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Revista Psicologia Política

versão impressa ISSN 1519-549X

Rev. psicol. polít. vol.13 no.26 São Paulo abr. 2013

 

A Influência da Família no Processo deEscolarização e Superação do Preconceito Racial: um estudo com universitários negros

 

The Family Influence in the Education and in the Process of Overcoming Racial Prejudice: a study with black undergraduate students

 

La Influencia de la Familia en el Proceso de Escolaridad y Superación del Prejuicio Racial: un estudio con universitarios negros

 

L'influence de la Famille dans le Processus de Scolarisation et de Maîtrise des Préjugés Raciaux: une étude de l'université noire

 

 

Edna MartinsI; Aparecida das Graças GeraldoII

IDoutora em Psicología da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e docente do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, SP, Brasil. edna.martins@unifesp.br
IIMestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e docente da Universidade Estácio de Sá, São Paulo, SP, Brasil. cidagerald@gmail.com

 

 


RESUMO

Partindo de uma perspectiva qualitativa, este artigo discute a influência da família na trajetória de escolarização do aluno negro a partir de memórias de universitários negros. A análise dos relatos dos estudantes possibilita reflexões sobre a influência da família no rompimento da exclusão escolar, assim como no enfrentamento da discriminação racial ocorrida nas interações do aluno negro no interior da escola. A pesquisa também oferece elementos que podem contribuir para a discussão das relações étnico-raciais no questionamento de situações de humilhação e racismo omitidas e silenciadas pela escola e família.

Palavras-chave: Família, Discriminação, Relações étnico-raciais, Preconceito, Escolarização.


ABSTRACT

From a qualitative perspective, this paper discusses the family influence in the schooling process of black students considering the memories of undergraduate black students. The analysis of student's reports enables reflections about the family's influence in the disruption of school exclusion, as well as fighting racial discrimination that occurs in the interactions of black students within the school. The research also provides evidences that can contribute to the discussion of ethnic-racial relations in the questioning of humiliating situations and racism hidden and silenced by the school and family.

Keywords: Family, Discrimination, Ethnic-racial relations, Prejudice.


RESUMEN

Desde una perspectiva cualitativa, este artículo analiza como la familia influye en el trayecto de escolaridad del alumno negro a partir de memorias de universitarios negros. El análisis de los informes de los estudiantes permite reflejar acerca de la influencia de la familia en el rompimiento de la exclusión escolar, bien como en la lucha contra la discriminación racial que se producen en las interacciones del alumno negro en el interior de la escuela. La investigación también ofrece evidencias que pueden contribuir para la discusión de las relaciones étnico-raciales en el cuestionamiento de situaciones de humillación y racismo omitidas y silenciadas por la escuela y por la familia.

Palabras clave: Familia, Discriminación, Relaciones étnico-raciales, Prejuicio, Escolarización.


RÉSUMÉ

D'un point de vue qualitatif, cet article traite de l'influence de l'histoire de la famille à la trajectoire de scolarisation de l'étudiant noir à partir des souvenirs des étudiants universitaires noirs. L'analyse des entretiens permet des réflexions sur l'influence de la famille à la rupture du processus d'exclusion scolaire, ainsi que dans la lutte contre la discrimination raciale qui s'est produite dans les interactions de l'étudiant noir à l'école Cette recherche fournit également des éléments qui peuvent contribuer à la discussion de la question ethno-raciale dans les situations d'humiliation et de racisme omis et réduits au silence par l'école et la famille.

Mots clés: Famille, Discrimination, Question ethno-raciale, Préjugé, Scolarisation.


 

 

Introdução

As discussões a respeito das relações étnico-raciais têm ganhado força nos últimos anos e o racismo, fenômeno cultural e sociológico, tem sido observado em pesquisas que focalizam a escola e os seus atores (Munanga, 2000; Cavalleiro, 2001 e 2003; Castro e Abramovay, 2006; Silva e Branco, 2011). O tema das desigualdades entre negros e brancos tornou-se atualmente um tópico importante em agendas governamentais e científicas, principalmente no que se refere à implantação de políticas públicas de ações afirmativas, dentre elas o sistema de cotas em Universidades. A Psicologia, por sua vez, a passos lentos, vem se aproximando dessa problemática na busca de modelos de compreensão para o fenômeno, assim como na produção de metodologias para lidar com o sofrimento diante da humilhação e discriminação vividas pelo negro que, diariamente, enfrenta obstáculos que o impedem de usufruir de oportunidades equânimes na atual sociedade. Tudo parece indicar que estamos longe da superação da ideologia de que temos em nosso país uma "democracia racial". "A "invisibilidade" do processo de discriminação racial reaviva o mito da democracia racial, impedindo uma discussão séria, franca e profunda sobre as relações raciais brasileiras e, mais que isso, inibe a implementação de políticas públicas específicas para os negros". (Santos, 2008:19)

Partindo do enfoque da Psicologia histórico-cultural, que compreende os processos de desenvolvimento humano em suas multideterminações, buscamos desenvolver nossas análises com o apoio nas ideias de Vygotsky e seus colaboradores, considerando os aspectos psicológicos, culturais e históricos, bem como as contradições que perpassam a vida de estudantes negros e suas famílias. Nesse sentido, procuramos focar nossa investigação nas práticas discriminatórias ocorridas no processo de internalização das práticas sociais que emergem das interações vivenciadas pelas crianças negras na escola. O objetivo deste trabalho, portanto, foi compreender por meio de narrativas de trajetórias de vida escolar de jovens universitários negros, a influência da família no processo de enfrentamento de situações de discriminação e preconceitos que fizeram parte da constituição de suas subjetividades, configuradas por determinantes de espaços, discursos, personagens e contextos socioculturais. No atual cenário politico brasileiro em que se insere o intenso debate sobre as ações afirmativas e a implantação de políticas públicas que favoreçam a vivência de situações mais justas e igualitárias na sociedade, entendemos que essa deva ser uma das temáticas centrais no espaço ocupado pelas problemáticas discutidas pela Psicologia Política na busca de uma educação antirracista, pela equidade social.

 

Trajetórias Escolares de Crianças Negras

Enquanto prossegue a discussão polêmica sobre o Projeto de Lei nº 73/1999 de cotas, simultaneamente começam a aparecer os movimentos de implementação das políticas públicas de ação afirmativa em vários setores da sociedade. Despontam também estudos e avaliações como os realizados pelo SAEB (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica) em 2005, apontando resultados alarmantes sobre a proficiência de alunos das séries iniciais do ensino fundamental (INEP, 2007). A situação parece ainda mais grave com relação às crianças negras. Henriques (2002) afirma que, em média, os alunos negros possuem apenas 5,3 anos de estudo. Poucos conseguem chegar até a 5ª série e iniciar a 6ª série do ensino fundamental. Há também diferenças significativas quanto aos anos de estudos. Em média, os alunos brancos possuem dois anos a mais que os alunos negros.

Segundo Castro e Abramovay (2006) a concentração de alunos negros se dá em sua maioria nas escolas públicas em maior proporção do que era de se esperar. Com a diferença mais acentuada por raça/cor aparece São Paulo, onde 55,00% dos alunos no nível fundamental das escolas públicas são negros, enquanto apenas 22,40% dos alunos nas escolas privadas são dessa mesma inscrição étnico-racial. As estatísticas do SAEB também são surpreendentes: os alunos brancos, além de alcançarem proficiência média maior que a dos alunos negros em todas as séries pesquisadas, também têm essas diferenças acentuadas com relação aos negros na medida em que os alunos avançam nas séries do sistema educacional.1 Conquistas a partir de leis como a Lei nº 10.639/2003 que estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana na Educação do ensino Fundamental e Médio, e a implementação do projeto de lei de cotas nas universidades públicas, por exemplo, estão longe de conseguir mudar a realidade do negro nas escolas brasileiras. Ao analisar o preconceito racial na educação escolar e seu impacto no aprendizado do aluno negro, Munanga (2000) afirma que apesar do processo de exclusão que assola a vida de alunos pobres das escolas públicas e periféricas do Brasil, os resultados de todos os estudos mostram que mesmo nas escolas públicas mais periféricas e marginalizadas em que a maioria dos alunos são pobres, quem acaba levando o pior em termos de insucesso escolar é o aluno afrodescendente. Neste sentido, pode-se afirmar que a pobreza e a classe social não constituem as únicas explicações para o fracasso ou exclusão do aluno negro do sistema escolar.

O trabalho de Castro e Abramovay (2006), ocorrido em dez capitais brasileiras, oferece dados suficientes para comprovar que o racismo e a discriminação fazem parte do cotidiano escolar. O aluno negro é humilhado nos apelidos que recebe dos colegas e muitas vezes no tratamento e na omissão observada entre os professores. A discriminação na escola não ocorre de forma isolada apenas entre os atores escolares, mas compreende várias ações, ausências e escassez de discussão sobre o assunto na instituição escolar, o que contribui para sérios prejuízos no processo de aprendizagem do estudante negro, além de causar a ele problemas identitários e intenso sofrimento psicológico.

 

As Influências Familiares na Escolarização de Crianças

A relação entre família e escola vem constituindo objeto de muitos estudos (Szymanski, 2001; Carvalho, 2004; Chechia & Andrade, 2005). Questões como os fatores que podem ser determinantes do sucesso e do insucesso escolar, ou como a família pode contribuir para a longevidade da criança na escola estão presentes em pesquisas sobre a temática. As famílias de classes populares historicamente têm sido vistas pela escola como as responsáveis pelo insucesso das crianças nas questões ensino/aprendizagem. Patto (1999) afirma que na tentativa de se eximir da culpa com relação ao seu fracasso em sua função de educar, a escola desenvolve preconceitos que atingem a classe trabalhadora, principalmente com relação a famílias pobres e negras, marginalizando suas crianças e depositando nelas toda a sorte de distúrbios. O rótulo de "família desestruturada" faz com que essas famílias, por terem diferentes formas de constituição e, basicamente, por não terem um capital cultural respeitado pela classe privilegiada sejam vistas pela escola e sociedade como as responsáveis pelo insucesso de seus filhos.

O preconceito com relação às famílias negras vai além daquele que se destina às famílias brancas e pobres. Num texto da década de 80, pesquisadores da Psicologia e Educação apontam as famílias negras como "[...] muito mais instáveis do que as famílias brancas de classe baixa. Os lares desfeitos são bem mais comuns entre famílias negras do que entre famílias brancas com pais mais ausentes e uma atmosfera familiar negativa para a educação das crianças." (Ausubel, Novak & Hanesian, 1980:406).

Os autores apresentam uma família negra estereotipada, sem apontar a teia de relações engendradas numa sociedade capitalista em que desigualdades sociais e raciais colocam alguns grupos familiares fazendo parte de perversas estatísticas. Não apontam que o negro em seu processo histórico foi vitimizado pelos processos sociais, políticos e econômicos excludentes. Dessa forma, as famílias negras e pobres passam a ser vistas pela negatividade, falta ou carência, descartando a historicidade e as determinações econômicas e políticas que compõem suas particularidades.

Quando pensamos as interações no contexto da escola e suas relações com a família dos alunos negros, percebemos a reprodução das desigualdades entre brancos e negros na sociedade brasileira, pautada numa relação assimétrica de dominação e subordinação, enquanto na família, sentimentos que dizem respeito a essas diferenças são silenciadas como aponta Cavalleiro: "Assim, a família protela, por um tempo maior, o contato com o racismo da sociedade e com as dores e perdas dele decorrentes, "silencia" um sentimento de impotência ante o racismo da sociedade que se mostra hostil e forte [...]." (2003:100).

Observamos que se para a criança branca e pobre no processo de escolarização já há obstáculos na assimilação da cultura das classes dominantes exigidas pela escola, haja vista para as crianças negras, que são duplamente prejudicadas, pois além de pertencerem a camadas mais pobres da população e passarem por toda a sorte de adversidades, possuem características étnico-raciais, que fazem com que sejam estigmatizadas, passando por um ciclo de derrotas e frequentes humilhações. Desse modo, esse trabalho traz reflexões sobre as formas de enfrentamento dos percalços escolares durante a trajetória de jovens negros na escola, buscando compreender como ocorre a participação da família nesses processos, assim como identificando elementos que contribuem para a longevidade escolar do aluno negro, levantando características dos contextos e das relações escolares, via percepção desses atores sobre a escola da qual fizeram parte.

 

Metodologia

A Pesquisa foi realizada com 07 alunos e alunas de uma universidade particular da cidade de São Paulo. Todos os entrevistados faziam o curso de Direito e Administração de Empresa e se autodeclararam negros. Possuíam idade entre 20 e 33 anos e, ao aceitarem voluntariamente participar da pesquisa, assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, concordando com as questões propostas na entrevista. Todos os entrevistados eram moradores de bairros periféricos da cidade de São Paulo. Com exceção de uma família em que o pai cursou a universidade tardiamente, em todas as outras famílias os pais possuíam apenas o ensino fundamental incompleto.

O instrumento

Considerando a importância da fala e das narrativas nos processos de investigação qualitativa, concordamos com Minayo & Sanches (1993:245) quando afirmam que: "A fala humana possui a função essencial de transmitir, através de um porta-voz (o entrevistado), representações de grupos determinados em condições históricas, socioeconômicas e culturais específicas". Dessa forma a unidade de análise, partindo de uma abordagem histórico-cultural é a própria palavra que expressa a fala cotidiana, seja nas relações afetivas, no discurso de vivências triviais, nas histórias de vida ou nas lembranças de uma memória já quase apagada.

Utilizando o recurso de entrevistas semiestruturadas, buscamos direcionar o discurso do entrevistado em alguns aspectos e favorecer a condução da interação entre pesquisador e pesquisado. A partir de um breve roteiro e da interlocução com os entrevistados obtivemos respostas sobres os seguintes aspectos e as suas intercorrências:

a) Vida acadêmica (Educação Infantil, Ensino Fundamental I e II e Ensino Médio);

b) Rendimento escolar/reprovação (causas, número de vezes, superação), conteúdo/ aprendizagem, vivência/experiências positivas e negativas (superação), relação professor-aluno (se negativas, superação), rede particular ou pública;

c) Influência da família no processo de escolarização; ingresso no ensino superior; apoios recebidos.

 

Análise de Dados à Luz do Enfoque Histórico-Cultural

Embora Vygotsky e seus colaboradores não tivessem como objeto de estudo a questão étnico-racial, as reflexões que fazemos a respeito desse fenômeno partem de suas ideias sobre desenvolvimento humano, principalmente no que se refere à linguagem e a interação humana como condição necessária para a humanização no transcorrer da história de nossa espécie. O enfoque histórico-cultural aponta que a constituição do ser humano se dá a partir de processos de internalização do mundo cultural que pode estar contido tanto nos objetos do contexto social quanto nas relações entre os sujeitos. Os diversos símbolos, códigos, crenças, vivências e objetos culturais presentes na vida de um indivíduo são elementos essenciais para a construção da consciência humana. Dessa forma, a linguagem, mediadora das interações entre os homens, tem uma força poderosa nos processos de subjetivação dos sujeitos e, portanto, pode ser vista como "[...] uma das vias importantes de disseminação do preconceito étnicoracial, através da utilização de termos pejorativos que, em geral, desvalorizam a imagem do negro." (Silva & Branco, 2011:199).

A linguagem de uma comunidade ou o discurso social são carregados de significados e cotidianamente internalizados pelas crianças em suas relações mediadas pelos outros, assim "[...] o discurso, o mais poderoso e penetrante dos dispositivos semióticos, funciona como uma ferramenta psicológica na construção da consciência individual. [...] O discurso interior é o resultado de um processo construtivo pelo qual o discurso a partir dos outros e com os outros se tornou discurso para o eu" (Daniels, 2011:46).

Segundo Madureira e Branco (2007) a perspectiva histórico-cultural compreende que na dinâmica e complexidade do desenvolvimento da criança, os processos de internalização e externalização dos significados culturais não são meras reproduções de mensagens culturais, mas ao serem ouvidas pelos sujeitos são invariavelmente transformadas. Além disso, essas mensagens emitidas pela canalização cultural, ainda mesmo quando redundantes, têm o poder de influenciar a afetividade e a motivação dos sujeitos.

Nessa mesma perspectiva, Silva e Branco (2011) apontam que nos processos interativos a criança é distinguida nos vários modos de aprovação ou desaprovação das pessoas mais experientes e poderosas. Além disso, a criança ao ouvir determinadas falas em uma comunidade pode transformá-las e internalizá-las, construindo assim uma narrativa de si mesma. Estas posições, apesar de não determinarem completamente o "self" da criança, não são simples cópias das visões das outras pessoas, mas são semioticamente construídas e reconstruídas no curso do desenvolvimento. Dessa forma, o discurso do outro, assim como as formas subjetivas de internalizacão dessa linguagem, pode afetar de forma perversa a criança negra dentro ou fora dos espaços escolares.

Muitas falas dos sujeitos entrevistados apontam para a forma depreciativa e hostil com que foram tratados desde os primeiros dias em que frequentaram a escola. Os apelidos, xingamentos e a omissão escolar vividas em suas primeiras experiências de escolarização podem ter gerado nessas crianças um processo de desenvolvimento de suas identidades tendo como elementos mobilizadores o discurso social. Esse discurso ouvido e internalizado dia a dia, durante longos períodos de tempo tem força suficiente para diminuir a crença da criança em sua capacidade de aprender e de desenvolver ativamente sua capacidade de socializar-se, acarretando um processo devastador de desvalorização de suas características e atributos étnicos e sociais. O preconceito e as muitas formas de discriminação sofridas e vivenciadas pelas crianças negras no interior da escola, no plano das interações subjetivas podem gerar nesses sujeitos uma visão distorcida sobre si mesmos e sobre o mundo que os rodeia (Madureira & Branco, 2007).

Procuramos organizar os dados em categorias à luz da perspectiva histórico-cultural, a partir da transcrição literal do discurso dos entrevistados. Além da organização descritiva das narrativas, alinhavamos as questões em pequenas temáticas e num processo de abstração buscamos os extratos que fossem mais relevantes para a compreensão do fenômeno estudado. Em todos os procedimentos utilizados para a análise houve a tentativa de realizar um diálogo constante com o enfoque teórico proposto, num panorama que pudesse ir além da aparência da realidade, num movimento dialético de superação da mera descrição empírica.

 

Significando a Escola: estudando na escola da periferia metropolitana

A maioria dos entrevistados era ou passou a maior parte da vida escolar em bairros periféricos na zona Leste de São Paulo estudando em escolas públicas. A visão e o significado que esses jovens construíram sobre essa escola são pautados na realidade em que viveram, assim como no discurso social sobre escola pública brasileira. Aguiar e Ozella (2006) apontam que os significados são construídos a partir de produções históricas e sociais em constante movimento. Portanto, para entender como esses estudantes significam a escola em que estudaram é preciso compreender que essa construção foi realizada a partir de suas apropriações do que foi e é a escola, pois os significados estão ligados àqueles conteúdos que são instituídos, de maneira mais fixa, e ao serem compartilhados pelos sujeitos recebem configurações subjetivas. Na fala de Marcos é possível notar o significado de escola pública da periferia atrelado a um discurso social que exprime algo que parece já estar instituído para aqueles que vivem a educação pública brasileira:

[...] na periferia nós sabemos como é a educação primária. [...] Professores mal pagos, qualidade de ensino não é das melhores, lógico tem muitos professores que se esforçam para dar o melhor de si, mas na verdade você acaba sendo prejudicado por todo um sistema, você acaba não aprendendo tudo o que deveria aprender, você acaba sendo empurrado, não tem uma assistência dos professores de reforço escolar, de matéria, de apoio, de livros bons, então você cresce tendo dificuldades em escrever e principalmente em entender textos em fazer contas de matemática.

A forma como Marcos e outros atores que viveram essa escola a significam representa a educação numa relação imbricada com toda a sociedade em que vivemos. Assim, uma história individual ou particular de um aluno negro sobre sua escola da periferia parece encontrar eco numa expressão do discurso social. Nesta perspectiva as funções da escola deixam de aparecer como processos isolados e fragmentados, para aparecer como momentos de sistemas mais complexos, dentro dos quais se constituem em sua significação e sentido. Nesse caso, Gonzalez Rey (2003:78) defende que "a subjetividade não é algo que aparece somente no nível individual, mas que a própria cultura dentro da qual se constitui o sujeito individual, e da qual é também constituinte, representa um sistema subjetivo, gerador de subjetividade". Assim, quando os entrevistados expressam o significado de serem alunos de uma escola pública, estão também expressando sua condição social em geral.

Uma escola pública bem ruim, que não foge muito do normal, que é o que todo mundo deve dizer, mas se classificava como uma das piores, baseando na realidade, olhando de fora eu consigo perceber, era uma má organização, administração, não tinha professor, os professores que tinha eram aqueles que estavam lá há trinta anos, que deram aula para os seus pais e eu estudei nesta escola da primeira a oitava série. (Rita)

Quando a entrevistada aponta "que olhando de fora" ela consegue perceber, é como se ela se distanciasse do que vivenciou e com uma lente especial pudesse perceber como a escola era de fato em seus pormenores. Além de ter os vários problemas administrativos e técnicos, para Rita pesou também o fato de serem os mesmos professores de seus pais. Talvez não por serem os mesmos no sentido identitário do termo, mas pela questão temporal, por se manterem tanto tempo em posições ou com metodologias semelhantes e retrógradas.

 

Discriminação na Escola: humilhações e omissões na trajetória escolar de jovens negros

Estudos como os de Cavalleiro, (2001, 2003); Munanga, (2000); Castro e Abramovay, (2006) dentre outros, têm demonstrado as mais variadas formas de racismo presente no interior da escola brasileira. O relatório anual das desigualdades raciais no Brasil: 2009-2010 organizado por Paixão e colaboradores (2010) permite que reconheçamos a ocorrência de discriminação étnico-racial nos espaços escolares, principalmente quando se evidenciam as diferenças entre proficiência de alunos brancos e negros. O preconceito e as muitas formas de expressão do racismo nesses contextos podem ser visíveis ao observarmos as práticas pedagógicas, as interações entre os atores escolares, os textos e gravuras dos livros didáticos, dentre outros elementos que permeiam as relações e os papéis sociais institucionais.

Segundo Cavalleiro (2003) a instituição escolar em todos os seus aparatos técnicos e profissionais, historicamente tem sido omissa, não respeitando a diversidade étnico-racial e a dignidade das crianças e da juventude negra, o que em muitos casos pode ter provocado a exclusão e o fracasso de um grande contingente de alunos. Ao se omitirem com relação à presença de discriminação ou preconceito racial na escola, os educadores e a escola de um modo geral se isentam de qualquer envolvimento com a questão. Desse modo o sofrimento psíquico do aluno negro não é reconhecido, faltando-lhe acolhimento e, sobretudo, valorização de seus atributos étnicos-raciais. Na fala de Homero, como na de outros entrevistados, a questão da discriminação seguida pela omissão dos professores aparece fortemente marcada por um sentimento de desproteção e impotência diante da realidade imposta. Ele aponta que segundo um autor que não se recorda: [...] "as pessoas não nascem racistas, e também as pessoas não nascem omissas"; alguém ensina isso e a subjetividade da escola é perfeita para isso." Em suas memórias, ele guarda cenas de omissão da escola:

[...] o professor via, mas só falava que não podia fazer aquilo comigo, mas não tinha uma preocupação real em relação de como eu estava absorvendo tudo aquilo, tinha uma preocupação somente em punir teoricamente os outros colegas que faziam estas agressões verbais, mas jamais se preocupou em saber como eu estava absorvendo tudo aquilo. (Homero)

Para Castro e Abramovay (2006:191) existe uma negação sobre a identificação racial dentro da escola e fora dela, entretanto há recorrentes episódios de associação entre apelidos e xingamento em que a cor da pele das crianças aparece associada a sua identidade afrodescendente. "O corpo do aluno negro é campo de vivências e convivências, decolando daí sentidos sociais e referências identitárias". Quando se referem à cor da pele por meio desses apelidos, constroem-se marcas raciais e traços que vão identificar aquele grupo, reduzindo assim os alunos negros em sua nominação e as suas características raciais. Segundo Homero: "desde criança sempre me deparei com o racismo, com aqueles apelidos nojentos, racistas, aquela coisa de crioulinho, macaquinho, mulatinho, moreninho. Todos esses apelidos racistas".

As professoras, segundo alguns entrevistados, não reagiam e muito menos adotavam estratégias para enfrentar e modificar tal situação. É possível perceber indicações de que quando o educador se deparava com situações de racismo em sala de aula não as enfrentava adequadamente, indicando que esse tipo de evento ou atitude pode ser aceito como "natural" ou apenas como uma brincadeira entre alunos, ainda que a professora, mesmo sendo branca pertencesse a uma classe social desfavorecida, nas palavras de Homero: "Uma professora que é branca e pobre, que tem as mesmas condições, o que você acha que a professora vai resolver? O máximo que ela faz é colocar um para um lado e o outro para o outro. Aparta a discussão, mas não resolve o problema de convivência.".

Em muitas dessas situações, o aluno negro não sabe como mudar o que está posto. Ele é agredido e hostilizado, vê seus amigos passando pelo mesmo sofrimento que ele, mas não se vê reagindo. Segundo Nascimento (2001:119) nas escolas brasileiras a maioria das crianças negras são orientadas pelas suas famílias e também por professores a não reagir na ocorrência de situações em que são hostilizadas, agredidas ou tratadas por apelidos racistas. Por outro lado, a falta de punição a atitudes racistas ocorre porque muitas crianças se veem encorajadas a persistirem em seus comportamentos de discriminação, pois são encorajadas ao não serem punidas devidamente por pais ou educadores. Essas atitudes vão aos poucos imprimindo na criança negra uma atitude de negação de sua identidade ou de apatia diante da realidade que são incapazes de mudar. Esse sentimento pode permanecer por toda a infância e em muitos casos, até a fase adulta:

[...] porque lá na escola no ensino fundamental eu vejo o meu colega ser chamado de macaco, de negrinho, que é igual a mim por um coleguinha branco e pobre, que está ralando o ombro comigo, por uma razão ou outra e a construção do próprio sistema ele se sente superior e eu não faço nada para mudar isso. Não vai ser na fase adulta que eu vou conseguir mudar essa realidade. (Mauro)

Bock (2005:121) afirma que observando a história brasileira constatamos que o preconceito racial é fruto da produção de diferenças entre negros e brancos. Fica visível na fala de Mauro que desde pequena a criança branca da mesma classe social discrimina seu colega que é negro. Isso ocorre, segundo a autora, porque historicamente os brancos foram intitulando-se mais capazes, apontando padrões estéticos de beleza e de identificação em que a negritude era rechaçada. O preconceito, portanto, é um fenômeno social que possui uma dimensão subjetiva, ou seja, "a dimensão dos significados, das emoções relacionadas aos fatos, das imagens e das ideias, objetivadas ou não." Os sujeitos vivenciam uma parcela desses elementos e constroem sentidos subjetivos, assim como suas identidades, já que a subjetividade se constitui na relação dialética por intermédio de mediações que variam a partir da realidade objetiva.

 

Aluno Negro em uma Escola Privada de Maioria Branca

Segundo o censo escolar de 2005 apenas um terço dos alunos matriculados no ensino fundamental e médio de escolas privadas no Brasil que declararam a sua cor se considerava negro (preto e pardo). Os dados da pesquisa realizada pelo INEP ainda apontam que nas escolas públicas, esse índice ultrapassa a metade, chegando a 56,4% dos estudantes.

O trabalho de Castro e Abramovay, (2006) também investigou um quociente de escolas privadas em que existia a presença de estudantes negros. A pesquisa traz relatos de alunos e alunas negras de escolas particulares que sofriam isolamento e hostilidades por parte de seus colegas, assim como no relato de um de nossos entrevistados:

Era uma escola particular de cunho religioso, com freiras. E com isto desde muito cedo, desde o início da minha vida escolar comecei a conviver com o racismo, com o racismo propriamente dito. Aquela coisa de ter só um preto na sala de aula, só eu de preto na sala de aula. [...] e eu tinha de confrontar com todo um tradicionalismo religioso católico, com toda uma sequência de fatos históricos. (Homero)

Nesse e em outros relatos, podemos perceber que parece haver uma segregação espacial dos alunos negros e que em muitas escolas, principalmente as particulares, eles estão em menor número. Além disso, parece haver também uma tendência de culpabilização do próprio aluno e também de sua família pelo isolamento e discriminação. No trabalho de Castro e Abramovay, (2006) aparece uma fala de um diretor branco de uma escola particular que aponta que as dificuldades encontradas pelos alunos negros se dão pelo fato de eles serem a minoria na escola e, ao não se identificarem com os brancos, acabam tendo a sua integração prejudicada. Para Homero apenas uma parte dessa questão parece ser verdadeira. Ele aponta para uma diferença singular entre escola particular e escola pública: a presença de negros.

Depois que fui para a escola pública, eu comecei a conviver com mais pretos e mais pretas, então estava mais em casa, ao mesmo tempo sofri um preconceito por ser de escola particular, mas era muito melhor do que estudar lá naquela escola, que a todo momento era apontado, açoitado verbalmente. Na escola pública a maioria é de descendentes africanos, então a convivência foi mais tranquila. Foi bem isto porque naquele momento eu estava com os meus, com meus de cor de melanina, de corpo e de carne. (Homero)

Na escola particular Homero era estigmatizado, excluído e insultado por ser negro e diferente da maioria branca. Segundo Salles Jr (2006), em casos de discriminação como esses é comum que os agressores se utilizem de formas de agressão simbólica como as ironias, os trocadilhos, as piadas e os provérbios. Essas atitudes hostis podem provocar naquele que é o alvo das agressões um comportamento similar de agressividade, raiva ou desdém, mas pode também provocar outros estados afetivos, com seus respectivos comportamentos, como horror, vergonha e tristeza. Contextos em que ocorre a discriminação ostensiva são fontes provocadoras de frustração das expectativas investidas na situação de interação social, que podem desorientar o sujeito que sofre a agressão.

O indivíduo envergonhado enrubesce, ao mesmo tempo em que procura demonstrar-se indiferente ou inalterado, tentando restabelecer a situação de cordialidade ou mostrar-se imune à discriminação constrangedora, quer negando o estigma de que é portador, quer negando que ele seja motivo de vergonha. Esse quadro pode evoluir para um estado de verdadeiro "remorso existencial", ou seja, vergonha de si, culpa de ser. Segue-se, então, a tristeza, o abatimento e o desespero. (Salles Jr, 2006:246)

Ir para uma escola em que a maioria era negra foi importante para o processo de formação de identidade de Homero, que passava por situações cruéis na escola privada. Na instituição pública, ele experimentou a interação com aqueles com os quais podia se identificar, desse modo ele atribuiu novos sentidos ao discurso socialmente estabelecido a partir de sua condição étnico-racial e sócio-histórica no contexto da nova escola. A questão da identidade do negro não é objeto de estudo desse trabalho, porém é uma temática bastante complexa que pode ser revista em diversos trabalhos como os de Ferreira (2001); Madureira e Branco (2007) e Silva e Branco (2011). Ressaltamos que a família em suas muitas formas de socialização representa um importante elemento nos processos de formação de identidade.

 

Enfrentando a Discriminação na Escola: a influência da família

Trabalhos como o de Patto (1999) e Carvalho (2004) dentre outros, apontam como ocorre a culpabilização das famílias quando a escola não consegue cumprir o seu papel. As acusações se dirigem principalmente às famílias da classe trabalhadora pela própria escola, pela mídia e até por outros pais e mães por se ausentarem na educação dos filhos e não darem a devida importância às atividades escolares. No caso de crianças negras são escassos os trabalhos que relacionam as questões raciais e a influência da família no processo de escolarização das crianças. Um dos poucos estudos que sinalizam sobre a relação da família com a escolarização de crianças negras é o de Cavalleiro (2001). A autora aponta que muitas vezes a família, na tentativa de poupar as crianças do sofrimento causado pela humilhação e discriminação racial, não conversa sobre esse assunto em casa. O preconceito e a identidade racial deixam de ser discutidos de forma clara com os membros da família, principalmente com os de mais tenra idade. Apesar da família negra se silenciar face ao racismo, muitos pais vão até a escola pedir explicações em casos de maus-tratos ou discriminação, como aponta Gabriela: "O meu irmão foi maltratado na escola e o meu pai foi lá e bateu de frente com a diretoria, perguntou se eles estavam maltratando meu irmão porque ele era negro...".

Sobre o silêncio na família, outro relato é bastante elucidador. A entrevistada encontra somente depois de adulta a possibilidade de tratar do assunto com a família. Como era um pouco mais clara que o pai, afirma que nunca soube que o seu pai sofria preconceitos. Na mesma fala, o pai demonstra ter problemas com a sua própria identidade, buscando a partir do casamento o branqueamento de sua prole.

[...] em casa, eu falava das coisas que aconteciam na faculdade para o meu pai e ele começou a se abrir e contar coisas que aconteceram na sua infância e juventude, que nunca quis passar; ele não queria que os filhos crescessem com isso na cabeça. Eu falei que não acreditava e ele falou que acontecia mesmo e eu perguntei por que ele nunca tinha falado isso. Ele falou que quando era adolescente ele queria se casar com uma mulher loira, para que seus filhos não passassem pelo que ele passou. Ele ficou com isso na cabeça e só fiquei sabendo de tudo depois de velha, quando estava na faculdade. A minha mãe é branca e o meu pai negro, a minha pele é clara. (Helena)

Além de observarmos a questão do silenciamento da família de Helena sobre as questões raciais, outro elemento de sua narrativa é bastante enfático: o casamento de seu pai (negro) com sua mãe (branca). Sobre esse assunto Domingues (2002) aponta que no Brasil pós escravatura o casamento como constituição da família, complementada pelo nascimento dos filhos, seria uma maneira para que as futuras gerações de negros se distanciassem de sua origem racial. Essa seria uma das únicas saídas que as famílias negras tinham quando "[...] imaginavam que os filhos e os netos dos casamentos com pessoas mais claras (sic?) levariam uma vida com menos dor, sofrimento e com mais chances de vencer na vida." (Domingues, 2002:583). Historicamente com novas nuances, a ideologia do branqueamento chega aos nossos dias. Numa tentativa de se aproximar cada vez mais da suposta superioridade do branco, o discurso social sobre o casamento e a constituição de uma família com filhos "mais claros" ainda persiste. Ao apontar como essa ideologia foi marcante no início do século XX em São Paulo, Domingues (2002:592) afirma que "[...] quanto mais profundos os traumas do racismo, mais o negro ajustava seu comportamento e atitudes de acordo com a ideologia do branqueamento; quanto maiores os ataques racistas, mais profundos eram os traumas".

Além de sofrer discriminação racial, a família pobre e negra parece ser a mais afetada pela culpa dos problemas de aprendizagem das crianças, eximindo a escola de sua responsabilidade de ensinar. É também comum que no caso de família pobre, o rótulo de família "desestruturada" caiba tanto para alunos brancos como para os negros, contudo parece ocorrer que "os alunos negros regularmente são focos dessas análises, dificilmente suas famílias são reverenciadas e destacadas como exemplos positivos." (Castro e Abramovay, 2006:266). Talvez por isso uma de nossas entrevistadas se sentia tão cobrada: "O meu pai sempre cobrou muito, tanto de mim quanto dos meus irmãos. Pelo fato de ser negro você tem que sobressair, você tem que dar o seu melhor para se destacar, se não você vai estar sempre abaixo dos outros e você precisa estar junto". (Gabriela)

Assim como os pais de Gabriela não queriam que ela ficasse "invisível" na escola, outras famílias resistiram bravamente frente às adversidades da periferia para que seus filhos não precisassem abandonar a escola. Sarti (2004) afirma que o padrão ideal de família em comunidades pobres prevê o pai como o provedor e a mãe como cuidadora da casa e dos filhos, esperando-se o respeito pelas obrigações familiares, configurando uma rede de obrigações morais entre seus membros.

Meu pai falou assim: você não vai trabalhar, a sua mãe também não vai trabalhar, eu vou trabalhar sozinho para sustentar a casa. Ele se importava com meu estudo, se preocupava, queria que a gente estudasse... meu primeiro emprego eu tinha mais de dezoito anos "acho", também passei muito tempo da minha vida jogando futebol e estudando e era isto que meu pai queira. Não deixou a minha mãe trabalhar para que cuidasse da gente. (Marcos)

Algumas ideias já cristalizadas no universo escolar e no discurso social caminham na direção de apontar que pais de alunos pobres e negros não se interessam pela vida escolar de seus filhos e que o aluno negro e pobre abandona a escola para ajudar os pais (Patto, 1999; Zago, 2000; Carvalho, 2004). Outros, ainda sugerem que as mães de crianças pobres e negras deixam os filhos "largados" sem o devido acompanhamento e por fim há aquela ideia de que pais das crianças negras e pobres não dão o devido valor à escola. Esse discurso, porém, é descontruído também pela fala de Bruno:

Então a minha mãe [...] mesmo tendo pouco estudo, ela soube fazer com que eu estudasse um pouco mais. Ela ia às reuniões, ela me levou na escola até com quinze, dezesseis anos. Eu ia na frente e voltava na frente, mas sabia que ela estava sempre presente, conversando com mães de outros amigos meus, ela sempre fez questão de estar presente na escola cuidando de mim e dos meus irmãos. (Bruno)

Carvalho (2004) aponta que parecem existir algumas condições favoráveis para que os pais participem efetivamente da vida escolar de seus filhos. Não são todas as famílias que conseguem acompanhar seus filhos diariamente na vida escolar. Há, portanto, um modelo de família particular, que em sua maioria conta com um responsável, comumente a mãe, que com algum tempo livre e com o mínimo de conhecimento se disponha no processo de educar junto com a escola. Este modelo, porém, não se encaixa nas características da maioria das famílias pobres, trabalhadoras, de periferia urbana e que vivem em condições adversas de vida. Entretanto, como a família pode ser compreendida como uma instituição com diferentes configurações, não existe um padrão de família pobre ou de classe média, cada uma tem suas necessidades e se organiza conforme seus interesses, crenças, necessidades e valores. As famílias de Bruno e de Marcos possuem essas particularidades.

Eu posso falar que isto me ajudou bastante: a minha mãe estava em todas as reuniões, quando eu não estava legal em alguma matéria ela vinha e pegava no meu pé e isto ajudou. Com toda a deficiência que tanto o ensino da prefeitura e o ensino estadual tinha, eu concluí meus estudos. (Marcos)

A partir da narrativa de Marcos defendemos a ideia de que cada escola e cada família significam tipos de organização singulares com diferentes formas de funcionamento. Cada família opera de determinada forma e essas especificidades têm importante impacto na forma como incutem nos filhos valores e atitudes diante do processo de escolarização. Como o desenvolvimento é acompanhado por mediações orientadas pelos contextos, o sujeito internaliza aquilo que a família e o discurso social apontam como sendo verdade. É sabida e discutida há várias décadas a questão da exclusão escolar que ocorre com jovens da periferia que deixam a escola para trabalhar e ajudar suas famílias. Marcos vivencia isso, pois sempre foi morador de bairros periféricos. Contudo, aponta que seu pai apesar de ter consciência da importância da escola, generaliza uma "verdade" construída a partir de elementos de seu contexto, quando afirma que em famílias com adultos que possuem pouca escolarização não se valoriza a escola.

Meu pai também estudou pouco, mas ele tem a consciência muito grande da importância do ensino, da educação. Coisa que na periferia não é tão valorizada, as pessoas sabem que é importante, mas eles querem que os filhos estudem, mas na prática eles acabam aceitando a ajuda do filho, que o filho trabalhe para ajudar no sustento da casa do que propriamente se dedicar ao estudo. Meu pai fez o contrário e isto ajudou bastante. (Marcos)

Ligadas ao respeito e ao valor que se dá aos processos de escolarização dos filhos, algumas famílias negras que vivem na periferia da grande metrópole, em contextos permeados pela privação, enfrentam a discriminação racial e social e com criatividade buscam recursos para inserir seus filhos no mundo cultural, como é o caso da família de Rita:

Eu não me qualifico muito por conta do contexto, venho de uma família muito ativa no sentido cultural, minha mãe lê muito, adora teatro, adora música ela sempre tentava achar algum evento de graça para levar a gente. [...] a gente descobriu show de rua, teatro, amostra de filme. Em tudo que é de graça a gente vai, fica duas horas na fila, mas está tudo certo, a gente ia muito atrás. (Rita)

Para Bourdieu (1999), famílias como a de Rita tendem a apresentar uma boa herança cultural e, ao reconhecer que não detêm a cultura legítima, sabendo de sua importância, acabam canalizando cotidianamente todos os esforços para que seus filhos possam desfrutar de bens culturais. Muitos desses esforços, e até sacrifícios familiares, possibilitam a criação de estratégias que podem influenciar a vida escolar das crianças.

 

A Influência da Família na Entrada do Aluno Negro no Ensino Superior

A entrada do jovem negro para a universidade é motivo de comemoração para muitas famílias. A influência que uma família exerce nesse processo é bastante significativa. O incentivo vem de todos os membros da família na forma de orientação ou motivação e ainda de maneira instrumental e prática, tanto quanto no auxílio financeiro.

Depois de um ano sem estudar, a minha avó disse: Olha, tem uma faculdade que vi no jornal, porque você não tenta? Aí olhei, achei interessante e prestei o vestibular. Não sabia que tinha passado e no último dia da inscrição estava indo viajar passei em frente a faculdade e resolvi entrar para ver o resultado. Vi que meu nome estava na lista dos aprovados e na hora liguei para minha mãe e perguntei se ela poderia levar um cheque para segurar minha matricula. Na hora minha mãe saiu de casa e foi para faculdade para pagar minha matrícula. (Helena)

Para muitas famílias negras quando um dos seus filhos ingressa em uma universidade, concretiza-se a realização de um sonho antigo que não pode ser alcançado pela maioria. Por isso o incentivo da família é a melhor forma de fazer com que os filhos, irmãos e outras pessoas do grupo familiar possam fazer o mesmo.

Eu sou a primeira a fazer faculdade. Meu pai é negro e fez faculdade com mais de 40 anos. Quando ele se formou eu entrei na faculdade. Já minha mãe parou na quarta série e não teve oportunidade [...]. O legal é ter feito a faculdade e incentivar outras pessoas da minha família. Eu incentivo o meu irmão a fazer uma faculdade e sei que não posso parar e tenho que mostrar que vale a pena. (Helena)

Estudos de Portes (2006) sobre a trajetória escolar de jovens universitários evidenciaram que para as famílias pobres a passagem do jovem do mundo escolar de nível médio para o mundo universitário é bastante complexa e afeta visivelmente várias esferas da vida do estudante e de sua família. O esforço da família pobre baseia-se no sentido de uma educação abrangente e moralizante na busca de formação para o enfrentamento das agruras da vida. Esse é um processo que ocorre de forma lenta e processual. Para essas famílias a questão econômica ou a busca de recursos materiais para manter o filho numa universidade é um fantasma que assola suas vidas.

A gente não é sozinho, tem família, é normalmente arrimo de família de alguma maneira, não tem tempo para se dedicar somente aos estudos, não tem uma mãe para te bancar, mesmo porque a gente é pobre e mora no fundão leste, norte, sul, a gente mora no fundão. Tem passagem, para pagar, ninguém vai de graça para qualquer lugar e nem a pé para qualquer lugar, então tem que pagar passagem, material para comprar, livros para estudar, então é muito difícil. (Rita)

A família também demonstra que apoia os filhos em sua vida na universidade, ainda que sejam necessários esforços que modificam todo o seu cotidiano e suas relações sociais. Nesses casos todos os membros se envolvem na solução de problemas.

A gente entrou junto, eu em São Paulo e ele no sul. A gente sofre para pagar a estadia dele. Durante os três anos foi uma pendenga total, a gente dividia, mandava meus tickets alimentação para ele e o da minha mãe também para comprar comida. Não tinha móveis, não tinha nada, só tinha roupa. [...] Enquanto a minha mãe mandava o dinheiro dela para lá, eu bancava a casa aqui em São Paulo. (Rita)

No caso de estudantes negros a situação é ainda mais complexa. Além de lidar com a privação, a instabilidade e a insegurança, eles passam por processos identitários complexos em relação ao grupo da universidade, que na maioria das vezes se distingue em termos de classe social e de raça. O jovem negro acaba sendo minoria nesses espaços e com isso pode ser vítima de isolamento e discriminação. A família nesse caso sofre junto, impotente diante da perversidade por falta de recursos econômicos e psicológicos.

Foi muito sofrido saber que ele estava passando por uma situação que não se deseja a cachorro... Meu irmão negro dividia um quarto com um cara quase nazista, o cara zoava com o meu irmão, trancava ele do lado de fora, deixava meu irmão dormir no corredor. Os seis primeiros meses foram terríveis. Eu pensei em deixar tudo e ficar com meu irmão, ajudar meu irmão, ficar com ele. (Rita)

 

Considerações Finais

Apesar do Materialismo histórico não ter tratado claramente das questões étnico-raciais e Vygotsky e seus colaboradores, pelo próprio processo histórico, não terem desenvolvido estudos ou reflexões sobre o tema, acreditamos que esse enfoque proporciona para a Psicologia uma forma privilegiada de compreensão desse fenômeno, já que entendemos que as relações étnico-raciais, assim como as familiares, constituem modalidades singulares e particulares de interações sociais que só são passíveis de investigação quando devidamente analisadas de maneira a compor a totalidade social.

Embora as famílias negras passem por vários infortúnios com relação à escolarização de seus filhos, assim como ocorre com famílias pobres e brancas, a questão da discriminação racial é ainda um fator que as diferencia essencialmente umas das outras. As análises aqui realizadas vêm corroborar com outros estudos que denunciam a presença da violência simbólica, preconceitos e discriminação racial no interior de nossas escolas. Os relatos das trajetórias escolares permeadas de xingamentos, apelidos, insultos e hostilidades destinadas ao aluno negro é, sem dúvida, prova da omissão do sistema educacional nas pessoas dos atores escolares, demonstrando essa ser uma prática naturalizada e disseminada na educação brasileira que tem trazido intenso sofrimento a população negra.

A família desses jovens entrevistados é afetada pelas próprias condições de existência, contudo observou-se que o suporte recebido pelos pais, irmãs e irmãos significou uma fonte importante de estímulos e incentivos para que esses jovens pudessem ter algum sucesso na escola. De um modo geral, todos os entrevistados, ainda que reconhecendo as várias adversidades e sofrimentos psíquicos suportados em suas trajetórias de escolarização, reconhecem a importância da base familiar para o enfrentamento de questões relativas ao seu processo de desenvolvimento humano.

Não restam dúvidas de que a subjetividade humana é constituída das relações dos homens e mulheres entre si. Constatamos que as interações construídas a partir da linguagem e comunicação próprias do contexto familiar têm impacto importante sobre a identidade e a vida social desses meninos e meninas em formação. Os dados dessa pesquisa parecem indicar que a bagagem transmitida pela família, as internalizações do meio, as informações sobre o mundo escolar e o social, vão passo a passo constituindo a subjetividade do indivíduo. Embora o discurso social sobre o negro se apresente como um poderoso instrumento de subjetivação, a análise das narrativas indica que quando os alunos negros conseguem ser olhados e incentivados por suas famílias, tanto quanto valorizados pela escola, são capazes de encontrar meios para o enfrentamento dos processos discriminatórios e, condições que favoreçam o seu êxito escolar. Sendo assim, a família da criança e do jovem negro funciona como um suporte elementar na valorização de sua identidade e enfrentamento dos obstáculos impostos frente à sua condição étnico-racial.

Esperamos que esse trabalho possa contribuir com novas pesquisas em Psicologia, principalmente no campo da Psicologia social e Política no sentido da produção de conhecimentos que sejam úteis no entendimento dos processos sociais que envolvem as questões étnica-raciais e na promoção de uma sociedade mais justa e democrática. Há ainda para a Psicologia muitas lacunas a serem preenchidas, sobretudo na elaboração de métodos e técnicas que busquem diminuir o sofrimento humano, assim como no desenvolvimento de investigações que corroborem com o conhecimento já produzido em outras ciências, como a Sociologia e a Antropologia, atentas à construção de reflexão contínua sobre os processos excludentes e racistas que têm sido identificados tanto na escola quanto na sociedade brasileira como um todo.

 

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Recebido em 07/04/2012.
Revisado em 02/08/2012.
Aceito em 21/11/2012.

 

 

1 Segundo matéria publicada na Folha de S. Paulo, 29/03/2004, a USP contava em 2001, entre seus estudantes, com 8,3% de negros (7% de "pardos" e 1,3% de "pretos"). Um estudo recente mostrou que a maior parte dos(as) que se inscrevem no vestibular da USP tem o mesmo perfil daqueles(as) que entram na instituição: são brancos(as), não trabalham, têm acesso à internet, estudaram em escolas particulares e fizeram ao menos um ano de cursinho pré-vestibular. Menos de um quarto dos 400 mil estudantes do estado que concluem o ensino médio na rede pública se inscrevem nos vestibulares da USP, da Unicamp e da Unesp.

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