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Revista Psicologia Política

versão impressa ISSN 1519-549X

Rev. psicol. polít. vol.14 no.30 São Paulo ago. 2014

 

Heterogeneidade e imanência entre o gozo e o poder

 

Heterogeneity and immanence between the enjoyment and the power

 

Heterogeneidad y inmanencia entre el goce y el poder

 

Hétérogénéité et immanence entre le jouissance et le pouvoir

 

 

Leonardo Danziato

Psicanalista, Analista-Membro da Invenção Freudiana - Transmissão da Psicanálise, Professor Doutor Titular do Programa de Pós-Graduação em psicologia da Universidade de Fortaleza, Fortaleza, CE, Brasil. leonardodanziato@unifor.br

 

 


RESUMO

A partir da concepção foucaultiana (Foucault, 1988) que propõe haver uma relação de imanência do poder com as resistências de seu campo, deduzimos que o poder está sempre em busca de reinserir o que resiste em sua lógica diagramática. Aplicamos estas proposições às relações entre a lógica contemporânea do poder e uma gestão cultural e política do gozo. Considerando o gozo como o traço subversivo do corpo diante do outro e do poder, buscamos demonstrar que ele também seria um efeito da incidência dessas estratégias que comandam os movimentos de cálculo e de politização, de agenciamento e de capitalização próprias da gestão política. Isto nos possibilita a conclusão de que o gozo é a causa das estratégias do poder, assim como nos permite supor que, genealogicamente, o poder produz e oferece formas de gozo, a partir de suas configurações diagramáticas numa determinada época.

Palavras-chave: Gozo, Poder, Imanência, Heterogeneidade, Política.


ABSTRACT

From the foucaultian conception (Foucault, 1988) which proposes an immanent relation between the power and the resistances of his field, we deduce that power is always trying to rejoin which resists in his diagrammatical logic. We apply those propositions to the relations between contemporary logic of power and a political and cultural regulation of enjoyment. Taking enjoyment_as the subversive trace of the body before the other and the power, we seek to demonstrate that it would be an effect of the incidence of those strategies, which command the movements of calculation and politization, production and capitalization proper of the politic management. That allows us to conclude that the enjoyment is the cause of the power strategies, as well as it makes us think that, genealogically, the power produces and offers ways of enjoyment, from his diagrammatic configurations in a determined age.

Keywords: Enjoyment, Power, Immanence, Heterogeneity, Politics.


RESUMEN

Desde la concepción foucaultiana (Foucault, 1988) que propone la existencia de una relación de inmanencia del poder con las resistencias de su campo, deducimos que el poder está siempre en busca de reinsertar lo que resiste en su lógica esquemática. Aplicamos estas proposiciones a las relaciones entre la lógica contemporánea del poder y una gestión cultural y política del goce. Considerando el goce como la marca subversiva del cuerpo ante el otro y el poder, buscamos demostrar que él también sería un efecto de la incidencia de esas estrategias que comandan los movimientos de cálculo y de politización, de diligencia y de capitalización propios de la gestión política. Esto nos permite concluir que el goce es la causa de las estrategias del poder, además de permitirnos suponer que, genealógicamente, el poder produce y ofrece formas de goce, desde sus configuraciones esquemáticas en una determinada época.

Palabras clave: Goce, Poder, Inmanencia, Heterogeneidad, Política.


RÉSUMÉ

De la conception de Foucault (Foucault, 1988) qui propose qu'il y ait une relation d'immanence du pouvoir avec les résistances aux votre domaine, on en déduit que le pouvoir est toujours à la recherche de réintégrer ce qui résiste à la logique de ses diagrames. Nous appliquons ces propositions à la relation entre la logique contemporaine du pouvoir et de la gestion culturelle de la politique et de la jouissance. Considérant la jouissance comme la trace subversive du corps face de l'autre et le pouvoir, nous démontrons que ce serait aussi un effet de l'impact de ces stratégies qui contrôlent les mouvements de calcul et politisation, d'agencement et capitalisation propes de la gestion politique. Cela nous permet à la conclusion que la jouissance est la cause des stratégies du pouvoir et nous permet de supposer que, généalogiquement, le pouvoir produit et offre des moyens de la jouissance, dans leurs paramètres diagramatiques dans une époque determiné.

Mots clés: Jouissance, Pouvoir, Immanence, Hétérogénéité, Politique.


 

 

Introdução

Para considerar essa relação entre o gozo e o poder vou encaminhar um percurso que implica um olhar para a gestão política do gozo de uma maneira diferente de como se aborda tradicionalmente essas questões. Vou seguir uma indicação de Foucault (1988) que sugere a ultrapassagem de uma concepção meramente jurídica, não se limitando a um entendimento totalizante e normativo do poder. Devemos considerar, portanto, que o poder produz um movimento duplo que implica sempre, por um lado, uma parcela de sucesso, mas também o fracasso de uma universalização, o que determina uma tentativa incessante de recuperação ou de reinserção do singular nos seus "cálculos".

Quero com isso dizer que a relação paradoxal entre o gozo e o poder caracteriza-se por um movimento discursivo que implica uma impossibilidade, mas também uma tentativa de reinscrever o que sempre escapa ou "resiste" as totalizações. O poder está sempre buscando reconduzir esses restos, seja na forma de uma "politização dos prazeres" (Foucault, 1988), ou através de "agenciamentos do desejo" (Deleuze e Guattari, 1976), ou ainda, numa "capitalização do gozo" e uma "recuperação do mais-de-gozar" (Lacan, 196869/2004). Como já desvelara Foucault (1988), o poder mantém uma relação de imanência com as resistências de seu campo. Não existe poder sem resistência, mesmo porque o poder está sempre em busca de, estrategicamente reinserir o que resiste em sua lógica diagramática.

O gozo, por sua parte, apresenta o que "manca"1 seja no projeto político, seja no governo de si e do outro, ou mesmo, como sugere Freud (1930/1974), no que fracassa no projeto humano da busca da felicidade. Seria, pois o gozo o que resiste ao poder, o inadaptável ao princípio de realidade (Lacan 1959-60/1988)? Devemos considerar o gozo como o traço subversivo do corpo, diante do outro, e do poder. Mas por outro lado, não seria o gozo também um efeito da incidência dessas estratégias que comandam os movimentos de cálculo e de politização, de agenciamento e de capitalização próprias do poder? Isto poderia nos levar facilmente à conclusão de que é o gozo que causa as estratégias discursivas do poder, da mesma forma como Lacan concluiu que o real é a causa, e em torno da qual giram os discursos (Lacan, 1969-70/1992). Mas também nos permite genealogicamente supor que o poder produz e oferece formas de gozo, a partir de suas configurações diagramáticas numa determinada época. Ora, nada mais adequado para pensarmos as relações entre o gozo e o poder na contemporaneidade.

Estamos aqui diante do paradoxo da relação do gozo com a Lei e com o poder. A Lei - ou a linguagem, o significante, do ponto de vista lacaniano - é o que interdita, mas aomesmo tempo é o que inocula o gozo no corpo. É o significante que se inscrevendo na carne, produz um corpo que goza; mas, por outro lado, é o que constitui a via fálica como uma forma de permissão linguageira do gozo na cultura (Lacan, 1972-73/2010). Vale ressaltar: pensar essas correlações entre o gozo e o poder implica em considerar essa lógica paradoxal de maneira que se ultrapasse uma definição negativa do poder.

 

O Gozo e os Cálculos do Poder

É preciso considerar, então, uma heterogeneidade entre os "cálculos do poder" e as singularidades corpóreas, inoculando nessa lógica político-discursiva um "elemento de impossibilidade" que, do ponto de vista da psicanálise, diz respeito à dimensão do real e do gozo. Trata-se de levar em conta que as operações políticas de diagramação, de controle ou de regulamentação não são completas; pelo contrário elas sempre padecem de uma "falha estrutural" (Lacan, 1968-69/2004), e que por isso mesmo buscam incessantemente reinscrever em suas lógicas o "resto" (Lacan, 1963-64/1988a) oriundo da falha desta operação.

O gozo, portanto, em sua condição de excesso e de "excedente", deve ser entendido como um elemento intruso, paradoxal, que perpassa a relação do sujeito com outro, com o corpo e com a ordem simbólica - seja ela entendida em sua lógica social, ou como uma estrutura de linguagem - mas de uma maneira que marca uma impossibilidade de gestão ou de reciprocidade: "Não há reciprocidade no gozo", diz Braunstein (1990:13). Sendo esse elemento "do corpo e pelo corpo" (p. 13), ele implica em uma não alteridade com o outro ou com a ordem; ou seja, ele é um resto que não se inscreve em qualquer tábula significante.

Talvez essa seja a melhor definição do que é o gozo: um intruso. Foi assim que ele se apresentou à Freud em seu percurso teórico, e, portanto, na clínica psicanalítica, e foi assim que ele foi relido por Lacan (1969-70/1992); e é por sua intrusão que ele ganha sua importância política, pois ele se apresenta como o que produz um "mal-estar" inevitável nos discursos e nas propostas universalizantes (Weltanschaüung [Freud, 1933/1976]), sejam elas políticas, educativas ou clínicas.

O gozo é um intruso porque, em sua singularidade, ele delata que algo nunca funciona de maneira plenamente adequada, porque cria uma impossibilidade estrutural de uma consecução totalizante de qualquer projeto político, ideológico ou mesmo clínico. Ele carrega o traço "real" da impossibilidade de um encontro como o outro. Podemos até dizer que o gozo é o que fica escamoteado, como um "núcleo duro do real" (Zizek, 1992), no miolo de todo projeto discursivo que visa uma consecução totalizante.

O campo do gozo ganha sua dimensão política, porque por um lado situa o sujeito em sua relação com o outro do laço social, inserida numa "topologia de regulamentação do gozo", e por outro, emerge como esse elemento intrusivo e paradoxal que determina a impossibilidade dos projetos políticos de totalização, em torno do qual as estratégias e os cálculos do poder orbitam. Ele é o elemento intrusivo no corpo e na política; o que "entrava", mas o que, paradoxalmente, faz funcionar as estratégias e os discursos políticos. Por isso mesmo a cultura e a política podem ser pensadas como gestões morais, éticas e discursivas do gozo, como tentativas de "grafar" (Lacan, 1992/1969-70) os restos desta operação marcada pela impossibilidade.

Exatamente daí que podemos retirar uma relação política paradoxal entre o gozo e o poder; ou seja, como um movimento discursivo ao mesmo tempo heterogêneo e imanente, que implica uma tentativa de reinscrever o que sempre escapa ou resiste às totalizações. Como disse, o poder está sempre buscando reconduzir esses restos, seja na forma de uma "politização dos prazeres" (Foucault, 1988), ou através de "agenciamentos dos desejos" (Deleuze e Guattari, 1976), ou ainda, numa "capitalização do mais-de-gozar" (Lacan, 196869/2004).

Esse traço de real, esse ponto inefável, nos leva a entender a gestão do gozo, seja ela no campo dos discursos na cultura, seja na lógica do fantasma, como uma tentativa de grafar aquilo que escapa a qualquer intensão de recolher o que resta de uma operação simbólica.

Enquanto uma categoria-dimensão2 o gozo ultrapassa uma gestão meramente individual e, por outro lado, exclusivamente universalizante da cultura sobre o sujeito. Como diz Pommier (1989), o gozo e seu controle, ou seja, suas possibilidades e impossibilidades são "o motivo principal da vida em sociedade" (p. 16). O gozo é o que tenta ser gerido e grafado pelo laço social, e por isso mesmo permite esse enlace, mas é também o que contém o germe do seu fracasso, da sua "impossibilidade" (Lacan, 1969-70/1992). Essa impossibilidade do gozo, a inexistência do "todo", essa "falha estrutural" (Lacan, 196869/2004), essa "carência central" (Pommier, 1989:19) é que vai fazer o sujeito buscar no outro, enquanto imagem do Eu ou como "Ideal do Eu" (Freud, 1921/1976a), uma recuperação narcísica. O gozo, portanto, não é uma categoria unicamente individual, mesmo que seja singular3, porque por mais que se ancore no corpo, não há o corpo de cada um que não implique o corpo do outro, em suas três versões: sua imagem, seu traço e sua carne - RSI (Lacan 1974-75/2002). Não podemos dizer, contudo, que o gozo é coletivo, porque implica o real do corpo de cada um: o organismo e suas vísceras, o impossível da relação (rapport) sexual, o sexo e a morte. Mas podemos afirmar a partir daí que o coletivo, o laço social, tem por função um controle, uma interveniência na "experiência" (Foucault, 1984)4 e na economia de gozo do sujeito, através de suas referências simbólicas e imaginarias, na "a-bordagem"5 do real do corpo.

Como conclusão, podemos reafirmar, então, a heterogeneidade e a imanência entre o gozo e o poder: as operações político-diagramáticas de regulamentação, controle e produção, nunca são completas; há sempre uma subversão possível, uma falha estrutural que deixa um resto; o poder sempre busca reinscrever em sua lógica aquilo que está sempre a lhe escapar.

Essa falha da estrutura não deve ser pensada, contudo, como um defeito, ou um não funcionamento, ou ainda, como um negativo do poder; pelo contrário, essa impossibilidade é o núcleo duro da estrutura - o núcleo do real como define Lacan (1969-70/1992). É através deste furo que o poder busca suturar os "buracos" (Lacan, 1974-75/2002), e, ao mesmo tempo, é o que permite um funcionamento da estrutura; ou seja, esse elemento de impossibilidade não só faz parte do seu funcionamento normal, como é o que causa sua dinâmica.

Revelar essa heterogeneidade e imanência implica em inocular e desvelar no campo do pensamento político as intervenções e as estratégias do campo do poder por sobre as artimanhas singulares e corpóreas do gozo, sem desconsiderar uma constatação clínica e política que demonstra uma impossibilidade lógica e discursiva de redução do singular ao universal; ou como sugere Lacan (2010/1972-73), de uma impossibilidade do encontro na relação entre o sujeito e o outro.

Um elemento de "real", portanto, é o que parece animar esse espaço fecundo e paradoxal de articulação; um troumatisme6 original em torno do qual giram e geram-se as proposições político-discursivas; sempre às voltas com algo da ordem da "repetição", na tentativa de lidar com o "mal-estar" (Freud, 1930/1974) inerente aos processos de gestão política: a morte, o sexo, a violência, a dominação, a servidão, o horror: versões simbólicas, imaginárias e de real do gozo.

O gozo, portanto, como um excesso e como um excedente, deve ser entendido, então, como esse traço de desordem diante do qual as estratégias de normalização simbólicas, políticas e discursivas se dirigem e tomam como alvo. Foi exatamente essa leitura que Lacan realizou quando da construção de sua tipologia dos "quatro discursos" (Lacan, 1969-70/1992); ou seja, o gozo como o que estabelece uma relação de "intrusão" entre a psicanálise e a política, porque paradoxalmente é o que faz girar os discursos, mas ao mesmo tempo é o que parece ser escamoteado pelos mesmos, já que sinaliza o limite dos seus alcances.

O gozo apresenta-se como um intruso no corpo, na clínica e na política, tendo a psicanálise como sua porta-voz. Daí, podemos pensar a situação da psicanálise na modernidade assim como sua dimensão política e crítica. Na condição de porta-voz das suas descobertas fundamentais - as duas grandes descobertas freudianas: um saber inconsciente e a dimensão trágica e política do gozo - a psicanálise parece inocular um elemento de "diferença", permitindo um "pensamento-outro" (Lins, 1997) na lógica discursiva da modernidade. Ela abre buracos nos projetos políticos da ordenação e do disciplinamento, mesmo que incorra numa tentativa de outro "agenciamento" político do desejo, em sua "edipianização furiosa" (Deleuze e Guattari, 1976:73).

É necessário, portanto, acatar essa intrusão da psicanálise e da dimensão do gozo no campo da política, porque ela recoloca em questão o que é rechaçado pelos discursos: o gozo que os anima e que os faz circular.

 

Por uma Genealogia do Gozo

Enquanto esse elemento inefável, como o que determina uma impossibilidade no âmago da gestão, seja do ponto de vista singular do "fantasma" do sujeito, seja na lógica dos discursos na cultura, o gozo vem recolocar uma questão ética e política fundamental que diz respeito aos limites do poder e seus paradoxos; ou seja, seus efeitos colaterais, suas "inconsciências" quanto ao que há de subjetividade na política, o "sexo do poder" (Lins, 1998); enfim, uma interrogação fundamental: quais os efeitos subjetivantes e de gozo produzidos pelos "cálculos do poder" (Foucault, 1977)? Como escapar das diagramações totalizantes do poder? Quais os seus 'furos'? Quais as subversões possíveis? O que resiste a esses "cálculos"?

Por outro lado, sabemos que as operações do poder consideram o que lhes escapa, através de um movimento de "recuperação do poder" (Foucault, 2004). Essas operações são análogas aos processos de imaginarização e simbolização, assim como se aproximam do que Lacan descreve como uma tentativa de recuperação do "mais-de-gozar" (Lacan, 1968-69/2004). Diante das resistências e subversões, como se dão os movimentos de "recuperação do poder"? Qual a lógica dos seus "agenciamentos" (Deleuze e Guattari, 1976; 1995a), suas "capitalizações", suas reapropriações disso que resiste, que escapa a sua ânsia universalizante e individualizante?

Não podemos desconsiderar que vivemos um tempo onde uma bio-política se torna cada vez mais imanente, quase imperceptível, de maneira que o poder habita de forma "natural" o corpo e o campo de subjetivação.

Essas constatações nos encaminham para questões mais amplas que dizem respeito a uma possibilidade de pensar a constituição genealógica dessa "imanência"7 entre o corpo, o gozo e os poderes na cultura. Dessa intenção decorre uma série de outras indagações acerca da pertinência de uma leitura política e genealógica do gozo: o campo do gozo, tal como constituído na experiência psicanalítica a partir da obra de Freud e de sua releitura operada por Lacan, comportaria ele uma dimensão política? Poderia uma "teoria do gozo", gestada no campo da psicanálise - especialmente na obra de Lacan - contribuir para uma "analítica"8 das condições políticas e discursivas de "subjetivação" no mundo moderno-contemporâneo? É possível imaginá-lo como fazendo parte do drama subjetivante operado pelos poderes na modernidade? Através de quais noções, quais categorias, por quais vias teóricas poderia a psicanálise ajudar a pensar a constituição das atuais condições culturais e sociopolíticas naprodução das formas de subjetivação contemporâneas? É possível encontrar na psicanálise uma dimensão que nos autorize a uma "intrusão" no campo da política sem perder o caráter de singularidade que o sujeito freudiano nos impõe pela via da clínica? Mais, ainda: poderia o gozo, enquanto o que há de específico na psicanálise e em seu sujeito, redimensionar sua posição política, retirando-a de sua "vergonha [...] em história e em política" (Deleuze e Guattari, 1976:134), ressituando uma economia subjetiva em sua relação produtiva com uma economia política? Ou por outra, estaria mesmo a psicanálise assentada sobre esse equívoco e essa ingenuidade política que pressupõe um sujeito fora de suas condições genealógicas de constituição?

Observamos aqui uma proximidade relevante entre o campo da psicanálise e os estudos genealógicos de Foucault. E isto nos permite interrogar também se encontraríamos no campo da psicanálise alguma abertura nocional para pensar questões políticas semelhantes às levantadas por esses trabalhos genealógicos. O que poderia dizer a psicanálise sobre as descobertas fundamentais da genealogia de Foucault, que analisa e diagnostica as "relações de poder, saber e corpo na sociedade moderna" (Dreyfus e Rabinow, 1995:117) e seus efeitos? Estaria a psicanálise em consonância com os desenvolvimentos dessa "analítica interpretativa do poder?" (p. 131).

Não se trata aqui de uma tentativa de enveredar por uma redução ou expansão da psicanálise para campos que lhes são heterogêneos. O que propomos é interrogar exatamente a devida heterogeneidade, porque nos parece que, se por um lado não podemos expandir as noções psicanalíticas ao ponto de transformá-las numa Weltanschaüung - como recusava Freud - por outro lado não convém desconsiderar que habita na psicanálise uma problemática que além de fundamentalmente clínica, apresenta-se como radicalmente genealógica, e que diz respeito exatamente as relações entre o poder, o saber, a verdade e o corpo.

Essas são noções e articulações que curiosamente encontramos de forma paralela tanto em Foucault (1999), como em Lacan (1969-70/1992). Isto não quer dizer que se ambos falaram dessas questões, temos necessariamente ai uma abertura para articulações. Os mesmos termos, as mesmas noções se diferenciam no funcionamento de um determinado corpo teórico. Mas podemos, mesmo guardando tais cuidados, permitirmo-nos levar em conta os efeitos que as descobertas de um campo podem produzir em saberes avizinhados.

Estamos aqui num terreno delicado, pois se por um lado a categoria gozo é "estranha" (Unheimlich) (Freud, 1919/1976b), ao campo das ciências sociais e da teoria política9, por outro, há uma desconfiança própria ao campo da psicanálise quanto as articulações sociopolíticas de seus conceitos. Qual horror pode causar, por um lado, o estranho de uma dimensão psicanalítica aos cientistas sociais e filósofos, e por outro, qual o horror pode causar aos psicanalistas o desvelamento de uma dimensão política do gozo? Como aceitar a "extensão" (Lacan, 2003) de uma categoria clínica para o campo sociopolítico? Seria possível ultrapassar a justa desconfiança do campo da psicanálise quanto a uma "sociologização"apressada de seus pressupostos? É possível fazê-lo sem incorrer no mesmo equívoco de desfazer o caráter de singularidade do sujeito e do inconsciente?

Por outro lado; seria possível pensar uma "genealogia do gozo"? Haveria no campo da psicanálise uma abertura e instrumentos conceituais que possibilitem tal leitura genealógica das regulamentações culturais e políticas do gozo? A psicanálise suportaria uma leitura genealógica dos seus axiomas estruturais? Estaria a dimensão genealógica recalcada no campo psicanalítico? Mais especificamente: seria possível um entendimento do gozo em sua relação de "imanência" política, com uma lógica diagramática (Foucault, 1977) da cultura? Podemos localizá-lo em sua relação de produção com os deslocamentos genealógicos da modernidade e da contemporaneidade? Ou seja, é possível pensar como o gozo foi produzido e gerenciado a partir dos movimentos históricos, políticos, econômicos e discursivos em sua correlação produtiva com a dimensão histórica e política? Poderia o gozo, articulado em sua produção no laço social, ultrapassar a tendência transcendente e biunívoca (Deleuze e Guattari, 1976) dos conceitos psicanalíticos? Ele poderia reposicionar uma posição política da psicanálise e seus conceitos numa imanência na produção social, considerando o traço de singularidade que o sujeito freudiano impõe?

Não temos, obviamente, a pretensão de responder a tantas questões. Apenas consideramos, como se pode deduzir do que dissemos até agora, que essa via nos possibilita uma leitura genealógica não só da dimensão corpórea do gozo, mas da própria psicanálise; ou seja, nos permite situar essas dimensões numa certa regulamentação cultural e histórica do gozo, sem desconsiderar o caráter de singularidade que caracteriza sua definição no campo da psicanálise. Ela nos permite adentrar numa discussão política, pois interroga a própria gestãopolítica do gozo e delata seu fracasso. É possível, nesta polêmica, considerar o que há de mais radical no campo da psicanálise: sua noção de sujeito e sua heterogeneidade e imanência na relação com o outro e com o próprio corpo; pois é no fracasso do universal que se apresenta esse sujeito intervalar que é o sujeito do inconsciente.

Portanto, estamos sugerindo a possibilidade de realizar uma abordagem genealógica do gozo a partir da consideração que o gozo e o poder podem e devem ser pensados como genealogicamente inseridos num "campo de imanência"10 e não como uma dualidade categorial. Há uma heterogeneidade e uma imanência "diagramática" na cultura entre o gozo e o poder, já que podemos considerar a civilização como uma "maneira como combina em si esses diferentes aparelhos de gozo" (Bursztein, 1998:20); ou como sugeria Freud, a cultura como o que busca gerenciar a agressão (Freud, 1930/1974) e a destruição que essa dimensão do gozo no humano termina por manifestar.

A partir daí é possível pensar que mesmo como um dado de estrutura, o gozo também é produzido a partir de suas formas históricas e culturais de regulamentação, assim como a partir de determinados deslocamentos genealógicos, que como já nos indicava Foucault, produz os corpos e as subjetividades. Quais as formas de gozo autorizadas numa determinada época? Como gozamos na atualidade? Quais as relações dessas formas de gozo com a "moral do poder" (Lacan, 1959-60/1988)? Qual tipo de gozo convém a determinada forma de poder, já que o poder constitui o corpo, como sugere Foucault (Foucault, 1977)? Como se apresentam hoje o corpo e o gozo após esse processo de instalação de uma bio-política na contemporaneidade?

Articular politicamente o gozo e o poder implica, pois, em considerar uma questão ética e política originária e ampla que diz respeito aos efeitos do exercício e da incidência dos poderes, das coerções e regulamentos sociais (Freud, 1927/1974b) sobre os sujeitos, dos "biopoderes" (Foucault, 1988) sobre os seus corpos, ou mesmo, da administração dos gozos (Lacan, 1968-69/2004), no "governo se si" (Foucault, 1984) e do outro; ou seja, os efeitos de subjetivação e os "modos de sujeição" (p. 27) de uma cultura; questão que nos aproxima das interrogações foucaultianas: "como se exerce o poder" (Foucault, 1995:239), quais suas nuances e estratégias? Quais os seus efeitos?

Deixemos essas aberturas ressoarem com seus efeitos singulares...

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recebido em 05/06/2013.
Aceito em 12/04/2014.

 

 

1 Lacan utiliza-se da palavra 'manque' em francês, para dizer desta falta que ao mesmo tempo é uma privação e um defeito. Traduz-se, perdendo-se a homofonia do francês, por mancar. Ver Lacan, 1998.
2 Consideramos que o gozo não é apenas uma categoria teórica a mais no campo da psicanálise; ele se configura como um campo - o campo do gozo (Lacan, 1969-70/1992) - portanto, muito mais como uma dimensão.
3 Importante salientar a distinção entre 'individual' e 'singular'. Para a psicanálise, que não sugere a noção de indivíduo, o singular diz respeito não ao particular, mas ao traço que marca a relação do sujeito com o Outro (A).
4 Utilizamos o termo 'experiência' de forma semelhante com Foucault entende uma experiência numa determinada cultura e numa determinada época (Foucault, 1984).
5 Para Lacan, as dimensões do simbólico e do imaginário possibilitam produzir bordas sobre o real; é o que se pode fazer, um savoir-faire com o real (Lacan, 1974-75/2002).
6 O termo 'troumatisme' é um neologismo utilizado por Lacan, para dizer de um 'buraco' fundamental na estrutura; trou, em francês, significa buraco. Há, portanto, uma homofonia entre traumatisme e troumatisme. (Lacan, 1974/75/2010).
7 Trabalhamos com o conceito de imanência, tal como se apresenta na obra de Foucault, mesmo que também nos aproximemos de uma concepção própria à Deleuze e Guattari (1976).
8 Referimo-nos a forma como Foucault denomina seu método. Ver Foucault, 1988; Dreyfus e Rabinow, 1995.
9 É possível questionar essa inexistência da dimensão do gozo, seja no campo das ciências sociais, seja não campo da teoria política, seja no campo da filosofia, pois, se não se apresenta ai uma teoria do gozo, tal como encontramos no campo da psicanálise, isso não quer dizer que não se saiba de seus efeitos. Encontramos, por exemplo, nos teóricos de Frankfurt, uma sinalização para essa dimensão no campo da política, assim como em Nietzsche e Deleuze no campo da filosofia.
10 A noção de imanência que utilizamos, faz referência primeiramente a como Foucault a utiliza (Foucault, 1988), mas também tem suas ressonâncias com a concepção de Deleuze (1993).

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