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Revista Psicologia Política

versión impresa ISSN 1519-549X

Rev. psicol. polít. vol.15 no.33 São Paulo ago. 2015

 

ARTIGOS

 

Participação política: diálogos entre consciência política e práxis política

 

Political participation: dialogues between political consciousness and political praxis

 

Participación política: diálogos entre conciencia política y praxis política

 

Participation politique : dialogues entre la conscience politique et la praxis politique

 

 

Leandro Amorim Rosa

Psicólogo e mestre em Ciências Pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de São Paulo, Brasil. Docente no Instituto Municipal de Ensino Superior de Catanduva, SP, Brasil. Atualmente é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. psi_doug@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Propõe-se no presente artigo articular duas propostas teóricas sobre a participação política: o modelo de consciência política de Salvador Sandoval e a práxis política a partir de Vigotski e Gramsci. As articulações abordarão elementos referentes à construção social da participação e hegemonia; cotidiano e senso comum; emoções e sistemas psicológicos. A aproximação das abordagens indica possibilidades de entendimento da participação política por meio do entrelaçamento de elementos cognitivos e afetivos, assim como subjetivos e sociais. Mesmo reconhecendo o caráter inicial das indicações, defende-se a potencialidade da discussão aqui proposta. A consciência política configura-se como componente psicossocial relacionado diretamente à práxis política. As relações e características das dimensões da consciência política são construídas a partir das vivenciais sociais dos sujeitos, sendo o ambiente ideológico da época o seu principal circunscritor.

Palavras-chave: Participação Política, Consciência Política, Práxis Política, Vigotski, Gramsci.


ABSTRACT

It is proposed articulate two theoretical proposals on political participation: the political consciousness model of Salvador Sandoval and political praxis from Vygotsky and Gramsci. The joints will address aspects of the social construction of participation and hegemony; everyday life and common sense; emotions and psychological systems. The approximation of approaches indicates possibilities of understanding of political participation through the intertwining of cognitive and affective elements, as well as subjective and social. While acknowledging the initial character of the statements, it's underlined the potential of the discussion proposed here. Political consciousness is configured as psychosocial component directly bonded to political praxis. The relationships and features of the dimensions of political consciousness are built from the subjects' social experiences, being the current ideological atmosphere its main limiting factor.

Keywords: Political Participation, Political Consciousness, Political Praxis, Vygotsky, Gramsci.


RESUMEN

Se propone articular dos propuestas teóricas sobre la participación política: el modelo de la conciencia política de Salvador Sandoval y la praxis política a partir de Vygotsky y Gramsci. Las articulaciones abordarán aspectos de la construcción social de la participación y de la hegemonía; la vida cotidiana y el sentido común; emociones y sistemas psicológicos. La aproximación de los enfoques indica posibilidades de comprensión de la participación política a través de la interrelación de los elementos cognitivos y afectivos, así como subjetivo y social. Sin dejar de reconocer el carácter inicial de las consideraciones, ha subrayado el potencial de la discusión que aquí se propone. La conciencia política se configura como componente psicosocial directamente unido a la praxis política. Las relaciones y las características de las dimensiones de la conciencia política se construyen a partir de las experiencias sociales de los sujetos, siendo la actual atmósfera ideológica su principal factor limitante.

Palabras clave: Participación Política, Conciencia Política, Praxis Política, Vygotsky, Gramsci.


RÉSUMÉ

On propose d'articuler deux vision théoriques sur la participation politique: le modèle de la conscience politique de Salvador Sandoval et praxis politique de Vygotski et Gramsci. Les joints aborderont les aspects de la construction sociale de la participation et de l'hégémonie; la vie quotidienne et le bon sens; émotions et systèmes psychologiques. Le rapprochement des approches indique les possibilités de compréhension de la participation politique à travers l'imbrication des éléments cognitifs et affectifs, ainsi que subjective et sociale. Tout en reconnaissant le caractère initial des états, il est souligné le potentiel de la discussion proposée ici. La conscience politique est configuré en tant que composant psychosocial directement lié à la praxis politique. Les relations et les caractéristiques des dimensions de la conscience politique sont construites à partir des expériences sociales des sujets, étant l'atmosphère idéologique actuel son principal facteur limitant.

Mots clés: Participation Politique, Conscience Politique, Praxis Politique, Vygotsky, Gramsci.


 

 

Introdução

O fenômeno da participação política é já abordado há tempos por pesadores de diversas áreas, no entanto ainda existe significativa divergência sobre quais elementos/fatores/situações/processos causam/possibilitam/potencializam a participação.

A participação política é um tema de estudo que se localiza dentro do grande campo do comportamento político. Sandoval (1997) defende que a análise desse fenômeno, no século XX, foi predominantemente de cunho determinista. Ele divide os referenciais sociológicos para se pensar tal comportamento em duas grandes correntes: estruturalismo e categorialismo. O primeiro grupo daria ênfase às estruturas econômicas e sociais, e o segundo destacaria a determinação de diversas categorias como idade, sexo, trabalho, raça, etc. Assim sendo, para entender a forma como as pessoas se comportam politicamente seria, segundo esses referenciais, desnecessário olhar para o sujeito, uma vez que as variáveis sociológicas explicariam o fenômeno.

Outra abordagem explicitada por Sandoval (1997) é a chamada psicologia das massas, a qual possui sua origem no final do século XIX. Tendo como seu principal teórico Gustave Le Bon, a psicologia das massas defende a irracionalidade das ações coletivas. O teórico francês entende que o indivíduo em grupo perde parte de sua capacidade racional, havendo uma "regressão" a estados predominantemente instintivos e passionais (Le Bon, 1910). Segundo Sandoval (1997), algumas teorias relacionadas a esta vertente utilizam em sua argumentação pressupostos biológicos na tentativa de explicar que tais comportamentos seriam determinados por uma origem genética e fisiológica.

Na leitura realizada por Sandoval (1997), mesmo com suas diferenças, as abordagens sociológicas e a da psicologia das massas possuiriam um ponto em comum: ambas destacam um papel pouco ativo do sujeito nos seus processos de inserção social. A primeira por entender que o indivíduo é determinado por categorias ou estruturas que o transcendem, e a segunda por defender a perda da racionalidade e do controle individual em uma situação de ação coletiva.

Segundo o autor, essas abordagens são, a partir dos anos 50, consideradas insuficientes para explicar o comportamento político por seus excessos deterministas. As vertentes psicoculturais surgem e se tornam hegemônicas no campo, tendo destaque o referencial da cultura política nos anos 60 e 70. No entanto, ao final dessas décadas ficam evidentes também os limites destas abordagens. No polo oposto da generalidade sociológica, tais abordagens foram consideradas demasiadamente microcósmicas. A saída para essa questão foi a tentativa de aproximação entre as vertentes psicossociais e sociológicas. Sandoval (1997) defende que a possibilidade de uma ciência do comportamento político se encontra na interdisciplinaridade, e define esse momento de aproximação de diversas áreas do saber com o mesmo interesse como o ponto de partida da Sociologia do comportamento político e da Psicologia Política.

A Psicologia Política busca contribuir para o entendimento da participação política a partir de um campo interdisciplinar. Entende-se que a compreensão da participação deve transcender os limites disciplinares e buscar subsídios em diferentes ciências. A Psicologia Política possui origens geograficamente diversas. Nos EUA, ela surge atrelada a Ciências Políticas e aos estudos de comportamento eleitoral, enquanto na Europa, ela é gestada junto à Sociologia. Por sua vez, na América Latina a Psicologia Política emerge vinculada a Psicologia Social e Comunitária, ficando assim profundamente marcada pelo compromisso social que caracteriza tal área (Sandoval, Suruagy & Ansara, 2014). Os referenciais teóricos que se desenvolverão a partir de cada um desses contextos manterão marcas profundas relacionadas aos seus processos de origem. Como não poderia ser diferente, a diversidade ainda é uma forte marca da Psicologia Política contemporânea.

Mesmo reconhecendo a importância da diversidade no campo da Psicologia Política, entendemos ser de grande valia a criação de espaços de diálogo entre diferentes autores e referencias na busca do enriquecimento de suas propostas. Pretendemos com esse texto buscar aproximações e contribuições entre duas construções teóricas psicopolítica: o modelo de consciência política de Salvador Sandoval e a práxis política advinda da articulação entre a teoria gramsciana e a psicologia vigotskiana. A escolha pelo modelo de Sandoval se justifica pela relevância que essa proposta possui no contexto brasileiro e latino americano, onde subsidia diversos estudos no campo das ações coletivas e das políticas públicas (Espinosa, 2015; Silva, 2001, 2015; Sandoval, 2001, 2015). A segunda proposta teórica se refere a uma construção na qual temos trabalhado há algum tempo (Rosa, 2013a; Rosa, 2013b; Rosa & Silva, 2015), mas que ainda se encontra em um estágio inicial. Certamente diálogos como o desenvolvido no presente texto contribuirão para evidenciar os limites e possibilidades de tal construção. Objetiva-se aqui pensar possibilidades de entendimentos teóricos que possam abrir caminhos para posteriores estudos e aprofundamentos.

 

Modelo de Consciência Política de Salvador Sandoval

A partir das contribuições de pensadores diversos, Salvador Sandoval sintetiza uma proposta de modelo de consciência política. O autor discorre sobre elementos que exercem a função de controle social sobre a participação em ações coletivas e movimentos sociais (Sandoval, 1994). Sandoval defende como primeiro fator a ser considerado as noções culturais tradicionais, ou seja, as crenças e valores históricos hegemônicos que constituem a "visão de mundo da pessoa". Somado a esse primeiro fator, poder-se-ia também entender como mecanismo de controle as restrições da vida cotidiana. O autor aponta que a forma de organização da vida cotidiana dificulta a capacidade dos indivíduos de desenvolverem pensamentos reflexivos, ou seja, limita a pessoa a análises imediatistas, pragmáticas e superficiais da realidade. Em conjunto, os elementos citados acima seriam responsáveis por uma visão fragmentada de coletividade, além de permeada por discriminações e preconceitos.

Sandoval (2001) escreve que seu modelo de consciência política, o qual articula ao entendimento do processo de participação política, retrata:

[...] as várias dimensões sociopsicológicas que constituem a consciência política de um indivíduo sobre a sociedade e sobre si mesmo/mesma como um membro dessa sociedade e, consequentemente, representa sua disposição em agir de acordo com tal consciência. Por consciência política nós entendemos uma composição de dimensões sócio psicológicas de significados e informações inter-relacionadas que permitem indivíduos tomar decisões quanto ao melhor curso de ações em contextos e situações políticas específicas (Sandoval, 2001:185. Tradução livre do autor1).

Esse modelo considera sete dimensões psicossociais constituintes da consciência política. São elas: identidade coletiva; crenças, valores e expectativas societais; interesses coletivos e adversários antagônicos; eficácia política; sentimento de justiça e injustiça; vontade de agir coletivamente; e metas e repertórios de ações (Sandoval, 2001).

 

 

Importante destacar que esse modelo tem passado por momentos de revisão, os quais resultaram em algumas propostas de modificação. Como esse processo ainda está em curso, adotaremos a composição exposta acima como referência. Em um tópico específico, será discutida a inserção das emoções no modelo - uma das principais mudanças discutidas nos últimos anos.

 

Práxis Política

Rosa e Silva (2015) têm desenvolvido uma proposta de entendimento da participação política a partir do materialismo dialético. Essa proposta possui como base a articulação entre o pensamento de Antonio Gramsci e a psicologia de Lev. S. Vigotski. A partir da categoria práxis política, os autores buscam dialogar a concepção de sociedade gramsciana com a teoria de subjetividade de Vigotski a fim de melhor compreender o processo de participação.

Em síntese, a práxis política será entendida como forma específica (intencional) de participação política. A práxis política é uma atividade prática consciente que possui como finalidade a intervenção - conservadora ou transformadora - nas relações sociais, econômicas e/ou políticas, ou seja, no homem enquanto ser social2. Inspirada na política gramsciana (Coutinho, 2011), a práxis política pode ser entendida em sentido amplo ou restrito. Em sentido amplo, a práxis política está presente em qualquer esfera social onde se manifestem relações de poder, desde as relações interpessoais até as relações entre Estados, passando, por exemplo, pelas relações comunitárias e familiares. Em sentido restrito, a práxis política se dá somente quando o governo ou Estado é o alvo e/ou o meio pelo qual o(s) sujeito(s) - individuais ou coletivos - realiza(m) a intervenção nas relações econômicas, politicas e/ou sociais.

A dimensão subjetiva que compõe a práxis política possui como fundamento a psicologia histórico-cultural, em especial a obra de Vigotski (2000, 2004, 2007, 2010). Tal dimensão é permeada por sentidos e significados e se dá pela indissociabilidade de processos cognitivos, afetivos e motivacionais no drama subjetivo. A subjetividade entendida como drama se organiza enquanto sistema, no qual as diferentes funções psicológicas se relacionam de forma diversa a partir das relações sociais nas quais o sujeito está inserido (Vigotski, 2000). A subjetividade será entendida como produção elaborada pelo sujeito a partir de suas vivências concretas em um contexto sócio-histórico-cultural específico, compondo-se de forma dramática. A práxis política é uma atividade objetiva orientada subjetivamente (Rosa, 2013a).

 

Articulações

Buscaremos aqui propor algumas aproximações iniciais entre o modelo de consciência política de Sandoval e a proposta baseada na práxis política. Mesmo reconhecendo a evidente maior maturidade teórica do modelo de Sandoval, entendemos que o diálogo proposto seja pertinente. Serão apresentadas reflexões iniciais e possíveis caminhos para maiores articulações. Não pretendemos de forma alguma esgotar a discussão aqui colocada, bem como nos escapa em absoluto a ambição de citar todas as relações possíveis entre as construções teóricas. O que objetivamos é iniciar um diálogo que consideramos que pode ser desenvolvido de forma profícua a partir dos caminhos aqui apenas indicados. Importante ainda destacar que não abordaremos nesse texto as bases epistemológicas das propostas, assunto que consideramos de tal densidade que requere artigo próprio com determinado fim.

Construção Social da Participação e Hegemonia

Sandoval (1994) defende que toda a realidade social possui componentes da consciência. O autor argumenta que a nossa relação com o meio social se dá através de nossos significados sobre ele, ou seja, não há uma relação direta entre o sujeito e uma objetividade externa, mas um processo de construção da realidade que envolve a consciência de tal sujeito sobre aquele contexto. Segundo Sandoval (1994:59), a sociedade deve ser vista "[...] como uma relação dialética entre o dado objetivo e significados subjetivos". Assim sendo, a participação política também estaria imersa nesse processo. Participamos (ou não) politicamente orientados pela forma como significamos e interpretamos a realidade. A realidade em sua suposta objetividade não é o bastante para explicar o engajamento político, pois diferentes sujeitos podem se relacionar de formas diversas com as mesmas condições concretas. Faz-se necessário para entender a participação, não se limitar aos elementos objetivos, mas também buscar a compreensão da subjetividade dos sujeitos.

Vigotski (2007) também argumenta que a relação com a realidade é mediada pela subjetividade. O psicólogo soviético defende a ideia de mediação simbólica, ou seja, a partir do momento em que desenvolvemos a capacidade de utilizar símbolos, nossa relação com o mundo passa a ser mediada por eles, assim como nossas relações com nós mesmos. As funções psicológicas que se utilizam dos símbolos são definidas como funções psicológicas superiores, são tais funções que nos diferenciam qualitativamente do comportamento de outros animais complexos.

Outra categoria importante no sistema vigotskiano que podemos tratar aqui é a vivência. Vigotski (2010) escreve: "dessa forma, na vivência, nós sempre lidamos com a união indivisível das particularidades da personalidade e das particularidades da situação representada na vivência". Assim, a vivência diria respeito à unidade entre a situação concreta e as características pessoais do indivíduo, o que resultaria em uma interação singular entre ambos.

Defendemos que melhor do que abordar a situação objetiva - social, econômica, política - na qual o sujeito está inserido, para entendermos a sua participação política, faz-se necessário articularmos tal situação com as particularidades do sujeito, ou seja, faz-se necessário abordamos a vivência desse sujeito. Entendemos que essa preposição está de acordo com o modelo de Sandoval assim como a proposta de práxis política.

Mesmo reconhecendo a especificidade dos sentidos e significados que os sujeitos constroem sobre sua realidade a partir de suas vivências singulares, podemos perceber grandes conjuntos de significações partilhadas entre determinados grupos sociais. Vários autores abordam a temática desses conjuntos a partir de diferentes enfoques (Gramsci, 2007; Klandermans,1994; Sabucedo, 1996). Seguindo o referencial gramsciano (Portelli, 2002), chamaremos de ideologia a concepção de mundo advinda de um conjunto socialmente partilhado de significados, valores e sentimentos.

Sandoval (1994) escreve sobre como a noção de universo simbólico de Berger (1974) se relaciona com o conceito de hegemonia em Gramsci. Diferentes grupos sociais disputam a hegemonia ideológica de determinada sociedade, ou seja, em um mesmo momento histórico há diferentes concepções de mundo em disputa. A luta por hegemonia se traduz no que Gramsci (Coutinho, 2011) define como guerra de posição. Essas seriam as lutas travadas com o objetivo de tornar hegemônicos determinados significados, valores e sentimentos diante da realidade social. A guerra de posição é travada predominantemente na sociedade civil.

Sandoval (1994) defende que a constituição da consciência dos indivíduos está relacionada a instituições da sociedade civil que realizam a mediação entre o indivíduo e a sociedade mais ampla, em especial o sistema escolar. Assim como Gramsci (Portelli, 2002), Sandoval (1994) argumenta que a escola - como outras instituições - é um veículo de propagação de determinadas formas de ver e agir no mundo vinculada hegemonicamente às classes sociais dominantes.

A ideologia, na forma como é trabalhada aqui, não deve ser vista apenas como um conteúdo cognitivo, mas como uma organização subjetiva que possibilita determinadas formas de entender e sentir a realidade. Faz-se necessário agir nas diversas esferas da sociedade civil a fim de alterar a composição ideológica hegemónica. Sandoval (1994) mostra como os interesses das classes dominantes estão ligados a uma consciência truncada própria do cotidiano e do senso comum. Abordaremos no próximo tópico as questões referentes a esses elementos.

Cotidiano e Senso Comum

Fundamentado em Heller (1992), Sandoval (1994) discute como a forma de pensar típica do cotidiano tende a dificultar o processo de conscientização política. Segundo o autor a organização diária da vida cotidiana nos leva a estabelecer mecanismos característicos de uma forma alienada de perceber e agir sobre o mundo. A rotina do dia-a-dia aparece como algo "natural" e é predominantemente guiado pela lógica do senso comum.

A espontaneidade é o traço dominante do cotidiano segundo Sandoval (1994). De forma geral aderimos a padrões de comportamentos, valores e significados hegemônicos de nossa sociedade de maneira imediata, ou seja, lidamos com a realidade diária de forma espontânea e não reflexiva. No fluir das atividades diárias há, via de regra, pouco espaço para ressignificações ou momentos de reflexão. Mesmo porque, se cada individuo adotasse uma postura reflexiva diante das todas as tarefas de sua rotina diária, seria realizada uma parcela ínfima de suas obrigações, impossibilitando a produção e reprodução da vida social.

Além da espontaneidade, Salvador (1994) destaca o economicismo, o imediatismo e o utilitarismo próprios da vida diária. O cotidiano exige do individuo formas de ser que se atenham a superficialidade dos fenômenos e priorizem ao máximo os maiores resultados práticos e imediatos junto aos menores custos - de tempo, energia, dinheiro - possíveis. Por fim, a vida cotidiana conduz a um nível de pragmatismo alienante. Nas palavras de Sandoval (1994:64), "alienação é tipicamente expressada em suposições não-questionadas da inevitabilidade da rotina diária e o 'natural' das desigualdades e dominação nas relações de poder na sociedade, tal como se encontram estruturadas".

Colucci (2007) articula a teoria gramsciana e a psicologia histórico-cultural na elaboração de uma proposta crítica de senso comum. O autor defende que o senso comum não deve ser visto apenas como uma "zona de ignorância" imóvel e acrítica. O senso comum é uma filosofia do cotidiano, uma concepção de mundo espontânea baseada nas vivências sociais dos sujeitos individuais e coletivos. Dada sua origem, o senso comum expressa em sua estrutura contradições presentes nas relações sociais concretas. Assim, mesmo sendo predominantemente marcado por características que conduzem à alienação, é também inerente ao senso comum um potencial critico advindo dos conflitos sociais presentes no contexto social no qual o sujeito está imerso.

O senso comum será entendido como "um sentimento-pensamento-conhecimento, que pelo seu caráter polimórfico e polissêmico, é transformado em cultura, folclore, tradição, representações sociais, experiências pessoais" (Rosa, 2013b:543). As possibilidades de desalienar a concepção de mundo dos sujeitos reside na ação a partir dos potenciais críticos já presentes nas contradições inerentes ao senso comum. Em consonância com Klandermans (1994), Colucci (2007) defende que não se deve entender os processos de conscientização - ou qualquer outro que vise a mudança nas concepções de mundo - como uma ação sobre uma tábula rasa. Os sujeitos possuem sempre uma história e um arcabouço ideológico prévios, os projetos de mudança devem estar vinculados às contradições existentes na atual composição ideológica dos sujeitos. Apenas no diálogo entre a atualidade da concepção de mundo hegemônica e as potencialidades advindas de suas contradições, é possível deslumbrar possibilidades de transformação.

Assim, entendemos que o senso comum - concepção de mundo típica da vida cotidiana - é profundamente marcado por elementos alienantes como a espontaneidade, imediatismo e pragmatismo. No entanto, da mesma forma que nas relações sociais nas quais ele encontra sua gênese, o senso comum possui potenciais de transformação advindos de suas contradições internas. A luta pela mudança da hegemonia ideológica passa pela capacidade de potencializar as contradições presentes no senso comum dos sujeitos, transformando-os.

Emoções e sistema psicológico

Abordaremos agora um elemento de grande importância dentro dos processos de participação política: os afetos3. Nos últimos anos Sandoval tem trabalhado para enriquecer seu modelo de consciência política com fatores de cunho emocional. O pensador caracteriza uma sorte de emoções em duas grandes categorias: mobilizadoras e não-mobilizadoras. As emoções mobilizadoras seriam aquelas que potencializariam as possibilidades da participação política, enquanto que as não-mobilizadoras não afetariam ou diminuiriam tais possibilidades. Importante destacar que essa caracterização não está vinculada a positividade ou negatividade das emoções, ou seja, uma emoção que faça o sujeito se sentir bem não necessariamente potencializa a sua participação política e vice-versa. Por exemplo, a raiva normalmente não é encarada como uma emoção positiva, porém ela possui significativo componente mobilizador4.

Vigotski (2001) também aborda as emoções como um componente que age sobre a potência de ação dos sujeitos. Segundo o pensador soviético

Toda emoção é um chamamento à ação ou uma renúncia a ela. Nenhum sentimento pode permanecer indiferente e infrutífero no comportamento. Ao sermos afetados, se alteram as conexões iniciais entre mente e corpo, pois os componentes psíquicos e orgânicos da reação emocional se estendem a todas as funções psicológicas superiores iniciais em que se produziram, surgindo uma nova ordem e novas conexões (Vigotski, 2001:139).

No sistema vigotskiano as emoções serão entendidas também em seu caráter cultural e histórico. Ou seja, elas não serão analisadas apenas por seu componente biológico, mas pelo papel que desempenham em um drama subjetivo específico, a qual possui sua origem em relações sociais concretas. Assim, o caráter potencializador ou não de determinado sentimento não será dado a priori. O sentimento será entendido dentro do sistema psicológico singular dos sujeitos. Por exemplo, o medo é normalmente entendido como sentimento desmobilizador. No entanto, é comum grupos de mulheres se mobilizarem contra abusos sofridos na vida pública ou privada, ou seja, se mobilizarem contra o medo que sentem diariamente de serem abusadas. O medo dos abusos poderia ser entendido aqui como componente central da mobilização, assim como outros medos podem acarretar outras mobilizações: medo de ficar sem casa (movimento sem teto), medo de passar fome (movimento sem terra), medo de ficar sem emprego (movimento sindical), etc.

As emoções, definidas como funções psicológicas superiores, são entendidas como componentes do sistema psicológico humano, do drama subjetivo (Vigotski, 2000). Segundo Vigotski (2004), mais do que entender o desenvolvimento das funções psicológicas em separado, faz-se necessário entender as mudanças que ocorrem nas relações entre as funções.

A ideia principal (extraordinariamente simples) consiste em que durante o processo de desenvolvimento do comportamento, especialmente no processo de seu desenvolvimento histórico, o que muda não são tanto as funções, tal como tínhamos considerado anteriormente (era esse o nosso erro), nem sua estrutura, nem sua parte de desenvolvimento, mas que o que muda e se modifica são precisamente as relações, ou seja, o nexo das funções entre si, de maneira que surgem novos agrupamentos desconhecidos no nível anterior. (Vigotski, 2004:105)

Os sentimentos serão abordados a partir das mudanças de papeis que eles ocupam no drama subjetivo. Por exemplo, o sentimento de vergonha é despertado a partir de elementos culturais e sociais, mas mais do que isso devemos nos perguntar qual a relação desse sentimento com as outras funções psicológicas. Ele é significado como despotencializador do comportamento ou é sentido como gatilho para a ação na busca de superá-lo? Outro exemplo possível é a alegria. Podemos imaginar que pessoas alegres não se mobilizem, afinal provavelmente não identificam carências significativas. No entanto, também podemos perceber contextos no qual a alegria compõe a mobilização: as gigantescas marchas LGBT que o correm pelo Brasil; ou mesmo a utilização da alegria como mote da campanha pelo fim da ditadura no plebiscito chileno no ano de 1988. A análise da organização subjetiva concreta nos permitirá entender essas relações. Por meio de tal análise será possível compreender como determinada emoção se relaciona com as dimensões da consciência política.

A utilização da ideia de sistema psicológico pode ser produtiva no que diz respeito ao entendimento de como as emoções se relacionam com a consciência política, mas também para abordar a forma como as diferentes dimensões da consciência se relacionam entre si. Talvez seja interessante, além de avaliar as mudanças que ocorrem em cada uma das dimensões e nos sentimentos vinculados a elas, entender as transformações que acontecem nas relações entre tais dimensões. Por exemplo, em determinada consciência política o sentimento de injustiça pode ser determinante na constituição da identidade do sujeito com o grupo oprimido. Para outro indivíduo, porém, o sentimento de injustiça pode emergir predominantemente a partir de sua identidade coletiva com o grupo desfavorecido e não vice-versa. Evidentemente os exemplos aqui abordados são apenas ilustrativos, fazem-se necessários estudos empíricos específicos para verificar a concretude dessas hipóteses.

Em articulação com a teoria gramsciana, defendemos que determinadas organizações subjetivas - em seu caráter cognitivo, afetivo e volitivo - são predominantes em determinados complexos ideológicos hegemônicos. Desta forma, devemos entender que alguns processos subjetivos perpassam grupos sociais como um todo, ainda que se manifestem singularmente a partir das particularidades de cada sujeito. Podemos dizer que assim como há uma ideologia hegemônica em determinado momento e contexto histórico, há também determinadas organizações subjetivas hegemônicas relacionadas a tais momentos e contextos. As organizações subjetivas hegemônicas circunscreverão as possibilidades de consciência política em um contexto social, cultural e histórico. As dimensões da consciência política - e os sentimentos ligados a elas - podem se caracterizar e se relacionar de forma diversa, no entanto as possibilidades e limites dessas caracterizações e relações se darão a partir do conflito entre as diferentes concepções de mundo vigentes na sociedade, a partir da luta pela hegemonia ideológica em curso.

 

Conclusões: práxis e consciência

Ao longo do texto buscamos brevemente abordar algumas articulações possíveis entre o modelo de consciência política de Salvador Sandoval e a proposta de práxis política a partir dos pensamentos de Vigotski e Gramsci. As indicações presentes aqui são apenas iniciais, porém apontam possibilidades de desenvolvimento e aprofundamentos significativos.

A consciência política é entendida como componente psicossocial relacionado diretamente à práxis política. As diferentes configurações das dimensões da consciência política - circunscritas pela luta pela hegemonia ideológica de determinado momento histórico - potencializarão ou não a práxis política individual ou coletiva, assim como tal consciência será também afetada no curso da participação. A consciência política pode ser compreendida como um subsistema psicológico, ou seja, um sistema dentro do sistema psicológico mais amplo. Assim sendo, suas dimensões relacionam-se e afetam-se mutuamente, assim como a consciência política relaciona-se, de forma dialética, a outras funções psicológicas, em especial as emoções. As relações e características das dimensões da consciência política serão construídas a partir das experiências sociais vivenciadas pelos sujeitos, sendo o ambiente ideológico da época o seu principal circunscritor.

 

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Recebido em 11/01/2015.
Revisado em 01/06/2015.
Aceito em 19/08/2015.

 

 

1 "[This model of political consciousness depicts] the various social psychological dimensions that constitute an individual's political awareness of society and himself/herself as a member of that society and consequently represents his/her disposition to action in accordance with that awareness. By political consciousness we understand a composite of interrelated social psychological dimensions of meanings and information that allow individuals to make decisions as to the best course of action within political contexts and specific situations".
2 A proposta de práxis política é profundamente influenciada pela obra Sánchez Vazquez (2007).
3 Não adotaremos nesse texto a distinção entre afetos, emoções e sentimentos. Tais definições deverão ser abordadas com maior cuidado em trabalhos posteriores.
4 Os elementos aqui expostos estão em processo de elaboração e foram discutidos no Núcleo de Pesquisa em Psicologia Política e Movimentos Sociais da PUC-SP no ano de 2015. Para uma síntese dos referenciais abordados, consultar Turner (2009).

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