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Revista Psicologia Política

versão impressa ISSN 1519-549X

Rev. psicol. polít. vol.13 no.26 São Paulo abr. 2013

 

Entre o outro e o mesmo: sobre ética e violência nas relações

 

Between the other and the same: on ethics and violence in relations

 

Entre el otro y el mismo: sobre ética y violencia en las relaciones

 

Entre l'autre et le même : sur l'éthique et la violence dans les relations

 

 

Belinda Piltcher Haber Mandelbaum

Doutora em Psicologia Social e Professora Associada do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. belmande@usp.br

 

 


RESUMO

A autora apresenta algumas contribuições da Psicanálise para o debate sobre os temas da alteridade e do reconhecimento. Parte das concepções de transferência e identificação, tais como definidas por Freud, para pensar os processos de constituição de si e do outro. Estes processos são também pensados a partir da proposição de Winnicott de que a noção de si mesmo e do outro se instaura com a percepção, por parte do bebê, da mãe como separada dele; e a partir das considerações de Melanie Klein sobre o trabalho psíquico suscitado pela ambivalência de sentimentos mobilizados na relação com o outro. Finaliza com as considerações de Levinas de que o outro é, por definição, o que escapa ao nosso conhecimento e nos faz uma demanda que não é de conhecê-lo, mas de responsabilidade para com ele. Trata-se de uma demanda ética necessária para o convívio da pluralidade, que é, para Hannah Arendt, condição para a vida política.

Palavras-chave: Ética, Alteridade, Reconhecimento, Psicanálise, Levinas.


ABSTRACT

The author presents some contributions of Psychoanalysis for the debate around the themes of otherness and recognition. She starts from the concepts of transference and identification, as defined by Freud, to think about the processes of constitution of oneself and the other. These processes are also considered taking into account Winnicott's proposition that the notion of oneself and the other is established with the baby's perception of the mother as someone separated from him/her; and Melanie Klein's considerations on the psychic work that is stimulated by the ambivalence of affects mobilized in the relation to the other. She finishes with Levinas' consideration that the other is, by definition, someone that escapes from our knowledge and who makes a demand upon us that is not to know, but to take responsibility for him/her. This is an ethical demand that is necessary for the conviviality among plurality, which is for Hannah Arendt a condition for political life.

Keywords: Ethics, Otherness, Recognition, Psychoanalysis, Levinas.


RESUMEN

La autora presenta algunos aportes del Psicoanálisis para el debate sobre los temas de la alteridad y el reconocimiento El punto de partida son las concepciones de transferencia e identificación, tales como las definió Freud, para pensar los procesos de constitución de sí y del otro. Estos procesos se abordan además a partir de la proposición de Winnicott, de que la noción de sí mismo y del otro se instaura con la percepción, por parte del bebe, de la madre como separada de él; y a partir de las consideraciones de Melanie Klein sobre el trabajo psíquico suscitado por la ambivalencia de sentimientos movilizados en la relación con el otro. Concluye con las consideraciones de Levinas de que el otro es, por definición, lo que huye a nuestro conocimiento y nos hace una demanda que no es de conocerlo, sino de responsabilidad hacia con él. Se trata de una demanda ética necesaria para convivir con la pluralidad, que, para Hannah Arendt, es condición para la vida política.

Palabras clave: Ética, Alteridad, Reconocimiento, Psicoanálisis, Levinas.


RÉSUMÉ

L'auteur de cet article donne quelques contributions de la Psychanalyse aux discussions de l'altérité et de la reconnaissance. Elle utilise trois sources des conceptions, celles de transposition ? permutation et d'identification, comme elles ont été définies par Freud pour penser les processus de constitution de soi-même et de l'autre. Ces processus sont aussi pensés à partir de la proposition de Winnicott quant à notion de soi-même et de l'autre qui est établi avec la perception de la part de l'enfant que sa mère est séparé de lui; et des considérations de Melanie Klein sur le travail psychique suscité par l'ambivalence de sentiments mobilisées dans la relation avec l'autre. L'article conclut avec les considérations de Levinas de que l'autre est, par définition, ce qui échappe à notre connaissance et nous fait une demande qui n'est pas de le connaître, mais de prendre responsabilité sur lui. Cela se réfère à une demande éthique nécessaire à la pluralité, ce qui est pour Hannah Arendt une condition pour la vie politique.

Mots clés: Ethique, Altérité, Reconnaissance, Psychanalyse, Levinas.


 

 

Embora o sentido dos termos "outro" e "mesmo" pareça claro na linguagem cotidiana e marque uma oposição definida entre eles - o outro é o que não é o mesmo, que não é idêntico, que é diferente, que está separado e tem características próprias, e embora seja assim que no mundo das aparências, digamos assim, possamos nos referir aos outros que não nós, diversos autores no campo das Ciências Humanas, com especial ênfase a partir da segunda metade do século XX, colocaram em questão o estatuto do outro e do mesmo nas relações humanas, mostrando que o que aparece como oposição clara e definida contém complexas contradições, que borram os limites entre estes dois termos. Esta problematização incidiu na análise das relações intersubjetivas, intergrupais, interculturais e internacionais - em todo inter entre os humanos -, e não é à toa que se tornou uma questão central para o século XX, permanecendo ainda com força em nosso século: as guerras, os conflitos étnico-raciais e até os malentendidos mais cotidianos nos quais nos vemos envolvidos singularmente, e que eclodem com todo seu potencial de destrutividade, têm um núcleo central de irradiação feito de intolerância e ódio, que pode se manifestar como relacionado ao que se afirma como outro e resiste à redução ao mesmo. As diferentes ondas imperialistas que assolam o mundo em nossos dias trazem consigo a bandeira de uma hegemonia econômica, cultural e ideológica que faz força para engolfar no mesmo, para si mesmo, os outros que encontra a caminho da dominação. Há promessas de aproximação nas redes globais de comunicação, mas também o risco da redução do diferente ao idêntico. Fronteiras e muros antes soberanos são agora atravessados por estranhos que se tornam vizinhos, mas que também tornam mais imediata a ameaça do outro. Por tudo isto, o tema da alteridade veio para o primeiro plano do debate no campo das Ciências Humanas.

Central a este debate é o tema do reconhecimento do outro. O que significa reconhecer o outro? Como conhecer, particularizar ou estabelecer uma relação com um outro que, em seu impacto no sujeito, pode ser perturbador? Penso que a Psicanálise pode trazer contribuições importantes, na tentativa de responder a estas questões. Porque a relação com o outro habita o núcleo central da teoria e da técnica psicanalítica desde o seu início, com Freud. Talvez possamos mesmo dizer que a Psicanálise é uma narrativa, ou um conjunto de narrativas, sobre a ontologia da alteridade, isto é, sobre os processos de constituição de si e do outro. Em 1905, refletindo sobre a análise da jovem Dora, que interrompeu abruptamente seu tratamento, Freud (1905/1976) descobre e define a transferência, que a partir de então se torna a ferramenta nuclear do trabalho psicanalítico:

Que são as transferências? [ele se pergunta]. São as novas edições, ou fac-símiles, dos impulsos e fantasias que são criados e se tornam conscientes durante o andamento da análise; possuem, entretanto, esta particularidade, que é característica de sua espécie: substituem uma figura anterior pela figura do médico. Em outras palavras: é renovada toda uma série de experiências psicológicas, não como pertencentes ao passado, mas aplicadas à pessoa do médico no momento presente (Freud, 1905/1976:111).

Freud atribui a interrupção do tratamento à modalidade singular de transferência estabelecida entre Dora e ele. Porque Dora, de forma inconsciente, reviveu com ele fantasias sexuais ameaçadoras, cuja origem estaria nos desejos infantis direcionados ao pai. Em aspectos importantes de sua experiência atual, para Dora Freud e o pai são o mesmo, suscitam os mesmos desejos, as mesmas fantasias e a mesma ameaça. Por isto, por não poder ver seu médico como um outro novo, como alguém de fora de seu núcleo edípico com quem pudesse examinar seus temores, ela precisa sair correndo da análise. Freud dirá no mesmo texto que, se por um lado a transferência é resistência ao tratamento, na medida em que, como repetição do mesmo, impede que a experiência infantil possa ser relembrada como memória e não revivida como acontecimento atual, ela é também a via de transmissão, entre paciente e analista, da memória, isto é, daquilo que, não podendo ser conscientemente lembrado, é repetido no aqui-e-agora com o analista e só assim pode se dar a conhecer. Nesse processo de conhecimento, quando o que é transferido pode ser simbolizado como lembrança, o outro pode simultaneamente vir a emergir como diferente e atual - neste caso como o médico que, diferentemente do pai, pudesse ajudá-la agora a lembrar para superar, para poder viver novas relações, com outros que não são o mesmo que o pai. Infelizmente, os temores de Dora impediram-na de ter o tempo necessário para atravessar a repetição do mesmo e sua transformação em lembrança, em registro consciente de si e de sua história, abrindo assim espaço para o reconhecimento de outros diferentes e separados dela.

Mas há mais aí do que apenas dizer que Dora reduz o outro ao mesmo. Porque Dora é feita de outros. Sua subjetividade foi formada na relação com os outros e, entre esses outros como figura central, o pai. O pai que reaparece na cena com Freud é um outro que agora a habita, com quem ela tem que se haver, e um modo de se haver com ele é reviver na relação com um outro, no caso, Freud, a mesma dinâmica de desejos e ansiedades outrora vividos com ele, e que foram incorporados como parte de sua vida psíquica. Freud (1921/1976) diz, em Psicologia das massas e análise do ego, que cada um de nós é feito de identificações com pessoas, partes ou aspectos de pessoas que, tal como vividas em nossas experiências com elas, nos habitam. Cada um de nós é um condensado de identificações, um palimpsesto de outros. Laplanche (1999) dirá mais tarde que a mãe transmite ao bebê uma mensagem enigmática, que o interrompe antes mesmo de qualquer possibilidade de continuidade. O psiquismo do bebê ronda esta mensagem, tem que se haver com este enigma que é um outro desconhecido em seu interior. A mensagem enigmática da mãe é o outro que habita e faz trabalhar o bebê. Desde o início, somos invadidos e habitados por algo de fora que impede a integração, a continuidade, a inteireza ou a individualidade de prosseguir. Esta é a alteridade radical que a Psicanálise inaugura no interior de cada sujeito, e que chamou de inconsciente. Somos um outro para nós mesmos, e a Psicanálise irá se debruçar sobre as vicissitudes da relação entre cada um de nós e o outro, ou os outros, que nos habitam. Isto quer dizer que, a partir da Psicanálise, e quase que na direção contrária aos processos imperialistas e hegemônicos que as políticas mais amplas foram suscitando desde meados do século XIX até os nossos dias, na compreensão mais elaborada sobre a subjetividade dos homens, cada um de nós foi colonizado por uma multidão de outros.

Vivemos a alteridade de que somos feitos não apenas em sonhos, devaneios ou na nossa imaginação, mas nas relações que estabelecemos com os outros externos a nós. Nosso mundo interno reatualiza-se no mundo externo, tendendo a infiltrar-se e colorir emocionalmente tudo o que vivemos. Os tempos de nossa história se superpõem, o passado pode recobrir o presente e reatualizar-se sem fim, ao mesmo tempo em que nossas relações atuais impactam nossa subjetividade, mobilizando nossa história em novos desdobramentos. Para utilizarmos o termo cunhado por Freud, estamos sempre imersos em transferências: por um lado, enquanto sujeitos do conhecimento, resistimos à atualidade e novidade do aqui-e-agora, tendendo a reduzir a atualidade da experiência mais a um reconhecimento do que a um conhecimento; e, enquanto objetos do conhecimento do outro, resistimos, na tentativa de reafirmar a nossa diferença em relação ao que se pretende ver em nós.

Winnicott (1969) sugere que a mãe surge como outro para o bebê, separada e independente dele, quando ele se dá conta de que ela não é destruída por suas fantasias agressivas, que ela tem realidade própria e independe dos sentimentos e fantasias dele para sobreviver. Este é, para Winnicott, o fundamento da constituição do outro e, simultaneamente, da percepção de si, na medida em que oferece ao bebê limites para as suas fantasias onipotentes de destruição. Isto quer dizer que, se tivermos a sorte de sermos nutridos por uma mãe que sobrevive a nossos ataques, maior será o espaço psíquico de abertura para os outros concretos em torno dos quais vivemos e menor será a nossa resistência para a aceitação do novo e de nossa transformação com os outros. Ainda transferiremos, isto é, ainda viveremos entre tempos históricos superpostos, mas não apenas reconhecendo sempre o mesmo, mas disponíveis a um conhecimento que é sempre uma transformação.

Melanie Klein (1946/1991), por sua vez, nos mostrou que há uma contínua oscilação, em nossa vida psíquica, entre poder ver o outro como independente de nós, como dotado de realidade própria e separada, e vê-lo como extensão nossa, como reapresentação, na realidade externa, de nossos outros internos. Oscilamos entre percepções parciais e fragmentárias e percepções mais integradas e realistas do outro, variações estas que têm como fonte a experiência emocional que sempre faz parte de nossas relações. Para Klein, desde o início de nossa vida estamos em relação com o outro, e a experiência emocional que colore este estar em relação é desde sempre ambivalente, isto é, toda relação contém elementos de ligação e de vida - o que ela chamou de amor - e elementos de desligamento e de morte - o que ela chamou de ódio. Um trabalho psíquico permanente e difícil para todo ser humano é conviver com estes sentimentos ambivalentes em relação ao outro. Nossa tendência primeira, segundo Klein, é cindir estas experiências, fragmentá-las, constituindo para nós outros tão definitivos quanto parciais. Alguns nós idealizamos, acolhemos e reconhecemos como fazendo parte de nossas afinidades eletivas. De outros procuramos nos afastar, nos diferenciar e até às vezes eliminar de nossas vidas. São os vizinhos incômodos, os inimigos. Klein mostra que nossas cisões e projeções, nosso modo de ver o outro a partir de nossas vicissitudes emocionais e defesas psíquicas, não o deixam incólume. Não se trata apenas de um modo de ver, nem tampouco de uma mera projeção atualizada apenas, por assim dizer, sobre a superfície externa do outro. Nossas projeções incidem no outro no mesmo ponto de onde emergem de nós, isto é, na própria intimidade, se imiscuindo, se entrelaçando, invadindo e até destruindo a vida psíquica do outro. Os que desprezamos podem se tornar desprezados, os que empobrecemos podem ficar pobres, os que engrandecemos podem ficar engrandecidos, os que destituímos de humanidade podem perdê-la.

Estas formas de cisão de nossos afetos em diferentes pessoas fazem parte não apenas do domínio interpessoal, mas são também um dos componentes a agilizar a dinâmica entre grupos e culturas. Ampliando as concepções de Melanie Klein para o domínio sóciopolítico e cultural maior, podemos dizer que toda a constelação de relações, afetos, ansiedades e defesas contribui para a formatação da visão de mundo e de homem peculiar de todo interjogo ideológico em atividade. Quando o mundo se cinde em amados e odiados, bons e maus, os outros devem gravitar nesta constelação, como seres idealizados ou denegridos e ameaçadores. Muitas das ideologias em atividade no interjogo social funcionam assim, promovendo distorção e violência. Porque na cisão, eliminamos de nossa percepção partes do outro e aderimos a uma visão parcial dele. Isto não significa negar uma violência que é inerente à História e que se traduz em situações de opressão concretas de grande parte da humanidade. Não se trata de reduzir a História a uma Psicologia. Mas a Psicanálise pode contribuir no debate sobre a violência colocando em cena os aspectos agressivos que são inerentes ao ser humano. Uma vez Freud afirmou que a Psicanálise trouxe uma ferida narcísica ao ser humano, ao lembrá-lo que ele não é senhor de si próprio. Talvez a ferida maior que a Psicanálise promove é a de nos lembrar não apenas da nossa situação de incompletude e de sermos dotados de um estranhamento essencial, ou de sermos habitados por outros. Mas também de nos apresentar como ambivalentes e dotados de uma atividade violenta que nos é inerente e demanda um trabalho psíquico gigantesco para contê-la e transformá-la em material para o nosso aperfeiçoamento pessoal e coletivo. Mostra também Klein que, quando podemos integrar na experiência com o outro uma pluralidade maior de aspectos bons e maus pessoais, tolerando a ambivalência dos sentimentos suscitados, há a possibilidade de uma percepção mais integrada de nós mesmos e do outro. Para Klein, tornamo-nos mais reais e podemos ver o outro com uma realidade própria, independente de nós. Isto, no entanto, o torna mais desconhecido, uma vez que reconhecemos que tem uma mente própria que nos é inacessível. O outro não pode mais ser acomodado em nosso mundo psíquico, não pode ser apenas reconhecido. Reconhecemos que desconhecemos o outro, tal como desconhecemos a nós mesmos. Uma ética da intersubjetividade envolve o reconhecimento do desconhecido em nós e no outro, evitando assim a colonização do outro que sempre arriscamos realizar quando supomos conhecê-lo enquanto, no mais das vezes, estamos reduzindo-o a nós mesmos.

No artigo de 1974 que se tornou um clássico para as discussões sobre os limites da ciência para o conhecimento da experiência de outros seres vivos, "What is it like to be a bat?", Thomas Nagel sugere que, por mais que se possam desenvolver os métodos científicos para o conhecimento do funcionamento do cérebro de seres humanos e animais, é impossível ter acesso à experiência do outro. Daí a pergunta do título de seu texto. A neurociência pode explicar o funcionamento psicofísico do morcego, seu sofisticado uso de sonares, etc., mas não podemos, como seres humanos, ter a experiência do morcego. E, diz Nagel, nem mesmo podemos ter a experiência do outro humano diferente de nós. Podemos, segundo ele, imaginá-la, mas dentro dos limites de quem somos e da experiência que nos é possível viver. Mas não só o acesso à consciência do outro nos é difícil e quem sabe até impossível. Mesmo aspectos mais concretos do trabalho coletivo dessa consciência nos são de difícil acesso. A cultura do outro nos é de tão difícil acesso quanto a consciência do outro. Esta foi uma questão central para a etnografia no século XX: como conhecer culturas que não são as nossas, como compreender os significados que elas atribuem aos aspectos organizadores da vida social, sem tomar a nossa como referencial? Os etnógrafos - em especial a partir do Estruturalismo - buscaram encontrar o mesmo no diverso, as regras e padrões que organizam a vida humana em suas diversas manifestações, mostrando que todos nós temos mais em comum do que à primeira vista imaginamos. Por isto, porque partilhamos uma humanidade comum, porque as questões essenciais de nosso existir são as mesmas, posso compreender os modos de organização e os sentidos atribuídos pelo outro aos fatos fundamentais da vida, como a origem, o nascimento e a morte. Reconheço no outro alguma forma de indagação e de solução que é a mesma que a minha. A humanidade que nos une permitiria um traslado entre experiências diversas. Diz a famosa frase de Merleau-Ponty: "Método singular: trata-se de aprender a ver o que é nosso como se fôssemos estrangeiros, e como se fosse nosso o que é estrangeiro" (1960/1980:200), como se o olhar do etnógrafo devesse transitar entre o reconhecimento e a estranheza, no difícilexercício de tornar outro o mesmo, e mesmo o outro. É um avanço, mas a questão não fica plenamente resolvida, porque não se trata apenas de encontrar o mesmo no outro, mas de reconhecer o outro do outro, por assim dizer. Isto é o mais difícil e é a tarefa que ficará para sempre além das nossas possibilidades.

Os bárbaros acontecimentos do século XX e de nosso século contribuíram para recolocar o debate em torno das questões da alteridade em uma nova chave de compreensão, movida, me parece, pela urgência ética frente à violência que faz parte do trânsito entre os homens, quaisquer que sejam estes. A violência não é um privilégio, mas uma moeda comum que transita entre todos, tanto em sua face de perpetrador quanto devítima. Isto é difícil de aceitar. É-nos mais fácil reconhecer a violência que sofremos do que a que realizamos.

Para o filósofo Emmanuel Lévinas (1991/1998), ele próprio sobrevivente de um campo de concentração nazista, o outro é, por definição, o que escapa ao nosso conhecimento. Lévinas materializa o outro do outro de que falávamos anteriormente na superfície mais manifesta dos humanos, o Rosto, isto é, a presença do outro. Sua metafísica é a do simples encontro. Sua metafísica não é a conclusão mais profunda das visões de mundo e de homemque formamos. Sua metafísica é o princípio de tudo. É o ponto inicial a partir do qual nos posicionamos para ver os homens e o mundo. Diante do Rosto do outro, a demanda inicial é uma demanda ética, e a ética é a metafísica. Segundo esta ética, nós somos objeto do outro, ele é o sujeito e ele nos antecede. O outro do outro somos nós. Daqui emerge um laço que Lévinas chama de responsabilidade, uma responsabilidade difícil de realizar, uma vez que somos o estranho do estranho e, diante de tantas estranhezas, a única atitude possível é a de sermos responsáveis, para podermos nos mobilizar nesse campo tão difícil, organizado pelas estranhezas, da forma menos violenta possível. A relação com o Rosto é a relação com o absolutamente fraco, com o que está absolutamente exposto, o que está nu e é despojado, diz Lévinas. E devemos entender que este absolutamente fraco, absolutamente exposto, nu e despojado não é nada mais, nada menos do que cada um de nós diante do outro. O Rosto é infinito, isto é, está sempre para além de nós. E nosso conhecimento tende a decifrar o Rosto, encerrá-lo na totalidade de nossos conhecimentos. O mandamento que este Rosto nos faz é "Não matarás", isto é, não reduz minha essência infinita à totalidade do teu conhecimento. Não me coisifica. Não me dê por conhecido. Neste mesmo sentido, Roberto Calazans (2008) nos lembra da afirmação do psicanalista Jacques-Alain Miller de que a ética é o pensamento quando as etiquetas - a identificação - fracassam, ou seja, quando o pensamento não reduz o outro a rótulos identificatórios que tendem a legitimar o que já conhecemos. Nesta chave, não apenas somos habitados por outros, como a Psicanálise nos levou a reconhecer, como habitamos, por assim dizer, na habitação do outro. Nossa casa é o Rosto do outro, nosso Rosto é a casa do outro. Não se trata apenas de que nossa subjetividade é uma reunião de outros, mas é no outro que nossa materialidade radica. Isto é uma verdade antiga: "diz-me com quem andas que eu te direi quem és". O que quer dizer "andar" aqui? Sugiro que andar quer dizer se relacionar, conhecer, se implicar com o outro. Diz-me como você se relaciona com o outro que eu te direi quem és. Melanie Klein mostra quão ambivalente é esse nosso relacionamento com o outro. E quão sujeitos estamos a andar apenas conosco mesmos, em detrimento dos demais. O convívio da pluralidade - o fato de que homens, e não o Homem, habitam o mundo - é, para Hannah Arendt (1958/2004), a condição da vida política, ação que se exerce diretamente entre os homens, no diálogo em condição de igualdade. Lévinas põe em evidência a dificuldade deste convívio - de andarmos com os outros. Difícil não é dizer sobre o outro, difícil é andar com o outro.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Arendt, Hannah. (1958). A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.         [ Links ]

Calazans, Roberto. (2008). Psicanálise e política. Psicologia Política, 8(15),17-30. Acessado em 24 de abril de 2012, de: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1519549X2008000100003&script=sci_arttext>         [ Links ].

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Laplanche, Jean. (1999). Essays on otherness. Londres: Routledge.         [ Links ]

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Merleau-Ponty, Maurice. (1960). De Mauss a Claude Lévi-Strauss. Em Textos escolhidos. Seleção de textos de Marilena de Souza Chauí. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980.         [ Links ]

Nagel, Thomas. (1974, outubro). What is it like to be a bat? The Philosophical Review, 83(4).         [ Links ]

 

 

Recebido em 01/05/2012.
Aceito em 15/12/2012.

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