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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.12 no.23 São Paulo jan. 2012

 

ARTIGOS

 

Empoderamento e controle social: uma análise da participação de usuários na IV Conferência Nacional de Saúde Mental Intersetorial em Natal (RN)

 

Empowerment and social control: an analysis of the users participation on the Fourth National Conference on Intersectorial Mental Health in Natal (RN)

 

Empoderamiento y control social: un análisis de la participación del usuario en la Cuarta Conferencia Nacional sobre Salud Mental Intersectorial en Natal (RN)

 

 

Ana Karenina de Melo Arraes*, I; Magda Dimeinstein**, I; Kamila Siqueira***; Clarisse Vieira****, I; Allana Araújo*****, I

I Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo é um recorte de uma pesquisa mais ampla acerca das estratégias de empoderamento de usuários no campo da saúde mental no nordeste brasileiro. Discute-se aqui a participação dos usuários no controle social no contexto das etapas locais da IV Conferência Nacional de Saúde Mental Intersetorial em Natal (RN). Para tanto, realizaram-se observações participantes e entrevistas com usuários que subsidiaram a construção de analisadores, quais sejam: 1) Estrutura da conferência; 2) Os espaços de debate; 3) A atuação das associações; e 4) A tutela dos usuários. De modo geral, os resultados indicam uma participação restrita na construção do processo de conferências como um todo, o que remete à ausência de formação política e incentivos à participação do usuário como ator fundamental no exercício do controle social e nos espaços cotidianos de debates acerca do processo de reforma psiquiátrica e da política de saúde mental.

Palavras-chave: Controle social, Saúde mental, Empoderamento, Participação política, Conferência de Saúde Mental.


ABSTRACT

This article is an excerpt from a larger study on the users' empowerment strategies in the field of mental health in the northeast of Brazil. This is a discussion about the participation of users in social control in the context of local steps of the IV National Conference on Intersectorial Mental Health in Natal (RN). To this end, there were participant observations and interviews with users that supported the construction of analyzers, which are: 1) structure of the Conference; 2) spaces of debate; 3) the roles of the associations and 4) guardianship of the users. Overall, the results indicate a restricted participation in the construction of the Conference process as a whole, which refers to the absence of political training and incentives for user participation as main actors in the practices of social control and the everyday spaces of debates about the process of psychiatric reform and mental health policy.

Keywords: Social control, Mental health, Empowerment, Political participation, Mental Health Conference.


RESUMEN

Este artículo es un recorte de un estudio más amplio sobre las estrategias de potenciación de usuarios en el campo de la salud mental en el noreste de Brasil. Se discute aquí la participación de los usuarios en el control social en el contexto local de los pasos de la IV Conferencia Nacional sobre Salud Mental Intersectorial en Natal (RN). A este fin, observaciones participantes y entrevistas con usuarios participantes subvencionaron la construcción de analizadores, que son: 1) estructura de la conferencia; 2) espacios de debate; 3) el papel de las asociaciones y 4) la tutela de los usuarios. En general, los resultados indican una participación limitada en la construcción del proceso de la Conferencia en su conjunto, que se refiere a la ausencia de formación política e incentivos para la participación del usuario como sujeto fundamental en el ejercicio de control social y los espacios cotidianos de debates sobre el proceso de desinstitucionalización y política de salud mental.

Palabras clave: Control social, Salud mental, Empoderamiento, Participación política, Conferencia de Salud Mental.


 

 

Introdução

Este artigo é um recorte de uma pesquisa mais ampla, acerca das estratégias de empoderamento, envolvendo formas de organização política e dispositivos de suporte social de usuários de serviços substitutivos em Natal-RN. No período de realização da pesquisa, a rede de atenção psicossocial passava por uma reestruturação, em que a proposta de ampliação do número de serviços criava expectativas nos trabalhadores e usuários vinculados aos serviços já existentes. Já nestes, predominava uma lógica de funcionamento que não priorizava a construção e o incentivo de iniciativas de suporte e participação social, para além da rede pública de saúde. Em paralelo a este processo de reestruturação da rede de atenção, ocorria o processo de construção das etapas preparatórias da IV Conferência Nacional de Saúde Mental – Intersetorial que acompanhamos desde as primeiras mobilizações para realização das pré-conferências nos cinco distritos sanitários da capital Natal, até a realização da etapa estadual. Entendemos que o processo de construção da conferência configurou-se como momento crucial da pesquisa uma vez que permitiu a observação de estratégias de empoderamento voltadas para o controle social e a luta de direitos na saúde mental. Assim, com base na pesquisa, é possível discutir o controle social ao longo deste processo no Rio Grande do Norte, problematizando a participação política dos usuários do SUS na deliberação e construção da política pública de saúde mental.

 

Notas sobre Controle Social em Saúde

No âmbito das Ciências Sociais a noção de controle social assume sentidos diversos, dependendo das concepções de Estado e de sociedade civil com que se trabalha (Alvarez, 2004). Utilizamos a concepção de que controle social consiste na participação social dos cidadãos na construção e regulação das políticas públicas. Tal noção baseia-se na premissa de que é importante garantir que os diferentes segmentos da sociedade e as representações da população de um modo geral possam participar desde as formulações das políticas públicas (sob a forma de planos, programas e projetos), acompanhamento e avaliação da execução das mesmas até a definição da organização de recursos para que estas se conformem de acordo com interesses da coletividade. O controle social, portanto, demonstra uma conquista jurídicoinstitucional da participação social.

Após a 8ª Conferência Nacional de Saúde, convencionou-se que o controle social e a descentralização política das ações em saúde seriam elementos cruciais na construção de um sistema de saúde universal, assim como propusera o movimento pela Reforma Sanitária (Wendhausen, 1999). Logo, a concretização formal do controle social se dá pela Lei nº 8.142/1990, que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e institui esta participação através das Conferências de Saúde e dos Conselhos de Saúde. As primeiras devem ocorrer a cada quatro anos e possibilitam o debate entre diversos segmentos sociais (usuários, trabalhadores e gestores) a respeito das políticas públicas de saúde, de forma que desse momento devem ser extraídas críticas, denúncias e propostas para a construção da política. Já ocorreram, no Brasil, 14 Conferências de Saúde.

No caso específico da saúde mental, a problemática resguarda uma peculiaridade. Esse exercício participativo amplo e no controle social em particular esbarra no desafio de superar o estigma social e a tradição da tutela que incidem sobre os usuários portadores de transtorno mental. O estigma, a tutela e a interdição social e jurídica que recaem sobre estes usuários contribuem para o não empoderamento e o não reconhecimento destes enquanto cidadãos e atores do processo participativo e do controle social. Para Costa-Rosa, Yasui & Luzio (2001) e Amarante (2009), o exercício da participação política e do controle social na reforma psiquiátrica deve dar continuidade ao projeto de superação do modo asilar e todas as suas consequências, dando lugar ao modo de atenção psicossocial que não se limita apenas à criação de novos modelos assistenciais, mas envolve também outras dimensões teóricopráticas que dizem respeito à construção da cidadania e a transformação das relações com as pessoas portadoras de transtorno mental nos diferentes âmbitos da vida.

Vasconcelos (2003) pontua o exercício do controle social como uma das importantes estratégias de empoderamento no campo da saúde mental que possibilita o protagonismo social e a defesa de direitos. O empoderamento é entendido como um processo de fortalecimento e autonomização de sujeitos e grupos nas suas relações e práticas cotidianas, em especial aqueles que passaram por situações opressoras e discriminatórias – como é o caso da maioria das pessoas portadoras de transtornos mentais em nosso país – e, portanto, constitui-se como efeito de um conjunto de práticas de enfrentamento pessoal e coletivo frente ao estigma, discriminação e exclusão social.

Nesse sentido, ressaltamos a importância de investirmos em estudos focados nas pessoas e em suas relações cotidianas concretas (aqui priorizamos a participação de usuários nas conferências de saúde mental), buscando politizar tais ações, estabelecendo suas conexões com marcadores sócio-históricos, tal como propõe a psicologia política e social de inspiração histórico-crítica. Com base nisso, consideramos que se movimentar na direção da desinstitucionalização significa produzir emancipação e autonomia não tutelada, inventar agenciamentos que produzam interferências na ordem social estabelecida, investir contra o "asilo ilimitado" e a céu aberto tal como Foucault (1999) indicava.

 

As Conferências de Saúde Mental e a Construção da Participação Social

O processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil teve como um marco histórico a realização da I Conferência Nacional de Saúde Mental (CNSM), em 1987, como desdobramento à VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS), em um período de fortes críticas e denúncias das violências na assistência psiquiátrica no país. Provocada pelo Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM), a I CNSM ocorreu em um clima de conflitos e mobilização política no campo da saúde e especificamente na saúde mental. Conforme a lógica da participação popular da VIII CNS, a proposta da I CNSM era amenizar o caráter congressual (nos moldes de um evento acadêmico e científico) e fazer um evento participativo, que reunisse não apenas profissionais, empresas privadas e gestão, mas também organizações populares, sindicatos, associações de familiares e usuários – enfim, o que se convencionou chamar por "sociedade civil organizada" (Amarante, 1995). Sendo assim, esta CNSM marcou a transição para um contexto político de grandes mobilizações. Seu temário foi amplo, envolvendo questões como a ampliação do conceito de saúde e o questionamento do modo de produção capitalista enquanto promotor de desigualdades sociais e da função da psiquiatria como produtora de exclusão. Para Amarante (1995), esta conferência foi um momento importante por representar a consolidação nas diretrizes nacionais da política de saúde mental dos princípios defendidos pelo movimento de reforma psiquiátrica.

Já na II CNSM, ocorrida em 1992, a descentralização e regionalização aparecem como fundamentos para a democratização do Estado e das políticas sociais (Ministério da Saúde, 1994). Neste sentido, o próprio formato da conferência foi diferente: o processo ocorreu inicialmente em etapas antecedentes à nacional e contou com representantes dos diferentes segmentos envolvidos na reestruturação da atenção em saúde mental e na reforma psiquiátrica brasileira, tais como associações de usuários e familiares, conselhos da área de saúde, trabalhadores, gestores e entidades da sociedade civil. Nesse sentido, teve como indicador de mudança, a participação efetiva dos usuários na realização dos trabalhos de grupo, nas plenárias, nos debates e tribunas livres. Esta participação foi responsável pelo surgimento de uma nova dinâmica de organização do trabalho, onde os depoimentos pessoais, as intervenções culturais e a defesa dos direitos transformaram as relações e as trocas entre todos os participantes (Amarante, 1995). As pessoas portadoras de transtorno mental passaram a ser vistas como atores sociais fundamentais para o projeto de desconstrução da cultura manicomial.

Na III CNSM, em 2001, mesmo tendo como foco de discussão a reorientação do modelo assistencial e seu financiamento, foi colocada em pauta a participação social e política. Neste contexto, Vasconcelos (2001) afirma que, no campo da saúde mental, as avaliações do movimento de reforma psiquiátrica e do movimento da luta antimanicomial de então mostravam ainda uma preocupação efetiva muito pequena em ocupar estes espaços dos conselhos e representações junto ao SUS e outras políticas sociais. Deste modo, no relatório final da III CNSM, ficou registrada a necessidade de um esforço neste sentido, mas também de não limitar a participação política às formas já instituídas de controle social.

Com o tema "Saúde Mental: direito e compromisso de todos: consolidar avanços e enfrentar desafios", a IV CNSM teve suas discussões estruturadas a partir de três eixos: um relativo às políticas de Estado e à pactuação; outro focado no cuidado, que abrangia a rede de atenção psicossocial e o fortalecimento de movimentos sociais; e, por fim, o "Eixo da Intersetorialidade", que contemplava questões sobre direitos humanos e cidadania e cuja inclusão marca esta CNSM. Daí que nomeada "IV Conferencial Nacional de Saúde Mental – Intersetorial", colocando como pauta a necessidade de diálogo com outros setores e políticas.

Isso significa que a construção coletiva das políticas de saúde mental deve dar conta do maior imperativo das práticas cotidianas no campo nos últimos anos, qual seja: estabelecer o trabalho em rede, não somente sanitária, mas com outros setores, campos de atuação, políticas sociais e movimentos sociais. Por isso, "a direção da intersetorialidade representa um avanço radical em relação às conferências anteriores, pois atende às exigências concretas que as mudanças do modelo de atenção trouxeram para todos." (Ministério da Saúde, 2010a, p.7).

Vasconcelos (2010) aponta para a peculiaridade das forças que compõem atualmente o cenário da reforma psiquiátrica no Brasil: as instituições contrárias ao processo de reforma psiquiátrica no sentido da desintitucionalização e a atual política de saúde mental não estão presentes nos dispositivos de controle social, mas atuam diretamente na mídia e nas instâncias legislativas e executivas nos três níveis de governo. Tal consideração nos mostra que a realização de uma conferência não garante a implementação de novas políticas públicas que representem avanços para a saúde mental, dada a estruturação política das forças opositoras.

A criação e consolidação de políticas sociais relacionadas à saúde coletiva e à saúde mental dependem organicamente das mobilizações e investimento político de coletivos e atores em favor de novas formas de assistência, espaços e relações com a saúde, com a loucura e com os portadores de transtornos mentais, dentre os quais o autor destaca o movimento de luta antimanicomial. Mais além da implementação de programas, esse processo é crucial para debater e avaliar os avanços e as estagnações ocorridas no intervalo entre as conferências, bem como quais são os maiores desafios e problemas enfrentados atualmente – os quais podem configurar sério risco de retrocesso (Vasconcelos, 2010).

Com base nesta avaliação, nos perguntamos como se deu a participação política dos usuários da rede substitutiva de saúde mental de Natal no processo da IV CNSM, de modo a refletir sobre os limites e possibilidades desta participação na construção da política pública e oferecer subsídios para o avanço do processo de reforma psiquiátrica numa realidade cujas dificuldades no campo técnico-assistencial e jurídico-político da saúde mental são inúmeras.

A cidade de Natal, capital do Rio Grande do Norte (Brasil), realizou sua primeira conferência municipal de saúde mental em 1992, ano crucial para a organização formal da assistência a saúde mental da cidade de acordo com as novas diretrizes assistenciais. No período de 1996 e 1997, foi consolidada no município a efetividade da política dos Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) e dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e evidenciouse, tanto em nível local quanto nacional, a importância de que esses serviços fossem parte de uma rede de assistência (Paiva & Yamamoto, 2007). Atualmente, o município – de aproximadamente 804.000 habitantes – conta com dois hospitais psiquiátricos privados e um público, cinco Centros de Atenção Psicossocial (dos quais, um é infantil, dois do tipo álcool e outras drogas, um do tipo III – recém-implantado – e outro tipo II), um ambulatório de saúde mental e dois Serviços Residenciais Terapêuticos. Vale ressaltar que o processo de implementação e ampliação da rede de serviços substitutivos ao manicômio aconteceu de forma desarticulada de outros setores da saúde e outros setores sociais. Essa falta de articulação entre os serviços produz uma saúde ineficiente no meio social, um cuidado que se restringe ao serviço substitutivo, único espaço e lugar de trocas sociais. Ademais, há uma carência de iniciativas sustentadas pela integração do usuário em seu contexto comunitário, bem como não são identificadas ações que incentivem e valorizem o cuidado mútuo entre os usuários, tampouco sua organização social e política (Figueiró & Dimenstein, 2010).

 

Método

A Análise Institucional fundamentou metodologicamente esta pesquisa. Um dos seus conceitos operacionais é o de intervenção, que consiste em analisar coletivamente uma ação (Lourau, 1993). Para que essa intervenção aconteça o pesquisador deve ser técnico e praticante, buscando analisar as contradições existentes na própria organização e estruturação das instituições analisadas, de modo a pensar os analisadores, ou seja, os acontecimentos que produzem uma análise dos instituídos. Com base nesta perspectiva metodológica, procuramos realizar a pesquisa tomando o processo de conferências de saúde mental em Natal (RN) como a instituição em questão. Participamos deste processo como pesquisadores procurando intervir nos processos instituídos que ali se apresentavam o que nos permitiu produzir os analisadores da participação dos usuários.

Quando desenvolvemos tais analisadores, pudemos problematizar situações e fatores que tornaram visíveis os jogos de força que se desenrolaram numa dimensão micropolítica das relações que se estabeleceram nesse contexto. Para tanto, a análise da implicação por parte de todos os atores envolvidos – sobretudo do pesquisador – foi fundamental para a compreensão de como se deram as relações cotidianas e qual o lugar de cada um nesses processos, evitando qualquer imposição de saber, método ou interesse (Baremblitt, 1992). As nossas principais ferramentas metodológicas foram observação participante e entrevistas. No momento em que participávamos das conferências tínhamos a oportunidade de conhecer e observar a participação dos usuários, bem como a organização da própria conferência e de que forma eram feitas as escolhas de lugar, de cronograma e uso do espaço, contribuindo ou não para a participação de todos e o modo como cada ator se posicionava. Também realizamos uma análise dos documentos utilizados e gerados pelas conferências.

 

Resultados e Discussão

A convocatória para a IV CNSM-I ocorreu tardiamente – solicitada em janeiro de 2010, para em março do mesmo ano serem feitas recomendações, pelo Conselho Nacional de Saúde, aos estados e municípios sobre a realização da IV CNSM-I. No decorrer de um mês deveria ser feita a organização das comissões e todo o processo local de conferência. Assim, o processo de construção da conferência teve de ser feito em curto espaço de tempo. No relatório da IV CNSM-I (Ministério da Saúde, 2011), pode ser encontrada uma diversidade de questões e circunstâncias que agregaram conflitos e tensionamentos na sua construção. Dentre estes, destacamos os que foram mais evidentes no nível local, como o contexto de terceirização e precarização do trabalho e suas novas características na saúde mental no SUS; as consequências da representação política dos médicos, especialmente os psiquiatras, com novas exigências corporativistas, destaque no modelo biomédico e forte campanha contra a reforma psiquiátrica. Dentre outros fatores, a complexidade política no campo da saúde mental reverberou nas dificuldades de organização dos eventos, repercutindo inclusive em obstáculos para a representação de usuários e familiares. Neste contexto, destacamos quatro analisadores da participação dos usuários no processo de conferência a partir dos quais apresentamos uma discussão acerca da temática.

 

Analisador 1 – O Formato da Conferência

Uma característica da estruturação da conferência que nos serve de primeiro analisador foi o formato congressual em que o evento foi organizado. A programação era composta por mesa solene de autoridades na cerimônia de abertura e na cerimônia de encerramento, assim como mesas redondas, palestras, grupos de trabalho e plenárias ao final de cada um dos dois dias programados, tanto na etapa municipal, como na etapa estadual. Tal configuração atende a toda uma série de critérios para uma organização formal da conferência. As atividades eram as previstas e recomendadas pelos documentos normativos da conferência nacional (Ministério da Saúde, 2010a, 2010b), os quais deixam a critério das comissões organizadoras locais a distribuição das atividades a serem realizadas. No entanto, percebemos um caráter expositivo na maioria das contribuições dos participantes nas diferentes etapas, em detrimento dos espaços coletivos de debates. Toda uma estruturação formal que valorizou mais a explanação de temas e experiências que a discussão de problemáticas e construção de propostas baseadas no princípio participativo da ocasião.

Tal estruturação formal produziu algumas consequências no que diz respeito a participação dos usuários e familiares. Uma vez estruturada de maneira fortemente acadêmica e expositiva, os espaços democráticos de construção coletiva (debates, assembleias, grupos de trabalho, etc.), primordiais à prática do controle social são restringidos (Wendhausen, 1999). Inicialmente porque o conhecimento acerca das normativas, bem como a desenvoltura em fazer apresentações estruturadas e solenes, constituinte de certo ritual institucional, é restrito a poucos – geralmente aqueles que ocupam cargos na gestão, profissionais de longa trajetória e professores universitários. Por não compartilhar destas normativas os demais participantes (usuários, familiares e alguns trabalhadores) ficam inibidos e com participação restrita aos espaços dos grupos de trabalho, quando se sentem empoderados no debate envolvendo temas do seu cotidiano.

Outro efeito manifesta-se na contradição observada entre esforço de controle do tempo das falas e dos ruídos (falas fora de hora, interferências, pequenas rupturas no decorrer da programação) e o descumprimento da programação para uma imprevista manifestação contra a exoneração da secretária municipal de saúde na ocasião. A burocratização do debate refletida na preocupação em seguir a pauta e as inscrições, por um lado, viabilizam a consecução do processo participativo e democrático de conferência e garantem o fluxo das discussões. Por outro lado, no entanto, tal preocupação termina por inibir a participação de alguns segmentos envolvidos, sobretudo dos usuários. Há que se considerar as singularidades em jogo e a importância de garantir momentos de expressão e participação dos usuários cuja própria condição social e de saúde coloca em questão a normalização do tempo, do espaço e da forma com que organizamos nossos espaços de convivência e sociabilidade.

Neste caso observado, a obsessão pelo controle do tempo de fala dos usuários em suas intervenções, depoimentos e contribuições, redundou no constrangimento da sua participação efetiva. É o duplo sentido do controle social, colocado por Wendhausen (1999): a legitimação da ordem existente, na qual o usuário é submetido a pautas que lhe são estranhas, ou a resistência a essa normalização, através da qual aquele poderia se tornar mais autônomo.

Outro ponto a ser destacado refere-se à dimensão da intersetorialidade nesta estrutura da conferência. Apesar do desafio de integrar políticas e programas de setores diferentes, bem como articular diferentes movimentos sociais ter sido considerado no destaque do elemento intersetorialidade que intitula a conferência, essa ampliação não foi bem aproveitada durante as etapas locais. Percebe-se que nessas ocasiões, a intersetorialidade reduziu-se à presença e representação de outros setores (tais como, educação, assistência social, cultura, etc.) nas falas expositivas. Com a estrutura mais acadêmica e expositiva, a conferência deu lugar à apresentação das diferentes políticas, mas não a efetivo diálogo entre elas e tampouco a construção de proposições integradas. Além disso, por ocasião dos grupos de trabalho, os conflitos e discussões que se fizeram revelaram a falta de articulação política capaz de gerar no nível local programa e projetos concebidos efetivamente na interface entre os setores, a partir das demandas e contribuições dos usuários e demais atores envolvidos.

 

Analisador 2 – Espaços de Debate: limites e potencialidades

Apesar da participação de usuários e familiares ser compreendida discursivamente como fundamento do processo, percebemos que esta foi, de modo geral, tímida durante as conferências em Natal. Geralmente, os espaços em que esses atores estavam mais presentes eram em apresentações culturais e venda de seus produtos artesanais, frutos das oficinas desenvolvidas nos serviços substitutivos. Salvo algumas exceções – aquelas em que os usuários já eram reconhecidos como participantes de eventos e fóruns locais – as mesasredondas eram em sua maior parte compostas por gestores, trabalhadores e acadêmicos.

De acordo com as entrevistas realizadas, a Conferência foi vivenciada por poucos usuários como um momento para ser escutado, onde seria possível expor reivindicações, experiências pessoais, críticas, denúncias e sugestões a respeito da saúde mental oferecida nos serviços públicos. Porém, observamos nas conferências locais, que a fala dos usuários mais inquietos irrompia como uma interferência, muitas vezes causadora de mal-estar na plateia. Isso era evidente quando um usuário interrompia determinada discussão para fazer alguma denúncia ou crítica, depoimento da sua realidade cotidiana. A percepção dos mesmos é que não tinham espaços de fala e, quando o tinham, este era restrito. Um exemplo dessa interferência deu-se quando, em um momento em que não havia a possibilidade de inscrição de falas para o plenário, um usuário denunciou ao público agressões sofridas no hospital psiquiátrico de referência do Estado e narrou como sua vida havia melhorado desde que passara a frequentar um CAPS. Nessa mesma ocasião, comparou os hospitais psiquiátricos às penitenciárias da cidade. A fala foi tomada como um depoimento de como o serviço pode propiciar qualidade de vida ao portador de transtorno mental e a denúncia explicitada de atentado contra os seus direitos humanos não constituiu elemento de um debate propositivo.

Todas as mesas-redondas e seminários eram ministrados por experts e profissionais, tendo limitado o espaço legítimo para fala do usuário que pode apresentar proposições para a política de saúde a partir de sua experiência cotidiana. Reconhece-se que essas vozes, de uma forma ou de outra, tiveram lugar. No entanto, observou-se uma distância entre o lugar de fala do usuário e a sua efetiva escuta e participação ativa na construção das proposições para a política. Esta distância diz respeito as relações de saber e poder em jogo, a semelhança do que observou Wendhausen (1999) acerca da participação em um conselho de saúde local:

as relações entre o saber e o poder na área da saúde dizem respeito à possibilidade concreta que as pessoas têm de participarem das decisões sobre sua saúde. Determinadas "verdades" que sustentam as práticas podem invalidar outras que não façam parte da mesma lógica. No caso da saúde é comum, por exemplo, invalidarmos práticas e falas que não sejam "científicas", como as que são trazidas por nossos usuários quando procuram ajuda profissional. Um dos efeitos disto é que nossos usuários ficam impossibilitados de participarem ativamente do enfrentamento de seus problemas. (Wendhausen, 1999, s/p.)

Isso significa que delegar o poder de fala a alguém está relacionado ao lugar que se ocupa em um campo de conflitos. É fato que a regulamentação de espaços que se pretendem democráticos para a formulação de políticas sociais não garante uma atuação efetiva e protagonista da população. Isto acontece, em virtude de uma série de problemas que vão desde a carência de informação e formação política desses atores até a sua cooptação por segmentos cujo poder de influência e decisão prevalece. Diante desses desafios colocados na participação popular em saúde, o campo da saúde mental enfrenta agravantes relacionados ao próprio modo de subjetivação e lugar social que o louco ocupa.

Segundo Foucault (1996), há uma série de procedimentos que cumprem a função de produção e seleção dos discursos que circulam nas relações sociais, dentre eles, mecanismos de exclusão ancorados na insígnia do que é verdadeiro ou falso caracterizando falas que não se ouvem. O exemplo dado pelo autor é justo a loucura contraposta à razão: o louco é aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros, então a palavra só passou a lhe ser dada simbolicamente. Este modo de subjetivação ainda permeia o campo da saúde mental e fica evidente na maneira como o usuário fala de si, refletida num discurso de incapacidade perante as decisões que lhe dizem respeito. Tal discurso aliado à experiência de adoecimento e a falta de acesso à educação formal, ao trabalho e a formação política redunda em uma postura passiva do usuário que acaba designando a outrem (geralmente ao trabalhador) a competência para decidir e lutar por seus direitos (Almeida, Dimenstein & Severo, 2010). Essa postura é reforçada por ações tutelares por parte dos próprios trabalhadores do campo, seja no cotidiano dos serviços, seja nos lugares de participação e mobilização política e social.

A participação e o exercício do controle social podem possibilitar o empoderamento dos usuários à medida que os mesmos reivindicam seus direitos se encontram em posição de enfrentamento das dificuldades colocadas pelo adoecimento, de elaboração de estratégias de autonomização e de tomada de decisão sobre suas vidas, como evidente na seguinte fala:

"Quando eu falo da associação pras pessoas, elas ficam surpresas e que às vezes elas são obrigadas a ir pra alcoólicos anônimos porque elas não sabem, como eu não sabia, que existe um espaço onde se discute problemas comuns. Eu era desinformada também e nesses dois meses de conferências eu tive uma melhora galopante. Essa ajuda que parece invisível. Talvez eles, a gente nem saiba que tem esse poder. Se é importante pra mim, deve ser importante pra muito mais gente, poderia ser pra quem não conhece a associação. Mas existem pessoas que não sabem nem o nome completo, que precisa andar com um papel com o seu endereço. Eu não me sinto melhor que elas, mas vejo que as minhas condições são boas." (A. L., usuária)

É possível afirmar também que a participação nesses espaços é potente e produz transformações tanto no processo de uma conferência quanto na vida desses atores. Nesse sentido, pudemos observar a mobilização de alguns usuários em fazer "campanha" para ser eleito delegado, a formação de frentes de apoio a outros delegados, a discussão de propostas e o enfrentamento das teses que iam contra os seus interesses, por exemplo. Além disso, o espaço de conferência constituiu-se como importante na mobilização política e formação de grupos de usuários no âmbito das associações envolvidas. As intervenções dos usuários colocam-se como fundamentais a partir da premissa de que "a construção coletiva do protagonismo requer a saída da condição de usuário-objeto e a criação de formas concretas que produzam um usuário-ator, sujeito político" (Torre & Amarante, 2001:84). Para tanto, percebemos que esta participação ganha maior legitimidade e força política quando se dá de forma organizada pela via de associações.

 

Analisador 3 – A atuação das associações

A presença das associações em saúde mental e demais organizações políticas nas etapas da conferência se deu por meio da composição da plenária e do corpo de delegados ou pela participação na composição de mesas-redondas e palestras por seus representantes.

Importante ressaltar a classificação de membros das associações participantes da Conferência. Conforme previsto em documento de auxílio para realização da IV Conferência (Ministério da Saúde, 2010b), a plenária poderia enquadrar-se em quatro categorias, a saber, usuários, profissionais de saúde, intersetorialidade, gestores e prestadores de serviço em saúde. Pelo fato de, majoritariamente, as associações em saúde mental locais serem compostas por usuários e profissionais de saúde, ambas as categorias assumiram a participação através desses cargos em específico e não enquanto membros da organização.

Estiveram presentes na conferência membros de duas organizações locais em saúde mental, aqui chamadas Associação A e Associação B. A primeira delas é predominantemente formada por técnicos e usuários em saúde mental e o posicionamento que assumem é favorável à Reforma Psiquiátrica. Seus participantes buscam discutir questões relacionadas à saúde mental que abarcam o cotidiano dos serviços e da vida dos usuários e familiares, havendo a intenção de pôr em prática os projetos idealizados. Entretanto, no período de ocorrência da IV Conferência, a Associação A tinha suas reuniões suspensas havia mais de um ano, indicando que não houve mobilização para a participação na conferência. A Associação B, por sua vez, caracteriza-se por seus membros serem, a maior parte, acadêmicos e/ou profissionais da rede pública de saúde e, em menor número, de usuários. Assim como a outra, com posicionamento político favorável a reforma psiquiátrica, opera a partir de discussões sobre questões relacionadas à realidade da saúde mental no estado e no município, as quais suscitam debates e propostas de ação que envolvem dispositivos diversos, como os serviços de saúde, os conselhos municipal e estadual de saúde, sindicatos, assembleias, associações, universidade e eventos sobre o campo.

No que se refere à participação destas associações, não podemos afirmar que houve diferenças quando da etapa estadual da conferência, em relação à municipal e às pré-distritais. Entretanto, há que se considerar que a presença de representantes das associações existentes contribuiu para conferir visibilidade e protagonismo conquistada por elas, sobretudo a associação B. E considerando o cunho intersetorial da conferência, houve a possibilidade de divulgação mais ampla acerca da existência dessas organizações, o que aproxima a possibilidade de contato e diálogo entre setores variados, além de estabelecer parcerias para desenvolvimento e execução de projetos. Tais ações parecem ter propiciado a desconstrução de certo ranço cético com relação às possibilidades de conquistas dessas associações.

Nas entrevistas realizadas com os usuários durante a conferência, notamos que aqueles participantes de alguma organização política demonstram uma maior autonomização diante do processo das conferências. Eles mostraram reconhecer a importância daquele espaço e de sua participação como ator de uma luta que lhe diz respeito diretamente, buscando representar os que compartilham dos mesmos interesses, como evidente na seguinte fala:

"A [associação B] é quem tá fazendo a diferença aqui na questão da luta antimanicomial, na defesa de propostas que vão contra a toda essa estrutura que maltrata e estigmatiza, esse preconceito. Isso contribui pra construção da cidadania, né? [...] No meu ponto de vista a [associação B] tem feito um trabalho além das minhas expectativas. Você lembra que C. [usuário] disse lá na pré conferência leste? -"aahh, a associação [referindo-se a associação B] não luta por a gente". Ele não se sentia parte! Depois que a gente conversou com ele, a partir desse dia ele passou a incorporar, houve uma mudança. Quer dizer, pra ele naquele momento de estado mórbido de loucura a associação [associação B] foi importante, depois que ele refletiu tá se manifestando mais e já fez até três músicas pra campanha da candidatura dele na conferência." (M. D., usuário vinculado às duas associações referidas)

O avanço da reforma psiquiátrica está organicamente ligado à participação ativa dos atores que a compõem (trabalhadores, usuários, familiares, artistas e quem mais se implicar com a temática) nas decisões concernentes à abertura, funcionamento e melhoria dos serviços, em iniciativas culturais que combatam o estigma atrelado à loucura, e, dentre outros dispositivos, nos fóruns de discussão e deliberação (Vasconcelos, 2003). Pudemos perceber ao longo da pesquisa que, a semelhança do que já observaram Figueiró & Dimenstein (2010), a grupalização desses sujeitos na forma das associações, por exemplo, opera como estratégia potente para essa mobilização, não só como dispositivo de luta por benefícios, mas sua capacidade de produzir empoderamento desses sujeitos, de modo que tenham maior apropriação na gestão de suas vidas.

 

Analisador 4 – A tutela aos usuários

Outro analisador importante produzido durante as etapas locais da conferência é a tutela relativa ao que entendemos como uma "sobreimplicação" por parte dos usuários e familiares. De acordo com Coimbra e Nascimento (2004), a sobreimplicação consiste numa dificuldade de análise da experiência institucional e que, mesmo quando realizada, pode considerar como referência apenas um único nível, um só objeto, impossibilitando que outras dimensões sejam pensadas. No contexto da conferência, esta sobreimplicação não diz respeito a uma não adesão ou falta de comprometimento político dos usuários, mas, pela dificuldade em pensar sobre aquele processo de modo amplo, considerando suas diferentes articulações institucionais (envolvendo família, trabalho, serviços, etc.). Esta sobreimplicação reflete-se também na dificuldade de analisar a relação usuário-trabalhador de CAPS e, consequentemente, de por em análise a evidente tutela dos usuários por parte dos trabalhadores. Tutela manifestada em três principais momentos: ao levarem os usuários dos respectivos serviços em que trabalham para a conferência, mesmo sem alguns deles saberem do que se tratava aquele evento; fala de algum usuário inquieto fora do espaço destinado a manifestação da plenária como concessão dos trabalhadores que os acompanhavam e no gerenciamento do grupo de delegados composto pelos usuários.

Merhy (2010) afirma que existem várias formas de tutela nos atos de cuidar em saúde e que são relevantes para pensarmos criticamente os próprios jogos de força que atravessam o campo da militância em saúde mental. A tutela castradora seria um mecanismo de infantilização do sujeito que o destitui de poder de decisão sobre sua própria vida. Já a tutela autonomizadora consiste em um movimento de produção de autonomia e possibilidades de vida. Um processo que agencia instrumentos que ampliam o grau de governabilidade do sujeito configura uma tutela autonomizadora outorgada. Já a tutela autonomizadora conquistada acontece quando eleva a disposição de o sujeito gerir suas decisões no coletivo.

Esses conceitos nos levam a um questionamento que nos acompanhou reiteradas vezes durante a trajetória de pesquisa: quando determinada relação implica em produção de diferença e autonomia para o outro? Percebemos que não há uma interação que se conforme por essência como produtora ou não de empoderamento. Concordamos com Merhy (1998), quando diz que as tutelas "são compreendidas a partir do fato de que se constituem como processos relacionais e de produção, e nunca como essências dadas dos seres. Portanto, são sempre possibilidades produtivas." (p. 3). Primeiramente, o fato de os profissionais "levarem" os usuários, em si, não seria um indicador de qual tutela caracterizaria a ação. A maioria dos usuários que identificamos, estavam naquele espaço por incentivo da equipe que deu informações sobre o evento, estimulando a ida. Não obstante, percebemos que os mesmos usuários compareciam à conferência apenas nos horários destinados a frequentar o serviço.

Não causa espanto que, pela condição de subjugada a que tradicionalmente é submetida, a pessoa portadora de transtorno mental não perceba a possibilidade de intervenção nas práticas de saúde como um direito. Pelo contrário, tendo a sociedade (e seu estigma) e o profissional (e sua ação tutelar) para responderem por ele, os direitos parecem não mais lhe caberem, sendo fruto de concessões. Como nos indicam Guizardi e Pinheiro (2006), relações desse tipo constituem uma característica da história política da sociedade brasileira. É fato que a existência de relações político-sociais marcadas pelo signo da submissão e do favor é ainda mais agravada na saúde mental pelo processo histórico de exclusão do louco das trocas sociais e das decisões políticas. Neste cenário, observamos a todo tempo a presença de práticas tutelares castradoras, mas também práticas tutelares com potencial autonomizador. Coloca-se como importante, portanto, reconhecer essas práticas e buscar colocá-las sempre em análise nos espaços de debate e no cotidiano.

 

Considerações Finais

A participação nas conferências aparece, portanto, como importante analisador das práticas de empoderamento dos usuários no campo da saúde mental, bem como a amplitude e conformação dos jogos de força existentes no cenário local, com práticas tutelares que muitas vezes obstaculizam a participação ampla e efetiva dos diversos atores. Observamos no desenrolar dessas conferências o conflito de interesses em torno da realização e das decisões que a ocasião envolvia. As lutas por espaços de poder foram observadas nas discussões, na elaboração das propostas e nas escolhas dos delegados em cada etapa e a fragilidade do controle social, por sua vez, revelava-se na concentração das decisões em determinados segmentos (gestores e trabalhadores) em detrimento da participação popular na figura dos usuários de serviços de saúde mental. Percebemos que, se por um lado, usuários e familiares não possuem o manejo institucional que lhes confeririam o poder de intervirem desde o nível de organização da conferência, de outro, os responsáveis por tocar as discussões não atentam para o incentivo da participação deles como fundamento da construção das políticas públicas. Da mesma forma, discursos e práticas de tutela dão indícios de que também no contexto dos serviços públicos de saúde, o empoderamento desses atores encontra limites.

Apontamos assim para a necessidade de formação política dos usuários, no sentido de disseminar e abrir canais de discussão no campo da saúde mental acerca de seus projetos e do enfrentamento dos desafios colocados. Não obstante, acreditamos que apenas a formação desses atores não garante sua mobilização, uma vez que envolve a dimensão da micropolítica dos afetos, em que a implicação com as lutas só será possível no momento em que façam sentido no cotidiano da vida dos usuários e seus familiares. Para isso é imprescindível que os espaços de participação e debate sejam ampliados na dimensão cotidiana, e não apenas por ocasião da realização das CNSM. A criação de fóruns periódicos, a gestão participativa nos serviços substitutivos, a participação de usuários nos conselhos, a atuação de associações e grupos de suporte e ajuda mútuas são algumas formas potentes de empoderamento e consequente desconstrução da cultura manicomial.

 

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Endereço para correspondência
Ana Karenina de Melo Arraes
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Allana Araújo
E-mail: allanaraujo_@hotmail.com

Recebido em: 05/09/2011
Revisado em: 28/10/2011
Aceito em: 11/03/2012

 

 

* Doutora em Psicologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil, e Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil.
** Doutora em Saúde Mental pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, e Professora Titular e docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil.
*** Psicóloga pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil.
**** Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil.
***** Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil.