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Revista Psicologia Política

versão impressa ISSN 1519-549X

Rev. psicol. polít. vol.13 no.26 São Paulo abr. 2013

 

O dispositivo "saúde de mulheres lésbicas": (in)visibilidade e direitos

 

The device "health of lesbian women": (in)visibility and rights

 

El dispositivo "salud de mujeres lesbianas": (in)visibilidad y derechos

 

Le dispositif "santé chez les femmes lesbiennes": (in)visibilité et droits

 

 

Cintia Sousa CarvalhoI; Fernanda CalderaroII; Solange Jobin e SouzaIII

IDoutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. cintiapsicologia_51@hotmail.com
IIMestre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. fernanda_calderaro@hotmail.com
IIIDoutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Professora Adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e professora Associada da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. soljobim@uol.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo tem por objetivo analisar documentos científicos e políticas de saúde direcionadas para mulheres lésbicas. Historicamente essas mulheres não têm recebido a devida atenção das políticas de promoção de direitos. Recentemente, no Brasil, a mudança deste cenário tem se dado com o aumento das pesquisas sobre sexualidade, e das políticas públicas que abordam os problemas da saúde destas mulheres. Entretanto, tais documentos devem ser avaliados de modo crítico, uma vez que ainda não consideram, de fato, as especificidades das experiências sexuais das mulheres lésbicas, reforçando dispositivos de apagamento e sujeição.

Palavras-chave: Saúde; lésbicas; direitos; sexualidade; invisibilidade.


ABSTRACT

This article aims to examine scientific documents and health policies directed to lesbian women. Along the history these women have not received attention from the rights promotion policies. Recently, in Brazil, a changing in this scenery comes from the researches about sexuality and also from public policies directed to the health problems of these women. However, these documents have to be examined from a critical approach, in order to consider if they take into account the particularities of lesbian sexual life, or if they reinforce devices of effacement and submission.

Keywords: Health, Lesbians, Rights, Sexuality, Invisibility.


RESUMEN

Este artículo pretende analizar documentos científicos y políticas de salud dirigidas a mujeres lesbianas. Históricamente, estas mujeres no han recibido la atención debida de las políticas de promoción de derechos. Recientemente, en Brasil, se ha dado el cambio de este escenario, con el aumento de la investigación sobre la sexualidad y de las políticas públicas que abordan los problemas de salud de estas mujeres. Sin embargo, dichos documentos deben ser evaluados críticamente, ya que aún no consideran, de hecho, los aspectos específicos de las experiencias sexuales de las mujeres lesbianas, reforzando los dispositivos de apag amiento y sujeción.

Palabras clave: Salud, Lesbiana, Derechos, Sexualidad, Invisibilidad.


RÉSUMÉ

Cet article a pour objectif d'analyser les documents scientifiques et politiques de la santé destinés aux femmes lesbiennes. Historiquement, ces femmes ne sont pas en train d'être traitées avec l'attention nécessaire des politiques de promotion de droits. Récemment au Brésil, le changement de ce moment-là se fait avec l'augmentation des recherches sur la sexualité et des politiques publiques qui abordent les problèmes de santé de ces femmes. Cependant, de tels documents doivent être évalués d'une manière critique puisqu'on ne considère pas vraiment les spécificités des expériences sexuelles des femmes lesbiennes en renforçant des dispositifs d'effacement et d'assujettissement.

Mots clés: Santé de la femme, Lesbiennes, Droits, Sexualité, Invisibilité.


 

 

Introdução

O objetivo deste texto é empreender uma análise preliminar da articulação de artigos científicos com políticas públicas sobre a temática lésbica1 (e o contexto das discussões que os engendraram) e as questões de saúde que atravessam essas mulheres. Tal empenho se justifica na medida em que se percebe certa invisibilidade da experiência dessas mulheres, documentada na literatura, que promoveu interferências negativas na saúde desta população (Almeida, 2005). Dessa forma, se os vazios enunciativos acerca do tema possuem um caráter produtivo, qual seja, espraiam-se e provocam ruídos na vida prática destas mulheres, há que se investigar como se delinearam as pontuais inserções da discussão no cenário nacional, na tentativa de problematizar qual visibilidade é proposta nestes documentos, ao assinalar também os silêncios e o eco que produzem.

Este texto se insere na esteira de reflexões do campo psicopolítico, ou seja, busca, ao percorrer o campo das políticas e da produção científica, problematizar de que modo tais discursos afetam a produção subjetiva, tendo em pauta um percurso que se afirma interdisciplinar (Montero, 2009). Compreendemos que estes discursos de saber-poder são vetores que engendram verdades sobre os sujeitos, ao prescrever diretrizes de cuidado para a construção do eu (Foucault, 1985).

Para percorrer este caminho, trilharemos um percurso histórico destacando lutas e discussões políticas, no sentido de visionarmos como a sexualidade e a orientação sexual são refletidas a partir do registro da saúde. Com este movimento de retorno ao passado, não pretendemos apenas listar tais dados e acontecimentos, mas desenvolver uma reflexão que, ao se apoiar na filosofia da história de Benjamin (1985) e nas contribuições trazidas por Navarro-Swain (2000) sobre lesbianismo2, aponte para estratégias reflexivas que venham dar consistência a este debate, oferecendo subsídios para encaminhamentos de ações futuras no que diz respeito às políticas da saúde de mulheres lésbicas.

Diante das razões apontadas anteriormente, faz-se necessário, em um primeiro momento, explicitar os motivos que nos levaram a pesquisar a temática lésbica e suas questões de saúde. Haveria especificidades de saúde desta população que não estariam sendo respondidas de forma contundente pelas políticas de saúde? A literatura internacional, especificamente as pesquisas realizadas nos EUA, aponta, de acordo com a Rede Feminista de Saúde (Barbosa & Facchini, 2006), para as seguintes questões de saúde relacionadas à lesbianidade: a) câncer de mama que poderia ser desencadeado pelo consumo de bebidas alcoólicas, sobrepeso, nuliparidade3 e/ou a baixa frequência de exames preventivos; b) câncer do colo do útero que seria ocasionado devido à presença do HPV, início precoce da vida sexual, tabagismo e/ou multiplicidade de parcerias sexuais; c) doenças sexualmente transmissíveis (DST) que ocorreriam devido ao número de parcerias sexuais, frequência de relações sexuais, aos tipos de práticas sexuais, à higiene e/ou ao alto índice de tabagismo; d) saúde mental afetada e violência, decorrentes de violência física na infância, no trabalho e em lugares públicos (a frequência dos casos de violência doméstica são semelhantes às heterossexuais); e) consumo e abuso de álcool e drogas são superiores aos índices entre as heterossexuais e f) ansiedade causada pelo medo, pela expectativa de rejeição e/ou pela homofobia.

Tendo em vista as questões de saúde que acometem este grupo específico (são quesitos que de uma forma ou de outra, estão presentes na população em geral, entretanto, os acima relatados têm relações estreitas com a forma com que a orientação sexual dessas mulheres é recebida no meio social), somos convocadas a analisar o emaranhado discursivo que produziu invisibilidades lésbicas e que culminou em vulnerabilidades de saúde significativas.

 

Política do Esquecimento: o que a história não diz, não existiu!

Dentre os inúmeros conceitos desenvolvidos por Benjamin em sua obra filosófica nos deteremos neste artigo às suas contribuições referentes ao conceito de história. Nossa intenção é provocar um diálogo entre Benjamin e Navarro-Swain, para mostrar como a "política do esquecimento" ressoa na experiência de mulheres lésbicas.

As teses de Benjamin (1985) Sobre o conceito de história nos incitam a analisar criticamente a forma "oficial" de se pensar a história na esteira do progresso. O autor critica a historiografia tradicional que concebe a história como a apreensão unilateral dos acontecimentos, alicerçada num tempo que é homogêneo, cronológico e linear. A busca pela fidedignidade da história instituiu uma forma de hierarquizar acontecimentos e padrões, criando com isto a hegemonia de um poder único - o poder dos vencedores - silenciando, em contrapartida, as histórias dos vencidos. Podemos refletir sobre o campo da sexualidade a partir desta vertente de pensamento e compreender o império do discurso heterossexual como uma forma de imposição de um padrão de comportamento, silenciando outras formas de expressão da sexualidade que estão presentes na vida prática.

Na contramão do modelo pretensioso de apreensão de uma verdade única sobre os fatos, Benjamin (1985) busca se dirigir à história a partir dos não-ditos, rompendo com a concepção evolucionista ao propor "escovar a história a contrapelo". O passado para o autor é uma série interminável de barbáries cometidas em favor do dito progresso, que só é alcançado a partir da opressão dos silenciados da história. O autor busca destituir o elo causal que separa passado, presente e futuro, e propõe uma ideia de tempo entrecruzado, pois o presente é o momento de se "fazer" o futuro, contudo a ação no presente necessita do olhar crítico para o passado, condição para que o futuro não seja apenas repetição, mas invenção de uma nova vida. Para Benjamin, o passado é inacabado, precisa ser revisitado, reapropriado, ressignificado para que o presente e o futuro possam ser alterados. Esta convocação política é o modo como o autor denuncia o momento do perigo, o da inércia dos sujeitos que padecem da própria história e de seus reflexos na vida prática. Com isto, Benjamin, propõe o pensamento crítico como um caminho fértil para que os homens percebam o lugar que podem ocupar como sujeitos que produzem coletivamente a história.

Na mão dos argumentos acima, Navarro-Swain (2000) discorre sobre o que pode ser definido como lesbianismo, que não se restringe apenas à descrição de comportamentos. Para a autora, é necessário compreender, quando se pensa em lesbianismo, o que gravita ao redor das práticas sexuais das mulheres em questão, qual seja, como esta experiência se insere nas relações sociais e como é integrada ou margeada no discurso da História. De acordo com a autora:

A História, esta narrativa que recorta a vida e o passado em textos produzidos segundo a percepção da realidade dos historiadores, esconde e ignora imensos períodos do viver humano. Ilumina e descreve, analisa e proclama uma ordem, uma lógica, nos eventos que por serem escolhidos, se tornam importantes. Assim, as relações sociais que escapam aos modelos concebidos são marginalizadas, esquecidas ou eliminadas da historiografia, este grande conjunto de histórias que compõem a memória do vivido (Navarro-Swain, T., 2000:12).

Segundo a autora, o silêncio histórico em que se pautou a experiência feminina da homossexualidade foi sustentado por uma política do esquecimento, ou seja, o modelo patriarcal que promoveu visibilidade e ascensão do masculino, além de renegar o importante papel do feminino neste registro, também obscureceu a experiência afetivo-sexual que dispensava a presença masculina. Para os atenienses, as mulheres eram consideradas seres inferiores, que não podiam ascender ao nobre sentimento do amor. Dessa forma, pouco se falou acerca da experiência entre mulheres na Grécia, pois eram afastadas da vida dos cidadãos livres, vistas como aquém da polis. Logo, se percebe a tênue linha que separa o existido e o dito, ou seja, uma experiência toma existência apenas quando narrada, escrita, arquivada. Mas, se este movimento de registro inexiste, desaparece com ele toda uma experiência. Em resumo, ao doar potência à capacidade construtora do discurso, a autora afirma que tudo aquilo que não é dito, tem sua existência abalada. Logo, se a História não se pronuncia, não existe. Traz o exemplo de como as mulheres, na Inquisição (em meados do séc. XVII), eram acusadas de serem bruxas por suas práticas homossexuais e que, na ausência de termo para nomeá-las, eram chamadas de "sodomitas4". Dessa forma, a ausência do nome produz a ausência do personagem. Esse silêncio, para Navarro-Swain (2000), parece reforçar certa ordem heteronormativa e patriarcal.

Diante disso, o que nos propõem Benjamin e Navarro-Swain é compreendermos como a seleção histórica possibilita que emudeçam experiências e de como a partir de um olhar crítico sobre o silêncio, podemos dar um sentido histórico para o não-lugar de determinadas experiências e, com este ato, criar um desvio, romper o silêncio e, talvez, encarnar uma existência. Dessa forma, tendo como pauta o silêncio histórico, nos aproximaremos de uma discussão acerca da invisibilidade lésbica e suas implicações em políticas públicas de saúde, como modo de dar corpo ao nosso olhar para as configurações dos documentos políticocientíficos mais recentes acerca da temática.

Tal vazio contribuiu para a notória ausência de políticas públicas que subsidiem os direitos humanos relativos às mulheres lésbicas. Pensar em construção da história num âmbito político e democrático se faz imprescindível nesse contexto em que a ciência e as políticas públicas (documentos que analisaremos mais adiante) muito recentemente, com o impulso dos movimentos sociais organizados, começam a investigar de forma mais ampla a experiência da lesbianidade e construir parte significativa desta história. Por outro lado, ainda há uma lacuna operacional para efetivação destas políticas. De acordo com Facchini e Barbosa (2006), no Dossiê Saúde de Mulheres Lésbicas Promoção da Equidade e da Integralidade:

A escassa, ou quase inexistente, produção científica abordando a temática saúde e homossexualidade feminina no Brasil; a inexistência de políticas de saúde consistentes para o enfrentamento das dificuldades e necessidades desta população; o precário conhecimento sobre suas demandas e a ausência de tecnologias de cuidado à saúde adequadas, aliados à persistência de pré-noções e preconceitos, convertem-se, no âmbito da saúde pública, por exemplo, no desperdício de recursos, no constrangimento produzido no atrito das relações no interior dos serviços de saúde, na assistência inadequada, e muito provavelmente num contingente de mulheres que não obtiveram seu diagnóstico, nem seu tratamento (Facchini & Barbosa, 2006:29).

Em face do acima exposto, nos deteremos agora numa análise acerca de como a saúde lésbica, frente à histórica não inclusão da lesbianidade no discurso legitimado, está sendo configurada em diversos documentos e estudos científicos, tendo como pauta o cenário nacional e internacional. Apesar de serem avanços consideráveis que tentam suprir anos de apagamento, temos que registrar suas limitações, frente ao fosso ainda existente entre o que deliberam as políticas e as reais condições de vida de mulheres lésbicas. Fazer a sutura entre esses universos parece ser o desafio próximo, para que mulheres lésbicas sejam realmente compreendidas como sujeitos de direitos, e a estes tenham acesso.

 

Contexto Histórico da Visibilidade da Saúde Lésbica: saúde sexual e reprodutiva

Após percorrermos alguns conceitos das obras de Benjamin e Navarro-Swain acerca da política do silêncio da História e a invisibilidade lésbica, construiremos um apanhado histórico para expor como a sexualidade e a orientação sexual são tratadas nos importantes documentos internacionais. Após a imersão nessas políticas e documentos, pretendemos desenvolver uma reflexão acerca dos alcances e limitações dessa tentativa resistente de reescrita da história, em que a experiência de mulheres lésbicas é trazida para este registro. Apesar de compreendermos que muitos dos dados apresentados são frutos de sistematizações históricas dos contextos produtores da discussão acerca da saúde de mulheres lésbicas, nos valeremos destes dados para adentrarmos na rede que possibilitou o surgimento da experiência lésbica discursivamente tematizada.

A década de 1990 marca um novo período onde avanços teóricos conceituais são transformados em princípios por duas grandes Conferências Internacionais, representando ganhos nesta disputa política entre direitos, sexualidade e reprodução. A primeira contribuição acontece na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD), que aconteceu em 1993, no Cairo, e a Conferência Mundial sobre a Mulher, em 1995, em Beijim. Não pretendemos esgotar a ampla gama de questões que estas duas importantes conferências internacionais trouxeram à tona, e, portanto, vamos nos limitar a uma análise circunscrita às consequências preliminares para o avanço do debate no que diz respeito às questões da saúde de mulheres lésbicas.

É importante destacar que as respectivas conferências acontecem em um contexto político e econômico favorável, com a queda da fecundidade em todo o mundo, o fim da Guerra Fria possibilitando maior fluxo nas negociações (com a criação de alianças temporárias entre os países presentes), com a participação de ONGs, do movimento feminista, ambientalistas e de defensores dos direitos humanos (Correa, Januzzi & Alves, 2003). A CIPD teve como principal destaque o deslocamento das discussões em relação ao problema populacional, permitindo a ampliação dos debates e, consequentemente, mudando o paradigma do planejamento familiar para o campo dos direitos, com a criação dos direitos reprodutivos com uma linguagem internacionalmente reconhecida (Correa e cols., 2003; Arilha, 1999).

Entretanto, as contribuições da Conferência não se restringiram apenas à ampliação da linguagem política das garantias, pois outras contribuições significativas ocorreram, a saber: a) introdução de um conceito mais amplo sobre saúde reprodutiva e b) "o reconhecimento da sexualidade como dimensão ao mesmo tempo fundamental e problemática da existência humana5" (Arilha, 1999; Correa e cols., 2003). Na CIPD, segundo Petchesky (1999), sexualidade e sexo começam a aparecer explicitamente e o termo saúde sexual é incluído como um dos direitos a serem garantidos pelos programas de desenvolvimento. Da mesma forma, o termo "direitos sexuais" aparece durante a conferência, porém, foi utilizado como instrumento de barganha para que os "direitos reprodutivos" fossem garantidos no texto final (Corrêa e cols., 2003; Petchesky, 1999).

Embora às menções ao sexo e sexualidade estivessem associadas à reprodução e à heterossexualidade e não se referissem às questões como o prazer, a orientação sexual e a liberdade sexual, essas serão pauta para a Conferência da Mulher realizada em Beijim no ano seguinte, 1995. Um dos principais resultados de Beijim foi o avanço obtido em relação à sexualidade e ao sexo, com a introdução dos direitos sexuais como parte dos direitos humanos e o reconhecimento da mulher como ser sexual, desvinculada estritamente da reprodução, sendo garantida a liberdade de expressar sua sexualidade. Esses avanços estão expressos no histórico parágrafo 96 que foi aprovado diante de muitas discussões, pressões e disputas principalmente entre o Vaticano e a coalizão de mulheres que diz:

Os direitos humanos das mulheres incluem seu direito a ter controle e decidir livremente e responsavelmente sobre questões relacionadas à sua sexualidade, incluindo a saúde sexual e reprodutiva, livre de coação, discriminação e violência. Relacionamentos igualitários entre homens e mulheres nas questões referentes às relações sexuais e à reprodução, inclusive o pleno respeito pela integridade da pessoa, requerem respeito mútuo, consentimento e divisão de responsabilidades sobre comportamento sexual e suas consequências (Pecheski, 1999:20).

Diante deste breve contexto político em que exploramos o tenso campo de conquistas e garantias de direitos, abordaremos em seguida as questões mais específicas voltadas à saúde sexual e reprodutiva, e consequentemente, os direitos sexuais e reprodutivos. A questão da reprodução passa fazer parte das políticas públicas não pela via do direito, mas como ponto específico das políticas públicas de saúde. A Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu um conceito de saúde mais amplo em que reconhece os laços do indivíduo com o meio ambiente, com isso a responsabilidade é ampliada a outros setores e instituições que podem influenciar no bem-estar individual ou comunitário.

No Brasil e no mundo foi utilizado o termo saúde integral da mulher, segundo Correia e Ávila (Correa e cols., 2003), como uma estratégia semântica para traduzir o lema feminista da década de 1970: "nosso corpo nos pertence". Esse slogan trazia consigo duas frentes de reivindicações: o campo político com demandas sobre o Estado em relação ao aborto e métodos contraceptivos e o campo do atendimento médico que envolvia questões relacionadas ao pré-natal, parto, qualidade de atendimento, acesso a informações, inclusive sobre procedimentos médicos e mudanças nas relações médico-paciente (Corrêa e cols., 2003). O conceito "saúde integral da mulher" avança para saúde reprodutiva, sendo que esse novo conceito incorpora os homens na dimensão reprodutiva e inclui a noção de saúde sexual. A OMS, em 1988, adota o termo e na conferência de Cairo, saúde reprodutiva é definida como:

[...] um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não de mera ausência de doença ou enfermidade, em todos os aspectos relacionados ao sistema reprodutivo, suas funções e processos. A saúde reprodutiva implica, por conseguinte, que a pessoa possa ter uma vida sexual segura e satisfatória, tendo a capacidade de reproduzir e a liberdade de decidir sobre quando e quantas vezes deve fazê-lo. Está implícito nesta última condição o direito de homens e mulheres de serem informados e de terem acesso aos métodos eficientes, seguros, aceitáveis e financeiramente compatíveis de planejamento familiar, assim como a outros métodos de regulação da fecundidade a sua escolha e que não contrariem a lei, bem como o direito de acesso a serviços apropriados de saúde que propiciem às mulheres as condições de passar com segurança pela gestação e parto, proporcionando aos casais uma chance melhor de ter um filho sadio. Em conformidade com a definição acima de saúde reprodutiva, a assistência à saúde reprodutiva é definida como a constelação de método, técnicas e serviços que contribuem para a saúde e o bemestar reprodutivo, prevenindo e resolvendo os problemas de saúde reprodutiva. Isto inclui igualmente a saúde sexual, cuja finalidade é a melhoria da qualidade de vida e das relações pessoais e não o mero aconselhamento e assistência relativos à reprodução e às doenças sexualmente transmissíveis (Corrêa e cols., 2003:8).

Todavia, ao lermos a definição percebemos a ambivalência do conceito saúde sexual. Se por um lado o termo surge atrelado e subordinado à reprodução, por outro, nas linhas finais da definição conceitual ele ganha autonomia e importância por si, cuja finalidade é a melhoria da qualidade de vida e das relações pessoais e não o mero aconselhamento e assistência relativos à reprodução e às doenças sexualmente transmissíveis6 (Correa e cols., 2003).

Os direitos sexuais têm sua história mais recente, surge no bojo dos movimentos de gays e de lésbicas europeus e norte-americanos na década de 1990. O movimento feminista se junta a esses movimentos, na compreensão de que o campo da sexualidade é importante para a transformação das assimetrias de gênero (Correa e cols., 2003). O conceito "direitos sexuais" permite separar o sexual do reprodutivo e inclui a vivência da sexualidade com prazer, a liberdade sexual e bem-estar sexual no campo dos direitos humanos (Correa e cols., 2003). Entretanto, devemos verificar que os direitos sexuais ainda habitam um registro negativo, ou seja, estão quase sempre associados às patologias ou violência.

Pensar os direitos sexuais é refletir acerca da vivência plena da sexualidade, com respeito, prazer, segurança e livre de preconceitos, não somente voltada a gays e lésbicas, mas a todas as pessoas. Porém, vimos que a difícil tarefa de incluir a sexualidade no campo dos direitos humanos se torna mais árdua quando o assunto é a homossexualidade. Ainda hoje, vemos dificuldades e silenciamentos ligados à sexualidade e principalmente sobre a homossexualidade feminina, que se reflete nos cuidados e no acesso em relação à saúde dessa população.

 

Caminhos Metodológicos: dialogando com os textos

No Brasil, a partir de 2004, começam a surgir, com certa frequência, publicações, materiais, artigos e até programas e políticas públicas voltadas à temática lésbica. Dentre estas iniciativas, podemos destacar algumas importantes pesquisas (Pinto, 2004; Almeida, 2005; Barbosa; Koyama, 2006; Mora, 2009). Neste artigo, estudamos tais pesquisas e, a partir desta leitura, selecionamos documentos produzidos pelos coletivos organizados e documentos governamentais ali citados, selecionando aqueles que tratavam da questão da saúde lésbica. O presente artigo, portanto, foi construído a partir da análise destes documentos. Tal análise deu-se no sentido de construir uma avaliação crítica acerca das informações postas e a irradiação prática de suas propostas.

Constatamos ainda que, apesar de haver um contingente significativo de pesquisas internacionais sobre a temática, estas não mencionam explicitamente as demandas de saúde, focando apenas nas patologias e nos tipos de comportamento. Diante disso, para contrastar com os dados internacionais, selecionamos cinco materiais nacionais produzidos por ONG e órgãos governamentais no período compreendido entre 2001 a 2009, quais sejam: a entrevista Direitos que Não Podem Calar(Rede Feminista De Saúde, 2001); o Dossiê Saúde de Mulheres Lésbicas (Rede Feminista De Saúde, 2006); a cartilha Chegou a hora de cuidar da saúde, lançada em 2006 pelo Programa Nacional de DST/Aids (PN DST/Aids); a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Brasília, 2007); e o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos LGBT (Brasil, 2009).

Para a análise dos documentos, nos valemos das contribuições de Deleuze (1990) acerca do conceito de dispositivo, de modo que pudéssemos compreender os regimes enunciativos presentes e ausentes nos documentos.

De acordo com Deleuze (1990), um dispositivo, na acepção foucaultiana, é um conjunto assimétrico de linhas de força distintas que ora se cruzam, ora se dispersam. Dessa forma, desenovelar as linhas que compõem um dispositivo é cartografar e percorrer as diversas direções que tais forças impulsionam, que não apenas o compõem, mas o faz percorrer diversas direções. Para o autor, os dispositivos são compostos por três instâncias, quais sejam, poder-saber-subjetivação, que não possuem um delineamento pré-estabelecido, mas são cadeias móveis que se relacionam e se isolam entre si. O dispositivo, portanto, é uma maquina produtiva, ou seja, faz-ver, faz-falar, faz-fazer.

Segundo Deleuze (1990), em relação à obra de Foucault, cada dispositivo tem seu regime de luz e de enunciação, ou seja, dá visibilidade ou obscurece seu objeto fundamental, guia-se por sua gramática de existência de acordo com os percursos inventados pelas linhas de força que o compõem. Tais linhas, mesmo que presentes em todas as relações possíveis com o dispositivo estão invisíveis neste. Sua opacidade é um dos modos que o faz existir e se manter, em especial as que se referem à aliança consistente entre saber e poder.

A partir das reflexões de Deleuze (1990), fizemos uma leitura sistemática dos documentos acima mencionados e selecionamos as questões que tiveram maior incidência nos textos. Em seguida, procuramos verificar incoerências entre os textos bases e os planos de ação presentes em alguns dos documentos. Por fim, analisamos já informados pelas pesquisas anteriormente citadas, questões que se ausentaram destes documentos.

 

Sexualidade e Direitos Humanos: depois desta aliança, onde fica a saúde lésbica?

Em uma rápida pesquisa feita no banco de artigos do MEDLINE7 verificamos que a primeira ocorrência de um artigo que trazia no título a palavra lésbica ou lesbianidade aconteceu em 1966. Deste ano em diante, cerca de 1.321 artigos foram publicados o que representa 0,01%. Quando mencionamos a saúde lésbica, o número de artigos cai para 201, sendo o primeiro artigo publicado apenas em 1981.

O movimento feminista no Brasil e no mundo tem como pauta primeira as questões da sexualidade e suas interfaces com a saúde, porém as discussões com relação à lesbianidade ainda são incipientes. De toda forma, a saúde lésbica estando contida nas principais pautas dos movimentos feministas e lésbicos, aos poucos, vem ganhando visibilidade.

A primeira publicação representativa, neste sentido, é uma entrevista realizada pela Rede Feminista de Saúde em 2001, com sete ativistas do movimento lésbico, de título: Direitos que Não Podem Calar. Um dos tópicos da entrevista refere-se à "saúde das mulheres lésbicas", em que chamam a atenção para as necessidades de saúde que ainda deveriam ser alcançadas: maior disseminação de informações, políticas públicas para a prevenção de DST, capacitação dos profissionais de saúde e ações do MS para trabalhar com suas especificidades. Afirmou-se nesta entrevista que essas demandas são consequências direta e indiretamente do preconceito, do autopreconceito e da negação da vulnerabilidade em relação às DST, ao câncer de mama e colo do útero (Rede Feminista De Saúde, 2001).

O Dossiê Saúde de Mulheres Lésbicas, publicado em 2006 também pela Rede Feminista de Saúde, apresenta mais detalhadamente alguns problemas de saúde, os fatores que poderiam desencadear tais questões e, posteriormente, as demandas dos movimentos sociais. Segundo este documento, a vitimização e a violência ocasionados pela invisibilidade social constituem um problema de saúde, assim como a própria invisibilidade é uma questão a ser problematizada, pois tal apagamento levaria a uma indeterminação acerca dos atendimentos e necessidades de saúde desta população. De acordo com este documento, a sobrecarga psíquica advinda do preconceito ocasionaria o uso de substâncias lícitas e ilícitas, as DST por sua vez ocasionadas pelo número de parcerias e pela ausência de percepção do risco, aliado à ausência de tecnologias de prevenção. Da mesma forma que o romantismo que se considera existir com vitalidade nas relações lésbicas acarretaria problemas de ordem afetiva, distúrbio da imagem corporal, distúrbios alimentares como bulimia, anorexia e obesidade e ações violentas (Facchini & Barbosa, 2006). E por fim, a dificuldade de acesso aos serviços ginecológicos se daria pela negação da necessidade de cuidados neste sentido e pela homofobia dos médicos.

As dificuldades se intensificariam para as classes economicamente mais baixas, para mulheres exclusivamente homossexuais e para as que possuem estereótipos masculinizados.

Diante das dificuldades apontadas pelo Dossiê, o movimento social e os estudos da época indicavam as seguintes demandas e propostas: conhecimento do tamanho da população e das demandas no campo da saúde, direitos sexuais e direitos reprodutivos; incentivo às pesquisas; articulação de vários atores especialmente em âmbito local em torno do tema da saúde lésbica; combate à discriminação; treinamento dos profissionais para lidar com a diversidade sexual; realização de campanhas de massa visando reduzir o preconceito e reafirmar direitos; apoio a ações do movimento lésbico e movimento feminista; avanço na legislação que coíbe a discriminação e a violência homofóbica; e reconhecimento das uniões homoafetivas.

A cartilha Chegou a hora de cuidar da saúde, lançada em 2006 pelo Programa Nacional de DST/Aids (PN DST/Aids), é um informativo incentivando as práticas preventivas em saúde e a qualidade de vida. A cartilha chama a atenção para as discriminações raciais, geracionais e de orientação sexual e destaca a importância de visibilizar a lesbianidade junto aos profissionais de saúde, assim como as visitas constantes ao ginecologista que ajudariam na prevenção do câncer de mama e do colo do útero e redução dos sintomas da menopausa. A cartilha ainda traz questões ligadas à gravidez como métodos contraceptivos e fertilização assistida, anticoncepção de emergência, violência e hábitos saudáveis como a prática de exercícios físicos, redução no consumo de açúcar, bebidas alcoólicas, gordura e refrigerantes. Destacamos por último, porém não menos importante, as partes que ganharam presença maior na cartilha, com duas páginas cada assunto, são eles: DST e uso de drogas com enfoque na redução de danos.

Por fim, traremos o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos LGBT (Brasil, 2009), que foi lançado como resultado da I Conferência Nacional LGBT (2008). No plano há varias ações voltadas à saúde, porém, a maioria são direcionadas ao público LGBT em geral. Dessas, destacamos as que se referem mais focalmente nas questões de saúde lésbica: a primeira refere-se à promoção e socialização do conhecimento sobre o tema LGBT, onde é proposto a sensibilização e capacitação das equipes profissionais do Programa de Saúde da Mulher para a atenção às especificidades no atendimento a lésbicas, mulheres bissexuais e transexuais, nos estados e municípios (1.1.13, Brasil, 2009). Em relação à defesa e proteção dos direitos da população LGBT, o item 1.13.4 dá indicativos de especificidades de saúde para lésbicas. Dessa forma a ação propõe: "... informar e sensibilizar profissionais de saúde acerca das especificidades de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais a fim de promover a prevenção de DST/AIDS, câncer de colo uterino e de mama no caso de lésbicas e mulheres bissexuais..." (Brasil, 2009:29).

O item seguinte propõe a testagem de HIV para as lésbicas através de uma campanha nacional promovida pelo Programa Nacional DST/Aids e concomitantemente se faça outra campanha de conscientização sobre sexo seguro (Brasil, 2009). No eixo que versa sobre a integração da política de promoção da cidadania e defesa dos direitos humanos de LGBT com as demais políticas públicas nacionais, a única ação específica para saúde de lésbicas refere-se à implementação de políticas de prevenção às DST/HIV/Aids e Hepatite Virais na perspectiva dos direitos sexuais e reprodutivos e em Redução de Danos (Brasil, 2009). Percebemos que as demandas nacionais se assemelham com as demandas internacionais, focando tipos de comportamentos que levariam a patologias e a dificuldade de acesso aos serviços que compõem a rede de saúde integral que por sua vez, contribuiriam para os agravos de saúde, assim como a homofobia presente nos serviços - não somente de saúde - e em toda a sociedade.

De acordo com os exemplos dos documentos acima, percebemos que a preocupação maior tanto do governo quanto dos movimentos sociais encontra-se nas questões referentes às DST, mesmo que haja uma prevalência menor entre lésbicas deste tipo de agravo do que em mulheres heterossexuais (apesar de este dado não significar a invulnerabilidade destas mulheres), de acordo com algumas pesquisas internacionais (Dolan & Davis, 2003).

Outra questão recorrente quanto aos problemas de saúde de mulheres lésbicas é a prevalência de câncer de mama e colo de útero, estando o seu surgimento relacionado a não reprodução e a não amamentação, remetendo às questões de gênero que colocam a sexualidade da mulher voltada para a reprodução. Tanto um quanto o outro exemplo, são indicativos de um mecanismo sutil de regulação da sexualidade que, se por um lado, foca-se na determinação das condutas em função do discurso da prevenção, por outro, no que concerne à saúde reprodutiva, reforça-se as "punições" que podem decorrer quando o corpo não trilha o percurso de uma sexualidade heteronormativa, que pressupõe uma maternidade posterior. Tal afirmação enseja uma reflexão acerca de que a saúde também é local de controle da (homo)sexualidade. Entretanto, a prevalência desses tipos de cânceres pode ser pensada por meio de outras variáveis, como em termos da falta de recursos institucional - como, por exemplo, a mamografia, que foi disponibilizada pelo SUS apenas no ano de 2010 - e devido à lesbofobia das/os profissionais e dos serviços de saúde.

Na construção dessas complexas e múltiplas redes de interesses e poderes que se formam em relação às demandas de saúde das lésbicas e o atendimento dessas demandas, os documentos governamentais analisados até aqui, parecem vir ao encontro das demandas pautadas pelos movimentos sociais organizados de lésbicas e feministas. Os referidos documentos reconhecem e reforçam algumas das vulnerabilidades individuais e sociais dessa população, principalmente em relação as DST e ao preconceito. Porém, ações que trabalhem integralmente a saúde ainda são escassas, o que demandaria maior atenção dos gestores que participam da construção dessas políticas, inclusive buscando incidir as demandas desse grupo sobre outras políticas capazes de atendê-las, como por exemplo, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher.

Faz-se interessante citarmos a política acima por apresentar algumas dissonâncias e ausências importantes à problemática. A Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher está dividida em duas partes: Princípios e Diretrizes e o Plano de Ação. Em sua primeira parte (Princípios e Diretrizes) reconhecem as demandas trazidas pelo V Seminário Nacional de Lésbica (SENALE) realizado em 2003, destacando a presunção da heterossexualidade por parte dos profissionais de saúde e a capacitação destes; a necessidade de informações sobre câncer de colo uterino e mama que não são doenças que acometem apenas mulheres heterossexuais; a vulnerabilidade à DST e Aids para as lésbicas profissionais do sexo; a inclusão de lésbicas entre as beneficiadas do SUS para a inseminação assistida e, por fim, a violência intrafamiliar e a violência sexual, principalmente entre jovens.

O texto dessa política traz algumas sutilezas semânticas que podem indicar algumas dissonâncias com outros documentos governamentais e mesmo as produções de ONG que trabalham com a temática da saúde lésbica. A primeira se refere ao reconhecimento da vulnerabilidade às DST/Aids somente entre as lésbicas profissionais do sexo, ao contrário dos demais documentos citados aqui que vem associando a vulnerabilidade às práticas sexuais realizadas entre mulheres. Outra dissonância refere-se ao câncer de mama e de colo uterino que neste documento é trazida a demanda de informações de que estas não seriam patologias exclusivamente de heterossexuais e assim, mulheres homossexuais deveriam ser incentivadas a buscar formas de cuidado, desmistificando a crença de que seriam imunes a eles. Porém nos demais documentos a ideia que se apresenta é de que esses tipos de cânceres seriam parte das especificidades do grupo em questão, com algumas justificativas já citadas anteriormente.

Mais um ponto de destaque na Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher é a explicitação do problema da violência intrafamiliar e sexual vivida por adolescentes lésbicas. Embora a cartilha Chegou a hora de cuidar da saúde traga o tema da adolescência e da violência, esses não são tratados em conjunto, assim como os demais documentos aqui citados.

A Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher e o Dossiê Saúde de Mulheres Lésbicas tocam em um assunto que se acredita como principal especificidade de saúde de lésbicas: o pressuposto da heterossexualidade por parte dos profissionais de saúde. Entretanto, esta demanda parece desaparecer nas políticas públicas e programas de saúde do governo federal8. Essa ausência à menção do pressuposto da heterossexualidade nos incita refletir que, embora esses materiais e documentos propiciem visibilidade à lesbianidade, o campo da saúde lésbica parece repetir a história dos direitos sexuais e reprodutivos, onde a sexualidade só conseguiu ser pautada e ter espaço entre os direitos humanos quando recorreu à mulher como vítima, no caso dos direitos sexuais e reprodutivos, como vítimas de violência seja ela física, psíquica ou institucional. A saúde sexual lésbica parece trilhar os mesmos caminhos espinhosos, colocando a lésbica como vítima seja de violência ou de doenças (argumentos biomédicos) não cabendo até agora espaço para se falar de práticas sexuais, de prazer, de desejo.

Em relação à visibilidade invisível, na inclusão que exclui, constatamos que embora os Princípios e Diretrizes da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher tragam um capítulo específico sobre "saúde de mulheres lésbicas" ao qual fizemos acima um breve resumo, em seu Plano de Ação não traz qualquer proposta de ação nessa área, contradizendo a preocupação inicial explicitada em seus princípios e diretrizes. As lésbicas, assim, sumiram das ações, foram esquecidas ou não contempladas em suas demandas, refletindo a dificuldade em garantir a concretização de suas questões de forma efetiva.

 

Considerações Finais: apenas o início do percurso

Com este artigo, tivemos o intuito de realizar uma análise de documentos produzidos pelos coletivos organizados e os documentos governamentais acerca da saúde de mulheres lésbicas. Nos documentos analisados, percebemos que o foco principal gravita em torno da preocupação com a possibilidade de mulheres lésbicas se infectarem por doenças sexualmente transmissíveis. Além desta questão epidemiológica, verificamos também, como expectativas em relação ao gênero, presentes nestes documentos, reforçam vulnerabilidades de saúde questionáveis (como na relação do câncer com a ausência de gravidez/amamentação), sendo desconsiderados fatores de ordem institucional e de ofertas de serviços de saúde. A análise destes documentos sugeriu que se por um lado há demasiado foco nas questões referentes às DTS, por outro, há ausência de outras questões que possam garantir a saúde de mulheres lésbicas em sua integralidade.

Tendo como pauta as reflexões desencadeadas anteriormente, pairam ainda algumas perguntas: quais são as implicações da análise aqui empreendida? De que modo tais reflexões podem contribuir para reescrever o roteiro da história, desobstruindo os canais que invisibilizaram a experiência de mulheres lésbicas?

Em face dessa discussão, pretendemos compreender a importância de tomarmos o núcleo chamado "saúde de mulheres lésbicas" como um dispositivo atravessado por linhas de força de saber-poder, que o moldam e o guiam de acordo com tais forças, retomando as reflexões apresentadas anteriormente por Deleuze (1990). São agenciamentos entre discursos e práticas que direcionam o percurso deste dispositivo. Portanto, se tal dispositivo foi obscurecido historicamente por diversas instâncias e só muito recentemente tomou certa visibilidade, há que compreendermos que linhas de força possibilitaram que a temática seja visionada como secundária e que dispositivos se favorecem desta invisibilidade. A ausência/falta deste discurso tem um caráter produtivo, qual seja, ao se instalar nos bastidores, produziu/reforçou dispositivos outros.

Dessa forma, urge refletirmos se a visibilidade que estamos proporcionando à experiência de mulheres lésbicas potencializa um subjetivar-se dentro do dispositivo invisível que se formou ou se apenas reforça o próprio dispositivo de apagamento e sujeição. A visibilidade e o discurso sobre esta experiência produzem uma existência diferenciada destas mulheres, pois elas "passam a existir" para a história. Entretanto, não podemos nos satisfazer apenas com a visibilidade, que pode ao invés de emancipar esta experiência, encarcerada por toda uma história, reforça sua sujeição, discurso que a própria concepção de dispositivo escamoteia.

Tendo em consideração os documentos discutidos ao longo deste artigo, percebe-se a força com que uma determinada moralidade atravessa qualquer discussão política que englobe questões concernentes à sexualidade ou à garantia de direitos de sujeitos que se desvirtuam do modelo do dispositivo moderno da sexualidade heteronormatizada. O "trabalho em terreno" proposto por Foucault (Deleuze, 1990), seria, portanto, desnovelar o dispositivo, para visionarmos as linhas de força que o impulsionam e problematizar aquelas que tentam enfraquecer uma (est)ética da existência dos sujeitos.

Outro questionamento que ainda persiste seria como, tendo em consideração as linhas de força de um dispositivo, podemos construir políticas públicas (que requerem certas garantias para se estabilizar), que mesmo que se valham das linhas de força do saber-poder para se manter, abram brechas para as subjetivações. Foucault (Deleuze, 1990) parece nos oferecer uma pista quando refuta as generalizações, os universalismos, o Todo, o Uno, a Verdade. Ao pensar em políticas que se aproximam da experiência dos sujeitos, devemos contemplar sempre a provisoriedade de tais sujeitos, a precariedade das garantias e a necessidade de revisitarmos as políticas, repensá-las, para que não se institua uma verdade única, mas verdades limitadas que buscam atender certa ordem prática, mas não incólume.

Um dos caminhos possíveis para a prerrogativa acima assinalada pode ser encontrada em Martins (2009). Para este autor, ao se pensar em políticas públicas no sentido de imprimir uma ética imanente a esta construção coletiva, devemos abarcar as perspectivas das pessoas que a política busca atender. Neste sentido, ao se contemplar as experiências dos sujeitos, há uma dimensão precária, contingencial, provisória das identidades daqueles, e, se essa dimensão for negada e se as políticas se pautarem numa linearidade coerente das experiências, sem brechas para os desvios das vivências, pode-se construir uma política de inclusão, pautada na própria exclusão que busca erradicar.

Ainda de acordo com a reflexões anteriores, Facchini e Barbosa (2006) concebem que políticas públicas destinadas às mulheres são atravessadas por concepções que restringem as possibilidades da experiência (homo)sexual, e, portanto, tem eficácia reduzida por se destinarem a uma imagem idealizada que não corresponde às práticas cotidianas. Portanto, trazer as vozes das experiências destas mulheres para se pensar políticas de saúde específicas é caminho para fomentar ações mais eficazes e subsidiar seus direitos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recebido em 09/02/2012.
Revisado em 14/06/2012.
Aceito em 26/10/2012.

 

 

1 Lésbica e lesbianidade são conceitos utilizados neste trabalho para designar as relações afetivo-sexuais entre mulheres. Não pretendemos com estes conceitos deflagrar a possibilidade de uma essência ontológica da experiência dessas mulheres, que nos é percebida como produto sócio-histórico, mas apenas demarcar este sujeito político, no qual as identidades escapam a qualquer terminologia.
2 Terminologia utilizada pela autora.
3 Ausência da gravidez no percurso da vida.
4 Sodomia: coito anal.
5 Grifo nosso.
6 Convém salientar que desde esses acontecimentos, outros avanços no sentido da garantia dos direitos em relação à saúde sexual e reprodutiva das mulheres emergiram no cenário nacional. Podemos destacar a luta pela descriminalização do aborto e a luta de mulheres lésbicas pelo direito à gravidez ou maternidade assistida pelo Estado. Como foge ao objetivo deste artigo aprofundar nestas temáticas, sugere-se a leitura das seguintes referências: Menezes & Aquino (2009) e Pontes (2001).
7 O Medline é uma base de dados da literatura internacional da área médica e biomédica, que contém mais de 15 milhões de registros, cobre mais de 4.800 jornais e revistas e 70 países. Esta base de dados criada em 1966 é parte do PubMed, projeto desenvolvido pelo National Center for Biotechnology Information, situado na National Library of Medicine que pertence ao National Institutes of Health em Washington, EUA (SPINK, 2007; MEDLINE, s/d).
8 A cartilha Chegou a hora de cuidar de saúde como material educativo incentiva as mulheres lésbicas e bissexuais a falar com médicos(as) sobre suas práticas sexuais.

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