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Revista Psicologia Política

versão impressa ISSN 1519-549X

Rev. psicol. polít. vol.14 no.31 São Paulo dez. 2014

 

ARTIGOS

 

O envelhecimento, a experiência narrativa e a história oral: um encontro e algumas experiências

 

Aging, narrative experience and oral history: a meeting and some experiments

 

El envejecimiento, la experiencia narrativa y la historia oral: una reunión y algunas experiencias

 

Le vieillissement, l'expérience narrative et l'histoire orale: une rencontre et quelques expériences

 

 

Adriana Rodrigues Domingues

Graduação em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", mestra em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2001) e doutora em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente é professora do curso de Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, SP, Brasil. adriana.domingues@mackenzie.br

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta uma reflexão sobre o lugar da velhice no contexto atual, denunciando as práticas e discursos ideológicos que prometem um envelhecimento bem sucedido e que justificam certa gestão desta fase da vida. Como proposição, considera a velhice como lugar privilegiado para a narrativa oral de histórias de vida provocadas pelo método da História Oral. Problematiza o uso deste método como pesquisa e intervenção e apresenta algumas experiências realizadas ou supervisionadas pela autora. O encontro entre o envelhecimento, a experiência narrativa e a História Oral representa uma forma de preservar as testemunhas e os testemunhos, do passado e do presente, que afirmam a identidade e os modos de subjetivação.

Palavras-chave: Envelhecimento, História de Vida, Narrativa Oral, História Oral, Memória.


ABSTRACT

This article presents a reflection about the place of the aging in the current context, denouncing the ideological practices and discourses that promise successful aging and that justify certain management of this stage of life. As proposition, it considers the aging as privileged place for the oral narrative of life stories caused by the method of oral history. It discusses the use of this method as research and intervention, and presents some experiments conducted or supervised by the author. The meeting between the aging, the narrative experience and the oral history is a way to preserve the witnesses and the evidence, from the past and the present, that claim the identity and modes of subjectivity.

Keywords: Aging, Life History, Oral Narrative, Oral History, Memory.


RESUMEN

En este artículo se presenta una reflexión sobre el lugar de la vejez en el contexto actual, y denuncia las prácticas y los discursos ideológicos que prometen un envejecimiento exitoso y que justifican cierto manejo de esta etapa de la vida. Como propuesta considera la vejez como un lugar privilegiado para la narración oral de historias de vida causados por el método de la historia oral. Discute el uso de este método como investigación y intervención, y presenta algunas experiencias realizadas o supervisadas por el autor. El encuentro entre la vejez, la experiencia narrativa y la historia oral es una forma de preservar los testigos y de las pruebas, pasados y presentes, que afirman la identidad y los modos de subjetividad.

Palabras clave: Envejecimiento, Historia de Vida, Narración Oral, Historia Oral, Memoria.


RÉSUMÉ

Cet article présente une réflexion sur le lieu de la vieillesse dans le contexte actuel, en dénonçant les pratiques et les discours idéologiques que promettent un vieillissement réussi et que justifient une certaine gestion de cette étape de la vie. Comme une proposition, l'étude considère la vieillesse comme un lieu privilégié pour la narration orale de récits de vie à partir de la méthode de l'histoire orale. Elle traite de l'utilisation de cette méthode comme outil de recherche et d'intervention, et présente quelques expériences réalisées ou supervisées par l'auteur. La rencontre entre la vieillesse, l'expérience narrative et l'histoire orale est un moyen de préserver les témoins et les preuves, passés et présents, que affirment l'identité et les modes de subjectivité.

Mots clés: Vieillissement, Histoire de Vie, Récit Oral, Histoire Orale, Mémoire.


 

 

Introdução

Já se explorou bastante, tanto nas pesquisas científicas quanto na grande mídia, os efeitos do aumento considerável da população idosa no Brasil, assim como também a quantidade de produtos, serviços e profissões que têm sido criados e oferecidos a esta população. Nesta nova configuração, a velhice ganha mais visibilidade, menos por conta do aumento da expectativa de vida e do envelhecimento populacional e mais por causa do surgimento de agentes especializados, programas e políticas públicas que visam a dar suporte a este público que envelhece.

Na maioria das vezes, uma imagem pré-estabelecida e esperada dos idosos é o que embasa essas ações, privilegiando a atenção médica e a saúde física ou palestras educativas que ensinam como envelhecer melhor. Consumir saúde e juventude, exercitar-se para alcançar uma boa qualidade de vida, aprender a ter um envelhecimento bem sucedido apresentam-se como práticas e discursos que visam à satisfação das necessidades produzidas pela lógica capitalista - da ocupação do tempo livre à constituição de certo estilo de vida. Um modo de viver a velhice se impõe como produtividade constante, conduzida e garantida pela ciência e pelas técnicas concebidas como saberes absolutos.

Neste contexto, uma nova moral se impõe para o idoso: envelhecer passa a ser considerado sob a lógica daquilo que é ativo, saudável ou "bem sucedido", e a experiência de ser idoso passa a ser abordada sob discursos especializados no assunto. O não encorajamento e o não reconhecimento da experiência singular de cada indivíduo reforçam a ideia de um mecanismo de controle baseado no prévio estabelecimento de padrões de condutas esperados para cada estágio do desenvolvimento, incluindo uma determinada forma de envelhecer.

Este artigo considera estas configurações da velhice como um discurso ideológico que, ao ocultar a heterogeneidade das experiências de envelhecimento, nega as contribuições que esta condição pode dar ao esvaziamento de uma vida rica em significados e sentidos construídos socialmente. Exatamente por carregar nas rugas e cabelos brancos as marcas da passagem do tempo, o idoso se apresenta como testemunha de nossa história, isto é, ocupa o lugar de narrador privilegiado das transformações que ocorreram ao longo do tempo nas relações entre as pessoas e o mundo que as circundam.

A memória dos idosos é abordada neste artigo como uma fonte inesgotável de experiências que fazem emergir as contradições, as rupturas e as continuidades engendradas pela passagem do tempo e pela forma como os modos de viver foram se configurando. Para resgatá-la, sugere-se o método da História Oral como uma importante ferramenta que reposiciona o idoso na sociedade, devolvendo a ele o lugar de testemunha e de narrador das transformações ocorridas em momentos e em grupos específicos. Defende-se desta forma, o uso da História Oral não somente como método de pesquisa, mas também como uma proposta de intervenção que possibilita contar e recontar histórias vividas e presenciadas por indivíduos que as compuseram, muitas vezes, sob o anonimato de suas existências.

 

A ideologia do envelhecimento bem sucedido

A primeira questão colocada neste artigo problematiza a forma como o envelhecimento está sendo apresentado recentemente, seja pelas antigas ou novas ciências que surgem interessadas na produção de conhecimentos específicos sobre a velhice, seja pela mídia e sua antiga preocupação em produzir e transmitir a imagem de um modo de vida ideal. A forma como a tratamos, o lugar que a destinamos e os discursos sobre ela transformaram a velhice em um campo atravessado por diversas forças, saberes e práticas contemporâneas que determinam certo modo de envelhecer.

Para dar conta deste novo imperativo, assistimos atualmente a uma socialização progressiva da gestão da velhice (Debert, 2004), que a fez passar de uma questão própria da esfera privada e familiar a um conjunto de orientações e intervenções por parte do Estado, executadas por parte de organizações públicas e privadas e legitimada por saberes produzidos em campos específicos - a geriatria e a gerontologia. Como gestores especializados no envelhecimento, geriatras e gerontólogos estudam o envelhecimento como um problema social, justificado pelo aumento demográfico de idosos e sua inevitável consequência para o sistema de saúde e o da previdência social.

Para Gaglietti e Barbosa (2007), o primeiro questionamento a ser feito refere-se às representações preestabelecidas dos objetos destes estudos - o idoso e a velhice, as quais induzem a uma determinada maneira de apreendê-los, defini-los e concebê-los. O segundo questionamento refere-se aos discursos e às práticas que são instituídos com a finalidade de solucionar este problema, sem questionar de que forma estes produziram e legitimaram a ideia do envelhecimento e da condição da velhice como um problema natural.

Essa racionalidade marca a forma predominante como a velhice é tratada desde o século XIX - um processo contínuo de perdas cognitivas, físicas, motoras e sociais, caracterizado pela passagem da independência à dependência, da produtividade à improdutividade, da criação à degeneração, do cuidado ao abandono. A industrialização foi o motor destas transformações e rupturas, ao reposicionar as relações entre as gerações no interior da família, ao introduzir o controle do tempo e dos corpos nos ritmos cotidianos e ao ancorar a vida na primazia da produtividade econômica que subordina os indivíduos à racionalização da ordem social. A partir desta lógica, o século XX presenciou, por sua vez, várias transformações ocorridas no campo da previdência social, começando com a reorganização do sistema de aposentadorias, passando pela criação de novas formas de assistência aos aposentados (lazer e serviços especializados) e terminando pela revisão da idade cronológica própria à aposentadoria, em faixas etárias anteriores à esperada (pré-aposentadoria). Nestas transformações existiu uma preocupação em redefinir o mercado de trabalho e o problema do desemprego, abrindo vagas para os mais jovens e tentando minimizar a importância do trabalho na vida dos mais velhos, mesmo que para isso tivessem que abdicar do padrão de vida que tinham anteriormente. A colocação da velhice como um problema a ser resolvido com a criação de profissionais, serviços e políticas especializadas, oculta a distribuição de poder e de privilégios entre as classes e entre as gerações, oculta também as lutas econômicas que determinam os "economicamente ativos" e os "incapacitados a produzir" (Gaglietti & Barbosa, 2007; Debert, 2004).

O interesse por esta população pode ser evidenciado pelo aumento do número de associações de aposentados, grupos de convivência para a terceira idade, instituições asilares e pelas representações que as questões do envelhecimento recebem das políticas públicas. De acordo com Tótora (2006:28):

A ciência e o Estado, com sua promessa de bem-estar, segurança e felicidade, não somente extraem das forças sua potência de agir, como também proclamam um outro mundo, distinto da história e da vida. Trata-se, nesse caso, de uma postura moral fundada em valores superiores à vida, como o bem ou o dever. A moral da ciência e do Estado é controlar a vida, investindo sobre os corpos, individuais ou coletivos, domesticando suas forças disruptivas e extraindo deles um saber.

Com o surgimento destes especialistas, a família passa a delegar aos profissionais uma parte importante do trabalho de atenção e assistência, comprometendo, ao mesmo tempo, o trabalho de manutenção das relações e dos afetos dentro do grupo familiar. Para amenizar a culpa dos filhos em relação a redução do custo moral ou afetivo no cuidado dos pais que se encontram velhos, as instituições asilares são convertidas em casas de repouso que prometem um atendimento especializado e competente e soluções adequadas ao tratamento dos velhos. Para Gaglietti e Barbosa (2007:145), "as novas formas de tratamento da velhice operam não somente na gestão dos 'velhos', mas também no sentimento de culpa, proveniente do custo "psicológico" do afastamento do seio familiar dos pais que se tornaram idosos".

Aos idosos que ainda se mantêm independentes do cuidado da família, esta nova gestão da velhice tem como alvo transformá-la em uma responsabilidade individual. Considerada por Debert (2004) como uma forma de reprivatização do envelhecimento, os indivíduos são convencidos a assumir a responsabilidade pelo seu envelhecimento e, consequentemente, pela sua saúde, pela sua aparência e pelo seu isolamento. De acordo com a autora (Debert, 2004:35):

[...] se alguém não é ativo, não está envolvido em programas de rejuvenescimento, se vive a velhice no isolamento e na doença é porque não teve o comportamento adequado ao longo da vida, recusou a adoção de formas de consumo e estilos de vida adequados e, portanto, não merece nenhum tipo de solidariedade.

O lazer aparece neste contexto seguindo esta mesma ideologia e racionalidade - a ocupação do tempo livre - como sendo acessível a todos e como se todos pudessem usufruir de atividades de lazer, principalmente os idosos possuidores de grande quantidade de tempo livre. Entretanto, este ideal de vida de lazer vem acompanhado de uma visão funcionalista que procura encobrir os problemas sociais e econômicos que atingem a população idosa. No Brasil, quem tem acesso a esse tipo de serviço é quem tem maior disponibilidade de renda e, por isso, é consumidor das tecnologias de rejuvenescimento e dos serviços de programação da vida de modo que a beleza e dignidade possam ser garantidas em idades avançadas.

O alvo destas novas tecnologias de rejuvenescimento é o corpo, o avanço das investigações científicas consolida a compreensão do envelhecimento como resultado de um longo processo, cuja premissa baseia-se numa vida moderada, capaz de evitar o excesso e a falta. O corpo é escravizado em função de estilos de vida que tenham a finalidade de prolongar infinitamente a juventude, movidos pela ambição vaidosa da estética corporal. Trata-se de um processo coerente com a lógica da secularização da alma e a dessacralização do corpo, do qual se origina uma superficialidade e um vazio culturais que, aliados a uma sociedade de consumo e interesses mercadológicos, atingem os cuidados dispensados à conservação de uma vida saudável e feliz (Dalbosco, 2006).

Essas abordagens revelam o quanto os hábitos corporais são modelados culturalmente e revelam também o risco de reduzir o corpo a uma única dimensão: o corpo útil, produtivo e jovem, por meio de imposições que determinam até mesmo suas necessidades e desejos. Para Debert (2004:228):

Engolidos pelas concepções autopreservacionistas do corpo, os gerontólogos têm agora, como tarefa, encorajar os indivíduos a adotarem estratégias instrumentais para combater a deterioração e a decadência. Afinados com a burocracia estatal, que procura reduzir os custos com a saúde educando o público a evitar a neglicência corporal, os gerontólogos abrem também novos mercados para a indústria do rejuvenescimento.

Encontramo-nos, desta forma, levados por práticas e modos de condutas regidas por valores funcionalistas, pragmatistas, racionalistas e capitalistas. Produzir, ser ativo, ocupar o tempo, ser saudável, rejuvenescer, inscrevem-se num campo de saber especializado, com experts encarregados de definir não apenas quais são as necessidades dos idosos e os problemas que eles enfrentam na atualidade, mas também encarregados de produzir novas necessidades e, portanto, novos serviços que atendam a essas necessidades. De acordo com Tótora (2006:36-37):

Em uma cultura que valoriza os excessos de prazeres e o culto da felicidade como ausência de sofrimentos, doença e dor, ser velho é privação. [...] Pode-se afirmar que a distribuição cronológica da existência dos indivíduos foi concentrada em um único período que se deseja congelar: o da permanência eterna na juventude.

Para Debert (2004), mesmo quando surge uma crítica a este discurso gerontológico na intenção de "dar voz aos velhos", tais palavras de ordem podem ser usadas tanto para denunciar as tecnologias de saber e poder que regulam, classificam, dividem e dominam os sujeitos, quanto para transformar a liberdade de escolha em uma nova obrigação de todo cidadão. Desta forma, geriatras e gerontólogos se transformam em participantes ativos de um novo tipo de 'conspiração do silêncio'.

Esta "conspiração do silêncio" é denunciada por Simone de Beauvoir em seu livro "A velhice" (1990). A busca de um consumo de saúde, felicidade, prazer, tranquilidade traz por detrás um segredo vergonhoso, o qual deve ser evitado de se falar - a velhice tão indesejada para muitos. Para Tótora (2006:27-28):

O envelhecimento, por um lado, é alvo de dispositivos de poder que investem sobre o corpo, individualizando o envelhecer no segmento idoso e submetendo-o a experimentos médicos de contensão da doença, e, por outro, produz uma variedade de dispositivos de intervenção na própria vida enquanto fenômeno coletivo. Tratar o envelhecimento como doença, e esta como um mal, desencadeia uma aversão a se tornar velho. Velho é sempre o outro.

Outra forma de problematizar esta questão no campo político é o que tem sido proposto pela Lei nº 12.213 que institui a criação do Fundo Nacional do Idoso e suas instâncias estaduais e municipais. A este Fundo seriam destinados os recursos de pessoas físicas ou jurídicas, deduzidos do Imposto de Renda, com a finalidade de financiar os programas e ações relativas à política de assistência ao idoso. De acordo com Rozendo e Justo (2012), a primeira preocupação refere-se à destinação destes recursos sem que haja a participação efetiva dos idosos beneficiários na decisão dos serviços e programas que receberão o investimento. Outra constatação dos autores é a disposição do Estado em compartilhar esta arrecadação fiscal com a iniciativa privada, o que pode se caracterizar, como hipótese, uma política de redução do poder público calcada na prática de terceirização dos serviços. Novamente, faz-se presente o silenciamento dos idosos e o direcionamento da assistência a estes por aqueles que comandam a gestão da velhice: o poder público, a iniciativa privada e os Conselhos dos Idosos. Os autores alertam sobre a importância dos idosos se fortalecerem no plano político e no exercício efetivo da cidadania, ocupando os canais de participação que lhes são assegurados e a gestão dos recursos e serviços que lhe são oferecidos.

Entendemos, contudo, que o envelhecimento, enquanto fenômeno social em toda a sua complexidade, deve ser compreendido como resultante de um conjunto de determinantes subjetivos, biológicos, econômicos, sociais, políticos e ideológicos que ocorrem na correlação de forças e contradições engendradas pelo modo de produção atual. Assim, apontar os jogos de forças e relações de poder que circundam as questões do envelhecimento no contemporâneo, e que têm por finalidade contribuir para a desnaturalização do envelhecimento sob a imposição de um novo ator social e de uma nova imagem da velhice, é denunciar as práticas de poder e formações de saber em torno destas questões e que legitimam esta conspiração silenciosa. Segundo Tótora (2006:29):

Não se trata de tomar os valores como dados, mas sim de interrogá-los. Que relação de forças os produziu? Qual o sentido dessas forças? Qual o seu efeito? Tais questões exigem que se abandone uma postura reativa, que aceita os valores estabelecidos e os justifica. Trata-se, pois, de problematizá-los.

Problematizar a forma como estamos tratando os idosos e o processo de envelhecimento implica em reconsiderar o lugar que destinamos a cada fase geração ou fase do desenvolvimento. Neste sentido, reconhecemos a velhice como lugar privilegiado de testemunho e de experiência narrativa da história de toda uma geração.

 

A velhice como testemunho e experiência narrativa

Afirmar a velhice como uma experiência narrativa não se justifica pelo fato do idoso se encontrar em um momento em que várias histórias se acumularam ao longo de sua vida, mas porque são essas histórias que afirmam o seu modo de ser, de ver a vida e de se relacionar com os outros, e que o tornam testemunha e guardião das memórias de nossa sociedade.

Justificamos, neste sentido, o lugar do idoso como narrador privilegiado em uma comunidade repleta de memórias, palavras e práticas que podem ser socializadas e compartilhadas por todos. A retomada da experiência de temporalidade e de continuidade da palavra transmitida de "geração a geração acarreta uma verdadeira formação, válida para todos os indivíduos de uma mesma coletividade" (Gagnebin, 1999:57). A perda do lugar de narrador implica na nossa incapacidade de contar e recontar, de dar e receber conselhos, e de nos orientar durante a vida - orientação prática e plural. A narração se situa, desta forma, como um tipo de transmissão oral e comunitária.

Para Benjamin (1994), a arte de narrar, quase totalmente em desuso na era da informação rápida e útil, ainda é o que permite tanto a troca de experiência como torná-la comunicável. Ao nos privarmos da faculdade de intercambiar experiências temos, como efeitos, transformações não somente nas imagens do mundo exterior que nos chegam de fora, como também na do mundo ético. Nada substitui a experiência transmitida de boca em boca, seja do viajante que carrega em sua bagagem uma variedade de histórias para contar, seja daquele que nunca saiu de seu país e carrega, por isso, uma única história - o saber de sua geração. O narrador é um homem que sabe dar conselhos por carregar em si a sabedoria tecida na própria existência; é aquele que retira e incorpora às histórias narradas a própria experiência ou a relatada pelos outros; é também aquele que carrega a liberdade de interpretar a história como quiser. A relação entre o narrador e sua matéria - a vida humana - é tecida artesanalmente e visa a transformação da matéria prima da experiência em um produto sólido, útil e único. Para o autor, o narrador figura, assim, entre os mestres e os sábios, possuindo o dom de contar sua vida e a dignidade de contá-la por inteiro.

A narração, como afirma Gagnebin (1999), é uma questão importante para a constituição do sujeito, exatamente por possibilitar a experiência de rememoração, pela palavra, de um passado que se perderia no silenciamento; mas também é um movimento atravessado, subterraneamente, pelo esquecimento que apaga e renuncia a memória infinita. A autora também relembra o declínio da experiência e da narração tradicional apresentado por Benjamin (1994) e seus efeitos nas transformações estéticas presentes na produção e compreensão artísticas e nas profundas mutações da percepção coletiva e individual.

Como descrever esta atividade narradora que salvaria o passado, mas saberia resistir à tentação de preencher suas faltas e de sufocar seus silêncios? Qual seria esta narração salvadora que preservaria, não obstante, a irredutibilidade do passado, que saberia deixá-lo inacabado, assim como, igualmente, saberia respeitar a imprevisibilidade do presente? (Gagnebin, 1999:63).

A importância da retomada da narração e da velhice como experiência narrativa se justifica, também, pela construção de um novo tipo de narratividade que passa, por um lado, pela admissão de vários desenvolvimentos possíveis de uma mesma história, com várias sequências e conclusões desconhecidas. Ao narrar a própria história, o passado e o presente transitam juntos o tempo todo, por isso, devolver ao idoso a condição de guardião é garantirlhe um sentido social à medida que passa a se sentir parte do contexto em que vive, por meio da narrativa de suas experiências e significados pessoais. A narrativa é composta daquilo que foi lembrado, de como foi narrado, em que circunstâncias foi evocado, e está sujeita a esquecimentos e silenciamentos; por isso, mantém um vínculo estreito com a memória.

Em seu livro, Bosi (2003) dialoga com as concepções de Bergson sobre a memória e sua função de trazer o passado à tona, compondo a totalidade de nossas experiências. Representada pela figura de um cone invertido, a memória é a totalidade das lembranças acumuladas do passado que desce da base do cone para o vértice; este, avançando sem cessar, penetra o plano da representação do real e faz surgir as lembranças que são evocadas pelo presente. Esta atividade mnemônica nunca é a imagem representacional de um passado, mas o conteúdo das vivências deste e que está sujeito a ser relatado e vivido com uma nova intensidade, como um novo conteúdo, fornecendo ao corpo um tônico e uma força inesperada.

Há pois, da parte do sujeito que conhecemos sob a forma de narrador oral memorialista uma atividade que não é apenas de simbolização (por meio de conceitos ou de operações do entendimento); é também da intuição de um devir, do seu próprio devir de homem que se vê envelhecendo, enquanto sentimento de um tempo que, simultaneamente, passou a se re-apresentar à consciência e ao coração. É mais que um reviver de imagens do passado (Bosi, 2003:45).

Para a autora, os termos narrativa e oralidade são dimensões que, para falar no e do tempo como fluxo circular do presente para o passado e vice-versa, precisam de certa melodia, ritmo e entonação. A oralidade deve deixar escapar os recursos melódicos de quem a registrou, transformando os signos escritos em expressivas projeções da vida subjetiva, com seus tons, andamentos, ritmos e conotações afetivas. Em sua pesquisa, descreve:

Muitas vezes o uso emotivo, sugestivo, musical suplanta o representativo. Quando, no correr da entrevista, Dona Risoleta descreve o atribulado quotidiano da pobreza, sua risada de preta velha sacode a narrativa, relativizando o presente que não é o absoluto para ela (Bosi, 2003:48).

A crítica à memória como fonte histórica não confiável, sujeita a distorções pela deterioração física, pela nostalgia da velhice, pela influência de versões coletivas e ideológicas das retrospectivas do passado são aqui contestadas. Assim como a memória é considerada um recurso indispensável, o esquecimento e as omissões também são fatos a serem considerados, pois não deixam de revelar a complexidade de um acontecimento.

A memória dos idosos torna-se, desta forma, um mediador entre a geração atual e as testemunhas do passado; um instrumento precioso para se constituir a crônica do quotidiano, sem se basear unicamente em documentos oficiais. São as paixões, as intensidades e a maneira como cada idoso viveu o acontecimento narrado que impedem a unilateralidade de um fato e a riqueza de vários pontos de vistas contraditórios (Bosi, 2003).

Concordamos com Portelli (1997) com a ideia de que o ato e a arte de lembrar jamais deixam de ser profundamente pessoais, porém, também jamais deixam de ser social, principalmente quando verbalizada pelas pessoas. Neste sentido, defendemos o método da História Oral como um esforço de restituição da memória, tanto como forma de capturar a memória, como forma de provocá-la para que novas histórias possam ser verbalizadas. Embora este método se incline a ouvir a narrativa de uma vida, não se refere exclusivamente a uma biografia individual, mas a todo um processo de produção de subjetividades nos momentos/acontecimentos relatados.

 

A História Oral e a arte da narrativa

Toda fonte histórica derivada da percepção humana é subjetiva, mas apenas a fonte oral permite-nos desafiar essa subjetividade: descolar as camadas de memória, cavar fundo em suas sombras, na expectativa de atingir a verdade oculta.

Paul Thompson, A voz do passado

Resistindo à recente expansão do vídeo, da informática, e até mesmo, resistindo à sua própria institucionalização e comercialização, a História Oral se dirige cada vez mais como um corte epistemológico, valorizando a memória e a história cultural e estabelecendo sua interface com outras ciências.

A História Oral é mais do que uma mera narrativa dos fatos sucedidos, é uma ciência e arte do indivíduo que visa a aprofundar, por meio de conversas com pessoas, as experiências e memórias individuais e o impacto que estas tiveram na vida de cada uma (Portelli, 1997).

Trata-se dos processos decorrentes de entrevistas gravadas, transcritas e colocadas a público, seja como forma de diálogo com a sociedade, extrapolando os limites da academia, seja como forma de denúncias sociais, revelando diferentes versões do passado.

Desde seu surgimento em 1948 (atrelado a invenção do gravador a fita), até o boom que ocorre a partir de 1964, a História Oral se preocupava com a transcrição (e não apenas com a gravação) de depoimentos de vidas significativas que tivessem uma importância na participação política, econômica e cultural destas épocas. Tal tarefa destinava-se a preencher as lacunas dos documentos escritos e também constituir novos arquivos de mesma natureza.

A partir de meados dos anos 1970, a História Oral começa a ganhar campo teórico com os estudos de Paul Thompson e outros historiadores e, como consequência, começa a se institucionalizar, abandonado seu caráter populista e espontâneo. Na França, já em 1966, a confluência de trabalhos dedicados a linguística, a antropologia, a psicanálise e a ideologia, levam à convicção da necessidade de devolver a palavra à criança, ao louco, às minorias sociais, raciais, sexuais e oprimidas. Contra a instituição, a escrita e o poder emerge o apelo a vivência cotidiana do indivíduo, da família, da sexualidade, do nascimento e da morte pela palavra dada ou devolvida aos anônimos (Trebisch, 1994).

No Brasil, a História Oral esteve intimamente ligada ao processo de redemocratização da década de 1980, ao ser utilizada como instrumento de coleta de depoimentos de pessoas que foram torturadas pela ditadura militar (Meihy, 1996). Seu início, portanto, remete à tentativa de construir uma contra-história: contra o interdito estabelecido pela história crítica do século XIX, que expulsou a tradição oral do campo científico em proveito das fontes escritas; contra a história oficial "vista de cima" e a favor de uma história "vista de baixo", isto é, de um relato dos vencidos; contra a trilogia acadêmica - Estado, história, escrita e a favor de sua própria - revolução, memória, oralidade. A História Oral assume desta forma, um projeto utópico de democratização da história, recorrendo aos princípios metodológicos da pesquisa de campo, da observação participante e da abertura interdisciplinar para outras ciências sociais.

Ao analisar a relação entre história e memória, dois sentidos diametralmente opostos são questionados por Frisch (citado por Thomson, Frisch e Hamilton, 1996): o primeiro é de que, em História Oral, a memória é invocada para subverter as afirmações da história ortodoxa; o segundo é de que os estudos históricos ganharam impulso por sua capacidade de subverter as categorias, as suposições e as ideologias das memórias culturais aceitas e dominantes. Na primeira dimensão, questiona-se o uso restrito das evidências históricas, como os documentos formais, os jornais e as memórias escritas e empreende-se um esforço em recuperar a experiência e o ponto de vista daqueles que permanecem invisíveis nesta documentação, passando-se a considerá-los também como evidências. Por outro lado, a segunda dimensão questiona a noção de memória coletiva, reconhecendo as imagens do passado que são conservadas e transmitidas não só pela experiência, mas também pelas construções culturais administradas e midiatizadas por uma perspectiva predominantemente ideológica. O autor conclui que há um paradoxo e uma tensão útil nestas questões, pois defende que tanto a história pode subverter a memória, quanto a memória pode subverter a história: nem a exclusividade de uma determinada fonte de evidências, nem a interpretação romântica acerca da história dos vencidos.

Um aspecto importante para se entender este paradoxo é que a História Oral não se confunde com a busca de uma verdade, ou com a tentativa de construir um quadro o mais completo e verdadeiro possível de um determinado acontecimento. Preocupa-se sim, com o registro da experiência e a produção de uma nova documentação que se constitua como alternativa à documentação oficial. Assim, busca-se a coleta de depoimentos de pessoas comuns, anônimas, que não necessariamente pertencem à elite política, militar e cultural do país. Ao valorizar a existência de uma cultura popular e de grupos específicos que sempre estiverem mudos diante das formas tradicionais com que se conta a história oficial, a História Oral nasce com o destino de ser uma voz diferente (Meihy, 1996). Não é o passado apenas que interessa à História Oral, mas a forma como a memória é construída e reconstruída como parte da consciência contemporânea (Debert, 1988).

A História Oral não é calcada em interpretações dos relatos, mas em procedimentos metodológicos e técnicos, além da responsabilidade pessoal do pesquisador em assegurar a capacidade de desvendar as vivências e relações humanas, atendo-se, sobretudo à dimensão ética do lugar que ocupa. Sobre este lugar, Thomson (citado por Thomson, Frisch e Hamilton, 1996) critica os pesquisadores que defendem o uso da História Oral apenas como mais uma fonte histórica e deixam de considerar as razões que levam os indivíduos a constituir suas memórias de determinada maneira. Tais pesquisadores não percebem que o processo de relembrar é um meio de explorar os significados subjetivos da experiência vivida e a natureza da memória coletiva e individual, e que cada história de vida interliga evidências tanto objetivas quanto subjetivas. A pluralidade de versões do passado que podem ser fornecidas por diferentes interlocutores pode ser um recurso útil e interessante, ao invés de ser tomado somente como um problema quando se tenta descobrir uma única história, fixa e recuperável.

A forte ligação do pesquisador com o seu trabalho e com os seus entrevistados deve ter a preocupação ética sempre em pauta, visto que o que está colocado em jogo são as próprias relações humanas e, nesta situação de pesquisa, torna-se impossível enfatizar a neutralidade e o afastamento do pesquisador. Exatamente por serem agentes ativos da história e participantes do processo de fazê-la, Portelli (1997) considera que os princípios éticos, inerentes à condição de cidadão e de intelectual acadêmico, devem se sobrepor aos procedimentos específicos da História Oral e, da mesma forma, uma consciência mais abrangente e profunda do compromisso pessoal com a verdade e a honestidade. Por isso, para o autor, o respeito pelo valor e pela importância de cada indivíduo é uma das primeiras lições de ética sobre a experiência com o trabalho de campo.

Cada pessoa é um amálgama de grande número de histórias em potencial, de possibilidades imaginas e não escolhidas, de perigos iminentes, contornados e pouco evitados. Como historiadores orais, nossa arte de ouvir baseia-se na consciência de que praticamente todas as pessoas com quem conversamos enriquecem nossa experiência. [...] Cada entrevista é importante, por ser diferente de todas as outras. (Portellli, 1997:17)

Podemos assinalar, também, a questão da autoria do projeto como outra forma de contestação bastante relevante nesta discussão. A autoria é de quem contou a história ou de quem a redigiu? Mais do que uma prática de entrevista em que alguém pergunta e outro responde, a História Oral propõe a alteração do poder de comando da pesquisa, dando ao depoente o direto de veto e censura da própria fala, além da possibilidade de participação mais ampla na entrevista, fornecendo outros elementos que não estavam previstos no projeto original (Meihy, 2005). O depoente deixa de ser um mero informante ou objeto de pesquisa cuja função é fornecer referência de dados inexistentes ou a definição de uma verdade e passa a ser convidado a relatar o significado de suas experiências pessoais, pautado pelo seu desejo ou pelo desejo de sua memória.

Como desafio, se consideramos que a memória é sempre uma relação entre passado e presente, ao relatar fatos passados, estes podem vir vestidos de uma nova roupagem, uma nova forma de entender o que se passou a partir de novas concepções adquiridas recentemente. O desafio é não subestimar as relações de poder que ainda se fazem presentes na sociedade sobre as classes populares que oferecem seus relatos sob uma intensa experiência de submissão, inclusive na relação com o próprio pesquisador. Deve-se considerar os jogos de poder e os núcleos de conflitos que são desvendados nestes depoimentos como convite ao pesquisador para rever interpretações, desenvolver novas hipóteses e elaborar novas questões, de forma a refinar seus conceitos explicativos e seus pressupostos (Debert, 1988).

A História Oral como arte do indivíduo é também a arte da diferença: em primeiro lugar, a diferença entre as pessoas com quem conversamos e, em segundo, a diferença destas com o próprio pesquisador (razão que os motiva a procurá-las). Para Portelli, tais diferenças são importantes de serem enfatizadas e é o que alimenta a "ideia da História Oral como diferença, como uma prática inquestionavelmente antagonista e contestadora" (Portelli, 1997:18), e é também o que mantém seu caráter dialógico e seu trabalho de campo, "a fim de sermos totalmente diferentes, precisamos ser verdadeiramente iguais e não conseguiremos ser verdadeiramente iguais se não formos totalmente diferentes" (Portelli, 1997:19).

Se, para Benjamin (1994), o narrador é um artesão capaz de transformar a experiência narrada, a História Oral pode também ser um meio de transformação por "devolver às pessoas que fizeram e vivenciaram a história um lugar fundamental, mediante suas próprias palavras" (Thompson, 1992:22). Ao escolher este método como plataforma para o acesso às narrativas pessoais, pretende-se considerar a valorização da experiência compartilhada e o lugar do idoso como privilegiado para que esta experiência possa surgir. Afinal, para que se faz História Oral, se não pelo desejo e pela necessidade de ouvir histórias?

 

Algumas experiências de História Oral com idosos

Um método de investigação que busca apreender os efeitos de uma experiência na vida de algumas pessoas tem a função tanto de guiar-nos em direção a um objetivo pré-estabelecido, quanto também nos apontar um porto de partida de onde saímos para realizar tal busca. É neste sentido que consideramos a História Oral tanto como um método de pesquisa (caminho a ser percorrido), como proposta de intervenção (ponto de partida). Ele funciona como uma plataforma que nos permite o acesso a narrativas de vida, como também, nos propicia que possamos recontá-las.

Neste sentido, utilizamos a História Oral não apenas como método de pesquisa, como comumente é utilizado no meio científico, mas também como um método para a prática profissional do psicólogo, por ser capaz de provocar a condição para que a experiência narrativa possa emergir e ser recontada. Consideramos a História Oral como um método biográfico que reposiciona o lugar político do idoso em relação à realidade social que ele ocupa, ao evitar a busca de verdades históricas e priorizar a captura e a compreensão de versões sobre o passado que a memória possa elaborar.

Utilizamos este método em contextos e situações diversas, mas sempre a partir do lugar de quem se coloca lado a lado do idoso, com os ouvidos atentos para as histórias que podem vir à lembrança despertadas por uma pergunta, um objeto ou uma curiosidade. As experiências relatadas a seguir foram desenvolvidas pela própria autora deste artigo, seja por meio de sua atuação como psicóloga em um centro de saúde para idosos ou como docente e supervisora de estágio no curso de Psicologia de instituições de ensino superior. O objetivo é que estas propostas sirvam para testemunhar os efeitos do encontro entre o envelhecimento, a experiência narrativa e a História Oral, mas também pretende-se que elas possam servir de guia orientador para que outras ideias e propostas possam surgir a partir destas.

Projeto Conversas & Memórias

A primeira experiência refere-se ao projeto Conversas & Memórias desenvolvido em um centro de saúde para idosos, localizado no município de São Paulo. Dentre diversas modalidades diferentes de atendimento realizadas como psicóloga, este projeto, voltado para a promoção de saúde, consistia em encontros semanais com usuários que gostassem de contar e/ou ouvir histórias. Pretendíamos que a velhice ou o envelhecimento não fossem abordados a partir do lugar de especialistas no assunto, mas do lugar de quem a vivencia, por isso, ao invés de falar "sobre" o idoso, decidimos falar "com" ele.

No projeto Conversas & Memórias utilizávamos recursos que estimulassem o exercício da conversação, da reflexão e da narrativa oral, como uma música, uma crônica, um artigo de jornal, um filme ou uma fotografia antiga. O método empregado era simples: começava-se o encontro com assuntos do cotidiano, podendo ser uma notícia de jornal ou a ausência de algum participante; em seguida, procedia-se à leitura de uma poesia ou conto, a audição de uma música ou a exibição de um curta-metragem; este material funcionava como um dispositivo para que as experiências singulares e múltiplas relacionadas ao tema em questão pudessem surgir. Dava-se inicio, desta forma, ao processo de conversação em que o próprio diálogo fazia emergir as histórias e experiências que eram narradas.

O uso específico da História Oral como método ocorreu quando houve a tentativa de agrupar, em um livro, as inúmeras histórias contadas de maneira fragmentadas entre um encontro e outro. No processo de elaboração do livro, o método da História Oral foi utilizado para que se pudéssemos ouvir novamente as histórias e depois recontá-las no material escrito. A pergunta inicial para o direcionamento da entrevista era: "Conte aquela história sobre o dia em que...". Após a gravação de todas as entrevistas, procedeu-se à transcrição do material e, em seguida, à reelaboração destas histórias, atribuindo um caráter literário ao material escrito. A este procedimento, seguimos a orientação de Meihy (2005) sobre o processo de transcriação, que consiste em transformar a língua falada em língua escrita, incorporando o indizível, o gestual, as emoções e a força expressiva que transparecem na forma oral.

O livro Conversas e Memórias - fragmentos (Melo & Domingues, 2003) contêm doze crônicas que retratam, em cada capítulo, as histórias narradas por cada participante, respeitando-se, cuidadosamente, a forma e o sentido como foram narradas. Outro livro que reedita estas histórias e analisa os dispositivos utilizados no método de intervenção e os efeitos produzidos por eles foi baseado na tese de doutorado de um dos autores, e tem como título Conversas e Memórias - narrativas do envelhecer (Melo & Domingues, 2012).

Estágios em Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI) e Grupos de Convivência

A segunda experiência refere-se às experiências de estágios supervisionados desenvolvidos pelos alunos da disciplina Intervenção Psicológica II - Envelhecimento, em um curso de Psicologia de uma universidade particular. O objetivo da disciplina era desenvolver projetos de intervenção com idosos que se encontravam em contextos diversos, de instituições asilares e grupos de convivência à comunidade em geral. Como atividade obrigatória da disciplina, os alunos deveriam realizar atividades semanais, a partir das demandas identificadas no local. A orientação era de que evitassem a oferta de dinâmicas de grupo e atividades de entretenimento (como os bingos) e criassem um espaço de escuta das histórias dos idosos que lá se encontravam.

As intervenções foram orientadas pelo método da História Oral, adotando-se um caminho que permitisse explorar, preliminarmente, o envelhecimento sob o ponto de vista da experiência do sujeito e do saber produzido a partir desta experiência. A preparação para a entrevista se pautava pela tentativa de estabelecer um clima de confiança mútua, tanto nos alunos quanto nos idosos, e, a partir desta relação, iniciar um processo de encontro e de imersão nas experiências narradas por eles.

As fases de coleta das histórias de vida ocorriam em três momentos diferentes. Em um primeiro encontro, abordava-se, de maneira informal, a proposta de entrevista, a importância deste relato na compreensão do contexto narrado e do contexto maior da comunidade em que este estava inserido. Nesta primeira abordagem, permitia-se que o idoso falasse livremente sobre sua história, evitando reconduzir a narrativa para temas ou momentos específicos de sua trajetória. No segundo encontro, a entrevista era ancorada em subtemas que pudessem ser importantes aos objetivos da intervenção, como a família, o casamento, o trabalho entre outros. No terceiro encontro utilizavam-se fotografias, documentos e objetos escolhidos pelo idoso ou estagiário - os objetos biográficos (Bosi, 2003), para que estes facilitassem a recordação de outras lembranças do passado. O último encontro era a realização da devolutiva do material transcrito e reelaborado sob a forma de narrativa literária (transcriação), respeitando, contudo, as expressões, a melodia e o ritmo como foram narrados.

Estágio em Psicologia Comunitária

Outra experiência também relacionada a um estágio supervisionado ocorreu na área da Psicologia Comunitária, com alunos do último ano do curso de Psicologia. A prática de estágio era realizada em uma UBS no município de Taboão da Serra, próximo à São Paulo e, como demanda inicial, observou-se a quantidade de idosos que eram atendidos em seus domicílios e a dificuldade de locomoção até a unidade. Por intermédio das agentes comunitárias de saúde, solicitou-se a indicação e o acompanhamento da visita domiciliar dos idosos que morassem no local desde o início da formação da comunidade.

O objetivo do projeto era elaborar a história da comunidade a partir da narrativa oral dos idosos que ajudaram a construir o bairro. O método da História Oral foi utilizado como dispositivo e, por meio de entrevistas individuais, seguiu-se o mesmo roteiro proposto na experiência acima. Também foi possível a utilização de fotos antigas e recentes do bairro para facilitar a rememoração dos fatos e locais. Foram entrevistados onze idosos que haviam se deslocado para a comunidade há mais de 40 anos, e que relataram o início, as dificuldades, as conquistas e as transformações que ocorreram no bairro. Ao final do trabalho, elaborou-se um material escrito, intitulado Histórias e Memórias do Jd. Salete (Trindade, Makino & Domingues, 2011), que foi utilizado como devolutiva aos idosos e aos equipamentos sociais da região.

Trabalho de Conclusão de Curso

Como método de pesquisa, a História Oral foi utilizada para a elaboração de um trabalho de conclusão de curso, cujo objetivo era compreender o processo de envelhecimento a partir da história de vida de mulheres idosas. A pesquisa visava a compreender as condições subjetivas que caracterizavam um determinado fenômeno do envelhecimento - a feminização da velhice, a partir do relato de mulheres que a vivenciavam (Siotani & Domingues, 2012).

Foram selecionadas três idosas que participavam de um grupo de convivência no município de São Paulo e as entrevistas foram realizadas em suas residências. Os encontros acontecerem em três momentos e os procedimentos foram:

1º) apresentação da proposta e entrevista direcionada para o tema. No final desta entrevista foi solicitado à entrevistada que providenciasse, para o próximo encontro, objetos biográficos como fotos, cartas, documentos antigos etc.;

2º) análise dos objetos junto ao entrevistado, estimulando relatos relacionados ao conteúdo biográfico dos objetos; e

3º) devolutiva através de conversa informal sobre os resultados da pesquisa.

Nesta experiência, os resultados foram baseados nas histórias de vida de mulheres idosas, possibilitando que contassem suas experiências, relembrassem vivências de seu passado e pudessem narrar as condições heterogêneas que configuram o fenômenos de feminização da velhice.

Em todas estas experiências percebemos que a memória é, a todo tempo, ativada, seja pelo próprio convite à experiência narrativa, seja pelos temas e subtemas propostos durante a entrevista ou pelas fotografias, documentos e objetos biográficos utilizados como dispositivos para que outras lembranças e outras histórias possam emergir. Valorizar as histórias e experiências vividas, assim como os objetos que acompanham os idosos durante uma longa trajetória, é uma forma de reconhecer aquilo que lhes garante uma posição no mundo e um sentimento de continuidade.

 

Reflexões Finais

Algumas reflexões finais sobre os efeitos produzidos nas experiências relatadas acima podem ser evidenciadas. O encontro entre os idosos, a sua própria história e um ouvinte, seja ele um psicólogo, pesquisador ou estagiário de Psicologia, permeado pela História Oral como método de pesquisa e intervenção, pode trazer inúmeros benefícios para quem se coloca como narrador ou quem vivencia o lugar de ouvinte.

Para Von Simson e Giglio (2001), os benefícios psicológicos e sociais para os idosos que desempenham o papel de informantes são amplos e diversos. Ao oferecer-lhes a possibilidade de narrar suas histórias, permite-se que possam interpretar o passado, bem como analisar o presente à luz da experiência pregressa; permite-se também que uma nova identidade social seja configurada, por meio do reconhecimento do idoso, entre as outras pessoas de seu meio social, como detentor de um saber. Mais do que apenas um colaborador, os idosos são coautores do processo da pesquisa-intervenção, pois passam a falar do seu passado com detalhes fundamentais para a construção pretendida pelo entrevistador. Além destes benefícios, a arte da narrativa encaminha os depoentes para níveis de consciência cada vez mais profundos, possibilitando que outras formas de perceber sua atuação na história de sua vida possam transformá-lo após o processo de troca de informações e sentimentos.

No ouvinte, o desejo de ouvir as histórias e narrá-las novamente, seja por meio oral ou escrito, é produzido pelo próprio efeito de ouvi-las: contá-las de novo, para que elas não se percam no ouvinte, para que elas se gravem o mais profundamente nele e para que ele seapodere o mais espontaneamente do dom de narrá-las (Benjamin, 1994). É aqui que se assenta a relação ingênua entre o ouvinte e o narrador: o interesse de conservar o que foi narrado.

Quanto maior a naturalidade com que o narrador renuncia às sutilezas psicológicas, mais facilmente a história se gravará na memória do ouvinte, mais completamente ela se assimilará à sua própria experiência e mais irresistivelmente ele cederá à inclinação de recontá-la um dia. (Benjamin, 1994:204)

Ao entrar em contato com histórias narradas pelos idosos, há sempre a possibilidade de que novos sentidos sobre o mundo à nossa volta e as transformações que ele sofreu emerjam de maneira potente. O reencontro com fatos, acontecimentos e pessoas que revelam nosso jeito de ser e de viver, permite reconstruir vivências e experiências do passado com os óculos do presente. E isto não significar aprisionar-se no passado, mas conduzir-se de forma mais segura e potente para o futuro.

 

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Recebido em 05/11/2013.
Revisado em 24/08/2014.
Aceito em 01/12/2014.

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