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Revista Psicologia Política

versão impressa ISSN 1519-549X

Rev. psicol. polít. vol.13 no.26 São Paulo abr. 2013

 

A instituição familiar e a relação humana de familialidade

 

The family institution and the human relations in families

 

La institución familiar y la relación humana de familiaridad

 

L'institution familiale et la relation humaine de familialité (au sens de structure familiale)

 

 

Renata Ovenhausen AlbernazI; Camila Salgueiro da Purificação MarquesII

IProfessora Adjunta da Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, Brasil, atuando nos cursos de graduação em Direito e de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural. renata_albernaz@terra.com.br
IIGraduada em Direito pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, PR, Brasil e mestranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. cspurificacao@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Esse artigo objetiva iniciar uma reflexão sobre um modelo de relação humana familiar que a afirme como um espaço de amadurecimento e atualização individual e de encontro autêntico entre pessoas envolvidas em relações de afeto, a fim de o contrapor ao modelo de relação familiar que sustentou a instituição família na legalidade e nas políticas públicas até os dias atuais. A hipótese era a de que algumas prescrições normativas ou sociais construídas historicamente na definição da instituição família poderiam estar sendo, justamente, a causa de insucesso dessas relações humanas familiares no cumprimento de seus fins pessoais. A justificativa da pesquisa se situa na necessidade de uma nova base conceitual para explicar a família, tendo em conta, por exemplo, demandas formuladas por movimentos feministas, LGBT, de defesa dos direitos da criança, do adolescente e do idoso, estas que têm encontrado importantes "oportunidades políticas" para o sucesso de alguns de seus pleitos. Este trabalho foi desenvolvido a partir de algumas reflexões referentes ao tema das relações humanas familiares em autores da psicologia, tais como Carl Rogers, J. L. Moreno e Richard Hycner, como base para se avaliar as atuais, e substantivas, transformações da ordem jurídica brasileira no que se refere à instituição familiar, que hodiernamente recepciona os novos arranjos familiares.

Palavras-chave: Relações Humanas de Familialidade, Instituição Família, Legalidade, Políticas Públicas, Decisões judiciais.


ABSTRACT

This article aims to initiate a reflection on a relationship model, which focuses on the human family as a place for maturity and individual growth, along with the authentic encounter between people engaged in relationships of affection, in order to go against the model of family relationship that sustained the family institution in law and public policies up to the present day. The hypothesis was that some laws, historically built and based on the classic model of family, might have been the precise cause for failure of these familial human relations in fulfilling their personal purposes. The justification for the research lies in the necessity of a new conceptual base to explain the family, taking into account, for example, demands formulated by movements such as the feminist and the LGBT ones, as well as the ones in defense of children's, teenagers' and elders' rights, all of which have been finding important "political opportunities" for the successful outcome of some of their struggles. This work was developed from some reflections on the subject of human relationships in family, based on psychology authors such as Carl Rogers, J. L. Moreno and Richard Hycner as a basis for assessing current and substantive changes in the Brazilian legal system, specifically pertaining to the family law, which, at present, welcomes new family arrangements.

Keywords: Family Human Relations, Family Institution, Legality, Public Policy, Legal Decisions.


RESUMEN

En este artículo se pretende iniciar una reflexión sobre un modelo de relación humana familiar que la afirme como un espacio de madurez y actualización individual y de encuentro auténtico entre personas que se relacionan afectivamente, con el fin de contraponerlo al modelo de relación familiar y de institución familia sostenidos por la ley y las políticas públicas hasta nuestros días. La hipótesis es que algunas prescripciones normativas o sociales históricamente construidas en la definición de la institución familia podrían ser precisamente la causa del fracaso de estas relaciones familiares en el cumplimiento de sus fines personales. La justificación de la investigación se ubica en la necesidad de una nueva base conceptual para explicar a la familia, teniendo en cuenta, por ejemplo, las demandas formuladas por los movimientos feministas, LGTB, de defensa de los derechos de los niños, de los adolescentes, y de los ancianos, los que han encontrado importantes "oportunidades políticas" para el éxito de algunas de sus reclamaciones. Este trabajo fue desarrollado a partir de algunas reflexiones sobre el tema de las relaciones humanas familiares de autores de la psicología como Carl Rogers, J. L. Moreno y Richard Hycner, como base para evaluar las actuales y substantivas transformaciones del orden jurídico brasileño en lo referente a la institución familiar, que diariamente recibe a los nuevos arreglos familiares.

Palabras clave: Relaciones Humanas de Familiaridad, Institución Familia, Legalidad, Políticas públicas, Decisiones judiciales.


RÉSUMÉ

Le présent article a pour objet de lancer une réflexion sur un modèle de relation humaine familiale affirmant la famille comme un espace où l'individu est à même de mûrir et de se ressourcer, et où une rencontre authentique s'établit entre des personnes impliquées dans des relations d'affect ; à l'opposé, comme nous le verrons, du modèle de relation familiale fondé sur l'institution de la famille, sur la légalité et sur les politiques publiques, modèle maintenu jusqu'à nos jours. Il a été supposé que certaines prescriptions normatives ou sociales, élaborées historiquement à partir de la définition de l'institution de la famille, pourraient justement être la cause de l'échec de ces relations humaines familiales dans l'atteinte des objectifs personnels de chacun de ses membres. La justification de la recherche réside dans la nécessité d'un nouveau cadre conceptuel pour expliquer la famille, considérant, par exemple, les demandes formulées par les mouvements féministes, LGBT, de défense des droits des enfants, des adolescents et des personnes âgées, ceux qui ont trouvé opportunités importants dans la politiques, pour le succès de certaines de ses prétentions. La présente étude a été menée à partir de réflexions sur le thème des relations humaines familiales d'auteurs de psychologie comme Carl Rogers, J. L. Moreno et Richard Hycner, que nous avons pris pour base dans notre évaluation sur les transformations actuelles et substantielles de l'ordre juridique brésilien en matière d'institution familiale, laquelle voit, de nos jours, de nouvelles récompositions.

Mots clés: Relations humaines de « familialité » (structure familiale), Institution de la famille, Légalité, Politiques publiques, Décisions judiciaires.


 

 

Introdução

Este artigo se propõe a fazer uma análise sobre a possível recepção das discussões contemporâneas da psicologia das relações humanas no cenário político-jurídico, notadamente tentando demonstrar a contribuição destas discussões na substantiva alteração da opinião pública, da legalidade e da interpretação judicial acerca da relação familiar (em termos de seu sentido, seu formato e sua abrangência), alteração esta que se operou nas últimas décadas. Tal análise importa à psicologia política no sentido de mostrar a interface entre as descobertas e evidências da psicologia e o atual processo de configuração e operação de um novo consenso público sobre instituição social familiar. Afirma-se, assim, a importância de estudos mais interdisciplinares, incluindo a psicologia na compreensão e no mais adequado tratamento social de categorias usadas na técnica política e jurídica, como são as instituições sociais e os institutos jurídicos.

Isso se justifica porque, se a relação de família já foi entendida como laços de sangue em que se buscava garantir sobrevivência e perpetuação da espécie, como instituição destinada à preservação legítima do patrimônio acumulado, se já foi marcada pela desigualdade e subserviência da mulher e filhos ao marido e pai e pela forçada fidelidade, principalmente feminina, na contemporaneidade, a família tem sido alvo dos mais fortes ataques descontrutivistas e reconstrutivistas. Movidos por bandeiras políticas tais como uma "política de reconhecimento", no sentido defendido por Taylor (1997; 2009), e uma "Justiça na Diferença", no sentido de Young (2000), movimentos e atores feministas, LGBT e de defesa dos direitos da criança, do adolescente e do idoso têm formulado novas demandas e ensejado novos desenhos à instituição familiar. E a ratificação destas demandas tem se sustentado em novos direcionamentos das teorias psicológicas das relações humanas configuradas nas últimas décadas.

Fruto deste cenário de discussões e ratificações, a Constituição Federal brasileira de 1988, dada à contingência histórica que a erigiu como um instrumento político para a transição à democracia, à justiça e à dignidade humana, tão negadas na ditadura que a antecedeu, aparece a esses movimentos e atores como uma estrutura de "oportunidades políticas" (Tarow, 1994) esta que acabou estimulando o ativismo desses atores e a legitimidade de certas teorias psicológicas da relação humana e familiar. Oportunidades que se evidenciam em atuais "decisões jurídico-políticas" que confirmam estas demandas e teorias, decisões as quais se pode citar, por exemplo:

a) Ação Declaratória de Inconstitucionalidade nº 4277 (ADI 4277/2011) e a e Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132 (ADPF 132/2011), de maio de 2011, que ao reconheceram a extensão interpretativa da união estável a casais homoafetivos, e que abriram ensejo a lutas exitosas na extensão dos efeitos dessa decisão a questões de base desse movimento, e de cunho mais específico, como as permissões de "casamento", de registros de união estável e de adoção de filhos, de inclusão em benefícios previdenciários, de cadastros de dependentes para pessoas do mesmo sexo etc.; pode-se supor que tais conquistas podem estar associadas ao que Detoni, Marques, Soares e Nardi verificam como sendo "novos modelos de incorporação e proposição de formas identitárias ligadas à sexualidade e propostas pela conjugação Estado/Movimentos Sociais";

b) A criação, em 2003, da Secretaria de Políticas para as Mulheres, da Presidência da República, com status de Ministério, atuando nas frentes de "(a) Políticas do Trabalho e da Autonomia Econômica das Mulheres; (b) Enfrentamento à Violência contra as Mulheres; e,

(c) Programas e Ações nas áreas de Saúde, Educação, Cultura, Participação Política, Igualdade de Gênero e Diversidade (Secretaria de Políticas), na luta pela igualdade de gênero na família e na vida social e econômica, rompendo o "poder do macho". (Saffioti, 1987)

Redefinir a família como espaço relacional, mais do que de função institucional, parece o sentido empreendido por essa transfiguração familiar nesse contexto político. Mas, essa redefinição precisa ser discutida nas possibilidades de contorno que ela pode assumir. A proposta desse estudo é de apresentar uma das possibilidades dessa redefinição, esta que possa subsidiar e orientar, cognitiva e interpretativamente, a sociedade e os atores da esfera pública na compreensão dessa nova figura socio-institucional que se está delineando. Na possibilidade explicativa da relação familiar delineada neste estudo considerara-se que a construção dessa relação é feita por aqueles nela envolvidos, e não dada como um conjunto de valores e papéis externos arbitrariamente impostos a conformá-la; que ela é um espaço de encontro individual, de relações duais autênticas, de desenvolvimento e de amadurecimento; um núcleo de compreensão, aceitação, respeito, afeto e amor, muito mais possível no pequeno grupo da família, em que a proximidade é intensa e as escolhas são livres e afetuosas, que em qualquer outro. Um espaço protegido como um direito essencial humano de buscar o encontro com o outro e o resguardo de si, e que parece adequada às demandas de igualdade, justiça e reconhecimento reclamadas pelos atores sociais que estão recriando a instituição familiar.

Algumas teorias psicológicas, tais como as de Rogers (1975, 1977), Moreno (1992), Hycner (1995), que tratam da relação humana, parecem indicar que esta deve ser essencialmente possibilitadora da manifestação autêntica do "eu" perante o "tu", que deve permitir o amadurecimento individual de cada um pela descoberta dos valores internos do ser, pelo encontro espontâneo e criativo, pelo diálogo de suas singularidades. Outros autores, como Follet (1997), admitem que a relação é dinâmica, está sempre em construção de si mesma e de seus autores e, assim, também a solução dos inevitáveis conflitos advindos do contato de pessoas essencialmente distintas, com interesses diversos, deve ser construída pela relação, em uma proposta integradora, possibilitada pela manifestação autêntica de cada parte.

Este ensaio objetiva, assim, com bases nessas teorias psicológicas, propor uma reflexão sobre a relação humana que pode justificar e dar um sentido existencialmente significativo à experiência da família, espelhando a potencialidade do reconhecimento de novas experiências relacionais como experiências familiares, e, assim, que devam ser garantidas e resguardadas no mesmo nível que a família institucionalizada o é. Também, visa-se questionar se algumas prescrições normativas ou sociais na definição do papel da família institucionalizada podem consistir em uma possível causa de insucesso no cumprimento desses fins até então. Por isso, também analisa as doutrinas jurídicas na seara do direito civil, do modernamente denominado de "direito das famílias", expressão esta mais condizente com abertura do conceito de família na esfera do direito contemporâneo.

O trabalho foi fruto de algumas reflexões referentes à matéria - relações humanas e direito de família - e de algumas leituras em obras de referências importantes na psicologia - tais como Carl Rogers (1975, 1977), J. L. Moreno (1992) e Richard Hycner (1995), Mary Parker Follet (1997), entre outros, bem com autores relevantes no direito e no direito de família, tais como Luiz Alberto Warat (1997), Eduardo de Oliveira Leite (1991, 1993, 1994, 2003) e Maria Berenice Dias (2004).

 

O Humano e a Relação Humana: em busca de si e do outro.

Todo o ser humano procura aproximar-se, segundo Rogers & Stevens (1977), o máximo possível, do estado de liberdade e amor, procura aprender a ser livre, a amar e a ser amado; liberdade esta, não apenas física, mas, principalmente, a de ser si mesmo, a de possuir-se, a de expressar-se ao outro, sem máscaras, sem medos, sem repressões, e, com isso, escolher os seus caminhos. Tal liberdade refere-se à experiência, e ela:

consiste no fato de que o indivíduo se sente livre para reconhecer e elaborar suas experiências e sentimentos pessoais como ele o entende. Em outras palavras: supõe que o indivíduo não se sinta obrigado a negar ou a deformar suas opiniões e atitudes íntimas para manter a afeição ou o apreço das pessoas importantes para ele. (Rogers & Kinget, 1975:48)

Pensar a liberdade desta forma é percebê-la muitas vezes negada - pelos condicionamentos sociais, culturais, políticos, religiosos, normativos, publicitários, institucionais que normalizam e padronizam os comportamentos, sobrando muito pouco espaço para a obediência aos valores, experiências e sentimentos que, verdadeiramente, fazem sentido ao sujeito. E nesta supremacia dos condicionamentos externos, a experiência se dissocia da representação; o outro próximo, potencialmente força de libertação, acaba se invertendo no seu oposto, e quanto mais íntima, mais intensa é sentida a repressão do eu, pois, em troca do reconhecimento que dá, o preço é um cuidadoso autocontrole deste eu sobre si; e, infelizmente, este autocontrole em troca da aceitação é fatal para qualquer relação autêntica.

Essa inversão do outro também é perigosa, pois aniquila um princípio fundamental da relação autêntica segundo o qual estar perante outro é condição de liberdade, de expressar-se livremente, de ser o que se é. Daí que a busca do encontro, nesta inversão, é profundamente tensa - procuro o outro a quem me oportuniza a liberdade, mas temo encontrar aquele que me pode aprisionar em troca de sua aceitação. Este tem sido um dos dilemas da relação familiar contemporânea, pois no choque entre sua função existencial de encontro e liberdade e sua função social de controle e integração social, o indivíduo se vê, nas relações familiares, hora em intensa liberdade, hora na mais profunda repressão - posta que a relação familiar advém de arraigados laços afetivos aos quais não se pode facilmente desvencilhar.

Várias são as formas pelas quais a experiência pode estar dissociada da representação: normas sociais, morais, interferências interpessoais castrantes. Quanto mais elas atuam, mais frustrado o indivíduo, maior a tensão a qual ele está submetido, menor sua atualização e desenvolvimento. Pelo contrário, ensinam Rogers e Kinget (1975), quando a tendência atualizante se desenvolve sob condições que as favorece - ou seja, sem entraves psicológicos graves e articulando seu comportamento segundo essa percepção, no sentido de uma autonomia crescente, típica do progresso rumo à idade adulta.

Esse nível de maturidade e autonomia, porém, não se dão como manifestações exacerbadas e irresponsáveis das expressões livres, de modo que o comportamento que dele decorra fira ou agrida o outro. Pelo contrário, a experiência livre dos sentimentos permite perceber, por si mesmo - e não como algo imposto e insignificante - os limites de nossa conduta frente àqueles com quem nos relacionamos. Isso porque, afirmam Rogers e Kinget (1975) que uma das necessidades mais essenciais do ser humano é o afeto e o respeito de seus semelhantes e, na medida em que ele desenvolve suas experiências, apercebe-se que a melhor forma de conquistar esse afeto e respeito é, justamente, comportar-se de forma razoável e socialmente responsável; nesse estado, o ser humano se expressa e se comporta de modo responsável e maduro, mas também, de acordo com as suas descobertas pessoais sobre as melhores formas de conquistar e manter o afeto daqueles a quem ama ou convive, descobertas essas, possíveis diante de elementos (relações, substancialmente) que as permitam. Com essas descobertas, ele mesmo se corrige e por si só e se avalia, independentemente de qualquer padrão objetivo que se lhe queira impor de fora para dentro, padrão imposto, na maior parte das vezes, infrutiferamente. "Em última análise", ensinam Rogers e Kinget (1975:55), esta tendência atualizante "é, pois, a capacidade do ser humano de tomar consciência de sua experiência, de avaliá-la, que exprime sua tendência inerente ao desenvolvimento em direção à maturidade e, portanto, em direção à autonomia e à responsabilidade!".

O desenvolvimento, assim, para esses autores supracitados (1975), decorre da conjugação de forças internas, positivas em sua orientação, flexíveis ou até mesmo instáveis, e de forças externas que sejam favoráveis à atualização das primeiras. Com forças externas favoráveis, Rogers e Kinget (1975) não buscam negar quaisquer normas que pudessem reprovar condutas entre aquelas passíveis de ofender ou agredir o indivíduo ou a sociedade impondo sanções em face desse fato. O que os autores afirmam é que essas reprovações não podem atingir o indivíduo como um todo, mas apenas o espaço limitado e passageiro daquele ato. Caso contrário, a reprovação fulminaria o "eu" e o sujeito acabaria entendendo-se segundo esse julgamento, que na íntegra lhe afeta, passando, assim, a agir de acordo com essa idéia. Este tipo de atuação relacional, aliás, é muito comum na família nos atos de educação de filhos, sendo uma importante configuradora da personalidade destes. Diz-se: "meu filho é levado", "minha filha é desorganizada", quando o que as crianças fazem são atos levados e omissões de organização, mas esses atos são comunicados pelos pais aos filhos como atributos do caráter destes e, quando reiteradamente ditos, as crianças os absorvem como o sendo de verdade. E esses juízos e reprovações, ensinam os autores (1975), apresentam-se ao indivíduo como uma ameaça que acaba por reprimir não apenas a expressão de seus sentimentos tidos por proibidos, como também sua própria representação de si. Eles fazem com que o humano se quede às normas que governam o seu grupo e que lhe são transmitidas por suas pessoascritério (pessoas importantes em sua existência), incorporando-as em sua estrutura psíquica e se censurando, penosamente, quando se apercebe contido de pensamentos e sentimentos que lhe são proibidos ou contrários às normas. Mas essa tensão não se estabiliza facilmente, e o indivíduo acaba buscando se livrar ou de si, ou desses elementos ameaçadores.

O indivíduo, assim, acentuam Rogers e Stevens (1977), abandona seus centros de avaliação de valores para, numa tentativa de conservar amor, consideração e aprovação, passar a se comportar segundo os valores estabelecidos por outros, mesmo que sejam absurdamente contrários aos que sente. Este choque torna a defesa de valores altamente contraditória - uma vez que não sentidos, a vigília para protegê-los constantemente sucumbe - e a pessoa sente-se profundamente insegura, já que se enquadra em algo que não lhe acomoda. Urge acrescentar que esta defesa segundo a qual maturidade é alcançada pela possibilidade de expressar seus sentimentos e construir suas próprias valorações - libertando-se das valorações externas e objetivas - não significa a impossibilidade do sucesso de relações interpessoais e até mesmo sociais. Isso porque estes autores entendem que, quando os indivíduos tendem a ser valorizados e quando existe maior liberdade de ser e sentir, surgem algumas orientações de valor espontâneas que apresentam certa homogeneidade entre todos os demais seres humanos. Seriam como valorações pertinentes a espécie humana:

[...] Ouso acreditar que, quando o ser humano fica interiormente livre para escolher o que quer que valorize profundamente, tende a valorizar os objetos, experiências e objetivos que permitam sua sobrevivência, seu crescimento e seu desenvolvimento, bem como a sobrevivência e o desenvolvimento de outras pessoas. A minha hipótese é que é característico do organismo humano preferir estes objetivos de realização e socialização, quando se expõe a um clima que favorece o crescimento.

[...] Finalmente parece que voltamos à questão da universalidade dos valores, mas por um caminho diferente. Em vez de valores universais 'lá fora', ou um sistema universal de valor imposto por algum grupo - filósofos, governantes ou sacerdotes - temos a possibilidade de orientações humanas e universais de valor que surgem da experiência do organismo humano. (Rogers & Stevens, 1977:64)

Deste modo, ao invés do caos e do egoísmo, apenas esse reconhecimento da liberdade do indivíduo pode permitir o aprimoramento e a autenticidade das relações humanas. Tal condição, aliás, já foi observada em algumas situações, tais como as dos estudos de A. S. Neill (1968) na escola Summerhil, e no caso que menciona August Airchrn (citado por Rogers & Stevens, 1975), na descrição dos resultados dos seus estudos em um experimento radical de reeducação de delinquentes:

Dentro da instituição, no grupo em que era chefe, deu-lhes liberdade para que se comportassem como o desejassem. Depois de um período de um caos que, sem dúvida, poucos suportariam, esses jovens gradativamente escolheram uma vida social, disciplinada e cooperativa como algo que preferiam. Aprenderam, através da vivência de uma relação de aceitação, que preferiam uma liberdade responsável e limites autoimpostos ao caos da desordem e da agressão. (Rogers & Stevens, 1977:65)

Essa nova ética relacional se afirma porque é essa percepção do "eu" que condiciona a direção do comportamento e que permite aceitar o outro também como ele é. Reportando-se a tal ética, Rogers e Stevens (1977) enfatizam, ainda, que esta pode ser entendida como uma resposta livre à vida e ao viver, uma resposta que defende o "eu", mas também o "tu".

Sob outra perspectiva, Moreno (1992) parece defender a relação humana, nos métodos que adota em sua atividade, segundo uma posição que abarca alguns aspectos interessantes à nossa discussão sobre família e relação humana, tais como:

Primeiro, a hipótese da espontaneidade-criatividade como força propulsora do progresso humano, acima e independente da libido e de motivos socioeconômicos - o que não nega o fato de que eles estão freqüentemente inter-relacionados, mas que nega o fundamento de que são meramente função e derivativo; segundo, a hipótese de crédito nas intenções de nossos companheiros - desconsiderando a obediência resultante da coerção física ou legal - a hipótese do amor e da partilha mútua como princípio funcional poderoso e indispensável na vida de um grupo; e, terceiro, a hipótese de uma comunidade superdinâmica baseada nesses princípios, que podem ser efetivados através de novas técnicas. (Moreno, 1992:23)

Nesta defesa de Moreno (1992), relações humanas deveriam conduzir-se segundo uma espontaneidade e criatividade peculiar, garantida por um pressuposto de uma comunidade de amor. Talvez na família, mais do que em qualquer grupo social, esses preceitos possam, ou mesmo devam, ter vigência. Mesmo porque, Moreno (1992) defende a tese de que a proximidade espacial e temporal faz o ser humano dedicar aos seus mais próximos sua maior atenção e a firmar laços mais estreitos de aceitação e de amor, e a proximidade é uma marca das relações familiares. A proximidade, as palavras que se voltam uns aos outros, as escolhas daqueles com quem se interage, o tempo que se passa juntos, a distância espacial que as separa ou une, os papéis que escolhem atuar, as interações que estabelecem e as influências recíprocas, tudo isto tem um significado para as pessoas envolvidas no enredo da vida do grupo, quando este enredo se dá de maneira espontânea. Esse significado é rompido (ou corrompido), segundo Moreno (1992), quando no enredo as interações, já se encontram preestabelecidos, seja por quem for, roubando dos atores em interação a sua espontaneidade criativa.

Também Moreno (1992) defende seus métodos e teorias - a sociometria, por exemplo - focalizando as relações reais e específicas entre as pessoas, e não situações abstratas e gerais por qualquer natureza. Moreno (1992:79), aliás, vê a sociometria como a "teoria e, depois, o método - método de como reunir os fatos realmente vitais para o relacionamento interindividual de pessoas que vivem em grupos sociais e de como corrigir, imediatamente, o atrito dos membros com o mínimo de esforço". E pode-se deduzir dessa teoria que, na regulação das relações interindividuais, tal análise particular da relação baseada no apelo à espontaneidade e à criatividade dos sujeitos nela envolvidos, seja, talvez, o mecanismo mais adequado (quiçá o único realmente eficaz) de solução de conflitos interpessoais em pequenos grupos, principalmente naqueles marcados por grande proximidade espaço-temporal, tal como é a família.

A tese da espontaneidade se reforça em Moreno (1992) na ideia de um estado natural do homem, um estado no qual ele desenvolva seus esforços e relações dentro da mais primária espontaneidade, sem qualquer sugestão doutrinária ou externa, através de afinidades e padrões construídos ou reconstruídos nos agrupamentos de acordo com interações espontâneas nas quais possa expressar livremente sua individualidade dentro do momento presente em que se encontra. O mesmo autor afirma, ainda, que as relações interpessoais se baseiam na experiência do encontro, como um evento concreto-situacional entre dois atores, que se experimentam e vivenciam um ao outro, e no qual podem exercitar a franqueza e a liberdade, unidos por objetivos mútuos. Isto porque, "somente pessoas que se encontram podem formar um grupo natural e começar uma verdadeira sociedade de seres humanos" (Moreno, 1992:169).

Nesta luta pela afirmação do princípio da liberdade, Moreno (1992) também questiona todas as formas de aprisionamento da espontaneidade, tais como a linguagem, a tomada de papel completa, normas rigidamente prescritas pelo costume ou pela lei, entre outros. A sua busca é retirar do humano todas as camadas de conserva as quais foi exposto com essas formas de aprisionamento, deixando nua a sua personalidade, para que ela possa expressar o processo inerente a seu próprio organismo, o seu processo natural de resposta uma situação presente nova ou a uma situação já conhecida, mas que exija novas soluções. Isto porque, muitos dos problemas humanos, adverte o autor, são decorrentes da perda da espontaneidade. E todos aqueles que procuram os fatores patológicos do ser humano e de suas relações acabam não se apercebendo disso, já que desconsideram a possibilidade de respostas satisfatórias e adequadas advindas da espontaneidade.

Logo, tanto para Rogers (1975, 1977) como para Moreno (1992), as relações humanas são possíveis na espontaneidade libertadora, e o ser humano, quando permitido, tende a comportar-se perante o outro de forma a também respeitá-lo. Qualquer padrão que não esteja de acordo com as tendências individuais só poderá ser mantido artificialmente e à custa de uma grande fragilização das relações e do ser humano, uma vez que não baseadas na verdade do ser, mas na mentira do manter-se o que não se é.

Seguindo a proposta dialógica, e tendo como principal referência Martin Buber, Hycner (1995), por sua vez, defende que a natureza humana é inerentemente relacional - relação na qual a individualidade é um dos pólos, rendendo-se ao "entre", mas que, apesar disto, quando do encontro do "eu e do tu", a singularidade de cada um é manifesta, aceita e compreendida em um diálogo perfeito, espontâneo, de interesse recíproco, em que um e outro se interpenetram. Aliás, para Hycner (1995), a verdadeira singularidade surge da relação genuína com os outros e com o mundo. A individualidade é apenas um dos polos de uma alternância rítmica global entre separação e relação, e ambas ocorrem dentro da esfera do "entre". Nesta relação autêntica alguns dos aspectos evidenciados pelo autor são: (1) a inclusão - um fenômeno no qual volto toda a minha existência para o outro a fim de experimentar tanto a sua experiência como a minha; (2) a aceitação - considerar que o outro ser é um ser único e particular e afirmando e confirmando a sua existência; (3) e a construção de técnicas ou métodos para aquela relação que surjam a partir dela, de modo a impedir formas prontas e receitas de lidar com relações humanas.

E no dilema familiar, segundo o qual a família é tanto espaço de autenticidade relacional como foco dos olhares atentos e julgadores da sociedade, importa-nos refletir sobre algumas afirmações desse autor:

Diferentemente dos animais, que parecem não questionar sua natureza animal, o ser humano precisa ser confirmado pelos outros, para se perceber como ser humano. '... Secreta e timidamente, ele espera por um Sim que lhe permita ser e que só pode chegar até ele vindo de uma pessoa para outra. [...] Devido a essa necessidade desesperada de confirmação acabamos nos tornando 'falsos eus' (Laing, 1965) ou, o que Buber chama de 'parecer'. Estamos tão sedentos de confirmação que, se não a recebemos por sermos quem somos, nos esforçaremos para obter qualquer coisa semelhante. Isto é, tentaremos consegui-la nos 'mostrando' da maneira que pensamos que a outra pessoa deseja. Criaremos uma impressão - nos empenhando em alguma forma de 'parecer', a fim de receber aprovação. Não somos nós mesmos. A ironia, é claro, está em que isto nunca é uma confirmação genuína e a pessoa, no fundo, sabe disso. Porém, esse reconhecimento de nosso existir, mesmo como um 'falso self', é preferível à ausência de reconhecimento (May, 1969). Todos os seres humanos desenvolvem o 'parecer' em alguma medida, a fim de sobreviver psicologicamente. Ainda assim, bem no íntimo da pessoa, a alma clama pelo reconhecimento de que esta pessoa única existe. (Hycner, 1995:60-61)

Este reconhecimento de cada pessoa como um ser único é um dos elementos do diálogo genuíno. Diálogo, porém, que não descarta o conflito. Follet (1997), neste sentido, percebe que a relação humana não é estática, ao contrário, ela é dinâmica, está sempre a evoluir; além disso, a relação não é meramente dual, simplificada, como se o Eu e o Outro nada tivéssemos em nosso comportamento em comum, mas apenas diferenças. Ao contrário, para a autora a relação é uma resposta circular, ou seja, ela se dá pelo encontro, pela interpenetração das minhas atividades com as do outro, pela recíproca influência que o Eu e o outro, relacionando-se, cria sobre eu e sobre o outro e de como isto ocorre continuamente. Eu influencio o outro na mesma medida que o outro me influencia e o "nós" relacionando-se, modifica-nos a ambos.

Já que, segundo Follet (1997), não há como prescindir das relações, e partindo-se do pressuposto que no âmago da consideração dos entes humanos encontramos, acima de tudo, diferenças, estas fazem com que, nessas relações a regra seja o conflito; ocorre que este deve ser tratado, não pelo julgamento de quem está ou não certo, pois em questão de interesses, ambos sempre o estarão, mas pelo entendimento do que é importante para um e outro,buscando soluções que satisfaçam a ambos. É a forma de se usar o conflito construtivamente.

Nas relações humanas, assim, a essência daquelas que procuram ser denominadas como verdadeiramente autênticas e significativas aos sujeitos envolvidos consiste na liberdade que permite a um e a outro ser o que são, respeitando e aceitando o outro nas diferenças que sua singularidade lhe impõe, no caráter espontâneo e construtivo da relação e nas soluções aos conflitos que surjam na interação; elas tendem a ser relações que não sofram a interferência inibitória de valores que não lhe pertençam ou que nada signifiquem para os sujeitos envolvidos, pois essa imunização realça o amadurecimento individual e social.

 

A Família e sua Importância na Realização Humana

No emergir de uma discussão reflexiva e desconstrutiva sobre a instituição Família na filosofia moral e jurídica, em meados da década de 1990, Warat (1997) despertava as reflexões sobre a família, seu significado, sua mais importante finalidade:

O próximo milênio nos há de encontrar comprometidos com um novo projeto de sociedade. Para que a espécie humana sobreviva temos que nos engajar na procura de um homem novo. Um projeto que tente começar por reconhecer que existe um espaço psíquico que está sendo absolutamente destruído pela tecnologia avançada. [...] Para o próximo século o ego affectus est deve tentar substituir aos processos excludentes do ego cogito. [...] As relações humanas encontram-se permeadas por um sentido que precisa situar-se no amor para extrair sua fonte de significação. [...] É evidente, para mim, que o amor perde sua qualidade quando transforma o homem em espelho amante das imagens estabelecidas e estabilizadoras, em espelho amante das culpas e dos códigos normativos. A qualidade do amor há de ser sustentada por uma experiência interior que dispense as exigências de uma moral culpabilizadora, de um sistema de valores que pretenda organizar a vida a partir de um inventário de expectativas maximamente repressivas. (Warat, 1997:21)

Ideias como estas levaram o questionamento sobre até que ponto a família jurídica, não estava por demais tipificada, normalizada, padronizada, não tendo, de fato, a afetividade como seu eixo fundamental. O termo "família", aliás, ensina Leite (1991), em suas primeiras significações jurídicas, significava a comunidade de escravos e servos que trabalhavam para a subsistência e se achavam sob a autoridade do pai, o que liga o sentido jurídico família à subordinação comum, algo que vai permear o instituto da família por vários séculos. Neste sentido, o autor afirma que a família, apesar de, ao longo da evolução dos sistemas sociais, assumir características diversas, origina-se de dados biológicos primários que são a união sexual do homem e da mulher e a procriação.

Tomada em função de seu contexto social, ensina o autor, citando Lévy-Strauss, a família era caracterizada como um grupo social originado pelo casamento, composto por marido, mulher e filhos unidos por laços legais, direitos e obrigações econômicas e religiosas, compondo uma rede precisa de direitos e de proibições sexuais, além de sentimentos variáveis. A sociedade, aliás, menciona explicando os estudos de Morgan, exerce influência inquestionável sobre a estrutura e a forma da família, impondo às relações que se estabelecem regras de observância obrigatória.

O modelo de família jurídico ocidental moderno oficial seria o modelo monogâmico. Quanto à finalidade patrimonial deste modelo, sobrepujando ou mesmo desconsiderando o amor como elemento de sua composição, Engels (2012), em estudo já clássico, revelou que estes casamentos eram promovidos por conveniência e a intenção era a de garantir ao homem não só a supremacia da família, subjugando a mulher, com a certeza de herdeiros legítimos a quem propagar seu patrimônio acumulado. Como instituição social, continua Engels (2012), o heterismo (relações extraconjugais) supria a ausência do amor conjugal e era praticado, sobretudo, e com vantagens pelos homens, pois as mulheres que buscassem essa prática eram gravemente condenadas e censuradas.

O casamento, como instituição pública, ensina Leite (1993), adveio da Revolução Francesa, mas teve sua origem na Reforma quando se questionava a interferência da religião na sua regulamentação por entendê-lo matéria pública. O casamento foi, assim, regulamentado pelo Estado por meio da inclusão da matéria nas codificações do século XIX. O Código Civil Francês de 1804, continua o autor, imprimiu características à família legítima e expurgou àquelas que se afastavam do modelo advindo do casamento.

Nessa virada conceitual de fins do século XX, a instituição família, segundo estudos da Fundação Getúlio Vargas (1986), passou a assumir outras funções, para além da reprodução da espécie, a criação e socialização dos filhos e a transmissão do patrimônio cultural, tais como a função econômica, a de conferir status e classificação social de seus membros, a função recreativa, a de assistência e a função de solidariedade. Também, em relação à família extensa de outrora, passou a ser afirmada a família nuclear como a grande responsável da socialização dos filhos e da estabilidade emocional e mental das personalidades adultas. Isso ocorre em virtude do maior número de divórcios, de mobilidade residencial, do enfraquecimento dos laços de parentesco, da emancipação da mulher, entre outros fatores. A família nuclear, continua essa fundação (1986), constitui uma adaptação especializada que acentua valores de desempenho, mobilidade social e solidariedade, em contraposição aos valores da família tradicional extensa que acentuava a permanência, a estabilidade e a continuidade através do nome, da profissão e da herança. A tendência, porém, segundo esses estudos, é considerar essa família nuclear não como uma mera relação de indivíduos, mas como um sistema de papéis.

Apesar de concordar no estreitamento das relações familiares ao núcleo central de relações dos pais entre si e entre seus filhos, dissolvendo a força da família extensa, Leite (1993) parece discordar que tal concentração reforce os papéis de cada parte, tal como acima foi afirmado. Ele entende que, neste momento em que a família deixa de ser uma instituição de finalidades patrimoniais e passa a ser uma escolha, uma decisão individual no estabelecimento de relações, as considerações de ordem econômica não mais prevalecem e se passa a dar espaço às considerações afetivas e pessoais. Com isto, afirma Leite (1993), ao invés da fidelidade às gerações, passou-se aos valores da felicidade e do desenvolvimento pessoal sustentados, não na quantidade, mas na densidade da família nuclear.

Essa nova configuração da instituição familiar, que tende a privilegiar a afetuosidade, a compreensão e a solidariedade, parece-nos uma adaptação necessária da instituição à relação, tal como acima a configuramos, e uma tendência do Estado brasileiro atual. Tal adaptação pode ser demonstrada em alguns traços que estão sendo conferidos à instituição família nos últimos anos por juristas, legisladores e juízes. Em primeiro lugar, consoante opinião de Farias (2003), deduzido do princípio da dignidade da pessoa humana, expresso no artigo 1º, III da Constituição Federal, o casamento deixou de ser o modelo oficial de família, passando esta a assumir um desenho plural, equiparando-se o casamento a outras entidades relacionais familiares, como a união estável e a família monoparental. Em segundo lugar, deduz-se disso a opção constitucional pelo amor, prestigiando o vínculo da afetividade.

O Código Civil de 2002 ratificou essa adaptação em diversos de seus dispositivos, sendo que o moderno direito de família, a qual ele está baseado, segundo verificação de Diniz (2004:17-28), é regido por princípios como: 1) o que afirma que a ratio do matrimônio e da união é a afeição entre os cônjuges ou conviventes e a necessidade de que perdure a completa comunhão de vida; 2) o da igualdade jurídica dos cônjuges e dos companheiros, isto é, as decisões devem ser tomadas de comum acordo entre conviventes; 3) o princípio da igualdade jurídica de todos os filhos, incluindo o reconhecimento de filhos havidos fora do casamento; 4) o princípio do pluralismo familiar, uma vez que a norma constitucional abrange a família matrimonial e as entidades familiares (união estável e família monoparental); 5) o princípio da consagração do poder familiar, considerado como um poder-dever compartilhado por ambos os pais; 6) o princípio da liberdade para constituir uma comunhão de vida familiar por meio de casamento ou união estável; 7) o princípio do respeito à dignidade da pessoa humana que constitui base da comunidade familiar.

As políticas públicas recentes também têm promovido essa adaptação da instituição família a modelos de relações familiares mais edificantes e atualizadores. Segundo o Ministério do Desenvolvimento Social (2009), por exemplo, a convivência familiar é soerguida na existência de vínculos de origem natural ou adotiva, independentemente do tipo de arranjo familiar onde esta relação de parentalidade e filiação estiver inserida; assim, para a tal política, não importa se a família é do tipo "nuclear", "monoparental", "reconstituída" ou outras. Deve-se, assim, ultrapassar a ênfase na estrutura familiar para "enfatizar a capacidade da família de, em uma diversidade de arranjos, exercer a função de proteção e socialização de suas crianças e adolescentes" (Ministério do Desenvolvimento Social, 2009:3).

Além desses pontos, a questão do reconhecimento de uniões que ultrapassam o fundamento procriativo que, historicamente, têm fundamentado a instituição família, também demonstra essa tentativa de adaptar a instituição à relação familiar. Nesse sentido, se direcionam, por exemplo, algumas importantes decisões judiciais acerca do reconhecimento de uniões de pessoas do mesmo sexo, como as decisões do Supremo Tribunal Federal nas ações Declaratória de Inconstitucionalidade nº 4277 (ADI 4277), e de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132 (ADPF 132), proferidas em maio de 2011, onde essa Suprema Corte entendeu pela a extensão do instituto da união civil a essas uniões. De acordo com essa decisão, em outubro de 2011, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ, 2007) reconheceu a habilitação do casamento civil para um casal de mulheres gaúchas.

Na decisão do Supremo Tribunal Federal referida, no voto do Ministro Ayres Britto, ressaltou-se que a isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma família autonomizada; e no voto do pleno do tribunal, deu-se ao artigo 1.723 do Código Civil de 2002 interpretação conforme à Constituição para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como "entidade familiar".

Deve-se ressaltar que, segundo Lobo (2011a), o artigo 226, § 3º da Constituição da República de 1988 não contém determinação de uma espécie específica de família, sustentando-se no princípio da igualdade das entidades familiares, como decorrência natural do pluralismo reconhecido nessa Constituição. O autor especifica, nesse sentido:

A análise detida da dimensão e do alcance das normas e princípios contidos no artigo 226 da Constituição, em face dos critérios de interpretação constitucional - notadamente do princípio da concretização constitucional, leva ao convencimento da superação do numerus clausus das entidades familiares.

A exclusão não está na Constituição, mas na interpretação que se lhe dá. [...]

Sob o ponto de vista do melhor interesse da pessoa, não podem ser protegidas algumas entidades familiares e desprotegidas outras, pois a exclusão refletiria nas pessoas que as integram por opção ou por circunstâncias da vida, comprometendo a realização do princípio da dignidade da pessoa humana.

Se todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem, e têm assegurada a convivência familiar e solidária, é porque a Constituição afastou qualquer interesse ou valor que não seja o da comunhão de amor ou do interesse afetivo como fundamento da relação entre pai e filho. (Lobo, 2011:80-83)

Seguindo o mesmo autor (2011), a "cláusula de exclusão" desapareceu da Constituição, passando o artigo 226 a ser "cláusula geral de inclusão", sendo os tipos familiares de seus parágrafos meros exemplos de entidades familiares. Também, consoante o ensinamento de Dias (2004) a respeito do conceito de família, o alargamento conceitual das relações interpessoais, consequência da constitucionalização das relações familiares, acabou deitando reflexos na própria conformação da família, que não possui mais um significado singular e nem é mais marcado por noções e diferenciações hierquizantes. Hoje se reafirma a primazia da pessoa concreta, considerada em suas necessidades e aspirações, sobre a dimensão patrimonial, sustentando-se, por meio da repersonalização do direito, notadamente, do direito de família (Fachin, 2002).

 

Considerações Finais

As informações acima elencadas sobre o processo de reconhecimento público de uma nova configuração das relações familiares, afirmando-as mais afetivas, voltadas para a autenticidade e mais libertárias, mostram uma grande aproximação entre as discussões travadas por um complexo de vozes - que vêm desde os movimentos sociais, passando por teorias psicológicas das relações humanas, até discursos políticos de reconhecimento da diversidade social e individual - e a realidade pública concreta.

Na prática, essa aproximação tem gerado, no desenho da instituição social família, uma alteração substantiva desta - de um estado de relações presas a tantos papéis, funções e valores que lhes eram impostos de fora, em nome da ordem e da contenção dos desejos, para uma certa tendência de tratá-las como relações sociais de busca de realização e encontro pessoal, nas quais há uma fervorosa necessidade dos seus sujeitos de um espaço para se manifestar enquanto ser que se é, enquanto potencial e fragilidade, diante, justamente, dos que lhe são mais próximos e íntimos (já que, na sociedade de massa, isso seria impossível e/ou temerário). As ideias advindas dos estudos da psicologia em autores como Rogers, Moreno, Hycner, entre outros, que afirmam a imprescindibilidade, para a integridade psíquica do ser humano, de relações autênticas, envolvendo tensões e compreensões profundas, mas atualizadoras, de um abrigo de reconhecimento e de consolo em nenhum outro grupo talvez alcançado e de condições que permitam o amadurecimento e a tendência atualizante, começam a ganhar legitimidade e reconhecimento público nas novas normas e decisões políticas e judiciais sobre as relações familiares. Família como instituição que passa a ser protegida pelo Estado e pela sociedade, emparelhando-se, consciente ou inconscientemente, com tais teorias e demandas, reconhecendo e legimando busca humana do encontro, da felicidade, da liberdade e espontaneidade criativa.

 

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Recebido em 11/09/2012.
Aceito em 19/01/2013.

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