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Revista Psicologia Política

versão impressa ISSN 1519-549X

Rev. psicol. polít. vol.13 no.27 São Paulo ago. 2013

 

Deslocamentos na Governamentalidade: a subjetivação como resistência ético-política em Foucault

 

Displacements in Governmentality: subjectivation as ethical political resistance in Foucault

 

Desplazamientos en la Gobernamentalidad: la subjetivación como resistencia ético-politica en Foucault

 

Déplacements en la Gouvernementalité: la subjectivation comme resistence éthique-politique chez Foucault

 

 

Luiz Alberto Moreira MartinsI; Carlos Augusto Peixoto JuniorII

IPsicanalista e Doutor em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. lammart@globo.com
IIPsicanalista e Doutor em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Atualmente é pesquisador do CNPq e professor do departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. cpeixotojr@terra.com.br

 

 


RESUMO

O objetivo do presente artigo é rastrear os elementos e questões que possibilitaram a Michel Foucault, a elaboração dos conceitos de governamentalidade e governo, investigando o deslocamento de ênfase, em suas pesquisas, do eixo do poder para os da subjetivação e da ética. A nossa hipótese é a de que as noções de conduta e contraconduta extraídas dos estudos sobre a pastoral cristã foram fundamentais tanto para a construção do conceito de governamentalidade, como para a elaboração do eixo da subjetivação. Sustentamos ainda que a elaboração desse último eixo responde a uma questão ética e política: como, por meio do cuidado de si, das práticas de subjetivação construir um modo de resistência ético-política aos estados de dominação? Enfim, consideramos que a emergência da subjetivação e da ética no pensamento de Foucault não constitui em absoluto uma ruptura com as investigações sobre as relações de poder e o domínio político.

Palavras-chave: Governamentalidade, Conduta, Resistência, Subjetivação, Ética.


ABSTRACT

This paper attempts to give an account of the elements and issues referred to by Michel Foucault in the development of governmentality and government concepts, looking into the shift in emphasis in his research from the axis of power to the axis of subjectivation and ethics. The hypothesis presented points out that the notions of conduct and counter conduct derived from studies on Christian pastoral were essential both for the construction of the concept of governmentality as well as for the creation of the axis of subjectivation. The creation of the latter is related to an ethics and politics issue: how can, by taking care of oneself, by subjectivation practices, an ethical political resistance to domination be created? In conclusion, the emergence of subjectivation and ethics in Foucault's thought does not represent in any way a rupture from research in power relations and political domain.

Keywords: Governmentality, Conduct, Resistance, Subjectivation, Ethics.


RESUMEN

El presente artículo tiene por objetivo indagar los elementos y cuestiones a partir de las cuales Michel Foucault desarrolla el concepto de gobernamentalidad y gobierno, investigar el traspaso del énfasis en sus investigaciones, del eje del poder al de la subjetivación y de la ética. La suposición que se plantea es que las nociones de conducta y contra conducta que emanan de los estudios sobre la pastoral cristiana fueron fundamentales tanto para la construcción del concepto de gobernamentalidad, cuanto para la elaboración del eje de la subjetivación. Se propone abordar que la elaboración del mismo responde a una cuestión ética y política: ¿Cómo, por medio del cuidado de sí mismo, de las prácticas de subjetivación se puede construir un modo de resistencia ético-política a los estados de dominación? Por último, se considera que el surgimiento de la subjetivación y de la ética en el pensamiento de Foucault no representa en absoluto una ruptura con las investigaciones sobre las relaciones de poder y el dominio político.

Palabras clave: Gobernamentalidad, Conducta, Resistencia, Subjetivación, Ética.


RÉSUMÉ

L'objectif du present article est de poursuivre les éléments et questions qui favorisèrent Michel Foucault a l'élaboration des concepts de gouvernementalité et gouvernement, investigant le déplacement de l'emphase, dans ses recherches, de l'axe du pouvoir en direction de ceux de la subjectivation et l'éthique. Notre hypothése repose sur les notions de conduite e de contre-conduite extraites des études à propos de la pastorale chrétienne qui furent fondamentales pour la construction du concept de gouvernementalité et ainsi de même por l'élaboration de l'axe de la subjectivation. Soutenons encore que l'élaboration de ce dernier axe répond à une question éthique et politique: ainsi, par moyen du soin de soi, des pratiques de subjectivation puisse se construire un moyen de résistence éthique-politique aux états de domination ? Enfin, considerons que l'émergence de la subjectivation et de l'éthique dans la pensée de Foucault ne constitue absolument pas une rupture avec les investigations à propos des relations de pouvoir et le domaine politique.

Mots clés: Gouvernementalité, Conduite, Résistence, Subjectivation, Ethique.


 

 

INTRODUÇÃO

Os trabalhos de Foucault são atravessados por três eixos de investigação que se interligam: saber, poder e subjetivação. Ainda que tenha afirmado, em 1982, que o objetivo de seu trabalho "foi criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos" (Foucault, 2001b:1.042), e que é o sujeito e não o saber ou o poder o tema geral de sua pesquisa, não se pode negar que ao longo de seus estudos cada um desses eixos foi privilegiado de alguma forma. Assim, até o final dos anos 1960 predominava o eixo do saber, o foco nas práticas discursivas, a arqueologia; já em meados dos anos 1970, prevalecia o eixo do poder, as análises das relações de poder, a genealogia e a analítica do poder; e, por fim, nos anos 1980-1984, período que muitos autores nomeiam como o do "último Foucault", o eixo da ética ou da subjetivação. No entanto, não estamos diante de uma sucessão cronológica em que um eixo viria substituir o outro; o que temos é uma integração, uma interpenetração desses eixos, um conjunto de relações complexas entre saber, poder e subjetivação.

Neste artigo retomaremos algumas noções utilizadas por Foucault e, também, conceitos por ele propostos em suas pesquisas. Com essa retomada, que envolve os conceitos de biopolítica, conduta, liberdade, governamentalidade e governo, pretendemos acompanhar os deslocamentos e transformações desses conceitos no pensamento do autor, mas também os efeitos e consequências que esses deslocamentos e transformações ocasionaram na continuação de suas investigações. Tencionamos retomar esses conceitos no contexto dos cursos de 1978 e 1979, intitulados, respectivamente, Segurança, território, população e Nascimento da biopolítica, e do resumo desses cursos que Foucault apresentou na Universidade de Stanford em 1979 com o título Omnes et singulatim, com o objetivo de explicitar a abertura de um novo domínio de sua pesquisa: o da racionalidade governamental ou da governamentalidade. Isso teve como consequência o desenvolvimento de um vasto campo de investigação - governmentality studies - em vários países (Inglaterra, Austrália, Canadá, Alemanha, entre outros). De acordo com Jacques Donzelot, os estudos sobre a governamentalidade são, talvez, em todos os lugares, exceto na França, a parte mais viva da 'obra' de Foucault (Donzelot, 2008:61). Esse movimento teve início com a publicação, por G. Burchell, C. Gordon e P. Miller, do livro The Foucault effect: studies in governmentality, em 1991.

Em termos mais específicos, nosso estudo tem, entre seus objetivos, investigar o deslocamento de ênfase do eixo do poder para o da subjetivação e da ética. Consideramos que as noções de conduta e contraconduta, extraídas das pesquisas de Foucault sobre a pastoral cristã, são fundamentais para a compreensão do deslocamento em questão. Sustentamos ainda que foi a partir da noção de conduta que a governamentalidade pode se constituir como grade de análise das relações de poder, como "condução de condutas". Acreditamos que essa nova perspectiva de análise das relações de poder e a concepção de governo introduzidas pelo pensador francês podem ser fecundas para a Psicologia Política, na medida em que se constituem como referências teóricas e metodológicas que tornam possível uma nova abordagem das relações de poder, do processo político atual, dos comportamentos políticos individuais e coletivos, enfim de uma série de questões e temas de interesse da Psicologia Política ou de uma "Ciência do Governo", termo utilizado por Gustave Le Bon para se referir àquela disciplina. Outro objetivo do presente artigo é o de ressaltar que o interesse cada vez maior de Foucault, a partir dos anos 1980 pelo cuidado de si, a subjetivação e a ética, não constitui em absoluto, uma ruptura com as investigações sobre as relações de poder e o domínio político.

 

Deslocamentos: biopolítica e governamentalidade

Em 1978, Foucault reinicia suas atividades no Collège de France, quando retoma as questões e conceitos introduzidos nos trabalhos anteriores com o propósito de continuar a análise da emergência de uma nova tecnologia de poder, a biopolítica e os mecanismos de segurança. "Depois do estudo da disciplina dos corpos, o da regulação das populações" (Senellart, 2004:394).

O objetivo era retornar aos conceitos apresentados em 1976, para desenvolvê-los de forma mais consistente nos cursos Segurança, território, população, de 1978, e Nascimento da biopolítica, de 1979. No entanto, esse desenvolvimento "o conduziu a desvios que, aparentemente, afastam-no de seu objetivo inicial e reorientam o curso numa nova direção." (Senellart, 2004:381). O desdobramento da investigação da biopolítica tornou necessárias não somente, a ampliação efetiva do domínio investigado, mas também a abertura de outro campo, o da história da governamentalidade.1 Afinal, foi no curso de 1978 que Foucault cunhou o conceito de 'governamentalidade' e deslocou pouco a pouco o foco de suas investigações das relações de poder para as questões do governo, ao mesmo tempo em que introduzia a economia política e o liberalismo nas artes de governar. Com a introdução dessa nova perspectiva de análise que é a da governamentalidade, a biopolítica passará a ser abordada com referência ao tipo de racionalidade governamental que tornou possível sua emergência e seu objeto, a população. Os dois cursos acima mencionados são, de alguma forma, a continuação um do outro, e poderiam ser englobados sob o título "A história da governamentalidade", proposto pelo próprio Foucault no início da aula de 1º de fevereiro de 1978. Na ocasião, ele define a governamentalidade como um novo campo de pesquisa, envolvendo o estudo da racionalidade governamental ou arte de governar.

Tendo como perspectiva metodológica a analítica do poder, Foucault abordou o tema do governo, no âmbito de seu exercício e de suas práticas, assim como a racionalidade governamental, entendida como reflexão sobre a natureza e a atividade do governo. O que ele persegue, então, é a construção de uma história a partir de uma perspectiva diferente da história tradicional das ideias e das instituições políticas. A história da gênese do Estado moderno proposta por ele não se sustenta nas teorias jurídicas ou filosóficas da soberania, nem, tampouco, no ponto de vista das instituições, do poder público ou do jogo das forças econômicas. A grade de análise utilizada não exclui as outras, mas consolida a abertura do novo campo mencionado, qual seja, o das tecnologias de governo. Dessa forma, a questão do Estado ingressa no domínio de análise dos micropoderes (Senellart, 2004:406).

A introdução da noção de governamentalidade foi utilizada, dentre outras coisas, com o propósito de nomear e analisar as diversas formas de exercício da biopolítica, isto é, os vários modos de condução ou de gestão administrativa da população. Foi essa noção que permitiu a Foucault pensar aqueles dispositivos de gestão sem ter que recorrer ao conceito de Estado ou mesmo à 'instituição' do governo, os quais pressupõem a existência de uma estrutura política institucionalizada, organizada em torno de objetivos determinados e hierarquizados, entendida como centro e foco de difusão do poder.

O que encontramos nos cursos Segurança, território, população e Nascimento da biopolítica, é uma grande operação de deslocamento. A partir da introdução do projeto de uma história da governamentalidade, Foucault começa, pouco a pouco, a estabelecer uma nova grade de análise para as relações de poder, a "da 'razão governamental', ou seja, dos tipos de racionalidade que são postos em ação nos procedimentos pelos quais a conduta dos homens é conduzida por meio de uma administração estatal." (Foucault, 2004b:327). A própria noção de governo passa a se identificar cada vez mais com essa grade de análise. Não se tratava mais apenas, como Foucault havia indicado em 1976, de fazer a genealogia de uma nova tecnologia de poder, a biopolítica, mas de inseri-la no quadro mais amplo da governamentalidade. Assim, a biopolítica passa a ser pensada como uma tecnologia de poder correlata de uma nova racionalidade governamental, esta última sustentada num saber emergente: a economia política.

Ainda na primeira aula de Nascimento da biopolítica, Foucault aponta duas questões que deveriam ser abordadas antes que se pudesse prosseguir com a análise da biopolítica. Em primeiro lugar, a correlação entre economia política e população, esta última entendida aqui como uma realidade específica, sem a qual uma biopolítica não poderia se constituir. "Com a emergência da economia política, [...] realiza-se uma substituição importante, ou melhor, uma duplicação, pois os sujeitos de direito sobre os quais se exerce a soberania política aparecemcomo uma população que um governo deve administrar. É aí que a linha de organização de uma biopolítica encontra o seu ponto de partida." (Foucault, 2004b:24). Mas, de acordo com Foucault, essa mutação seria apenas parte de algo bem mais amplo, ou seja, a emergência de uma nova razão governamental, o liberalismo. Essa é a segunda questão que faz com que aanálise da biopolítica seja adiada. É nesse ponto que o autor se propõe a estudar o liberalismo como quadro geral da biopolítica e situa a emergência e o desenvolvimento desta última no interior da racionalidade política liberal. "Só depois que soubermos o que era esse regime governamental chamado liberalismo é que poderemos, parece-me, apreender o que é a biopolítica." (Foucault, 2004b:24).

Resumindo, com a introdução do conceito de governamentalidade, Foucault reorienta seu projeto para a investigação da razão governamental e situa a biopolítica na perspectiva da racionalidade da política liberal, passando então a buscar estabelecer a conexão teórica e histórica entre biopolítica, economia política e liberalismo.

É interessante ressaltar que Foucault não concebe o liberalismo nem como um sistema de ideias que teria a liberdade como foco, como ideal político e até mesmo como uma ideologia, nem tampouco como uma doutrina ou política econômica. "O liberalismo não é evidentemente uma ideologia ou um ideal. É uma forma de racionalidade governamental muito complexa. E é, creio, dever do historiador estudar como ele pode funcionar, a qual preço, com que instrumentos - e isto evidentemente numa época e numa situação dada." (Foucault, 2001e:855). O que está em jogo na análise de Foucault, é o exercício de uma prática, é uma atividade, "uma 'maneira de fazer' orientada para objetivos e regulando-se por uma reflexão contínua" (Foucault, 2004b:323) - enfim, nos deparamos com a noção de governo que será retomada em seguida.

 

A Noção de Conduta e as Relações de Poder

Os cursos Segurança, território, população, de 1978, e Nascimento da biopolítica, de 1979, constituem a referência central em torno da qual se organiza esse artigo. Foi o exame minucioso desses cursos, publicados em 2004, que nos permitiu analisar e esclarecer os deslocamentos conceituais e compreender o alcance e consequências da mudança de direção do projeto de Michel Foucault. Em resumo, o projeto proposto de uma história da governamentalidade, na aula de 1º de fevereiro de 1978, resultou no percurso por cinco domínios históricos distintos; o tema do pastorato na Antiguidade, e sua relação com a noção de governo; a pastoral cristã ou o poder pastoral como forma de governo dos homens; as doutrinas de governo na Europa a partir do século XVI, associadas com o conceito de razão de Estado e o de polícia; a emergência do liberalismo no século XVIII, como uma modalidade da arte de governar; e, por fim, o pensamento neoliberal do pós-guerra, como uma reflexão sobre a racionalidade governamental.

Toda essa temática não foi objeto de nenhum livro de sua autoria, mas muito explorada em seus "seminários de pesquisa sobre as questões de governo em suas frequentes visitas aos Estados Unidos, especialmente a Berkeley" (Gordon, 1991:1), mas também às Universidades de Vermont e Stanford, assim como em muitas de suas entrevistas nesse período.

Alguns desses temas e os conceitos deles derivados são interligados por um feixe de relações. Dentre eles, destacaríamos: a pastoral cristã, a noção de conduta e a governamentalidade. O tema da pastoral envolve diretamente as noções de conduta egovernamentalidade. É a partir da crise do pastorato, no século XVI, que uma nova problematização e uma nova temática vai se desenvolver - a da arte de governar os homens. O governo dos homens pelos homens emerge como objeto de reflexão na medida em que não pode mais encontrar sua matriz, "nem do lado de Deus nem do lado da natureza." (Foucault, 2004a:242). No que se refere à conduta, Foucault afirma que teria havido, no século XVI, uma "intensificação, multiplicação, proliferação geral dessa questão e dessas técnicas de conduta." (Foucault, 2004a:236). A temática da conduta vai ultrapassar o domínio do pastorato religioso, manifestando-se, então, em uma multiplicidade de formas de condução, dentre as quais sobressaem, a condução de si, a condução da família, a condução das crianças, a condução pública pelo governo. No decorrer do curso de 1978, Foucault retomou algumas questões já trabalhadas em Os anormais - dentre elas, a arte de governar e a pastoral cristã. Depois de minuciosa investigação das relações entre as artes de governar e a pastoral, ele chega à noção de conduta (aula de 1º de março de 1978).

Acreditamos que essa noção teve profundo impacto no dispositivo teórico que ele elaborava naquele curso, e continuou a transformá-lo nos anos seguintes. A noção de conduta pode ser definida como a atividade de quem conduz, podendo a palavra 'conduta' ser traduzida, em grego, por oikonomia psuchôn (ou economia das almas), e em latim, por regimen animarum (regime das almas), e define bem o pastorato cristão. A conduta é, portanto, um termo que designa o pastorato como forma específica de poder. Mas 'conduta', de uma outra perspectiva, é também a atividade daquele que 'se conduz', ou, mais precisamente, a atividade daquele que se conduz, frente ao modo como é conduzido ou ao modo como se pretende conduzi-lo. "A conduta é a atividade que consiste em conduzir, a condução, se quiserem, mas é igualmente a maneira como cada um se conduz, a maneira como cada um se deixa conduzir, a maneira como cada um é conduzido e como finalmente, cada um se comporta sob o efeito de uma conduta que seria ato de conduta ou de condução." (Foucault, 2004a:196-197).

A noção de conduta permite a descrição de uma modalidade de poder que se exerce pelo acompanhamento, direção e orientação controlada da liberdade. No momento em que Foucault se depara com esta noção de conduta, começa a se descortinar de modo mais explícito o domínio da subjetivação e da ética em seu pensamento. Afinal, ele mesmo definiria, alguns anos mais tarde, os objetivos de sua pesquisa como sendo os de produzir "uma história dos diferentes modos de subjetivação do ser humano na nossa cultura". (Foucault, 1984a:297).

Mas a noção de conduta permite também delimitar o espaço ambíguo no qual a injunção, a prescrição externa, como forma de condução, vai se imiscuir, no domínio da liberdade, da atividade própria de cada indivíduo, enfim, na maneira como cada um se conduz. De acordo com Foucault, encontramos as origens das técnicas de normalização das populações na pastoral cristã e na direção de consciência. A racionalidade política presente na forma de condução que o pastorato pretendia exercer é, até certo ponto, a mesma que encontramos nas tecnologias de governo que caracterizam o liberalismo e em especial, o neoliberalismo, que teve a habilidade de articular o governo dos outros e o governo de si, "de uma maneira singular fazendo do governo de si o ponto de aplicação e o objetivo do governo dos outros." (Dardot & Laval 2009:475). A normalização da população não se produz por meio de uma intervenção voluntarista de natureza jurídica, nem tampouco é obtida previamente por meio das injunções e do esquadrinhamento que caracteriza o modelo disciplinar. Ela se produz no interior da sociedade, por meio da solicitação feita aos indivíduos para que orientem o exercício de sua liberdade para certas direções mais do que para outras. O que está em jogo, tanto no pastorato como nas tecnologias liberais, não é uma tentativa de condução e governo pela coerção, mas sim um esforço no sentido de atuar de forma que o indivíduo tome para si, e como sua, a injunção que lhe é feita, até fazer dela a norma de sua própria conduta. No entanto, uma prática governamental que necessita da liberdade para atuar, que consome liberdade ao se exercer tem sempre que levar em conta o resíduo de iniciativa e de autonomia que escapa ao seu controle. Assim, uma forma de racionalidade governamental que se sustenta na liberdade para conduzir a conduta dos homens, traz em si o risco de que o indivíduo faça uso de sua liberdade para contestar, modificar ou se desviar do rumo e do resultado pretendidos.

Deparamo-nos aqui, portanto com uma questão ética, ou melhor, com uma articulação entre ética e política, posto que a maneira como o indivíduo vai moldar a liberdade que lhe resta se torna objeto e domínio de intervenção por parte das tecnologias de governo; "...o espaço dos comportamentos individuais se torna o lugar de um confronto e de um desequilíbrio, irredutíveis à oposição entre submissão a um poder externo e a livre determinação de si por si, entre heteronomia política e autonomia moral." (Potte-Bonneville, 2007a:297). Considerando essas observações, podemos afirmar que a questão da articulação entre subjetivação e resistência ao poder está claramente presente no "último Foucault", nos trabalhos que privilegiam a subjetivação e a ética. A emergência do cuidado de si na obra de Foucault não pode, de forma alguma, ser apreendida como um corte entre as pesquisas sobre o poder e as do último período, que abordam a história da subjetividade. Essa interpretação equivocada com relação ao que há de político nos últimos trabalhos de Foucault, sustentada por vários comentadores, entre eles, Taylor (1992), Anderson (2005), Paras (2006), Danaher (2000), está na origem das críticas de "dandismo e cegueira política" (Potte-Bonneville, 2007a:291) que foram dirigidas ao filósofo francês. Enfim, a emergência do cuidado de si que mencionamos acima, "responde a uma transformação rigorosamente política, que levou a fazer do espaço das condutas individuais o lugar de uma batalha maior." (Potte-Bonneville, 2007a:292). O cuidado de si proposto por Foucault não provém de uma relação primordial a si, mas de uma teknê tou biou, arte da vida, que faz do si o ponto final de uma askêsis, ascese, ou seja, de uma prática, de um trabalho sobre si. O que está em questão são a "individualidade e as normas como lugar de confronto político, o que confere à reflexão moral uma nova significação." (Potte-Bonneville, 2007a:292).

O termo 'conduta', como podemos ver, carrega em si a ambiguidade que possibilita caracterizar desde o ato de conduzir um outro por meio de uma intervenção externa, até a atividade livre de um indivíduo que conduz a si mesmo. Segundo Potte-Bonneville, esses dois polos mantêm entre si uma relação dupla. Por um lado, temos uma relação de continuidade, já "que a 'condução' pretende se exercer através da forma que o indivíduo vai dar à sua própria conduta" (Potte-Bonneville, 2007a:299) - por exemplo, quando articulamos retrospectivamente a noção de governo e o dispositivo disciplinar, constatamos que os objetivos deste último não se esgotam nos procedimentos de moldagem e normalização dos indivíduos. O indivíduo submetido às injunções do dispositivo disciplinar não é apenas um objeto passivo desse dispositivo, "ele é concretamente convidado a fazer sua a norma disciplinar, a interiorizá-la, a utilizá-la a serviço de sua própria produtividade" (Potte-Bonneville, 2007b:361). Mas, por outro lado, temos também uma relação de desvio, uma vez que o processo mesmo pelo qual um indivíduo toma para si uma injunção externa e como se fosse sua se dá no hiato, na margem produzida pela distância entre o fato de ser conduzido e o de conduzir a si mesmo. E é "precisamente nesse afastamento que Foucault vai situar o que ele denomina as 'contracondutas'" (Potte-Bonneville, 2007a:299), ao se referir, por exemplo, à crise do pastorato. Portanto, é nesse espaço intermediário, nessa margem entre os dois polos a que nos referimos, que as resistências podem se produzir, que os indivíduos podem elaborar novas maneiras de governo de si, de se conduzir, para se livrarem assim da sujeição, do intolerável, enfim, das maneiras de governar que pretendem rejeitar.

A análise empreendida por Foucault sobre o ascetismo, no curso de 1978, como um exemplo de contraconduta, revela uma forma de resistência específica, tanto no que se refere a seu objeto, como no que diz respeito à estratégia utilizada. O que está em jogo não é uma resistência ao poder e a dominação, mas ao modo de ser conduzido, aos procedimentos e técnicas de condução; não é o caso tampouco de uma estratégia de não-obediência, de nãosubmissão, uma vez que a contraconduta - o ascetismo é disso um exemplo - implica uma transformação de si, um "exercício de si", capaz de produzir novas formas de se conduzir, novas formas de existência. Essas 'resistências de conduta' se exercem, portanto, por meio da criação de condutas alternativas, que se opõem ao 'poder-conduta'. É uma resistência produtiva, ativa, uma vez que o indivíduo, ao definir e criar para si mesmo uma maneira de se conduzir - com relação a si e aos outros - resiste às formas de condução e subjetivação das quais pretende escapar.

Por meio da articulação entre as noções de conduta, contraconduta e ascetismo encontramos, no curso de 1978, o germe da perspectiva da subjetivação e da ética, perspectiva que vai nortear as investigações posteriores de Foucault, como por exemplo, as que foram desenvolvidas no curso de 1982, A hermenêutica do sujeito, e no segundo e terceiro volumes da História da sexualidade - O uso dos prazeres e O cuidado de si.

A noção de conduta vai nitidamente transformar o conceito de 'governamentalidade'. De início, em Segurança, território, população, governamentalidade tinha um sentido preciso, por vezes equivalente à biopolítica, e designava um regime de poder específico, que teria se instaurado no século XVIII, articulado com a questão do Estado. Para situar de forma mais precisa a noção de governamentalidade, tal como ela aparece no curso de 1978, podemos dizer, de forma esquemática, que teríamos tido, no Ocidente, três regimes de economia de poder. Primeiro, uma sociedade de soberania histórica e religiosa, sociedade da lei, ou Estado de justiça, com suas duas formas de universalidade, o Império e a Igreja, que podemos situar ao longo da Idade Média até a época das grandes revoluções científicas do século XVI e da emergência da episteme clássica. Segundo, um Estado administrativo, que corresponderia ao início da formação da sociedade disciplinar, do Estado moderno, entre os séculos XVI e XVIII, sustentado por uma racionalidade governamental autônoma, pela razão de Estado, por uma nova forma política de poder. E, finalmente, um Estado de governo, que podemos situar a partir de meados do século XVIII, que tem como alvo a população e como ciência e técnica de intervenção a economia política - e cujos mecanismos essenciais de controle são os dispositivos de segurança. É esse Estado de governo que a princípio caracteriza, para Foucault, a governamentalidade, incluindo aí as técnicas de gestão das populações.

A partir do curso de 1979, Nascimento da biopolítica, a noção de governamentalidade aparece inteiramente reconfigurada e ganha um sentido muito mais abrangente e abstrato, na medida em que passa a englobar e se referir a todo o campo estratégico das relações de poder, ou seja, à multiplicidade de técnicas e táticas que visam modificar as condutas dos outros. A redefinição da noção aparece na aula de 7 de março de 1979. "O próprio termo 'poder' apenas designa um [domínio] de relações que estão inteiramente abertas à análise, e o que propus chamar governamentalidade, quer dizer, a maneira como se conduz a conduta dos homens, não é outra coisa senão uma proposição de grade de análise para essas relações de poder." (Foucault, 2004b:191-192). O conceito deixa então de remeter a um regime de poder específico e situado historicamente, para se constituir como grade de análise das relações de poder, entendidas aqui como "condução de condutas".

O que emerge no centro das relações de poder é uma atividade ou "arte de governar", de guiar ou dirigir a conduta dos outros. Nestes termos, a noção de governo se reveste de um sentido preciso em Foucault, o de atividade: "trata-se, é claro, não da instituição 'governo', mas da atividade que consiste em reger a conduta dos homens num quadro e com instrumentos estatais." (Foucault, 2004b:324). Esse sentido atribuído ao governo é retomado por Foucault em diversas ocasiões, como no curso Du gouvernement des vivants, no qual ele afirma que a noção de governo deve ser "entendida no sentido amplo de técnicas e procedimentos destinados a dirigir a conduta dos homens" (Foucault, 2001g:944). Mas também na primeira versão do prefácio da História da sexualidade2, em que testemunha que seu interesse pelos procedimentos do poder visava investigar a "elaboração e a colocação em ação, desde o século XVII de técnicas para 'governar' os indivíduos, ou seja, para 'conduzir suas condutas', e isto em domínios tão diferentes quanto na escola, no exército, na fábrica." (Foucault, 2001f:1401). A noção de governo remete portanto às inúmeras formas de atividade ou ação por meio das quais os homens pretendem conduzir a conduta de outros homens, ou seja governá-los. Essa nova maneira de teorizar o poder, ou pelo menos essa mudança de ênfase, Senellart a atribui à intenção de Foucault de fazer uma genealogia do Estado moderno. "A grade de análise da governamentalidade não constitui portanto uma ruptura no trabalho de Foucault em relação à sua análise anterior do poder [...] O deslizamento do 'poder' ao 'governo' que se efetua no curso de 1978 não resulta do questionamento do marco metodológico, mas da sua extensão a um novo objeto, o Estado, que não tinha seu lugar na análise das disciplinas" (Senellart, 2004:399)

Dessa forma, a "hipótese de Nietzsche" ou o modelo da guerra, parece ter sido integrado a um esquema mais complexo de teorização sobre o poder. Podemos supor, enfim, que o deslocamento do poder para o governo e a concomitante proposição da governamentalidade como grade de análise das relações de poder, se deve menos ao questionamento do modelo da guerra do que a introdução, no campo de pesquisa, de novos elementos ou objetos: o Estado e a população, tendo como pano de fundo uma nova racionalidade de governo, o liberalismo. A governamentalidade é introduzida para "abordar o problema do Estado e da população". (Foucault, 2004a:120).

A governamentalidade, definida como o campo estratégico das relações de poder, no que elas têm de móvel, de transformável, de reversível, se apresenta como uma grade de análise das relações de poder, muito mais fluida do que o modelo da guerra e do afrontamento. Se examinarmos em profundidade as hipóteses de Foucault sobre o poder na década de 1970, veremos que o deslocamento do modelo da guerra para o da governamentalidade em seu pensamento foi acompanhado de um movimento da dominação e da sujeição para a liberdade. Se a dominação e o modelo da guerra não desapareceram é porque se integraram em um esquema de análise que enfatiza a liberdade e a resistência como imanentes às relações de poder e como condição de possibilidade dessas relações.

Em um debate não publicado de 1980, com filósofos em Berkeley, alguns dias depois das Howison Lectures, Foucault declara não haver incompatibilidade entre as análises do poder no que se referia a "relações de forças" e "condução de condutas": "Meu problema é analisar o que é governo entendido como uma técnica, a qual permite que pessoas conduzam a vida de outras apesar de ou pelo fato mesmo de que há sempre relações de forças entre pessoas na sociedade" (Foucault, 1980b). De qualquer forma, a grade de apreensão do poder parece ter deslocado sua ênfase das relações de forças para a condução de condutas. De acordo com Foucault, as relações de poder, numa sociedade dada, não são distribuídas de forma equitativa nem aleatória; elas são orientadas e organizadas por uma espécie de desequilíbrio que permite a certas pessoas a possibilidade de agir sobre as outras. "A dissimetria das relações de forças é, eu penso, o que podemos chamar de governo; o meu problema agora é analisar, não as relações de poder, mas o governo" (Foucault, 1980b). O governo não pode ser reduzido apenas às relações de força, à dominação e à violência; a ideia de dominação, por si só, não é suficiente e adequada para explicar e recobrir os fenômenos relativos ao governo, e isto porque, no que diz respeito ao governo, não estamos apenas diante de uma situação em que temos mais forças de um lado do que do outro. Governar, isto é, conduzir pessoas, implica sempre na existência de uma estrutura interna dos que são governados, estrutura que os torna governáveis pelos outros. A análise do governo e das tecnologias governamentais é, para Foucault, a análise da relação entre governantes e governados, por meio da relação, da interação das técnicas de dominação com as técnicas de si. Nesse sentido, podemos afirmar que a noção de conduta possibilitou a ampliação do conceito de governamentalidade, de forma a incluir, ao lado das técnicas de exercício de poder sobre os outros, os modos de ação que os indivíduos exercem sobre si mesmos por meio das técnicas de si - "governar é, portanto, conduzir a conduta dos homens, levando-se em conta que esta conduta é tanto aquela que se tem diante de si mesmo, como a que se tem diante dos outros" (Dardot & Laval, 2009:15). A atividade de um governo assim definido tem como condição de possibilidade a liberdade, ou melhor, um conceito de liberdade imanente às relações de poder, que Foucault elaborou ao investigar a racionalidade liberal. Afinal, a atividade de conduzir a conduta dos homens só pode se exercer por meio das liberdades daqueles sobre os quais ela se exerce.

À proporção que o conceito de governamentalidade passa a se referir ao domínio das ações que buscam modificar e transformar a relação consigo, mas também modificar e conduzir as ações dos outros, ele vai estender seu alcance e englobar, por um lado, a superfície de contato entre as técnicas de governo que visam a sujeição dos indivíduos e as maneiras pelas quais estes resistem, não se deixando governar, ou seja, criando novas maneiras de governo de si para, justamente, escapar da sujeição; e, por outro, o campo de interseção em que se articulam as relações entre essas formas específicas e criativas de governo de si e os modos de governar os outros que delas podem derivar, modos de governo dos outros que podem vir a fundar novas técnicas de sujeição. Esses dois eixos implicados no conceito de governamentalidade podem justificar, até certo ponto, a razão pela qual Foucault vai pouco a pouco substituindo ou deixando de lado as noções de poder e resistência em benefício do conceito de governamentalidade e das várias acepções do verbo 'governar'. Michel Senellart, numa passagem da Situation des cours, lembra bem, que a partir do curso de 1980, Du gouvernement des vivants, o conceito de governamentalidade se separa do problema do Estado, "para se tornar coextensivo ao campo semântico do 'governo'" (Senellart, 2004:403). Se as noções de poder e resistência permitem a análise do primeiro eixo (técnicas de governo e resistência), as noções de governamentalidade e governo parecem ser muito mais fecundas para a análise do segundo eixo, ou seja, de como os novos modos de governo de si, que de início se apresentavam como resistência, podem ser capturados, transformados e integrados às técnicas de governo que visam ainda a sujeição (Feher, 2005:264). Foucault define o funcionamento das relações de poder como "um conjunto de ações sobre ações possíveis; ele opera sobre o campo de possibilidade onde se inscreve o comportamento dos sujeitos ativos; ele incita, induz, desvia, facilita ou torna mais difícil, amplia ou limita, torna mais ou menos provável; no limite, ele coage ou impede absolutamente, mas é sempre uma maneira de agir sobre um ou vários sujeitos ativos, enquanto eles agem ou são suscetíveis de agir." (Foucault, 2001c:1.056).

 

Considerações Finais

Definidas como ações sobre as ações dos outros, as relações de poder aparecem como uma dimensão irredutível da experiência humana, reunindo os jogos estratégicos sem os quais não seria possível conceber as relações amorosas, de amizade ou familiares, e mesmo todas as interações cotidianas. É a partir da sedimentação dessas relações estratégicas imanentes à vida social que se constituem as técnicas de governo, como táticas de regulação, racionais, por vezes institucionalizadas, que visam produzir e reproduzir condutas em função de um objetivo. Essas técnicas de governo não são necessariamente intoleráveis, ainda que o processo de sedimentação que as produz possa facilitar o estabelecimento e a manutenção de estados de dominação - estes sim, intoleráveis -, ou seja, situações nas quais os indivíduos que são alvos das relações de poder se encontram privados dos meios para afetar a conduta daqueles que as exercem. Temos então, em uma extremidade, as relações de poder móveis, reversíveis, definidas como "jogos estratégicos entre liberdades" (Foucault, 2001d:1.547), e na outra, estas mesmas relações cristalizadas, ou seja, os estados de dominação. Entre as duas se situam as técnicas de governo por meio das quais, de acordo com o filósofo francês, "se estabelecem e se mantêm os estados de dominação. Em minha análise do poder, há esses três níveis: as relações estratégicas, as técnicas de governo e os estados de dominação" (Foucault, 2001d:1.547). O exercício do poder, a governamentalidade, não é uma dominação unilateral, que atravessa a sociedade em toda sua extensão, mas uma relação interativa resultante do encontro entre as técnicas de dominação exercidas sobre os outros e as técnicas de si, que o indivíduo pode mobilizar para seu próprio benefício ou uso.

Acreditamos que os deslocamentos do conceito de governamentalidade e a ampliação de seu campo de aplicação se devem ao impacto causado pela noção de conduta, uma vez que foi essa noção que possibilitou, em grande medida, que a dimensão da subjetivação e da ética conquistasse cada vez mais peso e espaço nas investigações de Foucault. Essa nova perspectiva possibilita integrar as técnicas de si às práticas de resistência, ou seja, por meio delas os indivíduos inventam novas formas de governo de si a partir dos mecanismos de sujeição de que são os alvos, com o objetivo de não se deixarem governar de determinado modo. Se a condução das condutas é uma arte de governar, a resistência é a virtude3 ou arte de não se deixar governar de tal modo, por tais pessoas ou instituições, com tais objetivos, etc. "A virtude pertence a uma ética que não se efetua pela simples observância de regras ou de leis objetivamente formuladas. Ela não é apenas um modo de se submeter ou de se conformar às normas preestabelecidas. Trata-se, de forma mais radical de uma relação crítica às normas, relação que para Foucault, toma a forma de uma estilização da moralidade." (Butler, 2005:82).

Concluímos portanto que a introdução da governamentalidade e as transformações desse conceito no pensamento de Foucault tornaram possível a abertura de um novo domínio de investigação: o das racionalidades governamentais. Uma vez integrada ao campo da governamentalidade, entendida como uma nova grade de análise para as relações de poder, a biopolítica pode ser abordada como uma tecnologia de poder correlata de uma nova racionalidade governamental: o liberalismo. Afinal, se a emergência e os primeiros desenvolvimentos da biopolítica podem ser situados no interior da racionalidade política liberal, seria lícito perguntar se as transformações evidentes da racionalidade política no Ocidente, a partir dos anos 1980, com o predomínio crescente do neoliberalismo, não teriam produzido e transformado também os dispositivos e as relações de poder que se exercem sobre todos e cada um. Acreditamos que as ferramentas e os instrumentos conceituais que Foucault nos legou podem ser muito fecundos não apenas para responder a essa questão numa pesquisa futura, mas também para investigar os elementos envolvidos na interface entre os aspectos políticos e psicológicos que determinam o comportamento político nas sociedades contemporâneas, tema de especial interesse para a Psicologia Política. Tivemos ademais, nesse artigo, a intenção de ressaltar a importância da noção de conduta na construção do conceito de governamentalidade, mas sobretudo na elaboração da dimensão da subjetivação e da ética no pensamento de Foucault. Além disso, indicamos ainda que as contracondutas, entendidas como práticas de subjetivação, podem se constituir como uma modalidade de resistência ético-política aos estados de dominação no interior da racionalidade governamental e das práticas de governo a que estamos submetidos hoje.

 

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Recebido em 17/03/2013
Revisado em 14/05/2013
Aceito em 03/07/2013

 

 

1 Referimo-nos aqui à nova perspectiva histórica proposta por Foucault que é a de uma "história das tecnologias de governo" ou de uma "história da governamentalidade", tema ao qual retornaremos mais adiante
2 Essa primeira versão, foi publicada por Paul Rabinow, em seu livro The Foucault reader, New York, Pantheon Books, 1984, pp. 333-339. Ela seria uma introdução geral da História da sexualidade, a ser publicada no segundo volume, O uso dos prazeres, mas foi abandonada por Foucault e substituída por uma nova versão
3 Sobre a ideia de resistência como virtude, ver o interessante ensaio de Judith Butler, Qu'est-ce que la critique ? Essai sur la vertu selon Foucault. Em Granjon, M-C. (Org.), Penser avec Michel Foucault. Paris: Éditions Karthala, 2005