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Revista Psicologia Política

Print version ISSN 1519-549X

Rev. psicol. polít. vol.15 no.32 São Paulo Apr. 2015

 

ARTIGOS

 

Um menino suspeito de praticar a prostituição, segundo as instituições que o governam

 

A suspected child to practice prostitution, according to the government institutions

 

Un niño sospechoso de practicar la prostitución, según las instituciones que le gobiernan

 

Un garçon suspect pratiquer la prostitution, selon les institutions qui régissent

 

 

Ana MolinaI; Nilson DinisII

IDoutoranda em Educação, pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, São Paulo, Brasil. ariccimolina@hotmail.com
IIPsicólogo, doutor em Educação pela Universidade de Campinas. Atualmente é docente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, São Paulo, Brasil. ndinis@ufscar.br

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta um estudo de caso de um menino suspeito de prostituição para sustentar seu vicio em jogos eletrônicos. Ele foi atendido pelo Conselho Tutelar e pelo Programa de Atenção especializado para as famílias e indivíduos de uma cidade do interior do estado de São Paulo, Brasil. As instituições, após a aplicação de tecnologias veridicção, não confirmaram a suspeita inicial e encerraram o caso. Foi observada a construção de discursos que legitimaram um lugar para o menino, o da prostituição, embora sem provas, que norteou o governo do outro.

Palavras-chave: Governo, Sexualidade, Infância e Juventude, Política, Prostituição.


ABSTRACT

This article presents a case study of a boy suspected of prostitution to sustain their addiction to electronic games. He was atentido by the Guardian Council and the Specialized Care Program for families and individuals of a city in the state of São Paulo, Brazil. The institutions, after applying veridiction technologies, have not confirmed the initial suspicion and closed the case. The construction of speeches that legitimized a place for the boy was observed, the prostitution, although without proof, that guided the government on the other.

Keywords: Government, Sexuality, Childhood and youth, Policy, Prostitution.


RESUMEN

En este artículo se presenta un estudio de caso de un niño sospechoso de la prostitución paramantener su adicción a los juegos electrónicos. Él fue atendido por el Consejo de Guardianes y el Programa de Atención Especializada para las familias y los individuos de una ciudad en el estado de São Paulo, Brasil. Las instituciones, después de aplicar veridicción tecnologías, no han confirmado la sospecha inicial y cerró el caso. Se observó la construcción de discursos que legitiman un lugar para el niño, la prostitución, aunque sin pruebas, que guió al gobierno por el otro.

Palabras clave: Gobierno, Sexualidad, Niños y Jóvenes, Política, Prostitución.


RÉSUMÉ

Cet article présente une étude de la prostitution des enfants soupçonnés de cas à l'appui de sa dépendance aux jeux électroniques. Il a été assisté par le Conseil des gardiens et le Programme de soins spécialisés pour les familles et les individus d'une ville dans l'état de São Paulo, au Brésil. Les institutions, après l'application de la véridiction technologies, ont confirmé le soupçon pas initial et classé l'affaire. Il a été observé la construction du discours légitimant une place pour le garçon, la prostitution, bien que sans preuve, qui a guidé le gouvernement de l'autre.

Mots clés: Gouvernement, Sexualité, Enfance et de la Jeunesse, Politique, Prostitution.


 

 

Introdução

Este artigo apresenta uma discussão sobre um caso encontrado entre os prontuários de uma das unidades do Programa de Atenção Especializado às Famílias e aos Indivíduos (PAEFI), de uma cidade do interior do Estado de São Paulo/Brasil. O caso encontrado remete a arte de governar crianças e adolescentes na prática da prostituição, a fim da problematização das praticas sociais produtoras de discursividades que instituem uma politica para a vida.

Nesse caso, o governo sobre as crianças e adolescentes capturados por instituições sociais afins foi exercido por agentes sociais destinados ao combate da exploração sexual infanto-juvenil, o Conselho Tutelar e o PAEFI. Por agentes sociais foi denominado os técnicos e conselheiros das referidas instâncias, além de outros indivíduos envolvidos com os casos e que tiveram, de alguma forma, seus discursos registrados nos prontuários investigados.

Também, estas instâncias indicadas, por seu turno, compõem uma rede de atenção social da cidade, derivada do Setor Social, conforme prefaciou Guilles Deleuze (1980). Em suma, o Setor Social e a rede de atenção social estão destinados ao controle e vigilância da população infanto-juvenil, em especial as empobrecidas, segundo Flávia Lemos (2003).

Esse artigo, portanto, está em consonância com a proposição da psicologia política ao problematizar práticas sociais para a defesa e garantia dos direitos da infância e juventude como a aqui apresentada. Logo, a partir da análise dos focos de experiência, interpela-se sobre a questão da exploração sexual comercial de crianças e de adolescentes na micropolítica do governo exercido por agentes sociais missionados institucionalmente ao combate de tal prática. Assim, ao se problematizar as práticas e os discursos dos agentes sociais pode-se verificar os domínios de saber-poder produzidos bem como o nascimento de determinado sujeito de conhecimento.

Para tanto, elegeu-se a pesquisa documental como fonte de informações, cujo recorte temporal equivale aos anos de 1994 e 2005, por serem os anos de abertura e inclusão das instituições na rede de atenção social da cidade, e 2011 por ser o ano da pesquisa. O recurso investigativo utilizado foi o método genealógico, proposto por Foucault (1996). Após busca e seleção dos prontuários houve a organização das narrativas dos casos e de sua interpretação pode-se subtrair um deles por aqui representado no caso de um menino.

O caso do menino tornou-se um foco de atenção pela sua inusitada ocorrência ao escapar da repetição e da regularidade dentre os outros casos. Sua escolha justifica-se por uma questão de gênero. Ele foi o único menino sob a suspeita de exploração sexual comercial encontrado entre os arquivos do PAEFI e de uma unidade do Conselho Tutelar, segundo o recorte temporal realizado pela pesquisadora. Cabe ressaltar que foram encontrados outros 19 casos envolvendo a suspeita da prática da prostituição por menores de idade, seguida com a confirmação ou não pelos agentes sociais. Todos eles tratavam de meninas.

É importante lembrar que todos os casos tiveram seus eventos organizados como narrativas, para, em seguida, serem problematizados a partir da noção foucaultiana de governo do outro (Foucault, 2010; Veiga-Neto, 2005). Mas, cabe ressaltar a importância das categorias gênero e prostituição a imprimir uma possibilidade de leitura a respeito das relações sociais ali impregnadas. Elas ampliam o repertório de investigação e análise ao sexualizarem as experiências humanas imersas em múltiplas práticas, quando, até recentemente, não eram problematizadas entre as produções de conhecimento no Brasil, segundo Rago (1998b).

Isto equivale a uma segunda justificativa para se apresentar o artigo como de interesse da psicologia politica, pois, pode-se encontrar em Margareth Rago (1998a) a interpretação do campo da prostituição como um objeto de estudo historicamente vinculado à produção do conhecimento acerca do universo feminino, porém, deve-se ir além da formação de uma história da mulher ou de uma fundamentação para a epistemologia feminista. Então, o desafio posto é o de buscar a transvaloração de um campo de experiência histórica, que vale tanto para a construção do feminino quanto para a do masculino ao problematizar a infância e a juventude na dimensão das práticas sociais, que são tão imperiosas à ponto de demarcarem um regime de verdades como reais, de acordo com Michel Foucault (2008).

 

A Narrativa do Caso de um Menino Suspeito de Exploração Sexual ou Como Compor Verdades

No PAEFI - Sentinela, o seu prontuário tem início com um Termo de Declaração da Delegacia de Polícia, no qual está relatada sua suspensão escolar, no ano de 2004, por participar de jogos sexuais com outros dois meninos no banheiro da escola.

A diretora da escola sugeriu à mãe o acompanhamento psicológico do aluno. Toda vez que era chamada a atenção do menino por algum agente escolar, por levar à escola revistas de cunho pornográfico, sua reação era a fuga daquele espaço em direção a outro. Perambulava pelas ruas até chegar a alguma Lan House, onde se dedicava aos jogos virtuais. Mas, de sua casa também fugia: saia com objetos e voltava ora com machucados, ora com dinheiro.

A mãe coloca que, após episódio da escola, o seu filho passou a jogar no computador o dia inteiro. Disse cansada de pedir ajuda à polícia, ao Conselho Tutelar, de ligar ao Disk Denúncia, enfim, não conseguia apoio para controlar o filho. Ela declarou à polícia que "soube pelo Conselho Tutelar que ele estaria se prostituindo e sendo agenciado por um homem". Foi este mesmo Conselheiro Tutelar que orientou a mãe fazer o Boletim de Ocorrência e a procurar o PAEFI-Sentinela para atendimento do seu filho.

O menino tinha 10 anos de idade e estava na 4ª Série do Ensino Fundamental I quando deu entrada no PAEFI-Sentinela, no mês de maio do ano de 2005. Lá, verificou-se que foram utilizadas entrevistas com membros da família, da escola e com o próprio indivíduo, além de visitas domiciliares e encaminhamentos com finalidade socioeducativa. Ele fora considerado "um menino muito inteligente, talvez até acima da média. No entanto, limites parecem não existir para ele, nem o cuidado com o outro e nem consigo. Me pareceu ter compulsão por jogo e, de modo geral, nada para ele é com moderação, principalmente, quando apresenta riscos".

Diante desse quadro psicológico, o PAEFI-Sentinela tinha por interesse promover o fortalecimento de seus vínculos e a criação de outros. Por isso, os seus agentes encaminharam o menino para uma escola de informática, por causa do seu interesse por computadores e jogos virtuais. E propuseram à escola a mudança do período escolar, de matutino para vespertino, a fim de que o menino não perdesse o horário das aulas. Em vez de levantar-se para a escola, o menino dormia, porque permanecia noite adentro jogando.

Aqui, há presença da noção de periculosidade futura do indivíduo (adulto) quando sua infância estiver ameaçada ou desviada de seu curso normativo. Então, para defesa da sociedade, as intervenções começaram com a prerrogativa de fortalecimento dos vínculos existentes e a criação de outros, a fim de que o menino encontrasse a protetividade idealizada, a saber: ficasse em casa com a família, voltasse a estudar e recebesse acompanhamento psicológico e formação educacional complementar à escolar. Tais táticas foram impressas socialmente mediante a noção de correção do desvio, a fim de que o menino ajustasse sua conduta intra e interpessoal conforme padrão normativo.

Contudo, a mãe demonstrou resistência às intervenções. "Tudo ia bem até a mãe dizer de seu descrédito a respeito de seu filho e possível mudança de seu comportamento". Foi quando o menino confessou em reunião com todos os envolvidos (diretora e coordenadora da escola, assistente social e psicóloga do PAEFI-Sentinela, conselheiro tutelar responsável pelo caso e a sua mãe): "Sou gay e já fui estuprado".

Sua voz foi silenciada.

Entre um discurso impresso e outro, notou-se, por um lado, a necessidade de controle da mãe sobre seu filho sobre a confessa homoafetividade e suspeita de sexualidade ativa. O dispositivo da sexualidade encontra fronteiras normativas relacionadas à noção de geração e de natureza como condicionantes para a degeneração humana. Por outro lado, a necessidade de veridicção das instituições a respeito da exploração sexual comercial do menino em detrimento da investigação sobre a denúncia de seu estupro engendra-se a anormalidade anunciada. Pois quando a denúncia/confissão de abuso sexual do menino não foi ouvida, coube à escuta de que ele denotava orientação homossexual e comportamento compulsivo, devido aos jogos sexuais com seus pares e as fugas da escola e de casa para jogar.

A escola manteve seu olhar disciplinador. Sob o seu enquadramento foi possível observar suposto desvio sexual, na época do flagrante dos jogos sexuais e das revistas pornográficas. Restava corrigir a natureza desse indivíduo com a indicação de acompanhamento psicológico. Ademais, os agentes escolares aceitaram a proposição das instituições porque o consideravam um bom aluno, por isso, merecedor de acolhimento. Mas nesse acolhimento também se lê a concordância aos ditos dos experts e a adesão à obediência moral ao governo proposto.

Houve o discurso marcante do conselheiro responsável pelo caso, o qual disse à mãe que o menino poderia ser aliciado/agenciado para exploração sexual comercial por um homem. Isto, provavelmente, se deve à cena da escola, de onde se construiu um corpo sexualizado e desviado da heteronormatividade: ao final, ele se declarou "gay" e estuprado, mas esta última verdade não foi vista.

Como transeunte, chegou aos jogos virtuais disponíveis nas Lan Houses da cidade. Como conseguia dinheiro para jogar? O campo da prostituição foi a resposta proposta. Os agentes sociais do Conselho Tutelar e do PAEFI-Sentinela estavam interessados em verificar se o dinheiro para o menino jogar advinha ou não da prática da prostituição.

Segundo informação registrada pela agente do PAEFI-Sentinela, o "conselheiro disse à mãe que poderia estar sendo aliciado sexualmente, mas depois desmentiu. Fez para assustála". Tanto que o Conselheiro responsável pelo caso informou que devido a não procedência da suspeita de prostituição houvesse o encerramento do caso. E foi o ocorrido, no mês de agosto, do ano de 2005. Contudo, não houve a comprovação do investigado. Ainda, a possibilidade de aliciamento foi uma invenção do conselheiro, como tática grosseira para assustar a mãe e valorizar a necessidade de sua intervenção sobre o quadro do menino.

Por que, então, eles pensaram na prostituição como forma de sustentação dos jogos, e, não na possibilidade de ele estar roubando, uma vez que deu indícios disso com o sumiço de objetos pessoais e da casa?

Eles pensaram na prostituição porque há uma verdade em batalha: se aos homens cabem o papel de cliente e as mulheres o papel de prostitutas, ao menino homossexual deveria caber o lugar da prostituição, por ser tratado virtualmente como menina. Ainda, manifestou-se também com os jogos sexuais na escola.

As leituras de Os Anormais, O nascimento da prisão e a História da sexualidade - vol. 1, todos de Michel Foucault, permitiram um olhar genealógico sobre o caso do menino. A suspeita de sua exploração sexual comercial só foi possível porque havia elementos discursivos imbuídos de uma história sobre o corpo. Um corpo-história sedimentado por práticas sociais, efeito da demarcação no social daqueles que deveriam ser considerados degenerados ou desviados e submetidos à correção para a garantia de um campo social sem perigos e sob controle.

A rua é um campo social onde se deflagram situações consideradas perigosas. Nela os agentes sociais mapeiam cenários contrários à formação humana, como a prostituição. No entanto, há uma tensão entre aquilo que é dito pelo sujeito com aquilo que é verificado pelo agente social. Dessa tensão a verdade não está na confissão, mas na capacidade do agente social em tomar a confissão com uma prova - um flagrante, de preferência.

No mês de agosto, do ano de 2005, o caso foi encerrado pela não confirmação da exploração sexual do menino. Mas, em 2011, quando a pesquisadora teve acesso a este prontuário, uma agente social responsável pelo comentou que este caso era muito interessante. Tratava-se de um menino que possivelmente prostituía-se para pagar o seu vício por jogo, na lógica discursiva da técnica.

Os agentes sociais do Conselho Tutelar e do PAEFI estavam interessados em verificar se o dinheiro para o menino jogar advinha ou não da prostituição. Não há nenhum registro indicando investigação relacionada ao estupro confesso. O próprio Conselheiro responsável pelo caso informou a uma agente do PAEFI que, devido a não procedência da exploração sexual /prática da prostituição pelo menino, então, que houvesse o encerramento do caso.

Ao final, encerrou-se o caso com a única confissão do menino silenciada, a de ter sido abusado sexualmente. Silenciou-se uma violência contra a infância ao não operar-se contra a violação de uma vida digna.

 

Possíveis Desconstruções Sobre o Caso Relatado

A mãe busca por ajuda. Bate em várias portas até que duas delas se abrem. O Conselho Tutelar e o PAEFI são instituições voltadas para a proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes, incluindo o combate ao abuso e a exploração sexual. Trata-se da garantia dos direitos ou de uma vida digna, em que o desenvolvimento global do menino não deve ser corrompido por fatores ambientais.

A garantia dos direitos é uma construção recente em nossa sociedade e inclui uma política internacional de tutela da cidadania. Ou seja, o combate da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes é uma política de Governo promovida por organismos internacionais como ONU (1989), que conseguiram o envolvimento dos Estados - Partes nas questões relativas aos Direitos da Infância, por exemplo, quando decretou a obrigatoriedade do cumprimento dos acordos em prol de um projeto de infância e futuro presentes desde a 2ª Guerra Mundial (Lemos, 2008). Assim, na década de 2000, o Governo brasileiro laça o Plano Nacional de Combate a violência sexual contra crianças e adolescentes (Brasil, 2002).

Por outro lado, este Plano Nacional também é efeito da luta de movimentos sociais que encontraram espaço para "descobrir" e intervir sobre as questões sociais julgadas como mazelas no país, após período de abertura política no Brasil. Na década de 1980, a sociedade brasileira construiu a noção de excluídos para enquadrar os indivíduos que viviam à margem da sociedade, como os meninos e as meninas de rua. Com os estudos sobre este segmento populacional emergiram também aqueles que praticavam a prostituição (Leal, 1999; Mello, 2010; Souza, 2002).

Logo, esta problemática foi apenas reconhecida como agenda governamental na década de 2000. Antes, houve sua designação internacional como uma exploração sexual comercial, na categoria violência sexual, na década de 1990, após as Conferências Internacionais de Combate da Exploração Sexual Infanto-Juvenil, ocorridas na Suécia, no Japão e no Brasil.

Embora a prática da prostituição por menores tenha sido categorizada como uma forma de violência e, portanto, uma violação dos direitos, ainda é possível encontrar práticas que a remetam a noção de periculosidade futura do indivíduo (adulto), por sua infância e juventude estarem ameaçadas ou desviadas do curso normativo.

Notam-se táticas impressas socialmente mediante a noção de correção do desvio, a fim de que o indivíduo ajuste sua conduta intra e interpessoal conforme padrão normativo. Foucault (2011; 1997) comenta sobre as tecnologias que levaram o indivíduo a ser dobrado no próprio delito, para que se parecesse cada vez mais com seu crime, de modo a justificar uma série de instituições voltadas para o sujeito incorrigível.

Assim, também surgiram pelo Brasil as instituições de apoio e promoção ao bem-estar do menor, que, no transcorrer, tiveram seus serviços atualizados pela assistência social, bem como criados outros serviços correspondentes ao momento vivenciado ou segundo a gestão dos riscos.

Então, para defesa da sociedade, as intervenções atuais vão ao encontro da prerrogativa de fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, a fim de que o indivíduo encontre a protetividade idealizada, a saber, seu enquadramento na família e na escola, com condutas que o levem para o mundo do trabalho como ideal de inserção social. Basta ler a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e a Lei de Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais (Brasil, 1999).

No caso do menino, ele se desviou da rota. Ao fugir de casa e da escola promoveu a ideia de desfiliamento em curso e que deveria ser corrigida, afinal, se ele não estiver amparado por estes espaços, como será moldado para o futuro? É isto que denotam as instituições de correções como o Conselho Tutelar e o PAEFI, garantir aquilo que a família não foi capaz de exercer: o controle, a vigilância e a modelação sobre seu filho, enfim, o governo do outro que se concretiza em políticas sobre a família. Por isso, pode-se concordar com Flávia Lemos (2003), ao entender que a culpabilização e tutela da família são cenas enunciativas do controle social exercido pelos agentes destas instâncias, principalmente a pré-jurídica, o Conselho Tutelar.

Entre um discurso e outro, notou-se que o dispositivo da sexualidade encontra fronteiras normativas relacionadas a noção de geração e de natureza como condicionantes para a degeneração humana. A escola, por seu turno, manteve seu olhar disciplinador. Sob o seu enquadramento foi possível observar suposto desvio sexual, na época do flagrante dos jogos sexuais e das revistas pornográficas. Restava corrigir a natureza deste indivíduo, seu instinto, com a indicação de acompanhamento psicológico. Ademais, os agentes escolares aceitaram a proposição das instâncias, porque consideravam o menino um bom aluno, por isso, merecedor de acolhimento. Mas, neste acolhimento também se lê a concordância aos ditos dos experts e a adesão à obediência moral ao governo proposto por eles.

Por outro lado, a necessidade de veridicção das instituições a respeito da exploração sexual comercial do menino em detrimento da investigação sobre a denúncia de seu estupro que se engendra a anormalidade anunciada. Pois, quando a denúncia/confissão de abuso sexual do menino não foi ouvida, coube a escuta de que ele denotava orientação homossexual e comportamento compulsivo, devido aos jogos sexuais com seus pares e as fugas da escola e de casa para jogar.

No entanto, a leitura de possível homossexualidade com os jogos sexuais na escola e a afirmação de si mesmo como homoafetivo produziu efeitos de verdade. Então, como um transeunte "gay", ele chegou até aos jogos virtuais disponíveis em Lan Houses da cidade. Encontrou um espaço para "dar conta" de sua existência. Mas, como conseguia dinheiro para jogar? O campo da prostituição foi a resposta proposta. Ou, por que eles pensaram na prostituição como forma de sustentação dos jogos, e, não na possibilidade dele estar roubando, uma vez que deu indícios disso, ao fugir de casa com objetos e de retornar com dinheiro?

Elucubra-se que eles pensaram na prostituição porque há uma história clivada de verdade: se aos homens cabem o papel de cliente e as mulheres o papel de prostitutas, ao menino homossexual deveria caber um lugar na prostituição como se fosse virtualmente menina.

 

Conclusões

O menino de dez anos morava com sua família e estava na escola, enquanto os pais trabalhavam. Tudo caminhava dentro do projeto da modernidade. Mas, um dia, a sexualidade do menino tornou-se visível aos outros. Antes da época e de forma inapropriada ao esperado pela cultura da normatividade, ele praticou jogos sexuais com outros meninos no banheiro da escola, bem como levara revistas pornográficas para lá. O menino poderia ser corrigido por um psicólogo, assim acreditou a escola. Mas, neste momento ninguém questionou se a visibilidade de sua sexualidade poderia ser efeito de um abuso sexual. E, também, não houve registro no seu prontuário se a mãe buscou apoio do profissional recomendado pela escola.

Ele, para enfrentar a vida e seu mundo, escapou. Fugia de casa e da escola para jogar, de modo cotidiano e intenso. Novamente o menino desviou-se do curso moderno. Mas, foi recapturado pela rede de atenção social, que, para saber qual era a verdade do sujeito, aplicou técnicas de veridicção. Tais técnicas visaram investigar a confissão do sujeito sobre estupro, quando ele a anunciou? Não. Mas, implicaram no poder de observar e apontar aquilo que supostamente não foi dito. O enunciado "gay" foi ancorado a possibilidade da prática da prostituição como forma de garantir o financiamento de sua compulsão pelo jogo virtual.

Portanto, a verdade em jogo denota ser um embate entre forças variadas:

a) A da mãe, que, por não conseguir lidar com o exercício da sexualidade do seu filho e da sua resistência para com as regras da casa, então, buscou em outros espaços a força capaz para conter seu filho;

b) A da escola, cujo controle da indisciplina sexual do aluno não está previsto em sua rotina pedagógica;

c) A das instituições sociais, que justificam sua existência pela classificação e correção do outro e determinam sua permanência ou exclusão na rede de atenção social;

d) A do menino, o poder de ser e de fazer através das fugas e dos jogos alguma plausibilidade a sua própria verdade, seja ela qual for: gay ou violentado sexualmente.

Ao final do embate, enuncia-se a suspeita dele exercer a prostituição porque haviam elementos discursivos imbuídos de uma história sobre o corpo. Um corpo-história sedimentado por práticas sociais, efeito da demarcação no social daqueles que deveriam ser considerados degenerados ou desviados e submetidos à correção, para a garantia de um campo social sem perigos e sob controle.

A invenção da infância pelas disciplinas bem como a pedagogização do sexo servem de amparo para o governo de uns sobre os outros. Paralelamente, há o respaldo jurídico para tutela da família, através das políticas públicas instituídas, segundo a lógica de um regime de verdades enunciadas: como o combate da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, que denotou, neste recorte, ser uma prática marcada pelo exercício de um poder grotesco (Foucault, 2010) e fascista (Veiga-Neto; Rago, 2009) dos agentes sociais responsáveis pelo caso, quando:

a) O conselheiro afirmou para a mãe que seu filho poderia ser aliciado/agenciado para exploração sexual por um homem, para, depois, reeditá-la como um susto dado na mãe, conforme registrou uma técnica do PAEFI;

b) As técnicas do PAEFI não investigaram junto ao menino e ao Conselho Tutelar a sua denúncia de abuso sexual.

Portanto, ao participar da rede de atenção social de uma cidade tem-se logo a impressão do quanto a sociedade disciplinar e de controle versam sobre a população. Em um exercício claro da biopolítica, os corpos de crianças e adolescentes são sequestrados institucionalmente e passam a ser moldados conforme a lógica normalizadora da sociedade sobre ser-infância-juventude.

A primeira lógica diz respeito a noção jurídica, com o sistema de garantia dos direitos. A segunda lógica diz respeito ao dispositivo da sexualidade, no qual versam um conjunto de instituições disciplinares que instituem verdades sobre o real. Tanto a primeira quanto a segunda lógica tratam de eixos que participam da sustentação na atualidade da biopolítica, juntamente com o mercado e meios midiáticos (Foucault, 2005).

O governo sobre a prática da prostituição por menores de idade, portanto, e, apesar da lógica analítica de gênero, denota ser exercido pelos agentes sob um prisma da anormalidade, do indivíduo que se desvia do curso normativo planificado para a sexualidade da infância e da juventude, conforme a pedagogização do sexo comentada por Andrea Moruzzi (2012).

Durante o processo de organização das narrativas de cada prontuário encontrado nos arquivos das instâncias fonte da pesquisa, pode-se notar uma micropolítica tramada na qual estão inseridas as meninas suspeitas de praticar a prostituição. Um dos trâmites encontrado foi o da troca de ofícios e relatórios entre as instâncias da rede de atenção social, além de mecanismos verificatórios para enredo de um dossiê (como a visita domiciliar, as chamadas para orientação e encaminhamentos terapêuticos), ou, pode-se apontar, uma peça (in)conclusiva com as indicações de aplicação de medidas previstas no ECA.

Nesse sentido, a constituição dos sujeitos no interior dos discursos está atravessada pelas relações de governo de si e governo dos outros, conforme indica Foucault (2010). Enquanto que para as meninas, as práticas do Conselho Tutelar e do PAEFI estão demarcadas por esta micropolítica, coube uma ausência de descrição de casos com meninos, com exceção do aqui apresentado.

E, sobre ele, notou-se uma armadilha da política de gênero, que sequestra o feminino, inclusive um suposto posicionamento homossexual (virtualmente mulher) para caber no lugar da prostituição.

 

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Recebido em 18/03/2014.
Revisado em 19/09/2014.
Revisado em 23/02/2015.
Aceito em 11/04/2015.

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