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Revista Psicologia Política

versão impressa ISSN 1519-549X

Rev. psicol. polít. vol.13 no.28 São Paulo dez. 2013

 

Psicologia política das religiões: uma análise dos símbolos e ideologias da Igreja Universal do Reino de Deus

 

Political psychology of religions: an analysis of the symbols and ideologies of the Universal Church of the Kingdom of God

 

Psicología política de las religiones: un análisis de los símbolos e ideologías de la Iglesia Universal del Reino de Dios

 

Psychologie politique des religions : une analyse des symboles et des idéologies de l'Eglise Universelle du Royaume de Dieu

 

 

Bruna Suruagy do Amaral Dantas

Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professora do curso de psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo - SP, Brasil. brunasuruagy@gmail.com

 

 


RESUMO

Em decorrência da laicidade do Estado, as relações entre religião e política produziram reações de rechaço e desconfiança, dado que se acredita em seus efeitos maléficos para a consolidação da democracia. No entanto, verifica-se que, a despeito do desenvolvimento dos regimes democráticos na América Latina, os espaços políticos têm sido ocupados por distintos atores religiosos, que promovem o amálgama entre a política e a religião, tornando seus limites invisíveis e seus territórios flexíveis. A transcendência tem se retirado de suas instituições sacrossantas e ingressado nas esferas laicas da política. No caso específico do Brasil, desde o período da redemocratização do país, os segmentos evangélicos investem recursos simbólicos e materiais nos pleitos eleitorais com o intuito de inserir-se nos poderes legislativos e executivos em nível municipal, estadual e federal. O presente artigo analisou a dimensão ideológica do discurso religioso e do sistema doutrinário da maior denominação neopentecostal do país, a Igreja Universal do Reino de Deus, que os utiliza para justificar suas práticas políticas e seu ávido interesse pelo jogo partidário. Investigou-se, com base nos aportes teóricos da Psicologia Política Latinoamericana, a trama simbólica composta pelos signos da religião e da política com vistas a verificar como a simbologia religiosa penetra no universo político-eleitoral e de quais argumentos dispõe para validar as estratégias e ações da IURD.

Palavras-chave: Psicologia Política das Religiões, Igreja Universal do Reino de Deus, Religião, Política, Ideologia.


ABSTRACT

As a result of the secularism of the State, the relations between religion and politics have produced reactions of rejection and mistrust, as it is believed that such relations have harmful effects on the consolidation of democracy. However, it has been verified that, despite the development of democratic regimes in Latin America, political spaces have been occupied by distinct religious actors. These actors promote the amalgam between politics and religion, making their limits invisible and their territories flexible. Transcendence has withdrawn from sacrosanct institutions and entered into the secular spheres of politics. In the specific case of Brazil, since the period of the country's re-democratization, the evangelical segments have invested symbolic and material resources in election campaigns with the aim of being included in the legislative and executive powers in the municipal, state and federal levels. The present paper analyzed the ideological dimension of the religious discourse and of the doctrine system of the largest Neo-Pentecostal denomination of Brazil, the Universal Church of the Kingdom of God, which uses them to justify its political practices and its avid interest in the political game. Based on the theoretical framework of the Latin American Political Psychology, the symbolic weave composed of the signs of religion and of politics was investigated, in order to verify how religious symbology penetrates the political-electoral universe and what arguments it has to validate the strategies and actions of the UCKG.

Keywords: Political Psychology of Religions, Universal Church of the Kingdom of God, Religion, Politics, Ideology.


RESUMEN

Debido a la laicidad del Estado, las relaciones entre religión y política han producido reacciones de rechazo y desconfianza, dado que se cree en sus efectos nocivos para la consolidación de la democracia. Sin embargo, parece que, a pesar del desarrollo de los regímenes democráticos en América Latina, los espacios políticos han sido ocupados por diferentes actores religiosos, que promueven la amalgama entre la política y la religión, convirtiendo sus fronteras invisibles y sus territorios flexibles. La trascendencia se ha retirado de sus instituciones sacrosantas e ingresado en las esferas seculares de la política. En el caso específico de Brasil, desde el periodo de la redemocratización del país, los segmentos evangélicos invierten recursos simbólicos y materiales en las elecciones para inserirse en los poderes legislativos y ejecutivos en nivel municipal, estatal y federal. En este artículo se ha analizado la dimensión ideológica del discurso religioso y el sistema doctrinal de la denominación pentecostal más grande del país, la Iglesia Universal del Reino de Dios, que los utiliza para justificar sus prácticas políticas y su ávido interés por el juego partidario. A partir de las aportaciones teóricas de la Psicología Política Latinoamericana, se investigó la trama simbólica compuesta por los signos de la religión y la política con el fin de verificar como el simbolismo religioso impregna el universo político-electoral y de qué argumentos dispone para validar las estrategias y las acciones de la IURD.

Palabras clave: Psicología Política de las Religiones, Iglesia Universal del Reino de Dios, Religión, Política, Ideología.


RÉSUMÉ

Em raison de l'étatlaïc, la relation entre la religion et la politique produit des réactions de rejet et de méfiance, car il est admis que la religion porterait des effets nocifs pour la consolidation de la démocratie. Cependant, il semble que, malgré le développement des régimes démocratiques em Amérique latine, les espaces politiques ont été occupés par différents acteurs religieux qui font la promotion d'um amalgame entre la politique et la religion, rendant leurs frontières invisibles et leurs territoires flexibles. La transcendance a retire ses sacro-saintes institutions et ont rejoint les sphères laïques de la politique. Dans le cas particulier du Brésil, depuis la période de démocratisation du pays, les groupes évangéliques investissent des ressources symboliques et matérielles dans des pétitions électorales afin d'être integre dans le pouvoir législatif et exécutif, au niveau municipal, provincial et fédéral. Cet article analyse la dimension idéologique du discours religieux et le système doctrinal de la plus grande dénomination pentecôtiste dans le pays, à savoir, l'Eglise Universelle du Royaume de Dieu, et la manière dont elle utilize ces discours idéologiques pour justifier ses pratiques politiques et son vif intérêt dans le jeu politique des partis. L'étude se base sur les apports théoriques de la psychologie politique latino-américaine, et sur les enjeux symboliques composés par des signes religieux et politiques em vue de vérifier comment la symbologie religieuse impregne l'univers politico-électoral et quel sont les arguments qu'ils utilisent pour valider les stratégies et les actions du UCKG.

Mots clés: Psychologie Politique des Religions, Eglise Universelle du Royaume de Dieu; la religión, La politique et l'idéologie.


 

 

Introdução

Tradicionalmente, a secularização é associada ao processo de desencantamento da cultura, dessacralização da sociedade e desaparecimento do sagrado, parecendo, assim, contribuir para neutralizar o campo político da presença corrosiva da religião e de seus impactos devastadores ao amadurecimento da democracia. Todavia, conforme Pierucci (1997), essa conceituação apresenta equívocos importantes, visto que nas sociedades contemporâneas os deuses não se encontram em estado de decadência. Em sua concepção, observa-se atualmente a perda da centralidade da religião na vida cotidiana, de suas raízes na sociedade, de seu poder de persuasão e determinação, de sua autoridade moral e de seu prestígio social, mas não o declínio absoluto de suas manifestações. A secularização não designa o colapso das crenças religiosas, mas o enfraquecimento das instituições eclesiásticas, a relativização dos compromissos com a transcendência, a perda das lealdades tradicionais, a desfiliação em relação às confissões e dogmas convencionais. Trata-se, por conseguinte, da pluralidade de cosmovisões religiosas e da autonomia dos indivíduos para escolher livremente as novas religiões e os bens simbólicos que vão sendo produzidos com velocidade suficiente para atender ao mercado de consumo, que transforma os artigos de fé em mercadoria e os fiéis em consumidores. Segundo Mallimaci (2008), a religião encontra-se em constante trânsito, disputando espaço com outros deuses, propagando-se por terras desconhecidas e perpetuandose em sua multiplicidade.

A secularização, pois, é sinônimo de desenraizamento, desterritorialização e desinstitucionalização. Como argumenta Burity (2001), a religião e a política desterritorializaram-se e desinstitucionalizaram-se, rompendo com a dicotomia e o binarismo preconizados pela modernidade. As fronteiras que separavam os espaços público e privado, a política e a religião encontram-se em deslocamento. A política invade a vida privada e a religião alcança a esfera pública. De acordo com Habermas (2011), as premissas liberais inauguraram o fim do monopólio religioso, garantindo, desse modo, que o Estado perdesse seu caráter confessional e adquirisse autonomia política em relação à autoridade eclesiástica. O aparelho estatal tornou-se laico e secular, ao passo que o espaço público passou a ser ocupado por agentes religiosos vocalizando livremente múltiplas demandas e interesses. Rawls (2001) compreende que a religião desempenha um papel relevante na sociedade civil, dado que atua como uma das forças sociais que participam do debate coletivo, contribuindo com o processo de legitimação política. O autor defende, portanto, que os cidadãos "crentes" devem utilizar com liberdade a linguagem religiosa na esfera pública sem, no entanto, torná-la única referência simbólica ou restringir a polifonia das vozes. Com vistas a evitar o monopólio dos discursos, a retórica da religião precisa ser traduzida para uma linguagem racional, universalmente acessível e socialmente compartilhada, favorecendo as deliberações formais dos corpos políticos que conduzem a decisões coletivas. Como salienta Rawls (2001), o discurso religioso não deve prevalecer na esfera pública nem ser excluído dela. Em sua acepção, o fenômeno político não perdeu e não perderá por completo sua relação com a religião.

Entretanto, em determinadas situações, a díade religião e política não proporciona pluralidade moral, diversidade cultural, liberdade de expressão e diálogo público, mas a universalidade de uma ética específica e o monoteísmo dos valores. No Brasil, os poderes religiosos já consolidados resistem à multiplicidade das crenças e ao livre exercício da fé de modo a perpetuar uma percepção única e exclusiva do sagrado. O personagem central da nossa história colonial foi uma Igreja poderosa, monolítica, centralizadora e hegemônica, que sempre manteve estreitas relações com o Estado, apropriando-se dele para ampliar suas estruturas de poder e consolidar-se como instituição de importância social. A Igreja Católica estabeleceu-se como interlocutora oficial de distintos governos, a despeito de sua filiação ideológico-partidária, interferindo em processos decisórios de peso nacional e participando de esferas políticas restritas a autoridades governamentais. Não obstante a laicização do Estado brasileiro, a religião e a política continuam sendo instâncias que se influenciam mutuamente e apresentam extensas áreas de intersecção. Segundo Oro (2003b), no Brasil as fronteiras entre os campos religioso e político não são claras, o que reforça a ideia de que entre ambas as esferas há mais aproximação e continuidade do que separação e oposição. Martín-Baró (1998d) defende a tese de que inclusive as igrejas que rechaçam a política, afastando-se do espaço público e das disputas partidárias, desempenham um importante papel político, pois promovem omissão e passividade, favorecendo a manutenção de sistemas sociais já estabelecidos. O apoliticismo, portanto, é uma forma de atuação política.

El poder de la religión la vuelve de hecho una instancia de gran importancia política, tanto más eficaz cuanto que con frecuencia se niega como tal (pretende estar 'por encima' de los conflictos y luchas partidistas) y actúa así al margen de las normas formales del quehacer político (Martín-Baró, 1998d:248).

Conforme Martín-Baró (1998b), as religiões servem de suporte a diferentes ideologias políticas, assumindo posições que podem ser conservadoras ou progressistas, desencadeando processos de alienação ou conscientização e gerando comportamentos de resignação ou indignação. As simbolizações religiosas tanto podem despertar a consciência política para a situação de dominação-exploração, como podem silenciar as vozes oprimidas, contribuindo, desse modo, para atender aos interesses das classes dominantes que almejam a permanência das estruturas de poder e a conservação da ordem estabelecida. Para entender o papel político da religião e sua articulação com as redes de poder, é imprescindível examinar as dimensões ideológicas da experiência religiosa.

Uma das funções da Psicologia Política consiste em compreender o caráter ideológico da ação humana, ou seja, as ideologias sociais mobilizadas pelo comportamento de cada indivíduo, as quais sustentam o jogo político, beneficiam os grupos dominantes e satisfazem suas aspirações (Martín-Baró, 2001). Como argumenta Silva (2012), trata-se de um campo de saberes que supera o pressuposto da neutralidade científica e afirma o compromisso político de construir uma psicologia cujas ações se realizam em nome da justiça, da equidade e da liberdade. A denúncia das relações perversas de poder e o desvelamento das formas de naturalização da dominação também caracterizam a práxis dessa área. A Psicologia Política, por conseguinte, ao fornecer ferramentas teóricas e subsídios metodológicos à análise do conteúdo ideológico da religião, revela as forças políticas e os interesses sociais que estão articulados no processo de conversão religiosa (Martín-Baró, 1998c). A investigação das ideologias religiosas permite-nos apreender quais grupos sociais são favorecidos pela religião e de que forma ocorre esse favorecimento, quais efeitos sociais, impactos políticos e comportamentos coletivos a conversão gera e, por fim, quais ideologias políticas a experiência religiosa apoia e reforça. A partir dessas afirmações, podemos ressaltar a relevância política da conversão religiosa, não incorrendo no engano de concebê-la unicamente como um processo individual, uma vivência interpessoal ou um acontecimento cultural, mas entendendo-a como um mecanismo ideológico que consolida estruturas de poder. Apoiando-se nas premissas do materialismo histórico e dialético, Martín-Baró (2004) compreende a ideologia como um sistema de representações imaginárias que falsificam a realidade para garantir sua manutenção, ou melhor, um instrumento de sustentação da ordem instituída. Cabe às ideologias tornar as organizações sociais coerentes e razoáveis de modo a justificar sua existência e preservação. O trabalho de justificação do poder constituído, reprodução do status quo e legitimação das demandas dos grupos dominantes depende de quatro mecanismos: universalização dos interesses particulares, negação das contradições sociais, naturalização da vida e destruição da história.

O presente artigo investigou a natureza ideológica do sistema doutrinário e teológico da Igreja Universal do Reino de Deus, que legitima sua participação na disputa partidária e seu ingresso nas instâncias políticas. Pretende-se revelar como religião e política se articulam e como os símbolos religiosos são manejados de modo a justificar o interesse da igreja pela política e sustentar sua inserção no espaço público. A análise das ideologias religiosas da maior denominação neopentecostal do Brasil visa apreender seu ideário político e projeto de poder, os grupos beneficiados e os interesses atendidos com suas conquistas eleitorais, as consequências sociais de sua atuação política e os comportamentos sócio-políticos dos fiéis. Segundo Martín-Baró (1998c), as crenças religiosas podem produzir atitudes políticas conservadoras ou progressistas, posturas fatalistas ou conscientes, dependendo do tipo de Deus em que se crê e da relação que se estabelece com Ele. A fim de compreender os discursos, ideologias e símbolos iurdianos, adotou-se como instrumento metodológico a seleção de discursos institucionais (pregações) e documentos oficiais (Jornal Folha Universal e obras bibliográficas produzidas pela Igreja). A análise documental envolveu duas etapas: a organização dos dados em categorias temáticas e sua ulterior interpretação à luz dos fundamentos teóricos norteadores desse trabalho.

 

Duas Tendências Políticas da Religião na América Latina

Com base em pesquisas realizadas na América Latina, Martín-Baró (1998d) desenvolveu dois modelos tipológicos de organização eclesiástica e experiência religiosa que definem diferentes orientações políticas: a religião da ordem, que é verticalizada, extramundana e individualista, favorável aos regimes conservadores e à manutenção da ordem estabelecida, e a religião subversiva, que é horizontalizada, intramundana e comunitária, defensora de governos progressistas e da transformação da realidade social.

A religião da ordem produz nos fiéis comportamentos alienantes e conformistas, justificando a dominação social e servindo aos interesses das classes dominantes, uma vez que desmobiliza os indivíduos e transfere para Deus a responsabilidade política de modificar as precárias condições de existência das maiorias marginalizadas. Deus, portanto, torna-se o único responsável pelo destino da humanidade e de cada indivíduo em particular. Os cristãos1 são afastados da realidade sócio-política e isolados de suas raízes históricas, preocupando-se apenas com a vida espiritual e preparando-se para o juízo final, ocasião em que serão recompensados com a vida eterna, caso tenham obedecido às autoridades instituídas por Deus e seguido às leis institucionais. Recomenda-se, pois, respeitar os governantes, independentemente da qualidade de seu governo ou de seu desempenho político, visto que são considerados representantes de Deus na terra. Porém, se cometerem arbitrariedades, oprimirem e submeterem os governados ou forem levianos na execução de suas funções, serão punidos pelas mãos de Deus. O castigo virá dos "céus". A religião da ordem, por conseguinte, gera posturas fatalistas que naturalizam o sistema social, condena as práticas políticas, transforma a obediência na maior das virtudes religiosas e sugere que mais importante do que envolver-se em questões de natureza sócio-política é dedicar-se à salvação da própria alma (Martín-Baró, 1998a). Exemplos de religião da ordem são as congregações pentecostais e a Igreja Católica.

El creyente del orden ve como una de sus obligaciones religiosas el permanecer fuera del ámbito de la política. Lo que importa es cambiarse a sí mismo, convertirse, hacer méritos ante Dios, santificarse individualmente. Esto no significa que se apruebe la situación sócio-política; con frecuencia el fiel es consciente de que se trata de un mundo sucio, un mundo en el que dominan el mal y el pecado e, por ello, condenable. Pero, por eso mismo, sólo la intervención de Dios podrá transformarlo... (Martín-Baró, 1998d:265).

Em contrapartida, a religião subversiva atua no sentido de garantir aos fiéis um despertar da consciência para a real situação das camadas sociais oprimidas e segregadas. A realidade social não é resultado da vontade divina, mas da ação humana. Portanto, é dos homens a responsabilidade política de transformação da sociedade. O compromisso político com a mudança e a ação comunitária são exigências da prática religiosa, que instiga os indivíduos a participar da vida em comunidade e a integrar o sagrado à história social e humana. A religião deve, pois, estar inserida na vida sócio-política dos fiéis, não se constituindo como realidade isolada e afastada do contexto histórico. O cristão não se preocupa com a salvação espiritual nem se dispõe a aguardar o cumprimento da promessa do paraíso eterno, destinado àqueles que suportarem com paciência o sofrimento terreno. A salvação da sociedade é mais importante que a salvação da alma. Almeja-se, por meio de ações políticas comunitárias, salvar a ordem social de sua condição de miséria, exploração, injustiça e desigualdade. A religião subversiva, portanto, produz um tipo de conscientização que rompe com os esquemas fatalistas, incitando a indignação diante das injustiças sociais, o interesse pelas questões políticas e a participação coletiva. Exemplos de religião subversiva são as Comunidades Eclesias de Base e determinadas igrejas protestantes históricas.

 

A Importância da Política para os Movimentos Neopentecostais

A Igreja Universal do Reino de Deus, maior e mais significativa representante do neopentecostalismo no Brasil, possui uma atuação e um pensamento políticos tão peculiares que, a meu ver, não é possível encaixá-la em nenhum dos dois tipos ideais, propostos por Martín-Baró (1998d), questão que desenvolverei no decorrer do artigo. Diferentemente das igrejas do pentecostalismo clássico, que preconizam a rejeição do mundo social, o sectarismo e o ascetismo dos crentes, o desprezo pela atividade política, o abandono do espaço público e a mensagem da salvação celestial, a IURD não mede esforços para inserir-se na cultura moderna e adaptar-se às mudanças da sociedade contemporânea. Percebe-se, pois, nas denominações neopentecostais, sobretudo na Igreja Universal, uma tendência à acomodação cultural e à integração social, reforçada pela utilização das mídias eletrônicas para realização do proselitismo de massa, pela participação na política partidária, pela liberalização dos comportamentos e pela adoção de modelos de gestão empresarial para gerir e administrar igrejas, o que lhes confere o status de organizações com fins lucrativos.

Os grupos neopentecostais assimilam com facilidade as constantes inovações tecnológicas, os valores da cultura de consumo e a ideologia do mundo capitalista, almejando alcançar poder econômico, prestígio político e reconhecimento social. Em vez do isolamento intramundano e da invisibilidade pública dos crentes pentecostais, os novos cristãos querem ser notados publicamente e respeitados pela posição sócio-política que passaram a ocupar. Não obstante defendam a existência do paraíso eterno, recusam-se a viver à espera do "Reino de Deus" e a renunciar as oportunidades que a vida terrena lhes oferece. Abandonaram a velha "mensagem da cruz", segundo a qual aqueles que suportarem o sofrimento na terra serão retribuídos, após a morte, com a "morada celeste". Os novos crentes desejam fazer conquistas, usufruir dos prazeres desta vida, aproveitar as oportunidades de sucesso, acumular riquezas materiais e alcançar a felicidade aqui e agora, não se dispondo a postergar suas gratificações para a vida pós-morte.

Conforme Mariano (1999), a Teologia da Prosperidade é um dos pilares em que se apoia o sistema doutrinário da Igreja Universal do Reino de Deus. Bispos e pastores iurdianos sustentam a ideia de que, mediante a fé, os cristãos podem ser prósperos em tudo que realizam, sobretudo financeiramente. Ao fiel que crer no poder de Deus, estão reservadas gratificações de toda ordem: prosperidade material, saúde física e mental, relacionamentos saudáveis, felicidade conjugal e harmonia familiar. Além da Teologia da Prosperidade, pregase na Universal a Teologia do Domínio, de acordo com a qual os crentes só vencerão a guerra contra o diabo se, associado aos procedimentos exorcísticos, adotarem estratégias políticas de ocupação do espaço público. A política, portanto, é o palco da disputa espiritual entre o bem e o mal, cuja vitória é destinada aos que ocupam posições privilegiadas na sociedade e conseguem promover uma espécie de dominação sócio-política. Caso os cristãos assumam cargos políticos de peso e adquiram notoriedade pública, terão mais condições de evangelizar e cristianizar a sociedade por meio da atividade político-partidária, o que representa no mundo espiritual a derrota do demônio.

 

O Ingresso da Igreja Universal na Política Institucional

Em substituição ao conhecido jargão pentecostal "política é coisa do diabo", a Igreja Universal passou a adotar a ideologia do voto intra-institucional - "irmão vota em irmão"2 - para angariar apoio entre os fiéis e favorecer seus candidatos na disputa eleitoral. Em 1986, a IURD elegeu apenas um deputado federal do estado do Rio de Janeiro para a Assembleia Nacional Constituinte. Já em 1990, o número de parlamentares triplicou. Em 1994, foram eleitos para a Câmara Federal seis deputados. A cada eleição proporcional, a performance iurdiana só melhorava, ampliando sua representação nas instâncias legislativas em nível municipal, estadual e federal. No pleito de 1998, a Universal conseguiu eleger dezessete parlamentares de dezesseis estados da federação, dentre eles, o bispo Carlos Rodrigues, que se tornou seu principal coordenador político. Porém, foi em 2002 que a igreja teve projeção nacional e destacou-se como força política, visto que possibilitou a eleição de vinte e dois deputados federais e do primeiro senador, o bispo Marcelo Crivella, pelo PL do Rio de Janeiro.

Contudo, em 2006, sua trajetória ascendente foi bruscamente interrompida por denúncias de escândalos políticos, envolvendo dez parlamentares iurdianos, inclusive o então bispo Carlos Rodrigues. Segundo o relatório da CPI dos Sanguessugas, vinte e três dos sessenta e seis parlamentares que compunham a bancada evangélica, mais de um terço, participaram de esquemas de compra de ambulâncias superfaturadas com dinheiro de emendas parlamentares e, por isso, tiveram a cassação dos seus mandatos recomendada. A Igreja Universal vetou a candidatura de todos aqueles que tiveram seus nomes citados pela Comissão Parlamentar de Inquérito e apresentou, de última hora, novos candidatos, elegendo apenas sete deputados. Como muitos parlamentares foram denunciados às vésperas das eleições, a igreja não teve tempo para reagir e renovar os quadros de candidatos, resultando na diminuição considerável de sua representação parlamentar. O bispo Carlos Rodrigues foi acusado de corrupção por diversas Comissões (Bingos, Correios e Sanguessugas), o que resultou no pedido de renúncia ao cargo político e no desligamento imediato da organização religiosa, perdendo automaticamente o título de bispo. Segundo depoimento de Edir Macedo, a difícil decisão foitomada por integrantes do Conselho de Bispos: "Não havia o que fazer. É o que já expliquei sobre a disciplina da Igreja Universal. As leis devem valer para todos, seja quem for, não importa o título que ocupar. Foi uma decisão conjunta do Conselho de Bispos. Não abrimos mão da decência moral. Em hipótese alguma" (Tavolaro, 2007:221).

Certamente, o episódio do afastamento de Rodrigues do posto de comando das atividades políticas da igreja representou grande perda às pretensões político-institucionais da IURD. Como salientou Conrado (2001), a presença do bispo era essencial à definição das candidaturas, à formação de quadros institucionais, à construção da representação política dos candidatos e à afirmação da igreja na sociedade brasileira. Nas eleições subsequentes de 2010, a Universal elegeu apenas sete deputados federais, demonstrando certa timidez e cautela na escolha das candidaturas e, por isso, apresentando um número de parlamentares significativamente inferior àqueles vinculados à Assembleia de Deus e à Igreja Batista. Todavia, não se deve esquecer que a Igreja Universal possui uma máquina político-eleitoral que funciona eficazmente ainda que figuras importantes deixem de conduzi-la. Nos últimos anos, a denominação desenvolveu um modo de fazer política, que lhe é peculiar, baseado na apresentação de candidaturas "oficiais" e na distribuição racional dos candidatos pelos diferentes templos e siglas partidárias.

Em época de eleição, bispos e pastores da IURD convocam os fiéis a participar ativamente da campanha, incentivam os jovens de 16 anos a obter o título eleitoral e solicitam das igrejas locais a realização do "recenseamento" dos membros para avaliar seu capital eleitoral e definir os candidatos iurdianos (Oro, 2003b). Os dados do "censo" são repassados às Igrejas Regionais e ao Conselho de Bispos, que até 2005 contava com a forte presença política doentão deputado federal Carlos Rodrigues. É a cúpula eclesiástica que define os nomes e a quantidade dos candidatos lançados oficialmente pela igreja, com base no número de fiéis cadastrados e no coeficiente eleitoral dos partidos. Não há, portanto, nenhuma espécie de consulta democrática aos membros da congregação para a tomada de decisões políticas, cabendo unicamente aos bispos a construção de estratégias e procedimentos eleitorais.

A Igreja Universal elaborou uma espécie de logística eleitoral, que consiste na distribuição geográfica dos candidatos de modo a evitar a pulverização dos votos. A igreja distribui racionalmente as candidaturas de maneira que em cada templo haja apenas dois candidatos: um para deputado estadual e outro para deputado federal. Outra estratégia eleitoral que demonstra a perspicácia política da IURD é espalhar os candidatos por diversas siglas partidárias, cujas posições ideológicas concentram-se no espectro da direita à centro-direita (PMDB, PR, PTB, PP e PRB), considerando-se o coeficiente eleitoral de cada partido e a viabilidade de vencer as eleições. Não há, por conseguinte, preocupação com a coerência ideológico-partidária. Como se pode constatar das informações acima, o processo de racionalização político-eleitoral é baseado em cálculos precisos, como evidencia o editor do jornal "Folha Universal", Pastor J. Cabral:

É muito bem dividido o número de igrejas em relação à votação de determinados candidatos. Os candidatos recebem um número 'x' de igrejas para votar neles. Eles já sabem mais ou menos quantos votos vão ter. [...] a gente acredita em 20% de fidelidade só. Se uma igreja tem mil membros a gente só conta com 200. [...] Aprendemos que é mais ou menos esse o percentual. (Conrado, 2001:91)

O início da campanha é anunciado pela Folha Universal, que apresenta os candidatos "oficiais" e mobiliza os fiéis a participar das eleições (Conrado, 2001). Nessa conjuntura, a IURD funciona como comitê eleitoral e palanque político. Os membros convertem-se em cabos eleitorais, distribuindo folhetos e fazendo proselitismo político, o que demonstra que se engajam ativamente na campanha, agindo como verdadeiros militantes. Nas fachadas dos templos, são afixados cartazes publicitários com os nomes e os números dos candidatos e, ao final das reuniões mais lotadas, os pastores ficam incumbidos de repetir os nomes indicados pela igreja para que os fiéis possam fixar em quem deverão votar. Em eleições passadas, colocou-se no hall de entrada do templo uma urna eletrônica a fim de que os interessados pudessem treinar a votar. De acordo com Oro (2003b), a igreja desenvolveu uma tecnologia pedagógico-eleitoral destinada à conscientização e formação política dos fiéis, ao direcionamento dos votos e ao estímulo à participação no processo eleitoral.

Conclamo o povo de Deus a que nos unamos em torno dos nossos ideais e não tenhamos medo de participar do processo político, elegendo homens e mulheres tementes ao Senhor Jesus a fim de que nossa sociedade seja transformada e possa ser orientada segundo os verdadeiros princípios cristãos. (Ex-bispo Carlos Rodrigues apud Oro, 2003a:105)

Conforme Fonseca (1996), a Igreja Universal desempenha um papel imprescindível nas eleições, pois, além de promover a distribuição geográfica e partidária dos candidatos, patrocina as campanhas eleitorais, fornece estrutura midiática e assistencialista para a divulgação dos nomes e das plataformas políticas bem como garante com eficácia a transferência de votos para as candidaturas "oficiais", realizando uma espécie de mediação institucional que as torna viáveis. Os candidatos não têm autonomia política, constituindo-se como representantes da igreja e dos seus interesses. O sucesso nos pleitos proporcionais e a consequente ampliação da representação parlamentar estão associados, sobretudo, ao carisma e ao poder da instituição, que possui uma estrutura hierarquizada e centralizadora (Oro, 2003a). O candidato iurdiano, por conseguinte, não se sustenta politicamente sem o apoio da denominação, devendo a ela a conquista do cargo eletivo. Desse modo, pode-se afirmar que o mandato não é do parlamentar nem do partido, mas da igreja (Fonseca, 1996).

 

Ideologias Religiosas que Sustentam Práticas Políticas

A Igreja Universal do Reino de Deus é considerada uma organização religiosa com fins lucrativos, administrada segundo métodos empresariais e acusada de promover a comercialização da fé, sobretudo por causa da Teologia da Prosperidade, de acordo com a qual o fiel não deve se conformar com sua situação de miséria, sendo-lhe recomendado investir no próprio enriquecimento por meio da fé. Acredita-se que é preciso fazer generosas doações à igreja com vistas a receber de Deus riquezas materiais. Os dízimos e as ofertas não são, pois, atos de caridade, mas uma forma de investimento comercial, que obriga Deus a cumprir sua parte no contrato. Edir Macedo esclarece essa transação no seguinte trecho:

As pessoas não devem dar oferta para ajudar a igreja, mas para ajudar a si próprias. Quemdá está fazendo um investimento em si, na sua vida. É o que mostra a Bíblia. Quem dátudo recebe tudo de Deus. É inevitável. É toma lá, dá cá. (Tavolaro, 2007:207).

Como se pode perceber, a igreja assume uma postura pragmática e imediatista, dedicandose à prestação de serviços religiosos e à busca de resultados imediatos para os problemas de sua clientela. Alguns pesquisadores, como Mariano (1999), consideram-na um pronto-socorro espiritual, aberto o dia inteiro para atender pessoas que enfrentam em sua vida cotidiana os mais diversos tipos de infortúnio, com promessas de solução para todos eles. O sofrimento do cristão, tão valorizado pelos grupos do pentecostalismo clássico, é fortemente criticado e negado na doutrina da IURD. Os fiéis são convencidos a abandonar o comportamento passivo, revoltar-se contra sua miséria pessoal e produzir, mediante a fé, ações individuais e isoladas, capazes de gerar transformações em sua vida pessoal. Acredita-se que os problemas dos crentes são resolvidos de forma individual e espiritual. O cristão só precisa crer e agir para superar todo tipo de sofrimento e conquistar tudo que almeja. Até a transformação da sociedade depende da conversão de cada indivíduo e de sua consequente mudança de vida:

[...] Isso não acontece automaticamente e de forma coletiva, mas sim de pessoa em pessoa. Para cada pessoa que se revolta contra sua própria situação e chega até a dizer 'ou o Senhor é Deus e me abençoa, ou o Senhor me abandona de vez...', abre-se uma porta... Mas é preciso acreditar em Deus, em si mesmo, na força do seu trabalho e lutar. (Edir Macedo, citado por Freston, 1994:150) Sua vida não depende do governo, do patrão, da economia, de nada. Você é livre para conquistar. Eu venci porque tomei uma atitude, eu coloquei minha fé em prática. (Edir Macedo, citado por Tavolaro, 2007:131)

No discurso iurdiano, o individualismo como solução de problemas pessoais e sociais convive paradoxalmente com a ideia de que o "povo de Deus" precisa participar do processo democrático para eleger políticos evangélicos que, de fato, contribuam para transformar a sociedade e moralizar a política. Nesse sentido, a participação política e o exercício da cidadania por meio do voto são compreendidos como formas legítimas e eficazes de modificação da realidade social. Conforme Conrado (2001), a igreja investe na formação política dos fiéis com o propósito de conscientizá-los da importância das eleições e de mobilizá-los para votar nos candidatos iurdianos. A Universal sustenta que tem o dever de assumir a responsabilidade política que lhe foi facultada por Deus, que consiste em ocupar espaços públicos bem como governar cidades, estados e nações. Mas, para isso, os fiéis também precisam cumprir com seu dever político: votar nos "homens de Deus".

O investimento da igreja na educação política dos cristãos, nas campanhas de valorização do voto, na participação e mobilização dos crentes durante os pleitos eleitorais e nos processos de conscientização para o exercício da cidadania possibilitou à IURD consolidar-se como nova força política no cenário nacional. Após duas décadas de inserção nas esferas legislativas e executivas do país, em nível municipal, estadual e federal, a Igreja Universal atualmente apresenta um discurso mais politizado e uma agenda política mais abrangente, que inclui questões sociais como saúde, educação, transporte, desemprego e pobreza, não se restringindo à discussão de pautas que contemplem os interesses das denominações evangélicas. Denunciam-se as injustiças sociais e critica-se de forma contumaz a miséria que atinge grandes parcelas da população. Contudo, diferentemente das Comunidades Eclesiais de Base que estimulam ações coletivas com vistas à transformação social, a Universal, já instalada no poder, adota uma política de resultados, que visa à resolução pontual de problemas sociais, em conformidade com a lógica pragmática, imediatista e individualista de sua doutrina religiosa. Quando ainda era deputado federal e coordenador político da IURD, o ex-bispo Carlos Rodrigues fez o seguinte comentário:

[...] todos estão cansados de ideologia. A população quer saber como serão resolvidos problemas do transporte, educação, saúde, como será reduzida a miséria. Por isso, vamos adotar uma nova forma de fazer política. Trata-se do socialismo de resultados (Oro, 2003b:63).

 

A Política sob a Ótica Iurdiana

A Teologia do Domínio e a Teologia da Guerra Espiritual são ferramentas importantes para se compreender a política sob a perspectiva da Igreja Universal do Reino de Deus. A dualidade entre o bem e o mal, presente no sistema simbólico de praticamente todas as congregações pentecostais, invade a política. Enquanto no pentecostalismo clássico só é possível vencer o diabo no plano espiritual, com a prática de orações e jejuns; no neopentecostalismo a guerra também ocorre no espaço sócio-político, com a conquista denovos territórios por meio do voto, da mídia eletrônica e da aquisição de propriedades. É uma batalha pelo domínio político da sociedade, cuja vitória só é alcançada quando se conquistam cargos eletivos, se amplia a representação parlamentar e se consolida o poder político.

Ademais, de acordo com Oro (2003b), a tese da diabolização da política é utilizada para afirmar a legitimidade da atividade político-partidária da igreja e estimular a participação dos fiéis nas eleições. Ao advertir os cristãos de que a política brasileira está dominada por satanás, a IURD reforça sua missão religiosa de libertá-la do mal e moralizá-la. A eleição de candidatos evangélicos é uma estratégia de ocupação de instituições "totalmente controladas" pelo demônio a fim de promover a exorcização da política, a "redenção" da sociedade e a vitória sobre o mal. Por conseguinte, na guerra contra o diabo, os crentes devem votar em "homens de Deus", capazes de enfrentar "os espíritos malignos" e, desse modo, purificar a política. O voto, além de exercício da cidadania, também adquire uma conotação religiosa, sendo incluído na lógica da batalha espiritual.

Além da diabolização da política, a Universal defende a tese de que se sente vítima de perseguição religiosa e, dessa forma, sensibiliza os fiéis quanto à necessidade de se fortalecer politicamente, ocupando cargos públicos importantes, para enfrentar os que pretendem destruí-la. Discursos persecutórios baseados em argumentações desprovidas de coerência lógica são frequentemente difundidos pelos templos da Universal com o propósito de garantir a união dos crentes em defesa da igreja "mais discriminada, marginalizada e perseguida do país". Divulgam-se teses infundadas de que os adversários políticos da IURD, cujos nomes são pronunciados em alto e bom som (a Igreja Católica, a Rede Globo, o Diabo e os comunistas), se unirão para pôr fim à liberdade de culto e impedir o crescimento da comunidade evangélica. Diante de tão repetida ameaça, os fiéis se mobilizam politicamente para evitar a propalada destruição da "obra de Deus". O fundador da Igreja Universal, bispo Edir Macedo, deixa claro que reconhece os efeitos positivos da lógica da vitimização, empregada estrategicamente pela IURD na disputa eleitoral em virtude de sua funcionalidade política:

Eu sabia que a prisão [ocorrida em 24 de maio de 1992, por suspeita de curandeirismo, charlatanismo e estelionato] me traria enormes benefícios. Sabe por quê? Porque eu era a vítima, e a vítima sempre ganha. Nunca o algoz. (Tavolaro, 2007:24)

Para justificar e legitimar o investimento da Universal na política partidária, Edir Macedo recorre ao discurso da vitimização e da persecutoriedade, sustentando que seu esforço para eleger representantes no Poder Legislativo tem como objetivo principal "defender o Evangelho e fazer frente a todos os movimentos de perseguição" à igreja (Tavolaro, 2007: 222). Todavia, parece-nos que a IURD tem pretensões políticas que vão muito além da necessidade de se proteger dos ataques de adversários políticos, dispostos a destruí-la e inviabilizar o crescimento da "obra de Deus". No livro "Plano de Poder", Macedo (2008) dirige-se aos milhões de evangélicos brasileiros a fim de convencê-los de que Deus possui um projeto político de constituição de uma grande nação, cuja realização depende exclusivamente da participação do seu "povo". Trata-se de um projeto de poder, que consiste em eleger um presidente evangélico, de preferência da Igreja Universal, considerado habilitado a conduzir uma nação segundo a vontade divina, uma vez que possui atributos indispensáveis a qualquer governante, como a honra, a ética e a fidelidade.

Todavia, para que a proposta divina se concretize, é imprescindível que os evangélicos reconheçam seu potencial político, se conscientizem do projeto de nação elaborado por Deus e se mobilizem politicamente para torná-lo viável. Os grupos protestantes e pentecostais são considerados "gigantes adormecidos", porque não conseguem perceber o tamanho da importância política que têm no cenário nacional, conquistada no decorrer das três últimas décadas em função de seu expressivo crescimento quantitativo. Segundo Macedo (2008), é justamente a quantidade crescente de evangélicos que possibilita a efetivação do plano estadista preparado por Deus. Entretanto, o projeto divino de poder e de nação depende da conscientização dos líderes e fiéis de todas as denominações assim como da mobilização coletiva. Os crentes precisam se conscientizar do potencial eleitoral que possuem e do plano de nação construído por Deus para, dessa forma, se engajar politicamente.

De modo geral, os cristãos demonstram desinteresse e rechaço pela política, tendendo à omissão nas questões que dizem respeito ao bem comum e à administração pública. Acreditase que a política é desnecessária ou ainda indesejável, visto que Deus é responsável por transformar completamente a vida dos indivíduos, não lhes sendo cobrada nenhuma ação a não ser a espera resignada. O fundador da Universal critica a inércia e o não engajamento dos crentes assim como afirma a importância da participação cristã nos assuntos de interesse público, o que contribuiria para a consolidação da democracia e para a concretização do projeto divino de poder (Macedo e Oliveira, 2008). Nesse sentido, os fiéis precisam reconhecer a relevância da política para a causa evangélica de modo que sejam estimulados a participar ativamente, por meio de mobilizações, dos processos democráticos. Macedo reforça a ideia de que os segmentos evangélicos, incluindo todas as denominações protestantes e pentecostais, apresentam interesses comuns em torno dos quais devem se unir para desenvolver estratégias racionais que viabilizem sua realização.

Como sustenta Conrado (2001), a IURD parece investir na unidade dos evangélicos e na suspensão provisória das diferenças denominacionais e doutrinárias para ampliar, através da identificação religiosa, a rede de apoios e alianças políticas a fim de intensificar seu poder nas disputas eleitorais. O discurso de unificação dos evangélicos, na realidade, é uma proposta de adesão ao projeto de poder da Igreja Universal que, de acordo com Macedo (2008), corresponde ao plano estadista elaborado por Deus. Atento ao crescimento do segmento evangélico e ao poder político que esse crescimento numérico representa, o líder da IURD procura "conscientizar" os cristãos, sobretudo as autoridades religiosas, de que somente a unidade de interesses e o consenso entre os crentes produzirão conquistas políticas e tornarão viável a efetivação do plano divino de poder. Desse modo, Macedo pretende receber o apoio político dos milhões de cristãos brasileiros aos quais se dirige em seu livro para consolidar sua força na esfera pública e viabilizar suas pretensões políticas.

O que falta aos cristãos para se estabelecerem politicamente? [...] [Faltam] ações coordenadas, que começam a partir de uma conscientização política, estratégias, união em torno dessa nobre causa, que depende em parte dos líderes religiosos que estão à frente do rebanho de Deus. Nessa causa, as questões ideológicas e doutrinárias denominacionais devem ficar à parte; do contrário, deixaremos de cumprir algo que é comum a todos nós, cristãos: executar o grande projeto de nação idealizado e pretendido por Deus. [...] O potencial quantitativo de evangélicos no Brasil é altamente relevante e o momento é oportuno para o projeto divino de nação! [...] a potencialidade numérica dos evangélicos como eleitores pode decidir qualquer pleito eletivo, tanto no Legislativo quanto no Executivo, em qualquer que seja o escalão, municipal, estadual ou federal. Mas essa potencialidade depende de cultura cívica, conscientização, engajamento e mobilização. (Macedo e Oliveira, 2008:25, 52 e 68)

Os evangélicos, portanto, em virtude do crescimento numérico e do consequente poder de voto que adquiriram, tornaram-se um grupo atraente para quaisquer candidatos ou líderes religiosos com intenções estadistas. O plano divino de poder e de formação de uma grande nação, apresentado pelo fundador da Universal, nada mais é do que a ampliação da representatividade política da igreja e a eleição de um chefe de estado evangélico. Por conseguinte, a nação projetada por Deus só pode ser viabilizada se for eleito para presidente da República um "filho de Deus", entenda-se um candidato evangélico, o que só é possível através da união e mobilização dos crentes. Não obstante incentive o engajamento dos fiéis em torno da eleição de um presidente evangélico, Macedo manifesta oposição à constituição de um regime teocrático e defende a manutenção do Estado laico e democrático, que assegura a liberdade de culto.

 

Considerações Finais

Como se pode constatar a partir do que foi exposto acima, a Igreja Universal do Reino de Deus apresenta posições políticas contraditórias e singulares, diferindo-se das demais denominações pentecostais. Por essa razão, os tipos ideais de religião, propostos por Martín-Baró (1998d), não dão conta da complexidade ideológica da IURD e de suas relações de poder. Elementos de ambos os modelos tipológicos misturam-se na composição da Igreja de Edir Macedo, formando um mosaico de ideologias político-religiosas. Características como a relação horizontal com o sagrado, a rígida hierarquia eclesiástica - verticalizada, centralizadora, não-participativa e não-democrática -, o individualismo, o estímulo à participação política, o direcionamento do voto, a responsabilidade política da igreja e dos fiéis, a ausência de espírito coletivo, a religião de resultados, o pragmatismo político e a inserção na esfera pública combinam-se de tal maneira que convertem a Universal em um fenômeno político-religioso atípico, marcado por concepções políticas contraditórias e ideologias religiosas que sustentam paradoxalmente condutas individualistas e mobilização política. A IURD, portanto, não é nem uma religião da ordem nem uma religião subversiva.

Em sua história política, a Igreja Universal sempre fez ferrenha oposição aos movimentos comunistas e aos partidos de esquerda, apoiando, desse modo, candidaturas conservadoras, vinculadas a siglas partidárias de direita. Nos pleitos eleitorais de 1989 e 1994, apoiou as candidaturas de Fernando Collor de Melo e Fernando Henrique Cardoso em oposição à candidatura de Lula. No entanto, em decorrência da falta de diálogo e favorecimento político, fez forte oposição ao governo de FHC, assumindo, de acordo com Conrado (2001), um perfil menos conversador. A Universal apoiou o presidente Lula e, atualmente, oferece apoio à gestão de Dilma Rousseff, sendo a maioria dos deputados federais iurdianos da base aliada do governo. Edir Macedo inclusive afirma que não se identifica com nenhuma ideologia política:

Não sou de direita nem de esquerda. Sou 'do equilíbrio'. Há incongruências e linhas de raciocínio coerentes nos dois tipos de pensamento político. Deus fez o homem com duas pernas para se equilibrar. Sem prudência, há radicalismos. (Tavolaro, 2007:227)

Dessa forma, a IURD parece não se preocupar com a coerência ideológica de suas ideias e posicionamentos, criando estratégias para vencer as eleições e realizar seu projeto de poder.

Logo, procura fazer coalizões políticas com grupos de diferentes vertentes ideológicas, sobretudo com os segmentos evangélicos, a fim de ampliar sua força na disputa eleitoral. Com o propósito de sensibilizar os fiéis a participar ativamente do processo democrático, a Igreja Universal busca legitimar sua prática política valendo-se de alguns recursos ideológicos como os discursos da diabolização da política, da perseguição da igreja e da ameaça à liberdade de culto religioso. Os crentes, especialmente os pastores e bispos iurdianos, são apontados como os únicos habilitados a libertar a política do mal que está impregnado nela. Por isso, ao ingressarem no campo político, eles cumprem a função religiosa de moralizar a política e exercê-la apenas a serviço do bem. Por outro lado, os evangélicos afirmam necessitar do mandato político para enfrentar os inimigos que pretendem combater e destruir a "Igreja do Senhor Jesus". Nesse caso, a política é o meio dos cristãos se defenderem das supostas ameaças e perseguições religiosas que sofrem constantemente.

No universo iurdiano, a religião e a política se aproximam e se misturam, sendo muitas vezes difícil perceber as fronteiras que separam ambos os fenômenos. As ideologias religiosas invadem o campo político, fornecendo-lhe novos significados assim como os símbolos políticos atravessam a esfera religiosa, modificando seus sentidos. Ora a igreja assume um discurso político sobre a religião (a responsabilidade política dos cristãos diante da realidade social de miséria e violência), ora assume um discurso religioso sobre a política (a necessidade de libertação da política). Para Martín-Baró (1998d), a religião e a política na América Latina sempre estiveram articuladas, produzindo efeitos sociais de manutenção ou transformação. A Igreja Universal do Reino de Deus explicita a relação que há entre o campo político e o campo religioso, relação que sempre existiu na história dos povos latinoamericanos, mas foi mantida às escondidas. A conversão religiosa, pois, possui um caráter político, notório no caso da IURD, que transforma cada indivíduo convertido em capital eleitoral, aumentando as possibilidades de eleger novos representantes políticos e ampliando, dessa forma, a oportunidade de construção de um projeto de poder, ambicioso e terreno, fundamentado em ideologias e práticas religiosas.

 

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Recebido em 06/06/2013
Aceito em 14/10/2013

 

 

1 Ao longo do texto, o termo "cristão" será utilizado para designar tanto os membros da Igreja Católica quanto os crentes das denominações evangélicas
2 Expressão utilizada por Sylvestre (1986) para se referir ao voto evangélico