam o sofrimento e a revolta de um homem a procura de saídas que amenizem os problemas ocasionados pelo lago.

As interferências, tanto minhas quanto das pessoas que estavam no bar foram desprezadas, nesse trecho, a fim de garantir objetividade ao depoimento do ribeirinho.

Russu: Eu acho assim, mesmo que fosse assim pequenininho, mas eles tinha que tê feito um estudo dessa forma que você tá fazendo. Um histórico, pelo menos das famílias mais velha. Sabe um histórico? Eles tirô foto, foto disso, foto daquilo, mas não tem um histórico. Aquilo que... que no futuro, né? Por exemplo, aqui teve muita gente que veio pra cá e... meu sogro mesmo, hoje ele é um hôme doente, depois que veio pra cá. E é um hôme que nunca bebeu e nunca fumô. Na verdade desde o último ano que ele ia vir pra cá ele ficou muito doente, por causa do nervosismo... Ele não sabia se recebia o que era dele ou não. É isso que as veiz dá infarto, dá essa... essa divergência entre as pessoa. E cê pode vê, que as informação aqui são tudo desencontrada. Elas não são encontrada. Por quê? Porque é o que te falei: 'Burro velho não pega marcha'. Não adianta trazê nóis pra um lugar desse aqui, para nóis trabalhá em fábrica. Nóis não habituô trabalhá em fábrica. Os mais jovem que tão vino agora, ainda algum deles que ainda tão se habituano. Mais nóis que é véio não. Outra coisa, cê vê: lá chegava de tarde, todo mundo passava a mão na sua varinha, outros na sua espingardinha. Lá você matava um bicho, comia um peixe, porque na verdade a natureza propunha isso pra nóis. Ela é... ela é a mãe nossa, por isso que ela trata de nóis. Todo ser humano tem uma parcela da natureza. Então da mesma forma, da mesma forma que nóis tamo sentindo a falta da barranca do rio, da natureza, do que nóis tinha, ela também esta sentindo falta de nóis. Porque a natureza também sente a falta do homem. É como um... um...

Pescador: Como um ciclo, né Russu?

Russu: É um ciclo, exatamente. As veiz falta pra gente completá as palavra, porque eu também não sô técnico e não tenho a cultura pra isso, mas a verdade é essa. Então cê pode vê. Eu ainda hoje falei ali pra você: ó, são 240 mil hectare de terra diretamente, mais em média 60 mil hectare do terreno dentro da barrage que foi destruído. Diretamente e indiretamente, chega a média de 300 mil hectare. Então você vê... você vê a estupidez que fizero com a natureza,a estupidez que fizero com o ser humano. Você já pensou... já pensou nesse vai e vem quanto, quanto de nóis não vive aborrecido, triste, sentido, né? Muitos... muitos já cresceu, mas ninguém fala nos que decresceu, nos que morrero de desgosto, aqueles que num tava acostumado a pegá dinheiro e pegaro o que tinha porque a CESP indenizou. Muitos pego uma casinha aqui, depois trocô a troco de um carro véio e hoje tá batendo biela, muitos tão na beira da estrada... Num tava preparado, porque foro pessoas que foro construino de tijolo em tijolo, eles fazia uma coisinha esse ano, outra coisinha na safra do peixe do ano que vem, um pouquinho no outro ano. Ele plantava uma coisinha, ele plantava outra, ai com o dinheiro ele aumentava um cômodo na casa e ele criô aquele castelo em torno dele... E ai o quê que aconteceu? Aconteceu que a CESP veio, né? Deu uma casinha pra um, pra outro num deu, deu em dinheiro... E a pessoa não tava acostumado com aquilo... Daí um pouquinho o governo desvalorizou o cruzeiro e passou pra real. Eu mesmo aconteceu isso, o dinheiro da gente foi desvalorizado e a gente não teve equilíbrio pra se mantê em pé. Essa é que é a verdade!

Ao intervir em suas vidas e retirar deles o rio, a barragem construída pela Cesp os silenciou enquanto prosadores ribeirinhos. Represou o rio e represou também a imaginação, a voz, as produções simbólicas ligadas à água, à pesca, à caça, ao cultivo da barranca, ao uso da argila e a tantos outros referentes derivados da materialidade da vida nesse lugar. Retirou deles a potência de contadores de histórias, de produtores e contadores de causos. Suas vidas não mais lhes pertencem; não enfrentam com a própria coragem, como outrora, os perigos do rio, da mata e da ira dos bichos. Não são mais domadores das águas correntes, da mata e dos animais selvagens. Por não terem o domínio da vida, não têm mais o que contar de suas façanhas na vida diária. Tanto quanto o sustento foi-lhes retirado o espírito, sua condição de sujeito, seus modos de subjetivação, de criação e de produção da vida.

 

Referências

Alves, Andréia D. (2007). Histórias de pescadores: memórias de vidas submersas. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Ciências e Letras- Unesp. Assis, São Paulo.         [ Links ]

Bachelard, Gaston. (1989). A água e os Sonhos. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Bachelard, Gaston. (2006). A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Bachelard, Gaston. (1973). L'intuition de l'instant. Paris: Gonthier.         [ Links ]

Berman, Marshall. (1998). Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Bermann Célio. (2007). Energia elétrica: Impasses e controvérsias da hidreletricidade. Estudos Avançados, 21(59), 139-153.         [ Links ]

Bosi, Eclea. (2003). O tempo vivo da memória. Ensaios de Psicologia Social. São Paulo: Ateliê Editorial.         [ Links ]

Cruz, Carla B., & Silva, Vicente P. (2010). Grandes projetos de investimento: a construção de hidrelétricas e a criação de novos territórios. Soc. nat. (Online), 22(1), Uberlândia.         [ Links ]

Junk, Wolfgang J., & Nunes de Mello, J. A. S. (1990). Impactos ecológicos das represas hidrelétricas na bacia amazônica brasileira. Estudos Avançados, 4(8), 206-208, São Paulo.         [ Links ]

Halbwachs, Maurice. (1990). A memória coletiva. São Paulo: Vértice.         [ Links ]

Koifman, Sergio. (2001). Geração e transmissão da energia elétrica: impacto sobre os povos indígenas no Brasil. Cad. Saúde Pública, 17(2), 413-423, Rio de Janeiro.         [ Links ]

Mello, Sylvia. Leser de. (1988). Trabalho e sobrevivência: mulheres do campo e da periferia de São Paulo. São Paulo: Ática.         [ Links ]

Pessanha, José A. M. (1986). Introdução. Em Bachelard, G. O direito de sonhar (p. XIX). São Paulo: Dife.         [ Links ]

Sato, Leny, & Souza, Marilene P. R. (2007). Contribuindo para desvelar a complexidade do cotidiano através da pesquisa etnográfica em psicologia. Em M. C. M. Matias, & J. A. D. Abib (Org.), Sociedade em transformação: estudo das relações entre trabalho, saúde e subjetividade. Londrina: Eduel.         [ Links ]

Thelen, David. (1990). Introduction: memory and American history. Em Thelen, D. Memory and American history. Bloomington: Indiana University Press.         [ Links ]

Zhouri, Andréa, & Oliveira, Raquel Santos Teixeira. (2007). Desenvolvimento, conflitos sociais e violência no Brasil rural: o caso das usinas hidrelétricas. Ambiente e Sociedade, 10(2), 119-135, Campinas.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Andreia Duarte Alves
E-mail: andreiadual@hotmail.com

José Sterza Justo
E-mail: justo@assis.unesp.br

Recebido em: 26/09/2010
Revisado em: 22/05/2010
Revisado em: 06/06/2011
Aceito em: 15/07/2011

 

 

* Psicóloga, e mestre em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista – Júlio de Mesquita Filho, Assis, SP, Brasil.
** Docente do Departamento de Psicologia Evolutiva, Social e Escolar da Faculdade de Ciência e Letras, da Universidade Estadual Paulista– Júlio de Mesquita Filho, Assis, SP, Brasil. Doutor em Psicologia Social pela Pontíficia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil, e Livre Docente em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Estadual Paulista– Júlio de Mesquita Filho, Assis, SP, Brasil.