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Revista Psicologia Política

On-line version ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.12 no.23 São Paulo Jan. 2012

 

ARTIGOS

 

Anotações iniciais sobre a psiquiatria do desenvolvimento: "é de pequeno que se torce o pepino"

 

Initial commentary on psychiatry of development: in the childhood future deviation is corrected

 

Primeras anotaciones sobre la psiquiatría del desarrollo: es en la niñez que se corrigen las desviaciones futuras

 

 

Maria Livia do Nascimento*; Cecília Maria Bouças Coimbra** ; Lilia Ferreira Lobo***

Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo visa discutir alguns dos 16 projetos que fazem parte do Instituto Nacional de Psiquiatria do Desenvolvimento (INPD). Tomando como analisador as tecnologias de prevenção, buscamos colocar em análise determinadas práticas da psiquiatria no contemporâneo. Para tanto, tomamos as considerações de Foucault sobre biopoder, a partir de sua vertente medicalizante, que naturaliza as noções de vulnerabilidade e de risco, frequentes nas políticas ditas de assistência. A utilização da noção de prevenção como uma ferramenta possibilita trazer um debate éticopolítico das propostas do INPD, apontando-as como práticas de governo da vida, que se apresentam como eficientes e verdadeiras por serem científicas.

Palavras-chave: Infância, Prevenção, Psiquiatria do desenvolvimento, Governamentalidade, Biopoder.


ABSTRACT

This paper discusses some of the 16 projects implemented by the National Institute of Developmental Psychiatry (INPD) strategies. In order to analyse some contemporary psychiatry practices we take in consideration the prevention technologies. These analyses are supported by Foucault's concept of bio power. Some of these practices tend to naturalize the notions of vulnerability and risk, especially those that have been called assistance policies. Therefore, using the concept of prevention as a tool enables us to raise an ethical and political debate of the INPD propositions, pointing them as governance practices of life that present themselves as true because they are efficient and scientific.

Keywords: Infancy, Prevention, Psychiatry of development, Governmental policies, Bio-power.


RESUMEN

El artículo plantea algunas cuestiones sobre algunos temas del conjunto de proyectos presentados por el Instituto Nacional de Psiquiatría del Desarrollo (INPD), financiado por el Consejo Nacional de Desarrollo Científico y Tecnológico. (CNPq). Tomando como analizador las tecnologías de prevención, buscamos analizar ciertas prácticas de la psiquiatría contemporánea. Para hacerlo son consideradas las proposiciones de Foucault sobre biopoder, sobre todo en lo referente a la medicalización, práctica que naturaliza los conceptos de vulnerabilidad y riesgo, muy frecuentes en dichas políticas de asistencia. El uso del concepto de prevención como una herramienta analizadora permite llevar el debate ético-político sobre las propuestas de INPD, señalándolas como prácticas de gobierno de la vida que, en nombre de las llamadas verdades científicas, patologiza a la infancia y produce la estigmatización temprana.

Palabras clave: Infancia, Prevención, Psiquiatría, Gobernabilidad, Biopoder.


 

 

Introdução

O Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Psiquiatria do Desenvolvimento para a Infância e Adolescência (INPD) realizou nos dias 19 e 20 de março [de 2009] o seu evento inaugural. Na oportunidade, o anfiteatro principal do Instituto de Psiquiatria da USP foi palco de apresentações e debates sobre os projetos que serão realizados pelo instituto [...]. O INPD integra um projeto do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) que disponibilizou o maior aporte de recursos já destinados para a área de pesquisa no Brasil (R$ 520 milhões). As verbas foram divididas entre os 101 Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCT) aprovados para participar do programa (INPD, 2009). O INPD propõe um conjunto coeso e sólido de iniciativas e projetos de pesquisa [...] que, integrados, almejam dois grandes objetivos para a área de saúde mental no Brasil: 1) testar ferramentas e métodos para promover o desenvolvimento saudável da criança e do adolescente, preparando-os para a vida adulta; 2) introduzir um novo paradigma para a psiquiatria brasileira – o da Psiquiatria do Desenvolvimento (Miguel, Mercadante, Grisi e Rohde, 2009)

A intenção deste artigo é fazer apenas algumas anotações sobre o conjunto de projetos acima citado, que visam dar partida a questionamentos que esperamos se desdobrem em outros trabalhos. Portanto, não analisaremos os 16 projetos que fazem parte do Instituto Nacional de Psiquiatria do Desenvolvimento – INPD1 em seu inteiro teor. O que nos interessa é fazer uma análise das forças políticas que atravessam e constituem tais pesquisas, cujo objetivo maior são as tecnologias de prevenção, tomadas aqui como um analisador2 das práticas da psiquiatria do desenvolvimento no contemporâneo. Assim, tomaremos apenas alguns desses projetos, levantando algumas questões iniciais naquilo que instrumentam essas tecnologias.

Os projetos do INPD são dirigidos a uma ampla parcela da população infanto-juvenil, cerca de cinco milhões de crianças e adolescentes, da gestação até os 18 anos, e abarcam aproximadamente 1000 municípios brasileiros3. Com estes projetos o INPD afirma sua finalidade de desenvolver uma "nova metodologia" para identificar "indivíduos de risco" e testar intervenções antes da manifestação de determinadas doenças visando prevenir/impedir que se desenvolvam. Os proponentes informam tratar-se de "um novo paradigma para a psiquiatria, pois se elege como alvo de intervenção a trajetória do desenvolvimento da doença e não apenas a busca de alívio dos sintomas já instalados". (Miguel, Mercadante, Grisi e Rohde, 2009).

Como anteriormente assinalado, o interesse principal aqui não é discutir esses projetos do ponto de vista de sua cientificidade, embora alguma referência a esse respeito, por vezes, se torne necessária. Interessa-nos, como já afirmado, pensá-los como um analisador do atual contexto político de controle globalizado que, em nome de uma governamentalidade, comanda a vida, impondo corretivos desde a mais tenra idade. O objetivo do presente trabalho, portanto, num diálogo com Michel Foucault, é pensar como, no contemporâneo, esses projetos se fortalecem e se expandem.

Trata-se, pois, de propostas de uma medicina social que emergem no século XVIII na Europa, e se desenvolvem no século XIX no Brasil, e que assumem claramente o caráter preventivo de administração de hábitos morais considerados salutares para a população, passando por uma reordenação sanitária dos espaços da cidade4. Fica evidente, como afirma Lancetti (1989), que a medicina científica já nasce social "e muitas das noções [...] passam para nosso campo5, como por exemplo, a noção de salubridade determinante da psicohigiene" (Lancetti, 1989:79). No campo atual da psiquiatria isto fica ainda mais evidente: uma psico-higiene que o "carnaval do tempo" (Foucault, 2000:33) mascara com novas e sutis linguagens científicas, repetindo-a sem cessar.

O que tem possibilitado atualmente a recorrência de tais práticas preventivas?

Não se tem a pretensão de responder a questão, apenas puxar algumas linhas e traçar pistas para levantar alguns problemas sobre o que hoje nos acontece e que não se circunscreve apenas ao Brasil6. Trata-se de um diálogo com Foucault, cuja obra oferece ferramentas que permitem romper as repetições do presente. A esse respeito, Ewald assinala: "Se existe uma linha ética em Foucault, e ele a tem, ela está fundamentalmente ligada à ideia de que é preciso combater o perigo da repetição [...]. O presente é aquilo que deve ser interrompido" (Ewald, 1997:205). Repetições que vem, nesses mais de vinte e cinco anos após a morte do filósofo, tornando-se cada vez mais insidiosas e com discursos cada vez mais poderosos, respaldados no chamado paradigma científico. Bem a propósito, um conjunto de quatro projetos do INPD incluídos em um grupo maior, intitulado "genes x ambiente endofenótipo7" visa "intervenções precoces" nos diagnósticos de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), transtornos de conduta, transtornos de ansiedade, transtorno obsessivo compulsivo (TOC), esquizofrenia, transtorno do humor bipolar (THB), transtornos globais do desenvolvimento (TGD) e transtornos de aprendizagem. Essas pesquisas buscam investigar "o papel da interação entre variáveis ambientais e marcadores genéticos específicos na expressão endofenotípica, a partir de avaliações neuropsicológicas e de neuroimagem" (Miguel, Mercadante, Grisi e Rohde, 2009).

A esse respeito, Moysés e Collares (2010) indagam sobre a necessidade de transformar em doença as peculiaridades da infância. Dizem as autoras: "Não se deve esquecer que a medicina constitui seu estatuto de ciência moderna atribuindo-se a competência para legislar e normatizar o que seja saúde ou doença e, honrando suas raízes positivistas, biologiza a vida" (p. 72). Citando Ivan Illich (1982) afirmam que o sistema médico "[...] pretende ter autoridade sobre as pessoas que ainda não estão doentes, sobre pessoas de quem não se pode racionalmente esperar a cura" (p. 72).

Cabe lembrar a análise proposta por Foucault, que nos alerta sobre a necessidade de se "interrogar sobre a ambição de poder que a pretensão de ser uma ciência traz consigo". A esse respeito ele indaga:

Que tipo de saber vocês querem desqualificar no momento em que vocês dizem 'é uma ciência'? Que sujeito falante, que sujeito de experiência ou de saber vocês querem 'menorizar' quando dizem: 'eu que formulo este discurso, enuncio um discurso científico e sou um cientista'? Qual vanguarda teórico-política vocês querem entronizar para separála de todas as numerosas, circulantes e descontínuas formas de saber? (Foucault, 1979:172)

Busquemos outro ponto da proposta do INPD, anunciado em um de seus projetos. Dizem os autores: "Faremos o primeiro estudo de coorte8 com medidas de desfecho coletadas desde o período gestacional. Investigaremos a interação gene-ambiente e a conectividade neuronal na gênese das alterações do desenvolvimento e de fenótipos intermediários, em crianças de 0 a 3 anos de idade" (Miguel, Mercadante, Grisi e Rohde, 2009).

Em especial quando a clientela a ser atingida é composta não somente por crianças e adolescentes considerados em situação de risco e, portanto vulneráveis – como afirmam os projetos de assistência e proteção à criança – esta proposta vai muito mais além, estendendose como um dispositivo de prevenção e controle, que chega até mesmo às crianças em gestação. Quais os efeitos desse poder preditivo que, através de "avaliações sucessivas", pretende selar o destino e emparedar o futuro?

Frente a tais questões, e sempre trazendo o pensamento de Foucault, algumas problematizações iniciais são aqui propostas.

Em primeiro lugar será necessário levantar alguns debates referentes à chamada psiquiatria do desenvolvimento e à generalização do poder psiquiátrico. Como, em linhas gerais, a psiquiatria vem patologizando o desenvolvimento da criança? Como se dá o processo de construção histórica do chamado transtorno mental a partir da infância? A psiquiatria no território da infância é apontada por Foucault como terreno fértil para que o poder psiquiátrico se expanda por todos os campos sociais. Tal tema teve sua emergência, no século XIX na Europa, chegando rapidamente ao Brasil no início do século XX, na figura das "anormalidades infantis" (Lobo, 2008).

Pari passu e adubando a emergência do saber psiquiátrico, surgem as noções de risco, prevenção e, mais tarde, a de vulnerabilidade. Que relações de força estão presentes quando se trata da saúde mental e dos comportamentos? Como vem se aperfeiçoando dispositivos psi que, ao enfatizar a proteção e a assistência, afirmam o controle e a tutela sob a justificativa de prevenção ao risco?

Afina-se cada vez mais o olhar observador e investigativo que perscruta, nas minúcias do comportamento, os indícios de primeiros sinais de anormalidade, transtorno e doença, cujos critérios diagnósticos são vagos e imprecisos, como demonstra o importante trabalho de Moysés e Collares (2010). Como investigar causas de uma suposta doença a partir de um a priori? Basta examinar o critério A (Snap IV)9 para confirmar as críticas que as autoras apresentam: "Em síntese, podemos afirmar que, sob o cientificista algoritmo de criança que não aprende e/ou com problema de comportamento + exame físico normal + exames laboratoriais normais esconde-se, de fato, a criança que incomoda" (p.80). Isto significa que qualquer desvio do que historicamente constituiu-se como normal será considerado doença. Mais do que um posicionamento ético-humanista, a questão é eminentemente ético-política. Além da crítica ao mau uso dos instrumentos e paradigmas científicos, nossa preocupação principal é apontar as estratégias políticas de produção de verdades e subjetividades que se reconhecem nos sintomas apontados pelo diagnóstico.

É conveniente acompanhar uma das vertentes do INPD que diz: "Nosso Instituto será um exemplo de interação. Acho que será fundamental não só para as questões farmacológicas, como também para as intervenções sociais" (Revista Debate: Psiquiatria hoje, 2009).

Frente a tais considerações, o biopoder (Foucault 2000) em sua vertente medicalizante que naturaliza as noções de vulnerabilidade e de risco frequentes nas políticas ditas de assistência à infância e juventude, é importante referir outro projeto do INPD. Nomeado como "abordagens não invasivas", pretende verificar o "impacto da kundaline yoga no tratamento dos transtornos mentais" (Miguel, Mercadante, Grisi e Rohde, 2009). Psiquiatriza-se a yoga, pois por onde essas propostas passam produzem dispositivos que funcionam como rolos compressores, laminando e reduzindo tudo a entidades nosológicas e respectivos tratamentos.

Ao se propor ultrapassar a prática orgânico-medicamentosa utilizando procedimentos como a yoga e a terapia cognitivo comportamental, afirmando assim uma "ação multidisciplinar", o INPD defende intervenções psicossociais, com o apoio dessas técnicas "não invasivas". A chamada interação psicossocial, no entanto, continua enfatizando o viés organicista e, mesmo quando faz menção à interação organismo/ambiente através da ação de equipes multidisciplinares, a ação psicossocial dos profissionais limita-se a prevenir/corrigir falhas presentes no comportamento do indivíduo que teriam supostas causas biológicas, sejam diferenças anatômicas do cérebro, sejam alterações de ordem genética. Por isso mesmo, ao lado das intervenções psicossociais, reafirma a importância do uso de fármacos. Não por acaso vários laboratórios são também financiadores dos projetos do INPD10. De acordo com Moysés e Collares (2010:94), por trás das equipes multidisciplinares há uma estrutura "menos visível, que mantém a teia: a indústria farmacêutica, interessada em ampliar o número de pessoas aprisionadas e apropriadas". As autoras, com base em uma série de reportagens realizada pela Rede de TV Bandeirantes, intitulada Receita Marcada, em 02.07.2008, afirmam (p. 95): "O faturamento anual da indústria farmacêutica no Brasil chegou a R$ 28 bilhões, 30% dos quais são destinados ao 'marketing', que inclui, brindes, jantares, passagens para congressos, sempre gratuitos, para médicos selecionados. Como é feita a seleção? Aqueles que mais prescrevem os medicamentos da indústria em questão. E como a indústria sabe? Simples: 'negocia cópias das receitas médicas com as farmácias."11.

Seguindo o processo capilar de expansão, os projetos do INPD vão além das "abordagens não invasivas" ao buscar uma interação com as pessoas presentes no cotidiano da criança, professores, familiares, médicos pediatras, técnicos do PSF12. Para tanto, recorrem a amplo conjunto de propostas de formação, que visa o treinamento de professores do ensino fundamental, e de profissionais do PSF e pediatras. Nesse contexto, alerta aos diferentes profissionais para que estejam atentos a quaisquer sinais do que denominam sintomas sugestivos de transtornos.

Não temos o propósito de discutir as técnicas e metodologias utilizadas por essas "intervenções psicossociais" e farmacológicas, mas interrogá-las enquanto estratégias políticas de normalização no contexto dos projetos da chamada psiquiatria do desenvolvimento. Para tanto, centraremos a análise inicial na proposta de prevenção que atravessa a lógica dos projetos do INPD, em especial aquele que vem sendo aplicado no acompanhamento de "crianças escolares de 6 a 12 anos de escolas estaduais de Porto Alegre e São Paulo no intuito de entender o desenvolvimento normal e anormal de crianças com alto e baixo risco para problemas de saúde mental" (INPD, Projeto Prevenção).

 

A Generalização do Poder Psiquiátrico: um novo paradigma?

A psiquiatria do desenvolvimento é uma sofisticação ainda maior que a psiquiatria infantil, sendo um reforço poderoso na generalização das chamadas patologias da criança. Ou seja, tem a pretensão de afirmar a verdade sobre a doença, buscando também sinais que poderão possivelmente anunciá-la. Trata-se, portanto, de outro dispositivo de periculosidade, através do controle das virtualidades. Foucault (1987) já afirmava que as ações que poderão ser realizadas pelos sujeitos são tão ou mais importantes que aquelas já por eles efetuadas. Produzem-se, com isso, futuros sujeitos perigosos, pois doentes em potencial. Daí a marca da prevenção que instala a priori o estigma da doença.

A psiquiatria do desenvolvimento, como uma competente "repetição do presente", não cria um novo paradigma científico, apenas reforça antigos preceitos. Embora pretenda ultrapassar a chamada psiquiatria biológica, tem seu solo fundado numa medicina mental, que descreve e fundamenta os fenômenos mentais através de conceitos fisicalistas e biológicos, colocando o cérebro como o "órgão da mente". Isto permitiu a abrangência de sua força enquanto um discurso-ação "atuante nos modos de regulação da vida e controle das virtualidades, e em seu papel bem sucedido de catalogar desvios e condutas patológicas: é o biopoder em sua vertente medicalizante" (Yamada, 2009:48).

Mesmo quando a psiquiatria do desenvolvimento afirma a interação do organismo com o meio está simplesmente se referindo a um organismo reativo jogado em um mundo ao qual ele deve se submeter. "Definir a normalidade a partir da inadaptação social é aceitar mais ou menos a ideia de que o indivíduo deve aderir à maneira de ser de uma determinada sociedade e, portanto, adaptar-se a ela como uma realidade que seria ao mesmo tempo um bem" (Canguilhem, 1972:257). A transposição do fenômeno de adaptação biológica para a vida social ao naturalizar a moral e, ao mesmo tempo, moralizar a natureza faz emergir as profundidades do corpo para as superfícies do comportamento, passa também a oferecer saídas sedutoras porque "naturais" para as classificações em que se baseiam a maioria dos diagnósticos, dos programas preventivos e educativos de normalização (Lobo, 1992:116).

Esse controle sobre a vida tem como alvo o melhor governo sobre a população, essa figura complexa objetivada pelos cálculos do poder, pelas práticas e saberes como os da economia política, da estatística e das táticas de prevenção.

A essas novas técnicas de governo Foucault chama de governamentalização, táticas que "definem o que deve ou não competir ao Estado" (Foucault, 1979:292). Trata-se de um poder que tomou a vida humana enquanto espécie e que "conduz ao que se poderia chamar de estatização do biológico" (Foucault, 2000:286). Então, novas fisionomias se fazem presentes modificando os dispositivos da disciplina, já agora suavizados. Entre o "fazer viver" do biopoder e "fazer morrer" da soberania, não houve substituição do segundo pelo primeiro, e sim superposição. É que essa governamentalização da vida anuncia um novo racismo na escolha de quem precisa morrer para que outros possam viver. Os genocídios do século XX, o nazismo, o estalinismo e a eugenia são alguns exemplos. Nova engrenagem, muitas vezes sutil desse jogo "fazer viver e deixar morrer" que, quando não leva à morte, produz mortificações pelas reclusões, pelo estigma dos laudos, de certos diagnósticos, e/ou pelo abandono do "deixar morrer". Razão de Estado que deixa de ser "uma arte de governar", para tornar-se "uma ciência de governo", cujo objeto principal é a população e o instrumento desse saber é a estatística. Não se trata mais da manutenção de um povo num território que ele ocupa, mas de conhecer seus movimentos, suas densidades, suas diferenças. "Não mais segurança do príncipe e do seu território, mas segurança da população e, por conseguinte, dos que a governam" (Foucault, 2008:85).

A partir de então, o grande problema de governo que emerge para esta nova figura, a população, será garantir a segurança não mais apenas pela intervenção quando o mal já estiver instalado e impedir a sua disseminação (excluir o leproso, esquadrinhar o pestilento, internar os indesejáveis, castigar o criminoso), mas intervir antes que o mal apareça. É com os acontecimentos das doenças que derivam as tecnologias de controle. Temos como exemplo a epidemia da varíola que, a partir do século XVIII e principalmente no século XIX, dará origem à vacina e sua extensão aos atuais mecanismos de prevenção. Controle dos corpos que biologizará os organismos e os comportamentos. Virtualidades de futuros males que precisarão, de agora em diante, ser identificados quanto ao grau possível de periculosidade, normalizados antes que apareçam.

Como, então, funciona a previsão de um determinado destino? Isto só é possível no momento em que a população é enquadrada por um aparato regulamentar, que define quais são as produções úteis, os objetos a serem produzidos e os meios para produzi-los. "Em suma, todo um aparato que vai fazer dessa população, considerada, portanto princípio, raiz, de certo modo, do poder e da riqueza do Estado, que vai garantir que essa população trabalhará como convier, onde conviver e em que convier." (Foucault, 2008:90).

Aqui lembramos outro ponto da proposta do INPD, assim expressa na fala de um de seus coordenadores: "Acreditamos que esse estudo poderá identificar fatores genéticos e ambientais que conferem riscos para o desenvolvimento desses transtornos [psiquiátricos]. De posse [...] das informações genéticas será possível desenvolver intervenções ambientais específicas para aquelas pessoas que possuem um risco aumentado, de modo a reduzir as chances de expressão da doença." (Entrevista dada a Valéria Dias /Agência USP).

O levantamento de fatores genéticos e ambientais e o acompanhamento à gestante, sob o pretexto da saúde mental quanto à prevenção de riscos, vêm aperfeiçoando mecanismos eugênicos de controle da vida, que recaem, sobretudo, nos filhos da pobreza.

Historicamente, a prática da eugenia apresentava dois aspectos. A eugenia negativa que se constituía na eliminação de traços biológicos e comportamentais indesejáveis, pela esterilização, como aconteceu em vários países no início do século XX, culminando com o extermínio nazista. A eugenia positiva tratava da reprodução seletiva, pela exigência de certificados médicos obrigatórios para os casamentos e os cruzamentos de espécimes puros da raça com a finalidade de "aprimorar" a espécie.

Atualmente, a partir do mapeamento do genoma humano, amplia-se o campo das propostas eugênicas. Se a eugenia desde sua emergência foi uma técnica de prevenção, hoje adquiriu instrumentos científicos antes inexistentes. A esse respeito Rifkin (1999) menciona o nascimento de uma nova eugenia: novos homens e mulheres eugênicos, uma raça de humanos superiores. Não mais um ideal fundado por Francis Galton13, no século XIX, e que teve aplicação em várias partes do mundo durante o século XX, principalmente nos Estados Unidos14, cujas técnicas foram exportadas para a Alemanha nazista. Teve grande repercussão no Brasil15, de forma a constituir o que Foucault (2000) chama de "racismo de Estado". Hoje, já não é mais "um sonho de demagogos desvairados, mas uma opção de consumo, em breve disponível, e um mercado comercial potencialmente lucrativo" (Rifkin, 1999:122). Essa nova eugenia não pode ser necessariamente comparada ao holocausto, nem às experimentações nazistas, primeiro porque dispõe de ferramentas que produzem verdades poderosas para manipular as instruções genéticas nas terapias somáticas16 antes inexistentes, e segundo porque vem mascarada por uma biopolítica de beneficio social.

Parece, entretanto, que a proposta eugênica do INPD não chega a tal sofisticação. Até o momento pelo menos, a vontade expressa no texto de "identificar fatores genéticos" deve funcionar como justificativa para o controle do "ambiente" das pessoas em "risco aumentado de modo a reduzir as chances de expressão da doença". Isto significa produzir um diagnóstico precoce e formas de controle de algo que ainda não existe, para as inadaptações futuras em nome de um cuidado da saúde do indivíduo e da sociedade. Contudo, isto não quer dizer que estamos próximos da universalização do bem estar social. Ao contrário, estamos no limiar de novas formas de exclusão pela via do desenvolvimento dessa nova eugenia. O que se confirma no trecho do Projeto Prevenção – previsto para as cidades de São Paulo e Porto Alegre – que propõe em sua segunda fase a coleta de saliva dos familiares biológicos das 2500 crianças que estariam sendo acompanhadas em cada uma das escolas públicas dessas cidades. Ou seja, o INPD, ao afirmar que o conhecimento das informações genéticas tornará "possível desenvolver intervenções ambientais específicas para aquelas pessoas que possuem um risco aumentado", está patologizando as diferenças, tentando uniformizar modos de existência aceitáveis, multiplicando separações e práticas divisoras cujo efeito é mais exclusão, ou melhor, exclusão perpetrada pela inclusão no estigma de um diagnóstico.

A partir de 1970 a psiquiatria biológica ganhou força como resposta ao movimento de desmedicalização – denominado antipsiquiatria – firmando-se como paradigma científico para os chamados transtornos mentais. Alguns princípios da psiquiatria biológica que, a partir de 1980, passam a dominar hegemonicamente a área da medicina mental mostram que a psiquiatria do desenvolvimento, como aparece nos projetos do INPD, não introduz um novo paradigma, como afirma em seus documentos. Monteiro (2006), baseando-se em Aguiar (2002) aponta uma série de princípios desta psiquiatria biológica que podemos encontrar nos projetos do INPD como, por exemplo, a ideia de que a pesquisa e o ensino da psiquiatria devem enfatizar, "de maneira explícita", o diagnóstico e a classificação ou que a pesquisa em psiquiatria deve utilizar métodos científicos modernos, preferencialmente advindos da biologia, ou ainda que o limite entre o normal e o patológico deve ser traçado de modo pertinente. Neste caso, quem e o que define o que é pertinente?

A psiquiatria, desde seu nascimento, a partir da transformação da loucura em doença mental, travou o que Birman (1978:41) apresenta como "a grande discórdia entre o físico e o moral". Para consolidar a pretensão de compor o campo da ciência médica, a medicina mental teria que cumprir a exigência de produzir fundamentos coerentes, não apenas com os fundamentos de uma fisiologia moderna, mas principalmente que estes estivessem articulados a uma prática clinica de caráter curativo. Surgindo como medicina mental, tentou equiparar-se à medicina biológica. Contudo, Machado, Loureiro, Luz e Muricy (1978:385) nos alertam para o fato de que:

Desde o início, a psiquiatria apresenta uma tensão entre a exigência de integrar a loucura ao mesmo esquema de racionalidade do pensamento médico e a necessidade de reconhecer sua originalidade com relação às outras doenças, na medida em que suas características não se prestam facilmente a esta assimilação ao mundo patológico. E essa dificuldade aparece não só na relação entre as abordagens de diversos autores, mas penetra inclusive as formulações individuais, onde aparece sob a forma de tensão entre o orgânico e o psíquico, entre o físico e o moral.

Assim, equacionar mente e cérebro foi, e tem sido, a grande questão da psiquiatria. Daí a ambiguidade entre o substrato orgânico da doença mental e as causas morais e sociais. Nossos primeiros alienistas do século XIX viram-se frente a esta questão: oscilavam entre a fragilidade dos pressupostos organicistas e a "filosofia" das doutrinas psicológicas. Embora apontando, ora um ora outro, a insuficiência de tais argumentos, nossos médicos, em sua maioria, reafirmavam em suas teses a importância das causas orgânicas cerebrais para a doença mental. Apesar de sustentarem o emprego de substâncias farmacológicas da época, tratamentos como sanguessugas e ventosas, a prática dos asilos era eminentemente moral: a disciplina como um ritual diário, o exercício do corpo e o trabalho nas oficinas, conjugavam a pedagogia dos asilos.

 

Prevenção, Risco e Vulnerabilidade

O Instituto Nacional de Psiquiatria do Desenvolvimento inova ao enfatizar a promoção da saúde mental ao invés do clássico foco na pessoa doente. A partir de um conjunto coeso e sólido de iniciativas e projetos de pesquisa, procura atingir dois grandes objetivos jamais alcançados na área de saúde mental no Brasil: introduzir ferramentas e métodos para promover o desenvolvimento saudável da criança e do adolescente, além de colocar a Psiquiatria Brasileira em concordância com o mais moderno referencial de trabalho dos mais avançados centros internacionais de saúde mental. Todas estas ações deverão diminuir o estigma associado à doença psiquiátrica. (Entrevista dada a Valéria Dias /Agência USP)

Interessa-nos neste item, dentro do conjunto de projetos do INPD, abordar o projeto PREVENÇÃO que, como já visto, tem o objetivo de acompanhar crianças de 06 a 12 anos de idade, matriculadas em escolas estaduais de Porto Alegre e São Paulo, com o intuito de entender "o desenvolvimento normal e anormal" dessas crianças consideradas em "risco para problemas de saúde mental". Diz o texto do projeto: "Além dos objetivos de pesquisa, é intenção do INPD fornecer assistência às escolas participantes, com palestras acerca de temas de saúde mental e instrução de professores do ciclo básico" (INPD Projeto Prevenção)

O projeto PREVENÇÃO17 foi proposto para ter início no final de 2009 com a triagem dos estabelecimentos e alunos participantes. Previa a seleção de 22 escolas em Porto Alegre e 40 em São Paulo, perfazendo um total de 15.000 alunos. Seriam desenvolvidas cinco fases específicas. A primeira, diz respeito a visitas de pessoas treinadas pelo INPD às 62 escolas selecionadas, para obter informações através de "questionários breves sobre comportamentos e emoções durante os períodos de matrícula e rematrícula da rede estadual" (INPD Projeto Prevenção). As fases seguintes podem ser descritas a partir do próprio projeto:

[...] as famílias participantes receberão a visita de pessoal treinado pelo INPD em suas casas para detalhar um pouco mais aspectos de saúde mental das crianças e de seus pais. Está prevista também coleta de saliva dos familiares biológicos (fase 2). Além disso, as crianças serão avaliadas em cada uma das escolas por psicólogos e fonoaudiólogos (fase 3) e algumas delas serão convidadas para realização de exames de Ressonância Magnética (fase 4), um exame sem radiação e sem riscos para as crianças. Após um ano da avaliação domiciliar as crianças serão novamente convidadas para repetir todo o protocolo de avaliação (fase 5). (INPD Projeto Prevenção)

Nessas etapas do projeto PREVENÇÃO, em nenhum momento são levados em consideração os contextos escolar, social e histórico nos quais estão inseridas essas crianças: suas experiências, seus modos de vida e equipamentos culturais, o funcionamento da escola, as relações de poder presentes no cotidiano desse estabelecimento entre pais, professores, funcionários, gestores e a própria criança. Mais uma vez são atribuídos ao indivíduo e, no máximo, à família os perigos sociais. Poderosos processos capitalísticos de laminação de subjetividades submissas: sob a justificativa bem intencionada da prevenção, individualizamse os desvios da norma, cujos efeitos de culpabilização, vitimização e criminalização compõem as pequenas e grandes mortificações do deixar morrer.

Aliada à lógica do poder médico encontra-se a judicialização, cujo funcionamento se caracteriza pela produção massiva de discursos e práticas punitivas/criminalizantes que, ao espraiar-se rizomaticamente no contemporâneo engendram, como já apontado por Foucault (2000), os racismos de Estado.

Dessa maneira, controle e tutela estão sempre presentes, mais ou menos explícitos nas chamadas políticas públicas de assistência e proteção à infância e ao adolescente, como se pode observar nos projetos do INPD. Uma proteção que, ao invés de positivar cada momento da vida, fragiliza a infância e a família pelo medo de um futuro incerto e perigoso que precisa de especialistas para evitá-lo. Assim, famílias assustadas abrem mão de sua autonomia e, quanto mais estiverem distantes do mercado e do consumo, tanto mais carentes e faltosas, ao mesmo tempo, perigosas e vulneráveis. Um mal cujos riscos urgem intervenções preventivas.

Não por acaso, os estudos sobre risco emergem com força a partir das últimas décadas do século XX. O acontecimento risco ganha espaço e vai sendo tecido no interior das práticas sociais como preocupação de governo dos corpos, particularmente de crianças e jovens. "Reencontra-se na segurança o mesmo apetite insaciável de saber: a partir do momento em que é submetida a um risco, uma população será incessantemente vigiada, controlada, observada, decomposta, recomposta." (Ewald, 1993:111). A análise minuciosa dos riscos tem operado e estado presente tanto nos espaços/territórios ocupados por esses segmentos empobrecidos, quanto na abordagem que os constrange pela virtualidade e os identifica ao crime.

Para Foucault (2006), a psiquiatrização da criança produziu a afirmativa de que desvios em um desenvolvimento dito normal, quando não regulados por especialistas e escapam da intervenção do Estado, se tornarão germes de crimes e de loucura futura. Para o autor, como já apontado, a psiquiatria no território da infância é terreno fértil para que o poder psiquiátrico se generalize em todos os campos sociais. "Parece-me que essa difusão do poder psiquiátrico realizou-se a partir da infância, isto é, a partir da psiquiatrização da infância. [...] em todo o século XIX foi principalmente a criança o suporte da difusão do poder psiquiátrico; foi muito mais a criança que o adulto" (Foucault, 2006:255).

Indo na mesma direção, os saberes do direito, da pedagogia e da psicologia foram convocados a compor um cordão sanitário ao redor da infância em nome da promoção de seu desenvolvimento, compensando possíveis deficiências de um processo considerado evolutivo. A construção desse cordão sanitário se deu a partir da identificação de riscos a serem evitados. Por outro lado, será necessário um cálculo feito pelas ciências de governo no sentido de estabelecer um "quantum" de situações de risco pode ser aceitável.

Desse modo, o risco em excesso passa a ser um acontecimento caracterizado como adverso e enunciador de diferentes tipos de dano, devendo ser medido e tratado para atenuar problemas futuros, tanto para os indivíduos, quanto para a sociedade. Nessa perspectiva, como afirmam os projetos do INPD, o risco se tornaria um objeto quantitativamente previsível pela via do cálculo probabilístico, que permitiria produzir estimativas e níveis de aceitação, já que sempre estaríamos sujeitos à exposição de variadas e supostas situações de perigo, em uma versão de gestão da virtualidade dos acontecimentos inesperados (Ewald, 1993). Visto dessa maneira, podendo ser identificadas, previsíveis e prevenidas, as situações de risco passam a ser sustentadas por processos de vitimização, de culpabilização e de criminalização individuais, em um campo de tríplice aliança entre as práticas de prevenção, patologização e punição (Lemos, Nascimento & Scheinvar, no prelo).

 

Capilarizando e Governamentalizando

A idéia é criar vários pontos de acesso à web, onde poderemos levar educação à distância e formação continuada para os novos psiquiatras sob o paradigma da Psiquiatria do Desenvolvimento. Já existem 900 pontos espalhados pelo Brasil. Em cerca de dois anos, haverá aproximadamente 9 mil (Entrevista dada a Valéria Dias /Agência USP)

Como se pode observar, a proposta do INPD dá ênfase especial à formação de todos aqueles profissionais que cuidarão e assistirão a infância considerada em situação de risco: professores, técnicos e médicos de diversas especialidades, sendo previstas capacitações e treinamentos para esses diferentes especialistas. Tal preocupação pode ser vista especificamente em cinco de seus projetos, que tratam de: 1) formação de recursos humanos no ensino médio em geral, na graduação e pós-graduação em medicina; 2) treinamento de professores do ensino fundamental; 3) formação para profissionais do Programa de Saúde da Família e médicos pediatras; 4) aplicação de recursos de telemedicina; 5) organização de um prontuário eletrônico.

Diz Rohde, um dos coordenadores do INPD:

Acho que poderíamos resumir assim: o projeto não se propõe a aumentar a formação dos profissionais na área, mas a qualificar os profissionais. Principalmente traz o psiquiatra da infância e adolescência que vai estar em uma posição de difundir conhecimento, porque aquele que está vinculado à universidade, está fazendo mestrado e doutorado, vai ser inserido em noções de psiquiatria do desenvolvimento. Como você disse, vai poder reconhecer os quadros de risco, poder entender as trajetórias de desenvolvimento da psicopatologia e, com isso, nós vamos qualificar melhor tanto o psiquiatra da infância e adolescência quanto o psiquiatra de adulto, dentro dessa perspectiva do Desenvolvimento. (Revista Debate, 2009)

Com esse funcionamento, o INPD pretende criar dispositivos que possam colocar em ação estratégias de controle capilares, minuciosas, por vezes invisíveis, extremamente sedutoras e abrangentes, atingindo não só crianças e seus familiares, mas também uma imensa população que vai de estudantes de ensino médio a profissionais especializados com pós-graduação. Com discursos cientificistas faz uso de tecnologias de ponta, como a utilização de exames de ressonância magnética, exames de DNA e prontuário eletrônico, dentre outras.

Esse complexo de tecnologias, entre elas o uso da informática e a produção de redes, está intrinsecamente ligado aos dispositivos de controle como forma de governo. Não por acaso, elas emergem e se fortalecem no momento em que se dá a flexibilização do capital e a sociedade de controle globaliza-se e se insinua por todos os cantos do mundo. Sem dúvida, a cibernética, que forneceu o suporte teórico para o desenvolvimento das ciências da comunicação, das máquinas inteligentes e da biologia molecular, vem trazendo inovações tecnocientíficas inimagináveis para a análise de processos psicológicos, físicos e fisiológicos de transformação da informação, como demonstram as manipulações do DNA. São alguns desses avanços tecnológicos que os projetos do INPD pretendem utilizar.

A respeito do duplo aspecto dessas inovações tecnológicas Moreira (2006:93) chama atenção para:

A idéia é pensar o dispositivo das redes tanto subjetivas quanto sociológicas e tecnológicas, mas com foco aguçado para as de comunicação e informação, cujos sistemas vêm suscitando ao mesmo tempo rejeição e fascínio. Tecnologias políticas de controle e de produção de subjetividade que vêm afirmando uma racionalidade individualista e massificante ainda que se apresente como um campo potencialmente revolucionário, permeado de processualidade e de abertura a novos mundos.

A proposta de organização de um prontuário eletrônico, que vem sendo elaborado pelo INPD em colaboração com a Universidade Duke, nos Estados Unidos, adaptado à realidade brasileira, tornará possível criar um banco de dados nacional sobre transtornos mentais da infância, facilitando, segundo afirmam, a implantação de políticas públicas e a comparação entre diferentes tipos de tratamento. Sofisticação da vigilância panóptica ainda maior em espaço aberto, ou melhor, no ciber espaço, espaço de lugar nenhum, sobre os que se desviam das normas da saúde mental, cujos registros, uma vez em rede, além da disseminação pelos pontos onde a pesquisa se realiza, cairão com certeza em outras instâncias de governo, e poderão funcionar como agravantes dos comportamentos. Permanência infinita desses registros, ao contrário do papel que, sem conservação envelhece e pode desaparecer. Ciber registros escapam do tempo, sem redenção possível.

Será possível desenvolver na educação outro sentido para as propostas contidas nos três projetos do INPD ligados à formação, uma ética da autonomia e não da chamada interatividade, um novo eufemismo para mascarar o controle dos vetores de subjetivação? Respondendo a certas palavras de ordem embutidas no marketing, não estamos sendo levados a acreditar que somos participantes ativos nessas diferentes capacitações? E, dessa forma, não estaremos também fortalecendo a atitude passiva diante de tudo que nos é "democraticamente" imposto?

A questão que se coloca é que, se não estamos afirmando uma essência para essas novas tecnologias, não podemos conjurá-las como maléficas em si mesmas. Cabe-nos, então, indagar que forças políticas as atravessam, como elas se constituem, a serviço de quem elas se constituem e direcionam suas práticas?

 

Considerações Finais

A criança dá sinais muito precoces de que a saúde dela não está bem e muitas vezes isso só vai aparecer como um transtorno na adolescência ou no adulto. Se nós pudermos identificar esses sinais na infância seria melhor para a criança, para a família, para a escola, para todos. (Lúcio Simões de Lima Coordenador do Departamento de Psiquiatria da Infância e Adolescência da ABP e conselheiro da Associação Brasileira de Neurologia e Psiquiatria Infantil. Integrante do INPD. Revista Debate, 2009)

A utilização da noção de prevenção como uma ferramenta analisadora – que atravessa a construção desse trabalho – possibilita colocar em análise ética e politicamente as práticas que se apoderam do mundo no sentido de melhor governar a vida, com mais eficiência em nome da verdade científica. Queremos, com isso, afirmar o dispositivo da análise micropolítica18 como uma possibilidade para pensar as lógicas que sustentam esse tipo de intervenção: como funcionam, para que funcionam e quais os efeitos que vem produzindo.

Quanto à lógica que sustenta a tecnologia de práticas de prevenção, algumas questões se colocam. Quem pode ser contra uma vacina que evita a contaminação e previne a doença antes dela se instalar no organismo? Além disso, uma coisa é identificar sinais que se manifestam como sintomas de uma doença orgânica em seu início, cujo tratamento será tanto mais eficaz quanto mais cedo se der a intervenção. Outra coisa é tomar sinais nos comportamentos como sintomas de futuras doenças virtuais, portanto, inexistentes. Esta transposição do paradigma médico extraído da norma biológica, para a vida social, que se deu a partir do século XIX, constitui o que se pode considerar como o substrato micropolítico da normalização dos comportamentos. Ei-lo, pois, ainda em ação no chamado "novo paradigma" da psiquiatria do desenvolvimento.

Como essa lógica funciona e para que funciona? Funciona de um modo geral homogeneizando e hierarquizando as subjetividades e negando os diferentes modos de viver. Como uma lógica da falta, introduz o negativo de uma patologia futura da qual ninguém poderá estar a salvo. A prevenção proposta sustenta-se na concepção de uma natureza infantil não como um ato de vida pleno e em expansão, mas unicamente como um ser que ainda não é adulto. Educar, cuidar da criança assim concebida significa instituir dispositivos que se dirijam não apenas para seus atos, mas principalmente para o que lhe falta ser, e para o que ela deve ser (Lobo, 1992). Ou seja, a prevenção proposta constitui-se em um processo de estigmatização precoce e de exclusão a céu aberto.

Assim, o critério negativo da falta que a polaridade da norma institui continua presente nas práticas da medicina, da educação e da justiça. Quaisquer que sejam os avanços dos princípios de inclusão, é preciso estar alerta para detectar o olhar negativo que pode estar trespassando médico, o professor, o juiz, o assistente social e os profissionais psi.

Por isso, mais do que nunca, necessitamos de uma ética afirmativa que se contraponha, como via de escape, à moral negativa que, em nome da proteção, patologiza a infância em busca do germe do delinquente e/ou da vítima, processo tão arraigado em nossas subjetividades contemporâneas. Precisamos sim de uma ética insurgente de expansão para todos os atos da vida cotidiana, contra os microfascismos instituídos pelos saberes competentes, pelo marketing da prepotência sutil dos eufemismos ditos científicos da psiquiatria, e não de um projeto de pesquisa e intervenção que busca sedimentar ainda mais tudo que torna a vida insuportável.

O problema ético continua e mais do que nunca precisa com urgência ser debatido coletivamente.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Maria Livia do Nascimento
E-mail: mlivianascimento@gmail.com

Cecília Maria Bouças Coimbra
E-mail: gtnm@alternex.com.br

Lilia Ferreira Lobo
E-mail: lferreiralobo@ig.com.br

Recebido em: 12/05/2011
Revisado em: 23/10/2011
Aceito em: 16/11/2011

 

 

* Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil e docente do departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil.
** Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil, e docente do departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil.
*** Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, RJ, Brasil, docente do departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil.
1 Projeto 1: Epidemiológico brasileiro. Projeto PREVENÇÃO: União dos projetos 2, 3, 4, 5 para intervenção precoce. Projeto 6: Memória verbal. Projeto 7. Tratamento adaptado. Projeto 8: Abordagens não invasivas. Projeto 9: Coorte Butantã. Projeto 10: Estudos econômicos. Projeto 11: Modelos animais. Projeto 12: Formação de recursos humanos, ensino médio, graduação e pós-graduação em medicina. Projeto 13: Treinamento de professores do ensino fundamental. Projeto 14: Formação para profissionais do PSF e pediatras. Projeto 15: Aplicação de recursos de Telemedicina. Projeto 16. Tradução, adaptação e desenvolvimento de um Prontuário Eletrônico em Psiquiatria.
2 Conceito da análise institucional. Os analisadores são acontecimentos que produzem rupturas, possibilitando colocar em análise situações cristalizadas e naturalizadas. Ver Rodrigues e Souza (1991).
3 Estes dados foram extraídos do projeto inicial do INPD.
4 Sobre o tema consultar Machado et al (1978) e Foucault (1979).
5 O autor se refere ao campo psi.
6 Em 2006, surge na França o coletivo Pas de 0 de conduite (Contra o zero de conduta) que denuncia os riscos derivados de práticas de cuidado, sobretudo psiquiátricas, que visam o controle social de crianças.
7 Endofenótipos são traços (clínicos, bioquímicos ou cognitivos) associados à vulnerabilidade genética para uma determinada doença. Atestam a suscetibilidade de desenvolvimento dessa doença em sujeitos não doentes, mas que têm proximidade com ela.
8 Técnica utilizada pelas pesquisas médicas que significa acompanhamento.
9 O critério A (Snap IV) é um questionário com 18 perguntas, que deve ser avaliado em conjunto com os demais critérios (B,C,D,E.) no diagnóstico do TDAH.
10 Alguns desses laboratórios: Norvatis, Eli-Lilly, Janssen-Cilag, Abbott, Shire.
11 A metilfenidato (MPH) é a droga mais usada no tratamento dos rotulados como portadores de TDAH. De acordo com Moysés e Collares (2010:96) "No Brasil as vendas de MPH crescem em ritmo assombroso: 71.000 caixas de Ritalina em 2000 e 739.000 em 2004 (aumento de 940%); entre 2003 e 2004, aumentou 51%. Em 2008, foram vendidas 1.147.000 caixas sob os nomes Ritalina e o sugestivo Concerta; aumentode 1.616% desde 2000. Se for incluída a dextroanfetamina, droga menos utilizada, as vendas em 2008 ultrapassam 2 milhões de caixas".
12 O Programa de Saúde da Família teve início em 1994, proposto pelo Governo Federal brasileiro aos municípios para implementar a atenção básica de saúde.
13 Francis Galton, biólogo, geógrafo e estatístico, fundador do movimento eugênico em 1869.
14 De tal maneira a eugenia desenvolveu-se nos Estados Unidos que, em 1925, "oficiais alemães escreviam aos governos estaduais norte-americanos a respeito de sua legislação sobre a esterilização" (Rifkin, 1999:133). A filosofia eugênica só arrefeceu com a queda da bolsa de valores de 1929, quando muitos membros da chamada elite norte-americana (os chamados WASP: brancos, anglo-saxões, protestantes) cometeram o suicídio ou entraram na fila dos desempregados e da sopa para os pobres.
15 No Brasil não houve legislação eugênica de esterilização ou de exigência de certificados médicos obrigatórios para os casamentos. Entretanto, a propaganda eugênica foi massiva no início do século XX, em especial na década de 20, atingindo principalmente a população pobre. Ver Lobo (2001).
16 As manipulações genéticas podem ser de dois tipos: "No tratamento somático, a intervenção ocorre em células somáticas e as alterações genéticas não se transferem para os descendentes. Na terapia de linha germinativa, as alterações genéticas são efetuadas no esperma, ovo ou células embrionárias e são passadasàs próximas gerações" (Rifkin, 1999:135).
17 As informações com as quais trabalhamos estão disponíveis na rede web em formato de propostas. Não trabalhamos com documentos que dizem respeito à implantação do projeto, seus andamentos e possíveis modificações.
18 É preciso deixar claro que as perspectivas micro e macro políticas nada têm a ver com tamanho: a sociedade, o Estado, e o pequeno – os indivíduos e suas relações inter e intraindividuais, tais como homem-mulher, mãe-filho, professor-aluno. Enfim, o pequeno cotidiano nas instâncias da vida social ou as formas instituídas individuais ou coletivas. Trata-se de perspectivas de pesquisa radicalmente diferentes. A micropolítica diz respeito à dimensão dos processos de constituição das formas da realidade, aquilo que está em vias de se instituir ou se desmanchar, quais relações de força, de poder, de práticas as sustentam e fizeram-nas historicamente surgir.