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Revista Psicologia Política

versión impresa ISSN 1519-549X

Rev. psicol. polít. vol.13 no.28 São Paulo dic. 2013

 

Psicologia política e a teoria freudiana

 

Political psychology and the freudian theory

 

Psicología política y la teoría freudiana

 

Psychologie politique et la théorie freudienne

 

 

Ernesto Pacheco Richter

Psicólogo formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em Teoria Psicanalítica. Mestre e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. erichter2703@gmail.com

 

 


RESUMO

Os estudos psicopolíticos possibilitaram o florescimento do diálogo entre psicologia e política e contribuíram à consolidação da psicologia política como campo de pesquisa. As reflexões de Émile Tarde, Gustave Le Bon, Graham Wallas e Harold Lasswell influenciaram sobremaneira nesse processo de consolidação. O presente trabalho retoma estes e outros autores com o intuito de enfatizar não apenas a necessidade de considerarmos as singularidades dos atores políticos, mas, sobretudo o impacto da teoria freudiana nos estudos psicopolíticos. Sigmund Freud, ao questionar o cogito descartiano e propor a centralidade dos aspectos inconscientes em detrimento dos conscientes, trouxe contribuições significativas tanto aos estudos biográficos de atores políticos, quanto aos estudos sobre os fenômenos de massa, os quais fazem parte da história da psicologia política. À parte sua comprovada relevância histórica, acreditamos que a psicanálise enquanto psicologia profunda possa ainda colaborar nas pesquisas psicopolíticas; os textos sociais freudianos podem contribuir nessa reflexão.

Palavras-chave: Psicologia Política, História, Psicanálise, Interdisciplinaridade, Freud.


ABSTRACT

The dialogue between psychology and politics has flourished by psychopolitical studies, and has contributed to the consolidationof political psychology as research field. Émile Tarde's, Gustave Le Bon's, Graham Wallas' and Harold Lasswell's thoughts have greatly influenced this consolidation process. This paper recaptures these and other authors in order to emphasize not only the call for considering the singularity of political actors, but especially the Freudian theory impact on psychopolitical studies. Sigmund Freud, by challenging the Descartes' cogito and proposing the centrality of unconscious aspects at the expense of the conscious ones, has made significant contributions to both the political actors' biographical studies and the ones on crowd phenomena, which are part of the history of political psychology. Aside its proven historical relevance, we believe psychoanalysis as deep psychology can yet collaborate on psychopolitical researches. The social Freudian texts can contribute to this thinking.

Keywords: Political Psychology, History, Psychoanalysis, Interdisciplinarity, Freud.


RESUMEN

Los estudios psicopolíticos posibilitaran el florecimiento del dialogo entre la psicología y la política y contribuyeran a la consolidación de la psicología política como campo deinvestigación. Las reflexiones de Émile Tarde, Gustave Le Bon, Graham Wallas y Harold Lasswell influenciaron en gran medida en este proceso de consolidación. Este artículo rescata a estos y otros autores con el fin de destacar no sólo la necesidad de considerar la singularidad de los actores políticos, pero sobre todo el impacto de la teoría freudiana en los estudios psicopolíticos. Sigmund Freud, cuestionando el cogito de Descartes y proponiendo la centralidad de los aspectos inconscientes a expensas de los conscientes, ha hecho importantes contribuciones a los estudios biográficos de actores políticos y a los fenómenos de masa, los cuales hacen parte de la historia de la psicología política. Aparte la comprobada importancia histórica, creemos que el psicoanálisis como psicología profunda todavía puede colaborar en los estudios psicopolíticos. Los textos sociales freudianos pueden contribuir en esta reflexión.

Palabras clave: Psicología Política, História, Psicoanálisis, Interdisciplinariedad, Freud.


RÉSUMÉ

Les études psycho-politiques ont permis le développement du dialogue entre la psychologie et la politique et ont favorisé la consolidation de la psychologie politique comme un domaine de recherche. Les réflexions d'Émile Tarde, Gustave Le Bon, Graham Wallas et Harold Lasswell ont fortement influencé ce processus de consolidation. Cet article récupère ceux-ci et d'autres auteurs afin de souligner non seulement le besoin de considérer les singularités des acteurs politiques, mais surtout l'impact de la théorie freudienne dans les études psycho-politiques. Sigmund Freud, en contestant le cogito descartian et en proposant la centralité des aspects inconscients au détriment des conscients, a apporté des contributions notables aux études biographiques des acteurs politiques et aux phénomènes de masse, qui font partie de l'histoire de la psychologie politique. À côté de sa remarquable valeur historique, nous croyons que la psychanalyse comme psychologie profonde peut encore collaborer aux études psychopolitique. Les textes sociaux freudiens peuvent aider à cette réflexion.

Mots clés: Psychologie Politique, Histoire, Psychanalyse, Interdisciplinarité, Freud.


 

 

Introdução

A interlocução entre teóricos de distintas áreas do conhecimento das ciências sociais é uma tarefa difícil e frequentemente desconfortável, pois demanda que os mesmos reflitam sobre suas convicções teóricas e estejam dispostos a revisar as fronteiras epistemológicas regidamente estabelecidas de suas disciplinas. Há invariavelmente um olhar de desconfiança direcionado àqueles que se empenham na árdua tarefa de estabelecer possíveis pontos de contato interdisciplinares, os quais favorecem o surgimento de campos de estudo híbridos como a economia política, a antropologia psicanalítica, a psicologia social e a psicologia política entre tantos outros. Para tanto, é necessário flexibilizar seus limites de atuação.

A inserção da psicanálise para além de seus domínios foi percebida como uma tentativa de avançar numa esfera de conhecimento que não era de sua competência. Seus textos sociais foram descritos por Marthe Robert (1991), como uma aventura que colocou em xeque a reputação do pai da psicanálise e o futuro de sua teoria, uma vez que parte dos psicanalistas da época se mostraram insatisfeitos com as reflexões do mestre. Serge Moscovici critica a posição da autora por ela não ter percebido a unidade do pensamento freudiano. Os textos sociais freudianos não seriam "vagões separados da locomotiva que teriam descarrilado, mas um trem inteiro solidamente enganchado que tomou uma direção inesperada" (Moscovici, 1981:278). Se por um lado o autor percebeu a unicidade do pensamento freudiano, por outro parece que não houve uma guinada repentina e sim um aprofundamento de questões que já estavam presentes em Freud, como podemos verificar em suas correspondências trocadas com Wilhelm Fliess, que revelam seu interesse pela relação indivíduo e sociedade.

Na missiva de 31 de maio de 1897 - Rascunho N - ao conjecturar sobre o horror ao incesto, ato considerado como antissocial, Freud deixa transparecer sua preocupação em estabelecer conexão entre indivíduo e sociedade. Ele afirma:

[...] os seres humanos, em benefício da comunidade mais ampla, sacrificam uma parte de sua liberdade sexual e de sua liberdade em se entregar às perversões. O horror ao incesto (coisa iníqua) baseia-se no fato de que, em consequência da vida sexual comunitária (até mesmo na infância), os membros de uma dada família ficam permanentemente juntos e se tornam incapazes de entrar em contato com os estranhos. Logo, incesto é antissocial - a civilização consiste nessa renúncia progressiva. (Masson, 1986:253)

Alguns meses após, em 12 de dezembro de 1897, sua vontade de acercar-se de outros campos do saber se reafirma. Assim, ele aventa a possibilidade da existência de mitos endopsíquicos, os quais eram o último produto de seu esforço mental, aproximando-se da antropologia. Esses mitos seriam ilusões do pensamento estimuladas por nosso próprio aparelho psíquico "projetadas para o exterior e, tipicamente, para o futuro e o além. A imortalidade, a recompensa e todo o além, tudo são reflexos de nosso |mundo| psíquico interno. Meschugge? Psicomitologia" (Masson, 1986:287). Sua hipótese denotaria um psicologismo exacerbado de sua parte, caso ele próprio não tivesse classificado sua hipótese como doida; Meschugge em alemão pode ser traduzido como doido.

Estes fragmentos apresentados denotam que as preocupações de Freud acerca da relação indivíduo e sociedade são anteriores à publicação de A interpretação dos sonhos, obra basal da psicanálise, e, portanto, a aproximação aos fenômenos sociais indicaria mais um caminho vislumbrado por Freud desde o início de sua teorização sobre o aparelho psíquico do que uma direção inesperada, como afirma Moscovici.

No pós-escrito de Um estudo autobiográfico (1925) esta questão fica mais evidente; Freud expressa que após formular a hipótese da existência das pulsões de vida e de morte e da divisão do aparelho psíquico em ego, superego e id suas contribuições à psicanálise não foram relevantes. Ele deixa transparecer que talvez seu verdadeiro interesse tenha sido desde sempre o estabelecimento de uma teoria social psicanalítica. Ele afirma:

[...] o que tenho escrito sobre o assunto desde então tem sido ou dispensável ou logo teria sido proporcionado por outrem. Essa circunstância está ligada com uma alteração em mim mesmo, com o que poderia ser descrito como uma fase de desenvolvimento regressivo. Meu interesse, após fazer um détour de uma vida inteira pelas ciências naturais, pela medicina e pela psicoterapia, voltou-se para os problemas culturais que há muito me haviam fascinado, quando eu era um jovem quase sem idade suficiente para pensar. (Freud, 1996g:75-76)

Independentemente de nossa hipótese sobre o estabelecimento de uma teoria social por parte de Freud, o fato é que ao atingir sua maturidade intelectual ele aproximou-se de questões sociais que lhe extasiavam desde a juventude: literatura, arte, religião e guerra foram alguns dos temas abordados em sua obra. Ainda que esses temas não tenham sido abordados a partir de um enfoque político em seu estrito senso, seus textos sociais nos permitem estabelecer importantes reflexões que concernem à política.

Irving Louis Horowitz reconheceu a relevância do trabalho de Sigmund Freud no processo de constituição da Psicologia Política; no primeiro encontro da International Society of Political Psychology ele declara que a "revolução freudiana teve um imenso papel neste processo. A capacidade de explicar racionalmente o comportamento dito irracional tornou possível a fusão da psicologia e da política, os determinantes de cada uma tornaram-se cruciais para explicar o fenômeno do comportamento político" (Horowitz, 1979:101).

Para além das palavras de reconhecimento às contribuições freudianas, o sociólogo estadunidense deixa transparecer que a política vista única e exclusivamente a partir de suas instituições seria uma forma de política oca, sem seu principal componente: o homo politicus em toda sua complexidade e singularidade. Nesse sentido, o presente trabalho visa articular esses dois campos a princípio díspares: psicanálise e política, mas que estão intrinsecamente relacionados, uma vez que não há política sem indivíduos; posições e ações políticas são perpassadas por questões psicológicas. Cientes que o interesse pela relação entre aspectos subjetivos e objetivos não é uma inovação freudiana, revisitaremos alguns autores pioneiros e relevantes à psicologia política.

 

Entre a Objetividade da Vida Social e a Subjetividade dos Indivíduos em Sociedade

O desenvolvimento de um campo de saber ou uma disciplina não pode ser creditado a uma única pessoa, sempre haverá precursores cujas contribuições são relevantes; a psicologia política não é exceção. Autores como Charles Fourier, Alexis de Tocqueville e Hyppolite Taine, entre outros, se preocuparam em encontrar razões históricas bem como psicológicas para os fenômenos sociais e políticos de suas épocas (Elster, 1995; Dorna, 1998; Prochasson, 2005; Silva, 2012). Fourier "representa uma fonte de inspiração psicológica da política. Suas análises sobre a educacão das crianças, o matrimônio, o papel do pai e das paixões humanas o situam como um dos precursores do freudismo social, do utopismo, da dinâmica de grupo e da psicología social" (Dorna, 1998:52). Tocqueville, por sua vez, "sustenta que os homens fazem armadilhas a si próprios por excesso de cálculos sobre a estrategia dos demais. De fato, a prática social demonstra que os ideais se alimentan psicologicamente de crenças, valores e emoções" (Dorna, 1998:52). E Taine propõe o entendimento da história a partir de interpretações psicológicas e sociológicas. Esses autores ao introduzirem aspectos subjetivos na busca de entendimento de práticas sociais representam de certa forma traços embrionários do que hoje conhecemos como psicologia política.

Se por um lado esses autores podem ser considerados como representantes embrionários; por outro não há como pensar a emergência da Psicologia Política sem fazer jus às ideias dos franceses Émile Boutmy e Gustave Le Bon e do inglês Graham Wallas. Tanto Boutmy como Le Bon distanciaram-se da forte tradição nacionalista francesa, a qual pregava a defesa da cultura, da literatura e da tradição filosófica nacionais; ambos foram influenciados pelos ideais liberais-conservadores vindos da Inglaterra. Como afirma Consolim ao refletir sobre a formação da psicologia social:

Para os psicólogos do 'poder social', tais como Boutmy e Le Bon, tratava-se de demonstrar que a 'mentalidade' individualista, liberal e tradicionalista dos anglo-saxões era mais civilizada e próspera do que a francesa. [...] eram profissionais do mercado e que se construíram com base na iniciativa privada, onde predominava uma espécie de culto ao liberalismo conservador inglês. (Consolim, 2007:130-131)

Émile Boutmy, apesar de influenciado por Taine que preconizava a importância dos fatores psicológicos no entendimento da história a partir da análise das relações entre identidades individuais e coletivas, privilegia a ideia de um caráter nacional, a qual desembocou na sua proposição da existência de uma personalidade coletiva que seria fundamental na compreensão das dinâmicas sociais, institucionais e jurídicas de uma sociedade. Sua concepção de uma psicologia dos povos foi apresentada no início do século passado em Essai d'une psychologie politique du peuple anglais au xixe siècle (1901) e Éléments d'une psychologie politique du peuple américain :la nation, la patrie, l'État, la religion (1902).

Distintamente Gustave Le Bon se preocupara com a psicologia dos movimentos de massa e não a dos povos. Suas concepções sobre as recorrentes revoluções, cujo caráter político éinegável, e o poder das massas nelas observado se contrapunham à concepção de Émile Durkheim, que preconizava a existência de uma dimensão da realidade exclusivamente social, que não podia ser pensada a partir da psicologia. Le Bon enfatiza a necessidade de considerarmos aspectos individuais e subjetivos na compreensão das instituições sociais e políticas. Ele deixa claro seu pressuposto no prefácio da tradução para o inglês de Psychologie des foules, afirmando que os indivíduos:

[...] são regidos por ideias, sentimentos e costumes, os quais são nossa própria essência. Instituições e leis são manifestações externas de nosso caráter, expressão de suas necessidades. Sendo sua manifestação, instituições e leis não podem mudar este caráter. O estudo dos fenômenos sociais não pode ser dissociado do dos povos entre os quais eles vieram a existir. (Le Bon, 2001:vii)

Seu alinhamento às ideias de Tarde o colocou em oposição ao movimento capitaneado por Durkheim, que havia se estabelecido no meio acadêmico francês, e fez com que sua trajetória intelectual se desenvolvesse fora das instituições de ensino. Ainda assim, seu livro foi traduzido para diversos idiomas, o que demonstra a relevância e o impacto de sua produção teórica.

Apesar da boa repercussão de seu trabalho, é em La Psychologie Politique et la Défense Sociale (1910) que vemos a tentativa de sistematização dos estudos psicopolíticos. Dorna salienta que apesar "de seus defeitos, este texto merece uma leitura atenta, pois contém alguns elementos de interesse epistemológico e metodológico" (Dorna, 1998:54). Uma das críticas endereçadas a Le Bon é que suas ideias reforçavam a manutenção do status quo e não promoviam a mudança. Afinal sua psicologia política era a ciência do governo, governo das elites; era "tão necessária que os estadistas não poderiam dispensá-la. Eles não a dispensam de fato; porém na ausência de leis formuladas, os impulsos do momento e algumas regras tradicionais são seus únicos guias" (Le Bon, 1921:5), o que revela seu conservadorismo. Seu texto beira um manual de administração das massas.

Graham Wallas reconhece a relevância dos trabalhos tanto de Tarde quanto de Le Bon sem deixar de ressaltar que o exagero de emoções observados nos fenômenos de massa pelos sociólogos franceses dificilmente ocorreriam na Londres de seu tempo. O "pânico derivado da associação do excitamento nervoso com o contato físico não é de grande importância" (Wallas, 1920:31) à política inglesa. Os intelectuais anglo-saxões estavam preocupados com os fracassos do sistema democrático; o crescente desapontamento com este sistema de governo impulsionou os estudos sobre política. Em 1908 o autor lança Human Nature in Politics com o intuito de criticar a excessiva ênfase sociológica dada aos estudos políticos e propor a superação deste obstáculo que exclui a singularidade dos atores políticos. O sociólogo inglês, contudo, se mostra otimista ao crer que "esta tendência de separar o estudo da política do da natureza humana provará ser somente uma fase momentânea de pensamento; enquanto durar seus efeitos, tanto na ciência como na condução da política, eles tendem a ser danosos. E já há sinais que esta fase está chegando a um fim." (Wallas, 1920:16-17).

Os estudos psicopolíticos de Harold Dwight Lasswell confirmam o otimismo de Wallas e abrem definitivamente o caminho para a posterior consolidação da psicologia política no meio acadêmico norte-americano, no qual é reconhecido como seu fundador. Em Psychopathology and Politics (1930) o autor advoga que as histórias de vida dos atores políticos são fundamentais e possibilitam melhor compreensão dos fenômenos políticos. Suas palavras iniciais atestam o valor significativo que a inclusão do sujeito traz à ciência política: "biografia política como um campo da ciência política tem sido invocada para proporcionar uma ativa emenda à excessiva ênfase colocada no estudo dos mecanismos institucionais, estruturas e sistemas" (Lasswell, 1960:1).

Apesar da ênfase dada às biografias nos estudos políticos, Lasswell faz uma resalva quanto ao uso de biografias autorizadas ou autobiografias, visto que invariavelmente tendem a omitir ou distorcer aspectos íntimos e subjetivos do indivíduo. Assim sendo, as informações mais ricas e significativas são aquelas obtidas em prontuários médicos institucionais de atores políticos, cujas informações psicológicas e sociológicas permitem estabelecer um panorama amplo de suas motivações políticas. Ele enfatiza que o estudo da política sem seus atores seria uma forma de taxidermia. Ou seja, seria um estudo que se ocupa da pele - instituições, estruturas e sistemas políticos - em detrimento daquilo que a sustenta - os atores políticos.

Sua aproximação de uma política que não menospreza os aspectos subjetivos daqueles envolvidos nela dá-se a partir da psicopatologia psicanalítica, cujo "método é de aplicação mais geral para os problemas práticos da pesquisa e prática políticas do que é geralmente entendido" (Lasswell, 1960:17). Le Bon, por sua vez, ao observar a irracionalidade de atos cometidos por indivíduos governados exclusivamente por instintos quando em massa, admite

o relevante papel desempenhado pelo inconsciente. Ele afirma: "razão é um atributo demasiado recente da humanidade e ainda muito imperfeito para nos revelar as leis do inconsciente, [...]. O papel desempenhado pelo inconsciente em todos nossos atos é imenso e

o da razão muito pequeno. O inconsciente age como uma força ainda desconhecida" (Le Bon, 2001:x). Além de salientar o papel significativo desempenhado pelo inconsciente, ele parece convocar seus sucessores a desvendar suas leis, trabalho que já estava sendo realizado por Freud, o qual foi posteriormente referendado por Wallas como aplicável aos estudos psicopolíticos.

 

Estudos Psicopolíticos e a Teoria Freudiana: uma interlocução possível

A indissociabilidade entre indivíduo e sociedade está presente também na obra freudiana. Enquanto os sociólogos complementaram o estudo de questões sociais e políticas com a singularidade dos indivíduos, Freud tomou um caminho distinto: os indivíduos e suas perturbações mentais para chegar às questões sociais. Foi a partir de seus estudos sobre a histeria que sua teoria sobre o inconsciente foi pouco a pouco sendo elaborada, revisada, e, posteriormente, aplicada aos fenômenos sociais.

Ao propor estender os limites da psicanálise para além da clínica, Freud provocou os mesmos olhares de desconfiança e críticas que havia recebido ao apresentar seus achados sobre o inconsciente e a sexualidade infantil. Convicto de sua teoria e simultaneamente disposto a revisá-la quando os dados demandavam retificações teóricas, ele não esmoreceu e reafirmou a legitimidade da psicanálise aplicada como havia defendido suas proposições iniciais, embora reconhecesse a necessidade de aprofundamento acerca da questão1.

Em suas Novas conferências introdutórias sobre psicanálise (1933), que jamais foram proferidas devido às condições de saúde de Freud, mas foram redigidas como tais, ele defende abertamente a aplicabilidade da psicanálise a outros campos do saber. Na conferência XXXIV - Explicações, aplicações e orientações - ele afirma que os anos dedicados à clínica e ao sofrimento psíquico permitiram-lhe perceber a falsa dicotomia existente entre normalidade e patologia. A partir desta constatação a "psicanálise tornou-se psicologia profunda; e, de vez que nada daquilo que o homem cria ou faz é compreensível sem a cooperação da psicologia, as aplicações da psicanálise a numerosas áreas do conhecimento, em especial àquelas das ciências mentais, ocorreram espontaneamente, entraram em cena e requerem debate" (Freud, 1996f:143).

Nessa conferência a psicanálise enquanto psicologia profunda é colocada como colaboradora imprescindível a outras áreas do saber. Todavia, na subsequente e última - A questão de uma Weltanschauung - Freud é mais incisivo ao afirmar que "a sociologia, lidando, como é de seu ofício, com o comportamento das pessoas em sociedade, não pode ser senão psicologia aplicada. Estritamente falando, só há duas ciências: psicologia pura ou aplicada, e ciência natural" (Freud, 1996f:175). Sua afirmação reduz as distintas ciências humanas, cujas contribuições são inegáveis, à psicologia aplicada, mais precisamente à psicanálise aplicada.

Observamos que o papel da psicologia profunda parece se engrandecer de uma conferência a outra; enquanto na penúltima ela é apontada como coadjuvante indispensável, na última toma o papel de protagonista, sendo equiparada à ciência da natureza. Teria Freud radicalizado sua posição ao colocar as ciências humanas sob o jugo da psicanálise? Para tentarmos refletir sobre esta questão é importante contextualizar a produção dessas conferências.

A editora psicanalítica - Verlag - encontrava-se novamente em dificuldades financeiras, apesar de generosos aportes feitos ocasionalmente por Marie Bonaparte e pelo próprio Freud. A Grande Depressão de 1929 agravou ainda mais a situação da editora, a qual era vital à causa psicanalítica e seu possível fechamento seria desastroso. Com o intuito de salvá-la, ele escreveu e publicou essa nova série de conferências. Além da situação financeira da editora, a saúde de Freud estava debilitada a tal ponto que teria escrito a Arnold Zweig que este era seu último livro, como salientam Elisabeth Roudinesco e Michel Plon (1998).

Lembremo-nos também do momento histórico em que se encontrava a Europa. Ela acabara de ser devastada pela Primeira Guerra Mundial e no horizonte novos ventos bélicos sopravam com a ascensão do partido nazista, que nas eleições de 1930 havia angariado um número expressivo de cadeiras no Reichstag, atrás apenas dos socialdemocratas. A instabilidade política e econômica reinava não apenas na Alemanha. As ideias totalitárias e táticas nazistas se espalhavam por parte do continente europeu e seduziam cada vez mais os austríacos.

Esse cenário sociopolítico nada promissor, a situação financeira periclitante do principal veículo de divulgação da psicanálise e, sobretudo, o vislumbre de sua morte talvez tenham influenciado Freud a ponto de colocar as distintas ciências humanas sob o jugo da psicologia profunda. Suas palavras deixam transparecer claramente esse psicologismo, equiparando a psicologia em suas duas formas às ciências naturais. Esse radicalismo, que tanto serviu e serve de munição aos detratores da psicanálise, pode ser lido como um último intento antes de sua morte de reafirmar a cientificidade tão combatida da psicanálise. Nossa postura condescendente com o radicalismo expresso por Freud pode soar como uma análise selvagem, uma vez que ligamos seu radicalismo à ideia de sua morte. Entretanto, ao final da conferência Freud sustenta nossa perspectiva e responde à sua plateia imaginária o lugar da psicanálise enquanto ciência:

Senhoras e senhores: permitam-me que, para concluir, eu resuma o que tinha a dizer sobre a relação da psicanálise com a questão de uma Weltanschauung. Em minha opinião, a psicanálise é incapaz de criar uma Weltanschauung por si mesma. A psicanálise não precisa de uma Weltanschauung; faz parte da ciência e pode aderir à Weltanschauung científica. Esta, porém, dificilmente merece um nome tão grandiloquente, pois não é capaz de abranger tudo, é muito incompleta e não pretende ser autossuficiente e construir sistemas. O pensamento científico ainda é muito novo entre os seres humanos; ainda são muitos os grandes problemas que até agora não conseguiu solucionar. (Freud, 1996f: 176-177)

À parte o radicalismo de Freud e nossa leitura mais tênue, não podemos negar suas intenções tanto de reafirmar a cientificidade da psicanálise quanto validar seus intentos de estender os conceitos psicanalíticos a outros campos do saber. A literatura foi seu primeiro ponto de interlocução; a aproximação de Freud às obras de Sófocles, Shakespeare, Conrad Ferdinand Meyer, Wilhelm Jensen e Dostoievski permitiu-lhe tanto a elaboração de sua teoria quanto sua posterior aplicabilidade a outros campos. Assim, a psicanálise aplicada tem ganhado espaço e estabelecido diálogos interdisciplinares profícuos.

Àqueles que se propõem a esse exercício de diálogo interdisciplinar com a psicanálise os textos Totem e tabu (1913), Psicologia das massas e análise do eu (1921), Futuro de uma ilusão (1927), O mal-estar na civilização (1930) e Moisés e o monoteísmo (1939) são indispensáveis. Entretanto, convém resgatarmos Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna (1908), pois este texto precursor evidencia não apenas a relação entre indivíduo e sociedade, mas fundamentalmente o antagonismo existente entre as imposições desta sobre as pulsões sexuais e agressivas daquele. Ideia que serviu de base aos desenvolvimentos posteriores acerca da sociedade que encontramos em seus textos sociais citados.

A partir dos relatos de seus pacientes Freud percebe a conexão existente entre as doenças mentais que afloravam à sua época e a moral sexual civilizada vigente. Assim, ele afirma que "quem penetrar nos determinantes das doenças nervosas cedo ficará convencido de que o incremento dessas doenças em nossa sociedade provém da intensificação das restrições sexuais" (Freud, 1996a:179). Tais limitações à livre expressão da sexualidade seriam impostas pelos rígidos padrões sexuais. Estabelece, assim, relação entre aquilo que concerne ao indivíduo - sua enfermidade - e as demandas e restrições sociais. Revisitar esse texto é relevante, pois ele aborda uma questão atual mesmo passado um século de sua publicação: a sexualidade e seu enlace no social. Se por um lado, na época de Freud, a sexualidade ficava restrita à esfera individual e patológica, por outro ela expandiu-se ao campo da política por meio do ativismo de feministas e homossexuais que reivindicavam e continuam a reivindicar tratamento igualitário, abrindo espaço a demandas por reconhecimento de outras expressões da sexualidade. Ela sai dos consultórios, dos ambientes institucionais e dos confessionários e passa ao debate político.

Freud não poderia ter sido mais coerente ao aproximar-se da relação indivíduo e sociedade por meio da questão da sexualidade. Afinal, ela é central em sua teoria. As excessivas restrições impostas à sexualidade pelas normas e costumes da época, que preconizavam a abstinência sexual antes do casamento e restrições ao exercício pleno da sexualidade mesmo dentro dele, seriam prejudiciais à saúde mental. Tanto homens quanto mulheres estariam sujeitos a doenças nervosas devido a essas restrições culturais e aos conflitos psíquicos delas resultantes. Entretanto, as mulheres estariam mais propensas a elas, uma vez que a carga de restrições sobre os homens era menor, o que evidencia a organização falocêntrica e limitadora da sociedade.

Uma crítica que poderia advir sobre esse trabalho e consequentemente sobre a relevância da sexualidade é que a sociedade vitoriana é distinta da contemporânea e, dessa forma, a teoria freudiana poderia ser taxada como datada; representaria um tempo que não nos é familiar e, portanto, não nos concerne. O simples fato de a sexualidade ter chegado ao campo do debate político se contrapõe a essa crítica.

Na tentativa de sustentar a contemporaneidade da tragédia edípica e, portanto, o papel central da sexualidade na constituição psíquica, o psicanalista Ignácio Alves Paim Filho (2011) levanta a hipótese da existência de um além ou de um aquém do recalque. Ou seja, um excesso e um déficit da repressão. Ele afirma que o déficit da repressão proporciona a estruturação psicopatológica contemporânea do sujeito e que seu excesso explicaria a estruturação psicopatológica característica da época vitoriana. Esta concepção de um excesso de repressão se assemelha ao conceito de mais-repressão proposto por Herbert Marcuse (1999), o qual se caracteriza como sendo controles adicionais de dominação gerados pelas instituições, dentre os quais ele salienta como exemplo as exigências necessárias à perpetuação da família patriarcal-monogâmica.

Se considerarmos que esse quantum de repressão está relacionado com as psicopatologias características de cada época, que a sexualidade é central na estruturação psíquica e que vivemos um momento histórico de menos repressão, poderíamos inferir que esse aquém da repressão, por sua vez, possibilitou também a visibilidade da diversidade sexual, novos entendimentos sobre ela e o envolvimento ativo de atores políticos, os quais provavelmente teriam sido taxados como perversos em tempos não tão longínquos.

Não obstante esse texto nos permita tecer considerações sobre a questão da diversidade sexual e das psicopatologias de ambas as épocas, o ponto relevante é o antagonismo entre indivíduo e sociedade; como a civilização fundamenta-se na repressão de nossas pulsões sexuais e agressivas. A vida em sociedade demanda certo grau de sujeição. E o destino daqueles que não se submetem às leis sociais é a alienação. Freud, nesse sentido, escreve:

Nossa civilização repousa, falando de modo geral, sobre a supressão dos instintos. Cada indivíduo renuncia a uma parte dos seus atributos: a uma parcela do seu sentimento de onipotência ou ainda das inclinações vingativas ou agressivas de sua personalidade. Dessas contribuições resulta o acervo cultural comum de bens materiais e ideais. [...] Aquele que em consequência de sua constituição indomável não consegue concordar com a supressão do instinto, torna-se um 'criminoso', um 'outlaw', diante da sociedade - a menos que sua posição social ou suas capacidades excepcionais lhe permitam impor-se como um grande homem, um 'herói'. (Freud, 1996a:173)

Fica visível não apenas como indivíduo e sociedade estão inexoravelmente ligados, mas também a assimetria existente nesta relação, como enfatizou Theodor Adorno (1991) em suas reflexões acerca da relação psicologia e sociologia. O autor salienta ainda a relevância da obra freudiana para a teoria social afirmando ser "necessário completar a teoria da sociedade com a psicologia, sobretudo uma psicologia social psicanaliticamente orientada" (Adorno, 1991:136). É válido, portanto, afirmar que esse distanciamento entre a psicologia e a sociologia, entre indivíduo e sociedade, é apenas aparente; a sociedade se estende pelo indivíduo. Esse atravessamento do social deixa marcas indeléveis no psiquismo e influencia não apenas como os indivíduos se colocam em sociedade, mas também a maneira como esta trata as singularidades divergentes. Nas comunidades naturais: o banimento; na sociedade vitoriana: a institucionalização; na sociedade contemporânea: o embate político.

Esses distintos espaços reservados às singularidades destoantes evidenciam que vivemos em uma sociedade mais tolerante com a diversidade, porém também indicam que a assimetria persiste, uma vez que há necessidade de recorrer ao embate político para que a pluralidade das singulares possa ser expressa.

Essa assimetria que salientam Freud e Adorno estava presente em Aristóteles. O filósofo grego colocava a sociedade - a pólis - no centro de seu estudo sobre política. Ainda que não desconsiderasse aqueles que compunham as cidades-estados: os cidadãos, sua concepção da anterioridade da cidade em relação à família e esta em relação ao indivíduo revela tanto a relação assimétrica entre indivíduo e sociedade quanto a imutabilidade social, evidenciando uma perspectiva adaptativa e não transformadora, como suas palavras evidenciam:

[...] o homem, por natureza, é um animal político [isto é, destinado a viver em sociedade], e que o homem que, por sua natureza e não por mero acidente, não tivesse sua existência na cidade, seria um ser vil, superior ou inferior ao homem. Tal indivíduo, segundo Homero, é 'um ser sem lar, sem família, sem leis', pois tem sede de guerra e, como não é freado por nada, assemelha-se a uma ave de rapina. (Aristóteles, 2008:56)

Ele prossegue na página seguinte enfatizando ainda mais a exclusão e a sorte daqueles que não se submetem à lei e à justiça: "o homem que não consegue viver em sociedade, [...], não faz parte da Cidade; por conseguinte, deve ser uma besta ou um deus" (Aristóteles, 2008:57). Algumas linhas mais adiante ele sacramenta que "o homem sem virtude é a mais perversa e cruel das criaturas, a mais entregue aos prazeres dos sentidos e seus desregramentos" (Aristóteles, 2008:57).

Fica-nos evidente que para o homem aristotélico se constitua como um ser político e, portanto, adentre o social e pertença à cidade-estado é necessário domar sua animalidade. Ele não pode desfrutar livremente seus prazeres, os quais são reprimidos no lar, na família e na sociedade, como enfatiza Homero. As diversas instituições, pouco a pouco, freiam a sexualidade e a tendência à agressividade; àqueles que não se submetem às regras da pólis lhes é reservado o rótulo de sem leis, tal qual o outlaw freudiano, como vimos anteriormente.

Podemos, por conseguinte, estabelecer uma analogia entre o homo politicus aristotélico - que deve ser reprimido, freado, para que suas emoções e prazeres não se sobressaiam, permitindo-lhe acesso à pólis - e o homem freudiano em seu enlace no social, uma vez que a ideia de repressão também se faz presente. Diferentemente de Aristóteles que preconizava a natureza dos homens "de distinguir o bem do mal, o útil do prejudicial, o justo do injusto" (Aristóteles, 2008:56-57) e, portanto, enfatizava os processos conscientes, Freud voltou-se ao inconsciente e suas expressões.

Contudo, evidenciamos tanto num quanto noutro a impossibilidade de separarmos indivíduo e sociedade e, sobretudo, a importância do reconhecimento da existência de uma lei reguladora, cuja submissão é imperativa; conditio sine qua non à constituição do homem político aristotélico e do sujeito psíquico freudiano. De acordo com o filósofo grego, o homem digno da pólis seria aquele capaz de racionalmente renunciar aos seus prazeres e desregramentos e submeter-se às leis sociais, haja vista sua capacidade de distinguir o bem do mal, o justo do injusto. Por sua vez, o pensador austríaco advoga em Totem e tabu que esse processo de submissão à lei está relacionado a dois prazeres fundamentais: o incesto e o parricídio. Ou seja, a interdição ao incesto desempenharia papel regulador na sociedade; seria a lei fundadora da civilização, a qual teria sido introjetada em virtude do arrependimento pelo assassinato do pai primevo e, assim, atuaria inconscientemente (Freud, 1996b).

Essa concepção da existência de uma lei primordial que organiza e possibilita a civilização é corroborada por Claude Lévi-Strauss em seus estudos sobre as estruturas de parentesco. Ele conclui que a proibição do incesto está no cerne da constituição de laços sociais, visto que os indivíduos são forçados para além de seu meio familiar e biológico. Ela "não é uma proibição igual às outras, mas a proibição, na forma mais geral, aquela talvez a que todas as outras se reduzem [...] como casos particulares. A proibição do incesto é universal" (Lévi-Strauss, 1982:534). Poderíamos conceber, portanto, que os freios, tão fundamentais à inserção dos indivíduos no restrito universo da política grega, possam ser talvez derivados da proibição primeira, aquela que nos impele à exogamia, cuja "razão de ser consiste em estabelecer, entre os homens, um vínculo sem o qual não poderiam elevar-se acima da organização biológica para atingir a organização social" (Lévi-Strauss, 1982:533). Ou seja, transcender a animalidade e adentrar o estágio de socialização.

Lévi-Strauss critica a existência de uma horda primeva como gênese da civilização, pois o "desejo da mãe ou da irmã, o assassínio do pai e o arrependimento dos filhos não correspondem, sem dúvida, a qualquer fato, ou conjunto de fatos, que ocupam na história um lugar definido" (Lévi-Strauss, 1982:532), como pregoava Freud. Este equívoco fez com que Freud explicasse "com êxito não o início da civilização, mas seu presente" (Lévi-Strauss, 1982:531). Fica manifesto que, a despeito de partirem de premissas distintas, ambos os autores concordam sobre a centralidade da proibição ao incesto no processo civilizatório.

Se por um lado a interdição ao incesto é necessária para a passagem da natureza à cultura, por outro Freud havia reconhecido seu valor na constituição psíquica dos indivíduos a partirda proposição do conceito de complexo de Édipo. Se a interdição é primordial tanto à vida em sociedade quanto à constituição psíquica, parece-nos importante não separarmos a sociedade daqueles que a constituem. "A separação entre sociedade e psique é falsa consciência; eterniza em forma de categorias a ruptura entre o sujeito vivente e a objetividade que impera sobre os sujeitos e que, não obstante, são eles que a produzem" (Adorno, 1981:139).

Parece-nos, portanto, que os estudos de fenômenos sociais não podem desconsiderar a singularidade de seus atores. Considerando as contribuições da psicanálise no entendimento da constituição psíquica, ou das leis do inconsciente como expressara Le Bon, e a indissociabilidade entre indivíduo e sociedade, não há como negar que a teoria psicanalítica tenha algo de relevante a dizer quando os fenômenos políticos estão em questão. Como vimos anteriormente, os primeiros estudos psicopolíticos revelam a relevância da obra freudiana no processo de constituição e consolidação da psicologia política enquanto campo de estudo.

 

Considerações Finais

A teoria de Freud teve tamanho impacto que a simples menção de seu nome remete ao setting terapêutico e ao famoso divã, como se sinônimos fossem. Esta colagem não seria uma questão caso fosse feita por um leigo. Entretanto, quando esta associação é feita por psicólogos e acadêmicos de psicologia, ela passa a ser relevante, pois evidencia certo menosprezo ou até mesmo desconhecimento de seus textos sociais, que muito contribuíram à psicologia social e à psicologia política. Esquecem que a psicanálise constitui-se também como um conjunto de teorias psicológicas e psicopatológicas que podem ser consideradas quando refletimos sobre eventos que ocorram no social, tenham caráter político ou não. Ela não se restringe a ser um método de investigação que busca evidenciar o significado inconsciente de palavras, ações e produções imaginárias e nem a um método psicoterápico que leva em consideração a interpretação da resistência, da transferência e do desejo.

Ao enfatizarmos a aplicabilidade da psicanálise aos fenômenos sociais e políticos não pretendemos requerer uma posição de destaque ou mesmo uma hegemonia do saber psicológico ou psicanalítico; trata-se, sobretudo de levar em consideração outras contribuições teóricas que venham agregar a esta reflexão. Afinal, as "características sociais e psicológicas são de forma alguma exclusivas. Elas não competem como candidatas à explicação do comportamento social, elas são antes complementares" (Greenstein, 1970:36).

Nosso intuito é que as articulações feitas possam instigar psicólogos sociais, psicólogos políticos, psicanalistas e cientistas políticos a se aproximarem da obra freudiana sem prejuízo e possam perceber sua riqueza e pertinência aos estudos psicopolíticos. E que possam ir além, pois a psicanálise não se restringe a obra de Freud, sem se olvidar das palavras de um dos precursores da psicologia política:

Ninguém mostrou mais dramática e repetidamente as limitações (bem como as vantagens) dos procedimentos lógicos do pensamento do que Freud. Ninguém fez uma contribuição mais importante para a técnica de complementar o pensamento lógico com outros métodos de pensamento que Freud. Este é o aspecto do trabalho de Freud que tem imediata e constante relevância para o pensamento político e todo tipo de pensamento, ao qual é importante devotar considerações mais extensas. (Lasswell, 1960:27)

Lasswell reconhece a relevância do pensamento freudiano e sua aplicabilidade à política, porém também alerta para suas limitações. Trinta anos após a publicação de Psychopathology and Politics ele minimiza o papel da teoria psicanalítica em virtude do crescente desenvolvimento da psicologia do ego em solo norte-americano, sem deixar de reafirmar que o método de investigação introduzido por Freud, baseado na associação livre e interpretação, foi sua mais distinta inovação, o qual pode ser aplicado com fins terapêuticos ou científicos. Sua aproximação à psicologia do ego não invalida possíveis diálogos entre a psicanálise e as teorias social e política, como atestam autores posteriores como Adorno (1991), Lévi-Strauss (1982), Moscovici (1981) e Enriquez (1990) sem deixar de apontar limitações e equívocos. A psicanálise é uma entre outras teorias, cujos aportes podem complementar o estudo dapolítica. É nesse sentido que recomendamos a retomada dos textos sociais freudianos e de outros autores da psicanálise.

 

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Recebido em 19/05/2013
Revisado em 12/06/2013
Aceito em 22/07/2013

 

 

1 Para melhor aproximação ao tema da psicanálise aplicada sugerimos consultar Em torno da Psicanálise Aplicada de Vanessa L. S. Passarelli (2012)