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Revista Psicologia Política

versão impressa ISSN 1519-549X

Rev. psicol. polít. vol.14 no.29 São Paulo abr. 2014

 

EDITORIAL

 

"Se a luta é longa, o Rio está chamando": 25 anos do assassinato de Ignácio Martín Baró

 

"If the fight is long , the River is calling": 25 years after the murder of Ignácio Martín-Baró

 

"Si la lucha es larga, el Río está llamando": 25 años del asesinato de Ignácio Martín-Baró

 

« Si la lutte est longue, la Rivière is calling »: 25 ans après la assassiner des Ignácio Martín Baró

 

 

Alessandro Soares da Silva

USP - Brasil. Editor ABPP

 

 

Ao abrirmos o volume 14 da Revista Psicologia Política com o fascículo 29 desejamos recordar que nesse ano completam 25 anos do assassinato do Psicólogo Político e Social Ignácio Martín-Baró. No número anterior trouxemos dois textos inéditos no português e que apontam para um fazer da Psicologia Política que compreende sua ação como uma possibilidade de transformação da realidade social e política de nossa América Latina. Martín-Baró fez de sua vida um testemunho vivo de luta e resistência contra a opressão do povo dominado por ditaduras na América.

Sua voz inspirou muitos homens e mulheres mundo afora. A força de sua voz e prática comprometida levou-o a sua cruel morte no dia 16 de novembro de 1989. Assassinado brutalmente pelas forças da ditadura salvadorenha, pelo exército salvadorenho, Martín-Baró morre, em San Salvador, juntamente com um grupo de jesuítas nos jardins da Universidade Centro-Americana.

Ao som da canção de Julio Lacarra, "El río está llamando" interpretada pelo Quinteto Tiempo, o povo pelo qual Martín-Baró e companheiros lutaram, deram suas vidas, saíram adiante levando seus corpos ao cemitério após aquela matança covarde. Por medo dos efeitos do trabalho constante, perseverante, dos Jesuítas que lutavam pela desalienação de um povo marcado pela sombra cruel do fatalismo, atos bárbaros causaram um verdadeiro martírio. O rio está chamando, diziam. Chamando para a morte. Mas esse chamado mudou. O rio que chamava para a morte na Guatemala e em El Salvador após a morte de Martín-Baró e companheiros faz um outro chamado: ele chama à luta e a resistência. Como diz a canção: "Dame tu ternura en estos dias / que la calma huele a tempestades / Si la lucha es larga / el río está llamando".

E essa tem sido a tônica da Psicologia Política Latino-Americana e da Psicologia da Libertação inaugurada por Martin-Baró. Pensar criticamente e buscar produzir saberes que possam ajudar no labor da libertação. Sua luta prossegue 25 anos depois de sua morte. Muito há que se trabalhar para alcançarmos um mundo mais justo e fraterno, que nos permita navegar por um rio de vida e não de sangue. Lembrar do assassinato de Martín-Baró nesse ano é um modo de reanimar a tantos companheiros e companheiras que possam estar cansados da luta. Mas, como disse a canção: Si la lucha es larga / el río está llamando!

Entre os anos de 1960 e 1980 verificou-se um avanço na consciência popular. O trabalho de muitos homens e mulheres que lutaram junto com Martín-Baró e companheiros por toda a América Latina permitiu que muitos contingentes populacionais passassem a rebelar-se contra a exploração e a miséria e, nesse processo, iniciaram importantes ações que culminaram na organização das pessoas para lutar por seus direitos e para construir um projeto político para os países que rompiam com décadas de colonização e apontava para a emancipação, para a Libertação.

É nesse espírito que estamos procurando compartilhar com xs leitorxs brasileirxs textos de Martín-Baró que ainda são desconhecidos. Trazê-los à luz é um trabalho árduo que está sendo encampado pelo Professor Fernando Lacerda (UFG). Mas nesse ano também traremos nos outros números, artigos de pessoas que se propuseram a contribuir para uma reflexão sobre a obra psicopolítica e psicossocial baroniana.

No âmbito da ABPP é importante destacar que o VIII Simpósio Brasileiro de Psicologia Política, que é copresidido pelos professores Domênico Ung Hur e Fernando Lacerda da Universidade Federal de Goiás e que ocorrerá entre 16-19 de outubro de 2014 com o tema Crise e Insurgência: Controle da subversão e subversão do controle, realizará uma homenagem especial a Ignácio Martín-Baró nesses 25 anos de seu assassinato.

Outro nome que não queremos deixar de homenagear é do também espanhol Enrique Laraña, falecido recentemente em Madri em razão de uma grave enfermidade. Sua obra sobre movimentos sociais é um referencial importante e ajudou a gerações no enfrentamento de questões que marcam as lutas sociais por igualdade e justiça social. Catedrático na Universidad Complutense de Madrid, Laraña foi o responsável pela emergência de uma perspectiva analítica que pouco a pouco mudou o campo analítico dos movimentos sociais. Ao buscar combinar teorias de análise dos movimentos sociais já conhecidas com a teoria da reflexividade ele terminou por possibilitar-nos analisar os movimentos sociais como um mecanismo coletivo de autoanálise, como um espelho de auto-observação social.

Sua morte deixa um vazio importante no campo dos estudos de fenômenos coletivos da mesma forma que foi a morte de Charles Tilly. A RPP teve o prazer de publicar em 2004, no fascículo 8, um artigo de sua lavra intitulado Participación Pública y Nuevos Conflictos Sociales desde la Sociología del Riesgo. Além disso, Laraña contribuiu com a RPP com diversos pareceres de textos a nós enviados. A seu modo e desde seu olhar sociológico Enrique Laraña pensou a realidade social pari passu com Martín-Baró, lutou desde a Espanha para que os sem voz tornassem-se capazes de se fazerem ouvir ao pautar um tema que sempre teve resistências no meio acadêmico.

Por sua importante contribuição a campo dos movimentos sociais, por sua generosidade para com este periódico e com tantos brasileiros e brasileiras que puderam com ele trabalhar e desenvolver seu olhar psicopolítico sobre o campo que era sua especialidade é que convidamos ao Professor Emilio Lamo de Espinosa (UCM) a fazer um texto que homenageia este já saudoso intelectual e amigo. O diálogo que é possível estabelecer com a totalidade da produção deixada por Enrique Laraña Rodríguez-Cabello é um contributo importante para quem deseje fazer uma Psicologia Política interdisciplinar e comprometida com a libertação.

Nesse número reunimos 10 artigos e uma resenha que abordam uma pluralidade de temas, mas que sinalizam em direção a essa longa luta de que fala a canção El Río Está Llamando, que sinalizam para a importância da resistência e perseverança de quem deseja lutar contra a colonização ideológica que marca a nossa sociedade hodierna. Abrimos esta Revista Psicologia Política com o artigo Sobre Pesquisa em Psicologia Política: das questões sociohistóricas e epistemológicas ao anarquismo contrametodológico de Paul Feyerabend escrito por Aline Reis Calvo Hernandez (UERGS - Brasil) e Helena Beatriz K. Scarparo (UFRGS - Brasil). O texto se propõe a debater questões metodológicas em Psicologia Social, bem como epistemologias que ao longo da história da Psicologia foram emergindo. Para tanto, as autoras discutem o modelo cientificista e cartesiano que determina certa lógica de aquisição de status científico e a contrapõem ao que chamam de "virada epistemológica" a partir do anarquismo metodológico de Paul Feyerabend.

O diálogo proposto por elas abre a questão da relevância de olhares que superem asperspectivas disciplinaristas dos fenômenos sociais e políticos. É nessa chave de leitura que entendemos o texto O conceito de Nação nas Práticas sobre Desenvolvimento Nacional nas Décadas de 1950 e 1960 da autoria de Rogério Faé (UFRGS - Brasil) o qual traz um tema que no Brasil pouco é discutido no campo psicopolítico: a identidade nacional. Neste texto, o autor trata a ideia de nação presente no período anterior ao golpe civil-militar de 1964, a qual teria sido dinamizada por produções teóricas da CEPAL. Tais teses teriam repercutidosobremaneira no ISEB, possibilitando as formulações de Álvaro Vieira Pinto de nação como projeto e não como um apriorismo.

Em Paradoxo dos Motoristas que Lutam: entre movimentos sociais por transporte coletivo urbano, o trabalho no ônibus proposto por Jésio Zamboni e Maria Elizabeth Barros de Barros (UFES - Brasil) vemos uma continuidade do tema anterior, pois passa pela ideia subjacente de qual é o país que queremos para nós. Ao buscarem pensar movimentos sociais e produção de políticas públicas, o texto nos faz recordar elementos importantes do pensamento de Martín-Baró e de Enrique Laraña. Ao discutirem a atividade do motorista como uma forma de luta social por transporte coletivo urbano, xs autorxs aproximam processos de consciência política que interferem no modo como se pensa o ciclo das políticas públicas destacando a necessidade de um modelo menos top-down e mais humanizado em Políticas Públicas e que seja capaz de incorporar novos atores sociais.

Ernesto Pacheco Richter (PUCSP - USP), Fábio Ortolano (USP - Brasil) e Adriana Giacomini (USP - Brasil) dão continuidade ao debate em torno aos movimentos sociais e aos rumos do país no manuscrito Junho Político: massa e multidão nas ruas brasileiras. Xs três destacam que certas análises feitas de fenômenos sociais guardam exercícios retóricos distintos quando o qualificante do fenômeno é massa ou multidão. No caso do termo massa observam que o discurso mantém um viés conservador, ao passo que o termo multidões relaciona-se a um viés progressista. No texto, xs autorxs estudam a jornada de manifestações de junho de 2013, ocorrida no Brasil, procurando entender os discursos que põem em relevo tanto a irracionalidade destrutiva das massas, quanto o embate de interesses e o exercício de poder das multidões.

O Artigo COPA 2014: a produção biopolítica de uma cidade onde a exceção se tornou a regra é resultado do trabalho de Dolores Galindo (UFMT - Brasil), Flávia Cristina Silveira Lemos (UFPA - Brasil) e Francisco Xavier Freire Rodrigues (UFMT - Brasil). Ele problematiza um conjunto de práticas econômicas, jurídicas, sociais, culturais e políticas que se dão entorno aos megaeventos esportivos. Como não poderia ser diferente, é do interesse de uma Psicologia Política libertadora entender e intervir em ações que afetam a dignidade humana. E no caso presente verifica-se que obras de infraestrutura, remoções de famílias e comunidades inteiras e desapropriações feitas em nome da Copa do Mundo de 2014 têm transformado negativamente a vida de quem é socialmente vulnerável e priorizado a especulação imobiliária na cidade de Cuiabá. Aqui também se antevê a relevância da mobilização política de comunidades para resistirem a projetos que lhes impõem um lugar indigno nas estruturas sociais.

Em Racismo Contra Negros: sutileza e persistência, Sylvia da Silveira Nunes (UNIFEI - Brasil) aborda o racismo contra negros como um fenômeno complexo e multideterminado, cuja compreensão das falas sobre o mesmo tem uma clara dimensão psicopolítica, pois são as relações de poder que hierarquizam esse fenômeno. Ao analisar as falas de estudantes universitários sobre o racismo no Brasil, a autora percebe que o posicionamento não racista entre seus entrevistados é raro, o que visibiliza o racismo sutil.

Quem sabe na direção da superação das múltiplas dimensões das desigualdades promotoras da violência, entre as quais figura o racismo, é que poderíamos ler o trabalho Conflitos na Escola: ensaios para uma política de cuidado da autoria de Tatiana de Oliveira e Vanessa Monteiro Silva (UFF - Brasil). Ao pautarem as práticas de violência que se dão em territórios escolares de modo performático e sem se limitar a essa espacialidade, as autoras apontam para o exercício cotidiano de uma Psicologia Política, posto que as experimentações entre Psicologia e Educação interpelam relações de poder constituídas entre conhecimento e sociedade, violência e corresponsabilidade social. Essa reflexão se materializa a partir da análise da "Oficina de Elaboração Ética de Conflitos" com vista à criação de estratégias autônomas de enfrentamento do conflito.

O artigo a seguir também pode nos dar pistas acerca dos motivos e das questões que fazem da desigualdade uma realidade marcada pela violência e a intolerância em seus diferentes matizes. Em Experiências Religiosas da Juventude Contemporânea: indagações sobre fé, secularização, ética e política da autoria de Danilo Marques da Silva Godinho (PUC-RIO - Brasil), Cíntia de Sousa Carvalho (UERJ - Brasil) e Solange Jobim e Souza (PUC-RIO - Brasil) refletem sobre a relação entre seres humanos e a religião. Sendo a religião um dos aspectos da subjetividade, torna-se relevante conhecer como jovens expressam sua compreensão da experiência. Por meio de "oficinas de debates", xs autorxs oportunizaram situações nas quais jovens se confrontam e compartilham com o outro suas crenças religiosas. Em tempos onde a religião, mais uma vez, torna-se o epicentro de guerras e de ações terroristas, esse texto contribui para o desenvolvimento da Psicologia Política das Religiões, sobretudo no instante em que foca sua atenção às infinitas possibilidades de se construir um modo de ser a partir da experiência religiosa.

Marcelo Gustavo Aguillar Calegare traz um tema de importância para as políticas públicas sociais e para a compreensão das dinâmicas de comunidades amazônicas. Em Estratégias de Mudança Identitária para Acesso a Bens e Serviços Sociais na Amazônia o autor estuda um caso sobre a mudança identitária ocorrida numa comunidade ribeirinha de várzea da região do Alto Solimões. Nela, os moradores deixam de identificar-se como caboclos amazonenses e passam a denominar-se indígenas das etnias Kokama e Tikuna. As entrevistas mostram como questões indígenas passaram a ser pauta das discussões comunitárias ao ponto de haver uma transformação identitária, revelando com aspectos da relação com o poder público pode detonar um processo de releitura de si mesmos, o que revela sua dimensão psicopolítica em plenitude.

O último artigo deste fascículo 29 do volume 14 da RPP é A Participação das Cooperativas de Catadores na Cadeia Produtiva dos Materiais Recicláveis: Perspectivas e Desafios . O texto de Ana Carolina Lemos Pereira (UNESP - Brasil), Letícia Dal Picolo Dal Secco (UFSCar - Brasil) e Ana Maria Rodrigues de Carvalho (UNESP - Brasil), trata da migração para o trabalho informal em função de mudanças no universo do trabalho ocasionada pela globalização que gera desemprego. Com condições de trabalho mais precárias, trabalhadores buscam sobreviver e a catação de materiais recicláveis é uma saída que se lhes apresenta. Nesse cenário, emergem Cooperativas de Catadores que vivem sérias dificuldades de se integrarem à cadeia produtiva dos materiais recicláveis. A problemática do poder e das assimetrias do poder, bem como da capacidade mobilizatórias de grupos vulneráveis, traz mais uma vez a questão da mudança de paradigmas que permita a construção da justiça social que marca o fazer da psicologia política latino-americana.

Finalizamos esse fascículo com a resenha Tempo bom, tempo ruim: identidades, políticas e afetos feito por Fabio Ortolano sobre o livro de mesmo nome e da autoria de Jean Wyllys, publicado em 2014, pela Editora Paralela, em São Paulo. A importância desse texto para a psicologia política está no fato de a reflexão do autor buscar pensar os elementos subjetivos da luta por direitos em uma sociedade marcada por desigualdades que geram dor e violência. Importa destacar que a condição vivida por pessoas LGBTs no Brasil é preocupante, sendo ainda a morte provocada pelo preconceito, pela homofobia em suas múltiplas formas, um problema que aflige milhares e milhares de famílias. Trazer esse debate a público é fundamental para a mudança de nossa sociedade e guarda relevância para um fazer psicopolítico comprometido com a superação de formas de dominação e estigmatização de minorias.

Esperamos que este número da Revista Psicologia Política possa trazer reflexões que aprofundem a consciência política de todos e de todas rumo a um mundo socialmente mais justo e solidário, um mundo como aquele que sonhamos juntamente com figuras como Ignácio Martín-Baró, Silvia Lane, Karin Ellen von Smigay, Heleieth Saffioti e Enrique Laraña que inspiram psicólogos políticos e sociais a gerações. Desejamos que esse número com textos claramente marcados pelo compromisso social possam inspirar a quem os lê e quem deseje contribuir com nossa revista.

 

Boa leitura a todxs!

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