SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.14 número30A guerra atual e o uso de drones: práticas biopolíticas do matar em nome da vidaHeterogeneidade e imanência entre o gozo e o poder índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista Psicologia Política

versão impressa ISSN 1519-549X

Rev. psicol. polít. vol.14 no.30 São Paulo ago. 2014

 

Participação política? - Experiências de um conselho local de saúde no sistema penitenciário

 

Political participation? - Local health council experiences in the penitentiary system

 

Participación política? - Experiencias de un consejo local de salud en el sistema penitenciario

 

La participation politique ? - Expériences d'un conseil de santé local dans le système pénitentiaire

 

 

Rafael de Tilio

Psicólogo, Mestre e Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP, Brasil. Atualmente é coordenador do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Uberaba, MG, Brasil. rafaeldetilio.uftm@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta duas ações interventivas (capacitação de pessoas privadas de liberdade [PPL] como agentes promotores de saúde e criação de um conselho local de saúde [CLS]) realizadas na Penitenciária Prof. Aluízio Ignácio de Oliveira de Uberaba/MG. A partir de uma abordagem qualitativa em Psicologia foram realizadas 10 sessões de grupos operativos com as PPL que resultaram na criação do CLS. A partir de observações participantes e da análise de conteúdo do diário de campo das reuniões do CLS, a participação no CLS foi problematizada diante do binômio individualismo/comunitarismo e do papel político da Psicologia. Conclui-se que durante algum tempo o CLS funcionou de maneira comunitária, mas devido às crescentes demandas em saúde das PPL a direção da penitenciária obstaculizou a participação destes atores desmobilizando o CLS, descumprindo preceitos legais e éticos em atenção básica em saúde e problematizando a função política da Psicologia naquele contexto.

Palavras-chave: Psicologia Política, Conselhos, Saúde, Participação, Sistema Penitenciário.


ABSTRACT

This article presents two interventional actions (training of persons deprived of liberty [PDL] as health promoters and the creation of a local health council [LHC]) in the Penitentiary Prof. Aluízio Ignacio de Oliveira (Uberaba/Brazil). From a qualitative approach in Psychology, 10 group sessions about health with PDL resulted in the creation of LHC. From participative observation and content analysis of the field diary, the LHC actions was problematized as individualist or as communitarian and questioning the psychology political action. We conclude that some time the LHC worked as a community, but due to the increasing PDL health demands the direction of the prison embarrassed the PDL participation demobilizing the LHC, violating legal and ethical provisions in primary health care.

Keywords: Political Psychology, Council, Health, Participation, Penitentiary System.


RESUMEN

Este artículo presenta dos acciones interventivas (formación de personas privadas de la libertad [PPL] como promotores de salud y creación de un consejo local de salud [CLS[) en la Penitenciaria Prof. Aluízio Ignacio de Oliveira (Uberaba/Brasil). Desde un enfoque cualitativo en Psicología se celebraron 10 sesiones de grupos sobre salud con las PPL que dieron lugar a la creación del CLS. A partir de la observación participante y análisis de contenido del diario de campo (1) la operación del CLS fue lida de manera individualista o de manera comunitaria y (2) fue investigado lo papel político de La Psicología. Llegamos a conclusión que por algún tiempo lo CLS trabajó de manera comunitaria, pero debido a las crecientes demandas en salud la dirección de la prisión estorbó la participación de estos actores, violando disposiciones legales y éticas en la atención básica de salud.

Palabras clave: Psicología Política, Consejo, Salud, Participación, Sistema Penitenciario.


RÉSUMÉ

Cet article présente deux actions d'intervention (formation des personnes privées de liberté [PPL] en tant que promoteurs de la santé et de la création d'un conseil local de santé [CLS])détenus dans le pénitencier de Prof. Aluízio Oliveira d'Ignace de Uberaba /MG. À partir d'une approche qualitative en psychologie ont tenu 10 séances de groupes opérationnels avec PPL qui ont abouti à la création de la CLS. De l'observation participante des les contenus des réunions de la CLS la participation a été interrogé commnet individualiste or communautariste, questionant le rôle politique de la Psychologie. Nous concluons que depuis quelque temps la CLS a travaillé comme une communauté, mais en raison de la demande croissante sur la santé de la PPL la direction de la prison fait obstacle à la participation de ces acteurs démobilisation CLS, sans tenir compte des principes juridiques et éthiques dans les soins de santé primaires et en questionnant le rôle Psychologie de la politique dans ce contexte.

Mots clés: Psychologie politique, Conseils, Santé, Participation, Système pénitentiaire.


 

 

Para Início de Conversa

Esse artigo relata resultados de ações interventivas de docentes e discentes de Psicologia ocorridas entre janeiro de 2012 e outubro de 2013 junto à equipe de saúde e educação, direção e pessoas privadas de liberdade (PPL) da Penitenciária Professor Aluízio Ignácio de Oliveira (PPAIO) de Uberaba/MG, que congrega aproximadamente 1100 PPL.

A intervenção teve como objetivo originário capacitar 30 PPL da PPAIO como agentes promotores e multiplicadores em saúde na perspectiva da promoção da saúde e prevenção de doenças no sistema penitenciário, pretendendo participação ativa das PPL nos processos deliberativos e decisórios em saúde. Em outras palavras, intencionou-se que as próprias PPL pudessem definir e priorizar junto à equipe de saúde da PPAIO (médicos, psicólogos, enfermeiros, odontólogos e diversos técnicos) temas e ações na área de saúde.

Durante e em decorrência dessa ação de formação de agentes promotores e multiplicadores de saúde houve a instalação de um Conselho Local de Saúde (CLS-PPAIO), instrumento pressuposto e estimulado pela legislação estruturante do Sistema Único de Saúde (SUS) que serve de espaço aglutinador do Estado e dos interesses da sociedade (na instituição em apreço, as PPL), cujas funções principais são deliberar, fiscalizar e avaliar a execução de ações em saúde. Neste sentido, o envolvimento das PPL no contexto de saúde institucional se daria a partir da sua maior inclusão na discussão e nas ações relativas a essa temática.

Assim, o objetivo desse artigo é o de relatar o desenvolvimento dessas duas ações (capacitação de agentes promotores e multiplicadores em saúde no sistema penitenciário; criação do CLS-PPAIO) que visaram estimular a participação das PPL na gestão da saúde no contexto institucional penitenciário.

Portanto, e colateralmente considerando a necessária discussão sobre a função dos profissionais da saúde em estimular a participação política em instituições com características asilares, é significativo retomar o conceito de comunitarismo, pois ele não se limita ao coletivismo (simples junção de indivíduos num espaço). Parisi e Pagnone (2012:43) definem comunitarismo como maneiras coletivamente organizadas da participação política que pretendem promover mudanças efetivas nas relações de poder estabelecidas e que rompam com a busca por interesses particularistas seja de indivíduos ou de grupos, que no sistema penitenciário se materializam nas disputas entre quem decide e como devem ser operacionalizados os temas e ações de saúde institucional.

Assim, a partir de uma lógica comunitária, os temas e as ações em saúde não deveriam ser decididos somente pela direção ou equipe de profissionais em saúde (numa verticalização das relações de poder), mas deveriam considerar as demandas e necessidades das PPL (numa tentativa de horizontalizar as relações de poder e diminuir as assimetrias nessas relações), supondo que participação e disputa política compreendem o antagonismo dos interesses difusos. Política no Estado Democrático de Direito significa, conforme Rodrigues (2010:13), as formas de interlocução de diversos atores que expressam relações de poder de grupos de interesse orientados à resolução de conflitos no que se refere aos bens públicos, no caso, (o direito) a saúde (e seu pleno exercício).

Longe de resolver esse impasse (a operacionalização do comunitarismo), o presente artigo pretende problematizá-lo e inseri-lo no campo de estudos da Psicologia Política, pois se trata da atuação da política da Psicologia (nominalmente, dos impactos sociais dessa atividade científica e profissional na realidade - Martín-Baró, 2013a:556), pois parte-se do princípio que as PPL apesar de estarem em situação de restrição de liberdade ainda são sujeitos de direitos e usuários do SUS e, portanto, os profissionais da saúde podem contribuir para estimular suas participações e responsabilizações naquele espaço e temática.

Ademais, Martín-Baró (2013a:566) nos auxilia a compreender como a Psicologia Política ao estimular a participação ativa dos sujeitos nos seus lócus de vivência liga-se a autonomia e a desalienação, pois a maior atuação dos setores minoritários em processos deliberativos em condições de equidade permite que reforcem a observação de suas demandas, ainda mais porque com isso há reforço da autonomia - que não deve ser entendida como independência das relações sociais que geram dependências e condicionamentos mútuos, mas sim a possibilidade equânime de lutar pelos interesses.

 

"Saúde: Direito de Todos e Dever do Estado" e Saúde Numa Unidade do Sistema Penitenciário Mineiro

O direito à saúde é um direito de todos e um dever do Estado garantido pelo artigo 196 da Constituição Brasileira de 1988 (Brasil, 1988:41) e pela Lei 8.080 de 1990 (Brasil, 1990:1) que instituiu o Sistema Único de Saúde - SUS.

Anteriormente a esses dispositivos legais a Lei de Execução Penal já assegurava as PPL o direito à assistência material, jurídica, educacional, social, religiosa e de saúde (Brasil, 1984:2). Em relação à saúde o artigo 14 daquela lei estabelece que "[...] a assistência do(a) preso(a) internado(a) [será] de caráter preventivo e curativo, compreenderá atendimento médico, farmacêutico e odontológico." (Brasil, 1984:4). Ademais, a responsabilidade pela saúde das PPL em estabelecimentos prisionais é, conforme artigos 73 e 74 da Lei de Execução Penal, dos Departamentos Penitenciários Locais, ou seja, dos diretores/gestores de cada unidade prisional assessorados pelos especialistas da área - e, mais recentemente, pelos usuários.

Todavia, reconhecendo as comprometidas condições sanitárias, de habitação e vivência nas unidades prisionais e as elevadas taxas de violência e de prevalência de doenças infectocontagiosas (tuberculose, doenças sexualmente transmissíveis, HIV/Aids, hepatites) e uso abusivo de álcool e drogas entre outras, há uma real dificuldade (quando não impedimento) da efetivação do direito à saúde das PPL.

Neste sentido, o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (Brasil, 2005) - PNSSP - formulado em 2003 e resultado da Portaria Interministerial MS/MJ nº 1.777 de 2003 enfatiza a necessidade de uma política pública de saúde justa, ética, cidadã, equânime, de qualidade, transparente e que estimule a participação dos atores envolvidos no sistema penitenciário, principalmente das PPL, garantindo o preceito constitucional da saúde como direito de todos e dever do Estado. Diante desta complexa problemática o PNSSP se configura como um marco na atenção à saúde, pretendendo estabelecer a lógica da atenção básica em saúde para as equipes e usuários visto que inclui a população das PPL no SUS, garantindo que os direitos à saúde e à cidadania se efetivem - sendo este último também de grande interesse à Psicologia.

É importante destacar que o PNSSP estabelece que "[...] as ações e os serviços de atenção básica em saúde serão organizadas nas unidades prisionais e realizadas por equipes interdisciplinares de saúde" (Brasil, 2005:11), e os demais níveis de atenção em saúde deverão ocorrer em outros espaços e dispositivos especializados. O PNSSP é uma importante política pública que estimula o estabelecimento de equipes de saúde nas próprias unidades prisionais que devem planejar ações, fazer a vigilância e promover a saúde no contexto institucional, além de desenvolver trabalhos interdisciplinares em saúde com auxílio dos usuários (PPL). Esse é o sentido de participação (garantia de oitiva e ação dos diversos interessados) estimulado pelo PNSSP, permitindo as PPL se manifestarem e auxiliarem na gestão da saúde no sistema penitenciário. É de se destacar que num contexto institucional historicamente reconhecido pela opressão e falta de participação das PPL, o PNSSP pretende inserir dissonâncias e construir novos modos de ação, mesmo que incipientes, porém mais participativos - no sentido já apresentado por Martín-Baró (2013a).

Assim, a gestão e a gerência da saúde no sistema penitenciário ficam a cargo e sob a responsabilidade de cada unidade do sistema. Os responsáveis institucionais devem desenvolver ações em áreas estratégicas de saúde no sistema penitenciário (nominalmente: controle da tuberculose, hipertensão, diabetes e hanseníase; ações de promoção da saúde bucal, saúde da mulher e saúde mental; diagnosticar, aconselhar e tratar DST/Aids; aquisições de medicamentos dentre outros), destacadamente o estímulo a formação das PPL (numa porcentagem máxima de 5% da população da unidade) como agentes promotores da saúde, formação que ocorre sob supervisão da equipe local de saúde auxiliada ou não, a seu critério, por entidades/agentes externos.

Assim, as PPL (mesmo que em percentuais baixíssimo) são convidadas a serem interlocutores/multiplicadores da saúde entre seus pares, pois os capacitados devem replicar conteúdos (de maneiras formais e informais) e modos de interlocução mais horizontalizados com seus pares. Assim, as PPL que se pretendem agentes promotores da saúde devem atuar na promoção da saúde e na prevenção de doenças no contexto penitenciário identificando junto aos seus pares e comunicando à equipe de saúde e à direção sobre possíveis agravos no quadro da saúde coletiva e acompanhar os tratamentos de longa duração (Brasil, 2005:33); não se trata, portanto, de capacitar as PPL para serem fiscais das condições sanitárias a serviço da direção local e em substituição da equipe de saúde, mas sim servirem de rede de contato entre os usuários e a equipe de saúde.

Na Carta de Ottawa (Brasil, 2010:37) uma das ações visando promover a saúde é o fortalecimento da ação comunitária, e é em torno dela que ações relativas à gestão e participação dos usuários do/no SUS, no caso, as PPL, devem ser problematizadas, pois é posto em cena quem deve participar da gestão da saúde no sistema penitenciário.

Neste ponto, o PNSSP é vago, pois define o princípio de participação na gestão (promotora) da saúde da seguinte maneira: "[...] entendida como a conquista de espaços democráticos" (Brasil, 2005:14), sem especificar quem participaria e como se daria essa conquista dos espaços sociais de negociação, visto que é a direção da instituição que decide quais PPL devem participar dessas ações, o que abre margens para manobras de poder e falta de transparência institucional - todavia, na PPAIO alguns critérios de indicação das PPL para a capacitação em saúde são conhecidos: ter bom comportamento e ter bom rendimento escolar.

Diante dessa lacuna e, neste sentido, considerando que o PNSSP observa às prédicas e recomendações do SUS (e, por correlação, da Carta de Ottawa), ações coordenadas por uma equipe de docentes e discentes de uma universidade federal (UFTM) junto à equipe de saúde e educação e direção da PPAIO adotaram a perspectiva do novo paradigma em saúde denominado promoção de saúde para incentivar e garantir a participação de parte das PPL na gerência das ações em saúde daquela unidade penitenciária - ou seja, ações destinadas a problematizar quem deve participar.

Portanto, duas ações foram traçadas pelas equipes de saúde/educação e direção da PPAIO junto à equipe de discentes e docentes da universidade federal para auxiliar a inserir, naquele contexto, a lógica da promoção da saúde e o incentivo à participação: (i) ações de formação e capacitação de agentes promotores e multiplicadores de saúde; (ii) a criação de um Conselho Local de Saúde (CLS-PPAIO) que estimulasse a participação das PPL nas questões relativas à saúde. Além disso, com essas ações poder-se-ia propiciar maior visibilidade das questões sanitárias da PPAIO junto ao Conselho Municipal de Saúde e comunidade de Uberaba, reforçando a ideia de que as PPL também são usuários do SUS e, portanto, sujeitos de direito(s) e atores políticos.

Essas duas ações respondem à necessidade da particularização dos interesses das PPL na saúde, sendo essencial o envolvimento da população-alvo das ações de saúde nos processos de definição e avaliação de suas demandas (Silva, 2002:41). Sendo assim, supõe-se que a capacitação de PPL como agentes promotores e multiplicadores de saúde possibilitaria maior e sistemática participação desta população nas questões referentes aos seus direitos de saúde.

Portanto, este processo de capacitação em saúde pressupõe contribuir para o processo de participação destes indivíduos institucionalizados (Brasil, 2005:11) e por muitas vezes excluídos dessa participação, o que situa essas duas experiências no campo da Psicologia Política tal como concebida por Monteiro (2009:204) e Martín-Baró (2013a:556) - isto é, os impactos dessa atividade científica e profissional, preferencialmente questionando os modos opressores do exercício e disputa pelo poder.

Assim, é papel dos profissionais (da saúde, incluindo psicólogos) auxiliarem grupos/indivíduos a se emancipar de condições opressoras que os impossibilita de disputar adequadamente conflitos e objetos, desenvolvendo recursos e potencialidades para a autodeterminação de suas necessidades básicas visando à igualdade e a justiça (Montero, 2009:206). No caso em apreço, uma das necessidades básicas das PPL é relativa às condições e direitos à saúde. Ademais, para Parisi e Pagnone (2012:43) participação política compreende ações individuais ou coletivas que, após negociações, pretendem mudanças no status quo ante.

Portanto, para melhor efeito expositivo, serão brevemente descritas em separado as análises das observações participantes e das notas de campo (consolidadas em diário em campo) realizadas após (1) as sessões dos grupos de capacitação das PPL e (2) das reuniões do CLS-PPAIO. Há de se destacar que essas duas ações pretenderam, conforme Martín-Baró (2013b:576) argumenta, estabelecer mudanças nos jogos de poder institucionais, sendo esse o objetivo maior da Psicologia Política.

Formação de Agentes Promotores e Multiplicadores de Saúde na PPAIO

A experiência de formação das PPL como agentes promotores e multiplicadores em saúde na PPAIO considerou, como já mencionado, a elevada prevalência entre as PPL de doenças sexualmente transmissíveis, HIV/Aids, tuberculose, hepatites e outras infectocontagiosas, além de outras formas de adoecimentos físicos e psicológicos.

Neste sentido, o contexto institucional necessitava de urgentes ações de promoção de saúde e de prevenção de doenças relativos à atenção básica à saúde, pois quando estas ações são insuficientes (ou são inexistentes) de acordo com o PNSSP as PPL devem ser encaminhadas aos serviços extrainstitucionais de atenção ambulatorial ou hospitalar da rede pública, gerando inúmeras dificuldades, custos e constrangimentos.

Assim, ações de capacitação de agentes promotores e multiplicadores de saúde no sistema prisional promovê-la junto às PPL no contexto local, diminuindo os adoecimentos e sofrimentos de todo tipo, colaborando com o aumento da qualidade de vida.

Isso se soma as tentativas de fazer as PPL mais atuantes no contexto institucional, possibilitando mudanças nos comportamentos e representações desses sujeitos "[...] [garantindo] o acesso aos direitos civis que lhe cabem bem como o exercício de sua cidadania" (Brasil, 2005:12). A reinserção social e institucional das PPL (por meio da formação de agentes promotores e multiplicadores de saúde) pode ser estimulada devido ao exercício, mesmo que inicial, de direitos histórica e costumeiramente negados pelo sistema penitenciário (tal como deliberar sobre o tema saúde), pois no PNSSP reinserção social significa a (re)aquisição de direitos sociais, e não a simples readequação às normas.

Assim, as ações já citadas desenvolvidas junto a equipe de saúde e educação da PPAIO capacitaram em primeiro lugar um grupo de dez alunos dos cursos de graduação da área de saúde de uma universidade federal para desenvolverem ações de promoção de saúde e prevenção de doenças junto as PPL da PPAIO para que, depois, estes também conversassem com seus pares (em momentos de socialização e/ou nas próprias celas de reclusão) sobre saúde e prevenção de doenças prevalentes no contexto institucional do sistema penitenciário, servindo de referencias da temática naquele ambiente.

Devido ao excessivo número de PPL na PPAIO (PPAIO, 2012) a equipe da UFTM junto com a equipe de saúde e a direção da PPAIO optou por capacitar 15 homens e 15 mulheres privadas de liberdade como agentes multiplicadores de saúde. Os participantes foram indicados pela direção e equipe da saúde da penitenciária mediante os critérios de bom comportamento e participação na escolarização formal ofertada pela penitenciária - apesar da equipe da UFTM desejar, mas não poder selecionar as PPL nem poder discutir formalmente os critérios de participação faz parte do processo de negociação política de oferta da capacitação, pois caso contrário ela não seria aceita pela direção.

As atividades de capacitação dos agentes promotores e multiplicadores em saúde ocorreram nas próprias dependências da PPAIO em 10 encontros quinzenais (para cada uma das duas edições do projeto, 2012 e 2013, resultando ao longo destas duas edições em 60 PPL capacitadas) na modalidade de encontros de grupos operativos, alinhado, portanto, às metodologias participativas e interativas em Psicologia (Soares & Ferreira, 2007:53; Martín-Baró, 2013b:589).

Em cada um dos encontros houve a apresentação e discussão dos conceitos de promoção de saúde a partir da nova saúde pública1 e a apresentação e discussão sobre as doenças definidas como prioridade pelo PNSSP.

Tais atividades foram desenvolvidas segundo pressupostos das metodologias participativas em Psicologia (Silva, 2002:55) que consideram os conhecimentos prévios e as potencialidades/interesses/necessidades dos participantes e utilizaram apresentação de material audiovisual, dramatizações, discussões e produções de material (ilustrações, cartazes, folhetos etc.) como instrumentos no processo de construção do conhecimento, sempre respeitando os interesses, demandas e sugestões das PPL.

Em suma, supunha-se que essa maneira de (co)construir conhecimentos sobre saúde utilizados pela equipe da universidade para com as PPL seria, nos momentos adequados, também utilizada pelas PPL capacitadas para com seus colegas de pavilhão e de cela. Assim, não se tratava simplesmente de ensinar conteúdos as PPL para que os replicassem junto as demais (o que romperia com a lógica de participação ativa visando a transformação social das condições reais de saúde na penitenciária), mas sim que no contato com as demais PPL suas dúvidas, demandas, necessidades, reclamações e denúncias em saúde seriam discutidas e encaminhadas para a equipe de saúde e direção da PPAIO. Tal postura se coaduna com os argumentos de Meira (2012:15) de que a Psicologia não deve se comprometer com os pressupostos ideológicos do capitalismo reforçando a lógica da dominação (no caso, exemplificado pela simples replicação de conteúdos em saúde para e entre os PPL), mas sim pretender a transformação social por meio da negociação.

Neste processo de capacitação das PPL, principalmente nas discussões sobre a promoção de saúde a partir da nova saúde pública, os direitos dos cidadãos à saúde foram muito debatidos: devido às degradantes condições de saúde as quais estavam (e ainda estão) submetidos, as PPL começaram a inquirir se eram efetivamente sujeitos de direitos e se seus direitos a saúde eram observados, e de que nada adiantaria permanecer como receptores passivos de informações sobre saúde.

Diante disso, dois movimentos foram observados: a tomada de consciência da própria situação de alienação e expropriação dos direitos básicos e a real inadequação das condições sanitárias do contexto institucional local. Assim, o próprio grupo de PPL participantes da capacitação passou a inquirir e debater com a equipe de saúde e direção da PPAIO de que maneiras poderiam participar mais da realidade sanitária da instituição, visto que poderiam contribuir para alterar tal realidade.

Assim, ocorreu um crescente engajamento e participação desses atores (PPL) acerca das condições de saúde as quais estavam submetidos e a necessidade de elaborar estratégias de enfrentamento dessas adversidades. Por isso, e considerando que a PPAIO possuía uma unidade básica de saúde (UBS) e a legislação estruturante do SUS recomenda que toda UBS possua um conselho local de saúde, surgiu a proposta de constituir um Conselho Local de Saúde na PPAIO como maneira de estimular a participação das PPL nos processos deliberativos e decisórios concernentes à promoção da saúde e prevenção de doenças.

O Conselho Local de Saúde (CLS-PPAIO)

Pautados na legislação do SUS e observando a lei municipal sobre estruturação de conselhos municipais, distritais e locais de saúde (Prefeitura, 2007:1), em outubro de 2012 a equipe de discentes e docentes da universidade federal junto à equipe da PPAIO (diretoria, profissionais da saúde e da educação, e as PPL) após extensa negociação e com auxílio de um membro do Conselho Municipal de Saúde de Uberaba decidiram pela instauração de um CLS.

O CLS-PPAIO seria composto por 12 membros contemplando a representação de 50% de usuários da UBS (no caso, seis PPL escolhidas por e dentre aqueles que participavam da formação de agente promotor de saúde2) e 50% de outros representantes (um da direção da PPAIO; um da equipe de saúde da PPAIO; um da equipe da educação da PPAIO; um da universidade federal; um da OAB/Comissão dos Direitos Humanos; e um representante da pastoral carcerária).

Algumas das atribuições do CLS-PPAIO (Estado, 2004:5; Prefeitura, 2007:2) concorrentes com o Conselho Municipal de Saúde são: fiscalizar o cumprimento da legislação federal, estadual e municipal em saúde; zelar e fiscalizar a implementar políticas de saúde; exercer o controle social da saúde (o que reforça a participação das PPL); deliberar sobre programas e ações em saúde a ser encaminhado para órgãos competentes; receber denúncias de irregularidades relativas aos SUS e encaminhá-las aos órgãos responsáveis.

O Regimento Interno do CLS-PPAIO aprovado em sua primeira reunião ordinária (outubro de 2012) também estabeleceu dentre suas funções (CLS-PPAIO, 2012:1): acompanhar e avaliar atividades da unidade de saúde e os serviços prestados à população local; participar do planejamento das ações locais de saúde, e acompanhar e avaliar o impacto das ações desenvolvidas sobre a situação de saúde da comunidade-alvo.

Os encontros do CLS-PPAIO aconteceriam mensalmente na própria instituição. Até o momento de construção desse artigo (novembro de 2013), apoiado nas leituras das atas das reuniões e em observações participantes nas reuniões deste Conselho3, dois momentos e modos distintos de funcionamento podem ser destacados: o primeiro desde sua instalação (outubro de 2012) até abril de 2013, e o segundo entre maio e outubro de 2013, totalizando treze reuniões.

O primeiro momento, que abrange sete reuniões do CLS-PPAIO, permite destacar os principais temas, demandas e necessidades das PPL: instauração do conselho, eleição dos membros e da mesa diretora (uma das PPL foi eleita presidenta do CLS para mandato de quatro anos) e aprovação do regimento interno; questionamentos sobre o fluxo e reduzido número de atendimentos médicos, odontológicos e psicológicos e de como regularizá-los e adequá-los às necessidades das PPL; necessidade de aquisição de medicamentos e de materiais de saúde (principalmente odontológicos) que atendessem às carências institucionais; solicitação de esclarecimentos sobre o funcionamento dos serviços de distribuição de medicamentos e de assistência/seguridade social (benefícios sociais para as PPL e familiares); necessidade de dedetização dos pavilhões devido à proliferação de pestes; recolha diária e destinação adequada do lixo; necessidade de encaminhamento dessas demandas para o Conselho Municipal de Saúde para visibilizar as condições sanitárias da penitenciária que muitas vezes são ocultadas e desconhecidas da população geral.

Neste primeiro momento de reuniões, que contou com a presença de todos os membros do CLS, há de se ressaltar que as reivindicações das PPL por melhores condições de saúde são compreensíveis e esperadas, dado que essa modalidade de participação (considerada mais participativa/ativa por envolver diversificados atores e interesses - Prado, 2002:201) foi prática radicalmente diferente do habitual naquela instituição (calcado no autoritarismo e na concentração das decisões nas mãos da direção), havendo engajamento dos diversos atores institucionais em busca de soluções para as demandas apresentadas4. Esses questionamentos destacam inclusive a necessidade de maiores esclarecimentos e efetivação dos direitos, deveres e necessidades das PPL, tornando públicas nas reuniões do CLS suas necessidades e expectativas.

Todavia, o segundo momento que abrange seis reuniões do período de maio a outubro de 2013 apresentou radicais diferenças em relação ao período anterior, principalmente no que se refere à atuação da direção da PPAIO (responsável pela convocação dos membros do CLS e pela operacionalização e organização das reuniões). Isso pode ser entendido como uma reação aos incipientes questionamentos do funcionamento institucional (Baremblitt, 2012:30), visto que a participação dos usuários nos processos deliberativos e decisórios do CLS-PPAIO começou a criar impasses e insatisfações naquela instituição (principalmente para a direção, que passou a ser mais cobrada para solucionar as demandas).

Esse incômodo fica evidente nos momentos nos quais as PPL membros do CLS questionam abertamente as ações da direção e da equipe de saúde da PPAIO que, sob suas perspectivas, pouco faziam para melhorar as condições de saúde. Contudo, é importante destacar esforços de específicos integrantes da equipe de saúde e educação da PPAIO no sentido de melhorar a qualidade de vida institucional, e é preciso reconhecer que eles próprios por muitas vezes estão submetidos a condicionantes que dificultam suas ações. Ademais, não se tratava naquele momento de individualizar os responsáveis pela inadequação da oferta de serviços essenciais à saúde das PPL (pois mesmo sendo necessário apurar as responsabilidades há o risco de ideologizar os erros e equívocos), mas sim de compreender a lógica e modos de funcionamento das estruturas de poder, negociação e conflitos - compreender o funcionamento do coletivo (Montero, 2009:204).

Em suma, se nesse segundo momento ocorreu o acirramento das demandas dos PPL nas reuniões do CLS, a direção da penitenciária respondeu com a desmobilização do CLS. Explica-se: as reuniões antes mensais e ocorrendo no período da tarde da primeira quinta-feira de cada mês perderam sua constância e passaram a ser convocadas, desmarcadas e reconvocadas em dias aleatórias sem observar qualquer rigor. Além disso, essa desestruturação dos encontros atingiu e dificultou a participação dos membros externos do CLS que começaram a faltar às reuniões devido ao inexistente planejamento prévio da instituição, ao ponto de que quase todas as reuniões subsequentes passaram a ser realizadas apenas com os membros do CLS internos da PPAIO (direção, equipe de saúde e educação e PPL); ademais, cada reunião do CLS passou a ter duração temporal reduzida.

A justificativa da direção da penitenciária diante dessas alterações foi a falta de segurança motivada pelo número reduzido de agentes penitenciários responsáveis tanto por conduzir e vigiar as PPL participantes das reuniões do CLS quanto por manter a segurança nos pavilhões. Além disso, a direção alegou dificuldades de espaço físico para a realização das reuniões, além de dificuldades em conciliar as atividades rotineiras essenciais (visitas de familiares; audiências com advogados, defensores e/ou juízes; deslocamento das PPL para atividades educacionais ou laborais; transferências de PPL etc.) que exigem a presença e acompanhamento do montante reduzido de agentes penitenciários que concorriam e obstacularizavam atividades institucionais não-rotineiras e não essenciais, ou seja, consideradas menos importantes, dentre as quais as reuniões do CLS.

Se por um lado as decisões da direção da PPAIO são compreensíveis porque em parte são reais, as consequências das suas decisões na rotina institucional implicitamente destacam as condutas elencadas como mais importantes e necessárias para seu funcionamento. Conforme Baremblitt (2012:59) observa, as decisões e ações institucionais, denominadas de participação política por Parisi e Pagnone (2012:45), não são neutras, mas sim orientadas por relações de poder que tendem a se cristalizar e, por isso, nem sempre são desejáveis por alguns atores.

Assim, a PPAIO, como toda penitenciária, é um dispositivo de segurança pública e não de saúde e, portanto, em momentos de (real ou suposta) restrição de recursos (logísticos, humanos, financeiros e simbólicos) privilegia a segurança em detrimento da saúde. Mas tanto segurança como saúde devem ser compreendidos como espaços de disputa e de atuação política, pois resgatando os argumentos de Prado (2002:202), política são as formas de poder reguladoras do agir social que, no caso em apreço, ao invés de tornadas cada vez mais públicas e partilhadas permitindo o desvelamento dos interesses e a negociação das soluções, são reescamoteadas porque respondem a interesses restritos de um grupo.

Essas considerações auxiliam a compreender as referidas alterações nos modos de funcionamento das reuniões do CLS-PPAIO que, longe de se tratar de um fatalismo, aponta para uma específica cultura institucional.

 

Espaços Coletivos e/ou Espaços Comunitários?

Neste momento da discussão algumas contribuições da Psicologia Política (Montero, 2009:206; Martín-Baró, 2013a:565) e da Psicologia Social e Comunitária de tradição latinoamericana (Prado, 2002:201) podem ser valiosas, dentre as quais se destacam o conceito de sujeito e sua capacidade de agenciamento diante de demandas sociais e as tensões em torno do binômio individualismo/comunitarismo como modos de funcionamento social.

O sujeito a partir de sua inserção num contexto social, histórico e cultural específico deve ser compreendido como ator social e protagonista da sua história com capacidade de transformação, pois é tanto influenciado quanto influencia o contexto em que vive. Portanto, se partícipe de uma sociedade que o localiza como passivo e inativo, assim provavelmente o será; se participante de uma sociedade que estimule o individualismo e o particularismo dos interesses, provavelmente atuará assim nas querelas e negociações; mas se participante de uma sociedade que lhe permita considerar demandas coletivas diversas via negociações ou que não representem suas necessidades individuais imediatas, assim também poderá fazer. Portanto, essa capacidade de ação social/participação política não deve ser reduzida às capacidades individuais, mas devem ser extensíveis às condições sociais e coletivas.

Assim, mesmo situações como as que estruturaram as ações de formação dos agentes promotores e multiplicadores de saúde na PPAIO e (pretensamente) as que deveriam operar nas reuniões do CLS-PPAIO possibilitariam, mas não garantiriam a negociação entre os grupos de interesses (direção, equipe de saúde e educação, PPL, comunidade externa à PPAIO) e suas demandas num processo ao mesmo tempo justo, dinâmico, reflexivo, democrático e potencialmente transformador. Contudo, tal modo de funcionamento do grupo pelo menos possibilitaria o rompimento de estereotipias que organizam relações sociais ideologicamente comprometidas com o sistema capitalista que gera indivíduos pouco questionadores da e atuantes na própria realidade (Meira, 2012:19).

Essa lógica de negociação parece ter funcionado apenas no primeiro momento nas reuniões do CLS-PPAIO, permitindo as PPL a assunção da corresponsabilidade pelos processos de saúde e doença, um maior engajamento e atividade na própria realidade. Conforme comentado, essa lógica foi alterada no segundo momento das reuniões do CLS-PPAIO quando voltaram a operar da maneira considerada usual e normal naquele contexto - mas que diferem radicalmente da proposta de criação e funcionamento de um CLS. A própria ideia de conselho, segundo Gohn (2004:23), deveria assegurar a representatividade dos interesses diversos e a busca pelo consenso que considera e envolve diversos atores relacionados ao tema apreciado. Se é o interesse público que está em jogo quando pretende-se a diminuição das assimetrias das relações de poder nas relações sociais, o papel dos Conselhos é fundamental ao mediar interesses e conflitos, garantindo o bom funcionamento do espaço público pois permitem a expressão e negociação entre os diversos interessados (Gohn, 2004:24).

Diante do exposto, é interessante considerar dois modos de participação: individualista/coletivista e comunitária. Para Gonçalves e Portugal (2012:149) e Silva e Bomfim (2013:252), tais terminologia devem ser precisadas devido as suas diferenças. Por individual/coletivista deve-se compreender a atuação isolada ou a simples junção de indivíduos permanecendo a imposição do particularismo dos interesses que não considera divergências; já comunitário compreende um modo participativo (no sentido de adesão de novos atores) de funcionamento que permite a expressão e negociação dos conflitos entre diversificados indivíduos/grupos (no caso, a interlocução entre as PPL e equipe de saúde e direção da PPAIO) em busca de soluções conjuntas (portanto, não reduzidas ao particularismo) para questões comuns, tal como a saúde.

Assim, espaços coletivos nem sempre são comunitários, mas espaços comunitários sempre são coletivos no que se refere à organização dos processos de negociação de interesses. Neste âmbito, Sawaia (2012:42) entende que um funcionamento comunitário possuiria as seguintes características: cooperação e solidariedade entre diferentes (e, por vezes, antagonistas) atores; ênfase e estímulo às mudanças no status quo ante; e incentivo ao protagonismo (ação consciente visando mudanças) dos atores envolvidos - o que não é garantia de resposta imediata das demandas, mas permite que elas sejam evidenciadas e discutidas.

Os dois momentos de funcionamento do CLS-PPAIO apontam para essa dicotomia: se num primeiro momento o espaço era coletivo com possível funcionamento comunitário, após o recrudescimento das demandas das PPL o CLS passou a ser coletivo, porém nãocomunitário, visto que quando as reuniões voltaram a ser essencialmente intrainstitucionais e dominadas pela direção da PPAIO (mesmo que questionadas pelas PPL e por alguns membros externos do CLS, mas sem força para alterar a situação) não havia mais garantias de publicização e discussão ampliada das suas necessidades e direitos, levando ao fim da ampla participação política, entendida por Prado (2002:202), como negociações das relações de poder.

Para Montero (2009:206), na sua função política a Psicologia deve privilegiar o funcionamento comunitário via ocupação, pelos diversos interessados, do espaço público (representado pelo CLS-PPAIO), evitando que interesses individuais se sobreponham aos dos grupos. Ou nas palavras de Martín-Baró (2013a:558) tais ações devem questionar o ordem sociopolítica estabelecida.

Contudo, por responderem a interesses divergentes, esses modos de funcionamento social e institucional são fluídos, e não estanques. Por isso, o papel essencial neste momento do CLS-PPAIO (principalmente dos seus membros externos, pois um pouco menos condicionados às esferas de poder da direção local) é o de rearticular novos modos de funcionamento daquele CLS prezando pelo modelo comunitário; isso pode ser obtido de várias maneiras, tais como questionando e denunciando tais mudanças (retorno do autoritarismo e do individualismo) para as mídias locais e autoridades competentes em busca de novos apoios para a efetivação dos direitos sociais (Baremblitt, 2012:128) das PPL - ademais, dialogar com a comunidade cientifica expondo as experiências também é estratégia de conhecimento, divulgação e questionamento do funcionamento social.

Deter-se nestes aspectos amplia para a Psicologia as possibilidades de trabalho com potencialidades dos coletivos sociais mesmo que institucionalizados (como são as penitenciárias), pretendendo viabilizar espaços criativos e geradores de alternativas na perspectiva de combate evidentes desigualdades. Reitera-se a necessidade da participação dos interessados (PPL), trazendo os que eram (e usualmente ainda são) objetos das ações para o lugar de sujeitos e atores engajados dessas ações.

Em suma, para a Psicologia não se trata simplesmente de formar coletivos e juntar pessoas, mas sim de pretendê-los funcionar de maneira comunitária, evidenciando o papel da política da Psicologia que "[...] contribua para uma nova consciência da e na atividade política, cumprindo sua função de desideologização" (Martín-Baró, 2013a:565). Por isso a importância da rearticulação e da ampliação das negociações entre os atores envolvidos na PPAIO. Apenas assim os interesses difusos dos diversos atores envolvidos podem ser novamente postos em cena, estimulando a cogestão e corresponsabilização dos processos deliberativos e decisórios de promoção de saúde e prevenção de doenças no contexto específico daquela instituição penitenciária - e quem sabe, também, de outras.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Baremblitt, Gregório. (2012) Compêndio de Análise Institucional e outras correntes: teoria e prática. Belo Horizonte: FGB/IFG.         [ Links ]

Brasil. (1984). Presidência da República. Casa Civil - Subchefia para assuntos jurídicos. Lei nº 7.210 de 11 de julho de 1984. Lei de Execução Penal. Brasília: Editora do Senado Federal.         [ Links ]

Brasil. (1988). Presidência da República. Casa Civil - Subchefia para assuntos jurídicos. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Editora do Senado Federal.         [ Links ]

Brasil. (1990). Presidência da República. Casa Civil - Subchefia para assuntos jurídicos. Lei nº 8.080 de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Brasília: Editora do Senado Federal.         [ Links ]

Brasil. (2005). Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (PNSSP). Brasília: Editora do Ministério da Saúde.         [ Links ]

Brasil. (2010). Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção em Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Legislação em saúde no sistema penitenciário. Brasília: Editora do Ministério da Saúde.         [ Links ]

CLS-PPAIO. (2012). Secretaria Municipal de Saúde. Conselho Local de Saúde da Penitenciária Prof. Aluízio Ignácio de Oliveira. Regimento Interno dos Conselhos Locais de Saúde em Unidades de Saúde. Uberaba (não publicado).         [ Links ]

Estado de Minas Gerais. (2004). Secretaria de Estado de Defesa Social. Plano Operativo Estadual de Atenção à Saúde da População Prisional de Minas Gerais. Belo Horizonte (não publicado).         [ Links ]

Gohn, Maria da G. (2004). Empoderamento e participação da comunidade em políticas sociais. Saúde e Sociedade, 13(2),20-31.         [ Links ]

Gonçalves, Mariana A., & Portugal, Francisco T. (2012). Alguns apontamentos sobre a trajetória da Psicologia social comunitária no Brasil. Psicologia, Ciência e profissão, 32(n. esp.),138-153.         [ Links ]

Martín-Baró, Ignácio. (2013a). Psicologia Política Latino Americana (1990. Tradução de Fernando Lacerda). Psicologia Política, 13(28),555-573.         [ Links ]

Martín-Baró, Ignácio. (2013b). O método em psicologia política (1991. Tradução de Fernando Lacerda). Psicologia Política, 13(28),575-592.         [ Links ]

Meira, Marisa E. M. (2012). A crítica da Psicologia e a tarefa da crítica na Psicologia. Psicologia Política, 12(23),13-26.         [ Links ]

Parisi, Elio R., & Pagnone, Marina C. (2012). Participación política, manifestaciones culturales y mecanismos de resistencia. Psicología Política, 12(33),41-58.         [ Links ]

PPAIO - Penitenciária Professor Aluízio Ignácio de Oliveira. (2012). Informação Pessoal. Uberaba (não publicado).         [ Links ]

Prado, Marco A. M. (2002). A psicologia comunitária nas Américas: o individualismo, o comunitarismo e a exclusão do político. Psicologia, Reflexão e Crítica, 15(1),201-210.         [ Links ]

Prefeitura Municipal de Uberaba. (2007). Câmara Municipal de Uberaba. Lei nº 10.157, de 15 de maio de 2007. Reestrutura o Conselho Local de Saúde é dá outras providências. Acessado em: 12 de novembro de 2012, de: <http://camara-municipal-dauberaba.jusbrasil.com.br/legislacao/361339/lei-10157-07?ref=home>         [ Links ].

Rodrigues, Marta M. A. (2010). Políticas Públicas. Coleção Folha Explica. São Paulo: Publifolha.         [ Links ]

Sato, Leny., & Souza, Marilene P. R. de (2001). Contribuindo para desvelar a complexidade do cotidiano através da pesquisa etnográfica em psicologia. Psicologia USP, 2(2),29-47.         [ Links ]

Sawaia, Bader B. (2012). Comunidade: a apropriação científica de um conceito tão antigo quanto a humanidade. Em Regina Helena de Freitas Campos (Org.), Psicologia Social Comunitária: da solidariedade à autonomia. Petrópolis, RJ: Vozes.         [ Links ]

Silva, Emylio C. S. da., & Bomfim, Zulmira Á. C. (2013). Os caminhos da psicologia comunitária na América Latina. Psicologia Social, 25(1),251-253.         [ Links ]

Silva, Rosalina C. (2002). Metodologias participativas para trabalhos de promoção de saúde e cidadania. São Paulo: Vetor.         [ Links ]

Soares, Sônia M., & Ferreira, Aidê F. (2007). Grupos operativos de aprendizagem nos serviços de saúde: sistematização de fundamentos e metodologias. Revista de Enfermagem, 11(1),52-57.         [ Links ]

 

 

Recebido em 27/10/2013.
Revisado em 15/03/2014.
Aceito em 24/08/2014.

 

 

1 A saber: fortalecimento da ação comunitária, o desenvolvimento de habilidades pessoais e principalmente coletivas de enfrentamento de dificuldades, a construção de ambientes saudáveis, o desenvolvimento da autonomia para tomada de decisões e do pensamento crítico e reflexivo.
2 Para a composição do CLS-PPAIO a representação dos usuários foi acordada da seguinte maneira, sugerido pelo membro do Conselho Municipal de Saúde que serviu de referencial técnico, proposta aprovada em Assembleia Geral com todas as PPL: apenas as 30 PPL participantes da formação em capacitação em saúde poderiam se candidatar e votar (além da equipe da saúde e educação da PPAIO), e os interessados foram eleitos por meio de voto secreto; depois, o resultado foi divulgado e homologado em nova Assembleia Geral com todas as PPL da PPAIO. Apesar das críticas que esse processo eleitoral pode receber ele pretendeu ser o mais participativo e transparente possível considerando ser aquela uma instituição com aproximadamente 1.100 detentos sem quaisquer possibilidades (de segurança, logísticas, financeiras) de realizar eleições universais.
3 O autor deste artigo exerceu entre outubro de 2012 e outubro de 2013 a função de Conselheiro da universidade federal na PPAIO.
4 O CLS-PPAIO apresentou naquele momento inicial de seu funcionamento ganhos e avanços consideráveis, a saber: melhor organização do fluxo de atendimentos odontológicos e médicos; aumento do número de consultas médicas e distribuição de medicamentos; diálogo direto das PPL com os profissionais da saúde, que antes eram intermediados pelos agentes carcerários; ampliação dos plantões noturnos e aos finais de semana da equipe de saúde; recolha diária do lixo das celas e pavilhões; limpeza das celas e pavilhões; substituição dos uniformes velhos por novos; parceria com ONG para instalação de aquecedores solares para aquecimento da água dos chuveiros; melhora na qualidade das refeições outros. Todavia, e infelizmente, esses avanços (depois de devidamente divulgados para as mídias locais pela administração local da penitenciária) pouco tempo depois foram progressivamente encerrados pela direção da penitenciária sob alegação de dificuldades técnicas e/ou restrições orçamentárias.

Creative Commons License