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Revista Psicologia Política

versão impressa ISSN 1519-549X

Rev. psicol. polít. vol.15 no.34 São Paulo dez. 2015

 

EDITORIAL

 

O Porvir da memória: lembranças e considerações inacabadas de um editor

 

The Future of memory: memories and unfinished considerations of an editor

 

El Más Allá de la memoria: recuerdos y consideraciones inacabadas de un editor

 

L'Avenir de la mémoire: mémoires et considérations inachevées d'un éditeur

 

 

Alessandro Soares da Silva

Editor ABPP - USP - Brasil

 

 

Esse é o último fascículo da Revista Psicologia Política - RPP - que edito. Já sinto em minha boca o gosto da saudade. Mas também o sabor de um trabalho feito com zelo e dedicação. Lembro o dia em que sugeri aos professores Salvador Sandoval e Marco Aurélio Prado, durante uma reunião para produzir os anais do I Simpósio Nacional de Psicologia Política ocorrido em maio de 2000, que usássemos o material para criar a revista, ao que ambos assentiram. A partir dali, buscamos recursos para lançar o primeiro número. Procuramos professores e professoras da PUCSP cujas produções entendíamos que ao menos tinham interface com o campo da psicologia política. Buscamos também apoio da Associação de Pós-Graduandos da PUCSP que decidiu financiar parte dos gastos para viabilizar a primeira edição.

A primeira equipe teve como editores da revista o professor Sandoval, um pesquisador sênior, e o professor Prado, recém-doutorado sob a orientação do professor Sandoval. Juntos lideraram uma equipe de editores executivos formada por pós-graduandos, a saber: Márcia Prezotti Palassi, Maria Ester Rodrigues, Soraia Ansara, Zartú Giglio e eu. Foi um momento bastante estimulante aquele. A emergência da Psicologia Política de forma institucional (a criação de uma associação e de uma revista) gerava euforia naqueles que sentiam falta de um espaço próprio para refletir sobre elementos objetivos e subjetivos dos fenômenos políticos. Mas também gerava temor, naqueles que pensavam que a iniciativa poderia gerar rupturas na psicologia e na psicologia social, visto que todos nós estávamos formados e vinculados ao programa de pós-graduação em psicologia social da PUCSP.

Por essa razão, nos anos iniciais, a associação decidiu realizar suas eleições de diretoria durante os Encontros Nacionais da ABRAPSO. Decerto, a Psicologia Política que surgia daquela iniciativa não queria se demarcar como uma subárea da Psicologia Social ou como um mero campo de aplicação as teorias próprias da psicologia social. Já era claro que a psicologia política era a resultante de um encontro de variadas forças e que, no Brasil, a Psicologia Social foi seu lugar de acolhimento e gestação, mas nunca seu limitador de ação.

Isso fica bastante claro quando observamos que, logo nos primeiros anos, a Revista Psicologia Política recebeu contribuições de diversos autores com origens intelectuais em outros espaços de produção de saber. Sociólogos, Antropólogos, Economistas, Filósofos e Psicólogos trazem destes lugares de saber seu modo de olhar para os fenômenos que estudam, mas o fazem de maneira a incorporar posicionamentos hermenêuticos interdisciplinares que dão sustentação ao que é o objetivo desta revista: consolidar o campo psicopolítico e não uma subdisciplina (Silva, 2012abc, 2015).

O processo decisório era resultado tanto da leitura dos textos pela equipe quanto da avaliação de pareceristas. Quais seriam aceitos e publicados era resultado da decisão de todos nós. Essa gestão mais coletiva não durou tanto, pois cada qual foi para um canto dar continuidade às suas vidas, à medida que concluía sua passagem pela pós-graduação. Nesse interim, o professor Prado é aprovado em concurso para docente na UFMG e a RPP passa a ser coeditada agora pelo Núcleo de Psicologia Política e Movimentos Sociais da PUCSP em conjunto com o nascente Núcleo de Psicologia Política da UFMG. A distância certamente mudou a forma de gerir a revista e provocou renovação dos membros que atuavam no auxílio das atividades editorias. Mesmo assim ela sempre foi bastante colaborativa. A parceria entre esses Núcleos se deu até 2007, quando a diretoria da ABPP e seus editores decidiram abrir edital para novos editores científicos.

Foram sete anos à frente da RPP, oito se contarmos o ano de criação e concepção. Sandoval e Prado editaram sete volumes e 14 fascículos, nos quais publicaram 102 textos entre artigos e resenhas. Sob a editoria de Salvador e Prado a Revista foi uma das fundadoras da ABECIP, Associação Brasileira de Editores Científicos em Psicologia Política e esteve presente entre os membros de sua diretoria em algumas gestões. A revista consolidou-se nesse período e veio a compor com um pequeno número de periódicos dedicados à Psicologia Política existentes nos Estados Unidos, Espanha, França, Argentina, Romênia e Alemanha.

A partir de 2008, assumimos a editoria o Professor Celso Zonta da UNESP Bauru e eu, agora docente da Universidade de São Paulo. A decisão de concorrer à editoria se deu a partir da experiência de fundação do Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicologia Política, Políticas Públicas e Multiculturalismo, que era coordenado por nós dois e mantinha braços em ambas as instituições. A experiência de colaboração científica entre nós foi essencial para estabelecermos metas e prioridades de ação para a RPP. Iniciamos essa jornada olhando para o futuro (Silva e Zonta, 2008a).

Infelizmente, nem tudo que entendíamos como bom e salutar era o que o sistema de avaliação entendia. Os critérios de avaliação dos periódicos eram resultantes do processo de avaliação do sistema de pós-graduação e deveriam valer apenas para isso: avaliar a produção científica de docentes e estudantes da pós-graduação brasileira. Na realidade, o que sucedeu foi a avaliação dos próprios periódicos, que passaram a ser etiquetados como melhores ou piores segundo essa lógica, algo sobre o que já manifestamos nossa posição no último editorial (Silva, 2015; Silva e Corrêa, 2015).

Destarte, na perspectiva das comissões avaliadoras, receber artigos de autorxs que estão em diferentes áreas de conhecimento da CAPES, ao invés de valorizar a revista como um veículo interdisciplinar no qual diferentes campos contribuem, a levava a uma punição, pois as avaliações em cada área eram baixas por que não eram tantos os artigos advindos de cada uma delas. Não havia número suficiente para que ela fosse bem avaliada em cada uma. Para piorar, se fazia uma "média" das avaliações de área para avaliá-la na área interdisciplinar e isso servia como um golpe de misericórdia: nem na área na qual mais bem avaliada poderia ser, a RPP o era. E o recebimento de artigos de pesquisadorxs estrangeiros em nada contribuía para melhorar a nota nas diferentes áreas, pelo simples fato de que essas pessoas não fazem parte do sistema brasileiro de pós-graduação.

Na verdade, os critérios não avaliam a qualidade real do conteúdo e isso sempre foi um dilema vivido na editoria da revista. Como atender a essa lógica de mercado sem prejudicar a qualidade da revista? Sempre priorizamos a qualidade do conteúdo. E abrimos espaço para as múltiplas formas de fazer Psicologia Política. Sempre privilegiamos a pluralidade epistêmica, metodológica e hermenêutica. Pessoalmente entendemos a psicologia política como um campo interdisciplinar do saber (Silva, 2012ab; 2015), mas a revista sempre esteve aberta a outras possibilidades de entendimento. Nossos editoriais, portanto, apresentaram sempre a psicologia política que emergia em cada fascículo a partir da produção veiculada naquele número.

Quiçá ao manifestarmo-nos sobre temas e questões, deixamos nossa posição de editor sobre o campo luzir, mas a partir do momento que comentávamos cada texto, o que surgia era nossa leitura de cada texto. Apresentar o volume não implica nossa visão ou a visão institucional da RPP sobre a Psicologia Política, mas sim a Psicologia Política em construção nos diversos grupos e lugares nos quais há quem se debruce sobre o fazer da Psicologia Política. Não estamos de acordo com delimitar o que é a Psicologia Política. Fazê-lo é manear a capacidade criativa de homens e mulheres que vêm de múltiplos lugares e tradições do saber. Visões que tendem ao oficialismo servem a interesses de grupos que estão no poder momentaneamente, como bem apontaram José Manuel Sabucedo e Mauro Rodríguez (2000).

Entendo que essa foi a visão editorial com a qual a revista se construiu: uma psicologia política interdisciplinar e plural, aberta ao novo e capaz de se reconhecer na diferença. Durante o período em que fui editor único, mantive o olhar que comecei juntamente com o amigo Celso Zonta, com quem pude compartilhar esse belo e instigante projeto-realidade.

A partir de 2016 a revista fará novos voos. Como já anunciamos, ela estará sob a condução de uma nova equipe editorial coordenada pelos editores Prof.ª Dr.ª Aline Reis Calvo Hernadez (UERGS), líder do Grupo de Pesquisa em Psicologia Política Educação e Histórias do Presente e atual Secretária-Geral da Associação Brasileira de Psicologia Política, e pelo Prof. Dr. Frederico Viana Machado (UFRGS), atual Vice-presidente Regional Sul da ABPP. Para apoiá-lxs nesse trabalho editorial, assumem o papel de editores-associados o Prof. Dr. Frederico Alves Costa (UFAL) e a Prof.ª Dr.ª Conceição Firmina Seixas Silva (UERJ). A associação de quatro instituições consolidadas de ensino e pesquisadores que espacialmente estão em diferentes regiões do país, fará com que a projeção da revista na comunidade científica venha a crescer, tornando a RPP ainda mais pujante. Essa associação, para alguns, inusitada, é fruto dessa pluralidade de olhares e fazeres no campo psicopolítico.

Outro aspecto positivo é que uma presença mais visível nos estados do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Alagoas auxiliará na difusão da revista e no consequente aumento do estoque de artigos em processo editorial. O incremento do volume dos artigos recebidos que pode surgir da ação dessa equipe contribuirá para que a revista seja um canal de difusão do conhecimento produzido no Brasil e na América Latina cada dia mais forte. No campo da Associação Ibero Latino-americana (AILP), a editoria do número coordenado pela AILP segue a cargo do Prof. Dr. Agustin Espinosa Pezzia (PUCP - Peru).

Como não poderia ser diferente, cabe aqui registrar que a escolha dessa nova equipe editorial coube a uma comissão nomeada pela ABPP e que se pautou no edital público lançado pela diretoria da associação em 23 de outubro de 2015. A comissão foi composta pelos ex-editores da RPP e por mim na qualidade de editor atual. Assim, compuseram a comissão: Prof. Dr. Salvador Sandoval (PUCSP), Prof. Dr. Marco Aurélio Prado (UFMG), Prof. Dr. Celso Zonta (UNESP), e eu, Prof. Dr. Alessandro Soares da Silva (USP). Na sequência deste editorial, está o texto do edital da ABPP para selecionar a nova equipe editorial.

E ao escrever esse editorial, não posso deixar de mencionar a equipe que atuou ao meu lado e de Celso Zonta. Agradecemos de maneira especial a Ana Rita Ferreira, Beatriz Cari, Ernesto Pacheco Richter, Elvira Riba Hernández Fabiano Harada, Fabio Bosso, Felipe Corrêa, Guilherme Borges da Costa, Hugo Danilo Arruda, João Gabriel Neves Bordon, Lorraine Lopes Souza, Marcos Pereira da Soledade Jr., Mariana Rocha Oliveira, Martin Jayo, Ramon Zago, Thomaz Ferrai D'Addio e Vivian Urçulino. Em oito anos à frente desse trabalho, foram 16 bolsistas de extensão e de pós-graduação que trabalharam na revista. A todxs quero registar minha gratidão pelo excelente trabalho que realizaram. Em particular quero agradecer de modo muito especial a dedicação e trabalho de Hugo Danilo Arruda, Lorraine Lopes Souza e Marcos Pereira da Soledade Junior. Com esses três estudantes (à época!) de Gestão de Políticas Públicas, Lazer e Turismo e Sistemas de Informação da Escola de Artes Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo, eu mesmo, na companhia de Celso Zonta descobri como ser um editor e enfrentei os desafios inicias da revista, a começar pelos processos de indexação e de disponibilização no PEPSIC, de revisão de conteúdo e gráfico que contou com o apoio inestimável de cada um deles.

A vocês que estiveram nessa luta diária durante esses oito anos de editor, meu muito obrigado. Pelas parcerias na RPP e no GEPSIPOLIM.

Não poderia deixar de mencionar a Luciane Pansolin que nesses anos de editor foi minha parceira de produção gráfica da revista. Cuidadosamente revisando os manuscritos e maquetando a RPP. Obrigado.

Finalmente, quero registrar meu agradecimento ao CNPq que durante alguns anos apoiou a revista, ao Lato Senso em Psicologia Política que desde 2010 assumiu grande parte dos custos da RPP e às diferentes diretorias da ABPP que apoiaram nosso trabalho. E aqui me permito destacar a diretoria presidida pelo Prof. Dr. Fernando Lacerda Jr. (UFG) e secretariada pela Prof.ª Dr.ª Aline Hernandez (UERGS). Seu apoio e presença foram inestimáveis.

Ao agradecer a cada um posso estar esquecendo de alguém e por isso desculpem-me. Mas não posso deixar de recordar pessoas que não posso listar nesse editorial. Refiro-me às centenas de colegas que enviaram artigos, publicados ou não, e a quem avaliou cada um desses manuscritos. Autores e pareceristas fizeram e fazem possível o trabalho de um editor e sua equipe. Agradeço o empenho e cuidado de cada um ao escrever e ao avaliar os escritos. Muitíssimo obrigado!

Entrego a essa nova equipe o trabalho de muitos para que sigam zelando por ele e aperfeiçoando o que for necessário e criando o que a imaginação permitir para que a RPP siga firme e plural. Recordo muitas coisas nessa hora. Recordo dos "Fredericos" ainda estudantes de graduação, mestrado e doutorado. Recordo deles como parte da equipe que apoiou o período no qual os professores Sandoval e Prado estiveram à frente do Periódico. Recordo da hoje professora Hernandez ainda estudante na Espanha, combativa na luta pela defesa dos direitos dos estudantes de pós-graduação no estrangeiro durante a reta final da Gestão FHC. Recordo de cada um de vocês como autores e como pareceristas. Vocês, sempre disponíveis, muito me ajudaram na gestão da Revista Psicologia Política e por isso, "Fredericos" e Aline, muito obrigado. Espero poder auxiliá-lxs nessa nova fase da relação de vocês com a RPP. Alegra-me que as editorias principal e auxiliar sejam compartilhadas com equidade de gênero. O tema gênero sempre foi uma preocupação de nossa atuação como editor.

Muitas vezes a atividade de editor é muito solitária e pesada, mas na maior parte é uma constante ocasião de encontros ricos e de muito aprendizado. E quero recordar um que me marcou muito. No meu primeiro ano de editor, ao revisar os textos submetidos e tentando localizar de onde vinham, me deparei com o texto "Una propuesta de categorización de la participación política de jóvenes cordobeses" (Brussino, Rabbia e Sorribas, 2008) e descobri que em Córdoba há bastante tempo funcionava um grupo de Psicologia Política que era desconhecido de todos nós. Imediatamente escrevi para saber mais do grupo coordenado pela Professora Silvina Alejandra Brussino (Brussino, Rabbia e Sorribas, 2008). Desse contato organizamos um encontro entre nossos grupos de pesquisa e desenvolvemos uma agenda que incluía intercâmbios de pesquisadores e a construção de um projeto alternativo para a psicologia Política feita na América Latina e Península Ibérica. Tive o prazer de, junto com essa importante intelectual, trabalhar arduamente para a construção da AILPP. Descobrimos interesses acadêmicos e preocupações similares, e juntos buscamos articular uma rede que se formalizou em 2011, mas que teve início em 2008. Não fosse minha condição de editor, não teria conhecido Silvina e, quem sabe a AILPP não existiria, ao menos com a conformação que tem hoje. A amizade e o trabalho acadêmico com os e as colegas cordobeses que hoje desenvolvo teve como facilitador a RPP.

E é isso que espero para o porvir da revista: que ela seja cada vez mais um canal de encontros, de possibilidades e descobertas. Desejo que ela seja um espaço amplo e aberto à diversidade, capaz de acolher diferentes posições sobre o que a psicologia política possa estar sendo, pois, como disse Le Bon (1921:4) "A Psycologia Política participa da incerteza da sciencias sociaes". E a incerteza me leva a investigar e a me deparar sempre com novas perguntas que, por mais que obtenha respostas, sempre me deixarão com dúvidas e inquietações.

E falando em inquietações já vividas pelos precursores da Psicologia Política da virada do século XX, quero apresentar esse fascículo 34 da RPP.

O primeiro manuscrito chama-se Futebol, Massa e Poder: reflexões sobre a "teoria do contágio" e nos permite fazer algumas ligações com as proposições daquele então. O texto é da lavra de Felipe Tavares Paes Lopes (UNISO - Brasil) e Mariana Prioli Cordeiro (USP - Brasil). Neste artigo, Lopes e Prioli analisam os limites das proposições lebonianas sobre o comportamento das multidões. Ao fazê-lo eles questionam se essas teorizações poderiam servir como ferramenta de análise científica da violência no futebol. No processo, questionase a existência ou não de uma racionalidade no fenômeno da violência vivida no futebol, bem como os possíveis efeitos político-ideológicos da teoria do contágio. Nesse sentido, esse texto abre caminho ao desenvolvimento de psicologia política do esporte e busca refletir criticamente sobre um conjunto de explicações contemporâneas que guardam relações com argumentos dezenovecentistas.

Os pesquisadores Edgley Duarte Lima e Pedro Oliveira Filho (UFPE - Brasil) são os autores do artigo Discurso e Identidade: a construção discursiva do nordeste na mídia paraibana. Neste texto, analisam-se as representações discursivas sobre o Nordeste na mídia paraibana. A questão central do texto está no estudo das semelhanças e diferenças entre as representações atuais e as tradicionais que forjam a identidade regional nordestina no século XX. Contrastam na análise a imagem da seca e do subdesenvolvimento com a imagem de uma região em franco desenvolvimento econômico, social e produtora de conhecimento. Visivelmente, as implicações políticas dessa análise discursiva permitem observar novas formas de subjetivação marcadas por idiossincrasias, mas que apontam para uma percepção de si mais positiva e ativa. Esse texto é um exemplo do poderíamos chamar de Psicologia Política do Discurso construída a partir de referentes da Psicologia Social.

Em Concepções de Conselheiros Tutelares Acerca da Infância: interconexões entre risco e proteção, Jessica Helena Vaz Malaquias (UDF - Brasil) e Regina Lúcia Sucupira Pedroza (UnB - Brasil) trazem ao debate quais são as concepções sobre infância daquelxs que trabalham para sua proteção. Como já tratado em diversas ocasiões aqui na RPP são diversas as contradições e idiossincrasias que colorem a produção social sobre infância no Brasil. Essas variações, muitas vezes eivadas de contradições, influem no campo das políticas públicas voltadas a essa população e podem ser vistas nas distintas formas de atuar de conselheirxs e profissionais envolvidos com o Sistema de Garantia de Direitos. A variedade de concepções a respeito da criança em situação de risco revela contradições nos discursos de atores e instituições envolvidas nesse campo do cuidado da Infância. A culpa e a negligência familiar, bem como a criança como um sujeito precário e desempoderado são constantes no discurso e faz da política um espaço contraditório, de tutela e que não contribui para a emancipação. Fica clara a necessidade formativa desses profissionais para que autonomia e emancipação passem a ser uma das metas da ação pública votada à infância e juventude.

Podemos destacar que este texto - e os outros quatro que seguem - articula elementos relevantes para pensarmos discursivamente os sentidos subjetivos e objetivos da ação pública e os limites das perspectivas tradicionais acerca das políticas públicas. Pensar a ação pública nos remete a repensar políticas públicas como decorrência da ação pública que é multicêntrica com já observou Gilles Massadier (2003).

O manuscrito Consumo de Medicação Psicotrópica em uma Prisão Feminina éo resultado de um trabalho coletivo feito por Rafael de Albuquerque Figueiró (UnP - Brasil), Magda Dimenstein (UFRN - Brasil), Delanno Alves (UnP - Brasil) e Gerlândio Medeiros (UnP - Brasil). O texto aborda a questão do uso de psicotrópicos em prisões. Esta situação estudada é relevante do ponto de vista sociopolítico e abre espaço para o debate da produção de subjetividades e sofrimentos próprios da realidade carcerária. Ao realizarem um mapeamento do uso de medicação psicotrópica em uma prisão feminina, xs autorxs se deparam com a realidade de que essas mulheres passaram a fazer uso de medicação após a entrada na prisão, sendo o abandono uma das razões. Há nesse texto uma porta para refletir a qualidade e o modelo de ação pública e de direitos humanos a partir da psicologia política, assim como o lugar do afeto e do cuidado em processos de intervenção estatal como é o caso do sistema prisional.

Renata Ovenhausen Albernaz e Bruno Silva Kauss (UFRGS - Brasil) nos brindam com o artigo Reconhecimento, Igualdade Complexa e Luta por Direitos à População LGBT Através das Decisões dos Tribunais Superiores no Brasil e dão continuidade à temática do acesso ao direito e ao respeito da condição humana para populações marginais. Ao discutirem o papel do judiciário na garantia dos direitos que sistematicamente são negados, xs autorxs nos permitem aprofundar elementos próprios das lutas políticas dos movimentos sociais em uma sociedade heteronormativa e patriarcal. Ao se debruçarem sobre as decisões de tribunais superiores relativas aos movimentos e população LGBT, Albernaz e Kauss contribuem significativamente para o desenvolvimento do campo da ação coletiva e dos movimentos sociais relacionados ao campo das políticas públicas.

Como que dando continuidade a esse debate, Guilherme E. Vergili, Felipe G. Brasil e Ana Cláudia N. Capella (UFSCar - Brasil) apresentam axs leitorxs da RPP o texto Institucionalização e Descentralização do Movimento LGBT no Brasil. Nele discutem as mudanças no modo de se pensar políticas públicas a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988. Além disso, o processo de redemocratização fez com que militantes de movimentos sociais se dividissem entre ação própria de movimentos sociais e a ação como agentes de Estado, o que afetou diretamente os chamados movimentos LGBTs. Ao analisarem esse fenômeno, xs autorxs elegem como estudo de caso a realidade da cidade paulista de São Carlos. Focam no exemplo da ONG Visibilidade LGBT, na realização de Paradas e instituição do que chamam de tripé da cidadania LGBT na cidade de São Carlos.

Trabalhadora e Mãe: papéis, identidade, consciência política e democracia é o manuscrito da lavra de Beatriz Cicala Puccini (PUCSP - Brasil), Mariana Luzia Aron (UNINOVE - Brasil) e Evelyn Barreto Santiago (FECAP - Brasil), que pauta a questão de gênero em uma sociedade falocêntrica e que não leva em consideração a complexidade da condição de vida da mulher. Por essa razão, as autoras discutem os principais conflitos que surgem da conjunção entre trabalho e maternidade. Ainda que esse tema seja recorrente na literatura, elas lançam um olhar sobre como o incremento da inclusão da mulher no mercado de trabalho e sua maior participação em postos de comando tradicionalmente masculinos impõem às mulheres um processo de privação, visto que, para inserir-se nesse mundo de poder, suas relações com seu corpo e família, distintas das que o homem produz, surgem repetidamente como problema. O artigo aponta para a persistência de representações enaltecedoras da maternidade e que as força a escolher, perversamente, entre o trabalho ou a maternidade. Ao fazerem essa discussão, as autoras apontam para a relevância desta situação como condicionante social que influi na produção de políticas públicas que sejam geradoras de equidade de gênero na sociedade atual.

Aqui cabe pontuar que, a nosso ver, esses cinco últimos artigos circunscrevem o que temos chamado de Psicologia Política da Ação Pública e das Políticas Públicas (Silva, 2012b), pois focam seu olhar sobre o Estado brasileiro e sua conduta frente às demandas e direitos LGBTs, de mulheres ou outras minorias, bem como entendem que o papel da produção das políticas públicas não é privilégio do Estado e sim um processo menos vertical e estadocêntrico no qual múltiplos atores estão envolvidos como propõe Gilles Massadier (2003). Entendo, inclusive, que uma parcela da produção da RPP sobre políticas públicas e movimentos sociais poderia encontrar lugar sob esta denominação, e aponta para uma aplicação da Psicologia Política que cresce dia a dia e pode ser central no futuro do fazer e pensar psicopolítico (Silva e Zonta, 2008b).

Em Narrativas do silêncio: movimento da luta antimanicomial, psicologia e política, Pâmela de Freitas Machado (UNIVATES - Brasil), Helena Beatriz K. Scarparo (PUCRS - Brasil), Aline Reis Calvo Hernandez (UERGS - Brasil) buscam, a partir de pesquisa histórica, aproximar práticas profissionais no campo da psicologia e da saúde mental coletiva para compreender as trajetórias de militantes da Reforma Psiquiátrica do Rio Grande do Sul nas décadas de 1980 e 1990. O esforço das pesquisadoras propiciou no entendimento de como essxs militantes formularam noções de política durante suas trajetórias no campo da saúde mental. Para isso as autoras sustentam sua argumentação no pensamento de Hannah Arendt e refletem, por meio dessas trajetórias, sobre as relações entre política e psicologia. Tal debate certamente está na origem da própria Psicologia Política que, desde os textos mais antigos, faz discussões relevantes a partir de histórias de vida, como é o caso de Victor de Britto (1908). A leitura desse artigo me levou a pensar que as autoras, a partir de outro olhar metodológico e teórico, acabam contribuindo para repensarmos o campo das psicobiografias políticas.

De Oprimido a Bon Vivant: trajetória do administrador brasileiro segundo a publicidade, de autoria de Martin Jayo, Andrea Leite Rodrigues (USP - Brasil) e Silma Ramos Coimbra Mendes (PUCSP - Brasil) faz uma análise atenta e divertida da transformação discursiva de um campo profissional. Ao fazê-lo, elxs mostram como a dimensão política do discurso pode propiciar mudanças no âmbito do poder com o qual sujeitos estão simbolicamente investidos. Para construir sua análise, xs autorxs apoiam-se na noção de ethos discursivo e de cenografia, tomados de Maingueneau, e examinam publicidades veiculadas entre 1961 e 2010 em revistas especializadas. Outra vez aqui emerge a ideia de trajetória, mas com uma outra abordagem, pois a preocupação é entender como imagens acerca do administrador são discursivamente construídas não por ele próprio, administrador, mas pela publicidade. Nesse sentido este texto insere-se em um campo clássico da psicologia política que é a comunicação política e de massa, e nos permite problematizar modos de atuação desses profissionais na atualidade.

Fechamos a sessão de artigos desse fascículo 34 da Revista Psicologia Política com um texto que procura contribuir para o desenvolvimento teórico da Psicologia Política. Em Contribuições do Pensamento Pós-Colonial à Psicologia Política, Candida Beatriz Alves e Polianne Delmondez (UnB - Brasil) assumem o desafio de aproximar a Psicologia Política dos estudos pós-coloniais e localizá-la (ao menos em parte) no campo das ciências humanas. Para tanto, as autoras buscam refletir sobre os debates em torno da neutralidade do sujeito e seus determinantes sociais, claramente europeus. Opondo-se a essa perspectiva, elas encontram nas obras de Spivak, Bhabha, Dussel e Mignolo o suporte para problematizar o eurocentrismo e, consequentemente, as visões de mundo, de história e sobre o ser humano que dele se desprendem e ocultam determinações político-econômicas.

Essa discussão sobre pós-colonialidade tem aparecido de tempos em tempos e nos remete a uma forma de fazer psicologia política que encontra no pensamento de Matín-Baró (2013, 2014) um expoente. E que inaugura uma perspectiva contra-hegemônica. Ao se proporem a escrever este artigo, as autoras voltam a pôr na cena intelectual o debate acerca do compromisso social da ciência e dos cientistas. E isso é relevante, pois faz com que a comunidade de pesquisadores em Psicologia Política, mesmo em sua diversidade, não esqueça as consequências que posições e escolhas que fazemos têm no mundo da vida.

Felizmente, esse debate está presente de formas diversas nos artigos deste número da RPP e no conjunto dos manuscritos publicados na coleção da RPP. Quem sabe esse posicionamento político, que não deixa de fazer o debate ideológico, seja um dos denominadores comuns que encontramos nela e que conecte passado, presente e futuro. Talvez esse modo de fazer Psicologia Política nos deixe antever o porvir dessa publicação.

Finalizamos esse número com a resenha de Domênico Uhng Hur (UFG - Brasil) intitulada A Psicologia Política no Interstício das Disciplinas. Nela, Hur apresenta a obra No interstício das disciplinaridades: a psicologia política publicada em 2015 pela editora curitibana Prismas. Ela inaugura uma coleção sobre Psicologia Política. Esta obra de 310 páginas é uma coletânea de textos que alterna textos originais e textos inéditos na língua portuguesa, tendo sido ela organizada pelos pesquisadores Alessandro Soares da Silva (USP - Brasil) e Felipe Corrêa (Mackenzie - Brasil). Segundo a leitura de Hur, o livro permite definir e descrever o campo, objetivos e objetos da Psicologia Política brasileira e latino-americana, sendo que, para os organizadores, a Psicologia Política nasce e se gera no interstício, no espaço "entre" as disciplinas. Nessa abordagem a Psicologia Política não se pretenderia uma disciplina, fechada, delimitada e localizada, mas sim um espaço de encontro entre distintas disciplinas, como Filosofia, Ciências Sociais, Politologia, Comunicação Social, Psicologia, Pedagogia eAdministração. Como diz Hur (2015), "É antidisciplinar, ou melhor, entredisciplinar [...] um campo marcado pela complexidade do encontro das diferenças".

Ao olhar o conjunto desses manuscritos que ora publicamos, vejo lampejos de minha trajetória intelectual e profissional. Vejo minha vida. Encontro-me nas páginas da RPP e desejo que a nova equipe também faça essa experiência. Mas esse encontro só me foi possível porque, em algum lugar do passado, alguém me falou da psicologia política e me possibilitou um encontro com meu mestre e amigo Prof. Dr. Salvador Antonio Mireles Sandoval. Foi pelas mãos dele que pude aprender, questionar, superar angústias e encontrar meu caminho. Foi a seu lado que aprendi a voar e a me tornar livre pensador. Ele me apresentou um lugar desconhecido, esquecido, perdido, como diz Alexandre Dorna (2004), no qual me encontrei e procuro, ainda hoje, me reinventar constantemente. Nesse espaço intersticial me senti livre para criar intelectualmente e militar politicamente.

E é por isso que agradeço o acolhimento de mestre e amigo que recebi de Salvador Sandoval, a quem pude suceder na editoria da RPP. Esse feito quem sabe foi meu primeiro momento de reconhecimento de madureza intelectual e profissional. Ter sido editor da RPP me ajudou a crescer ainda mais e agradeço àqueles que me confiaram essa missão que agora passo a essa nova geração certo que me superarão e aportarão coisas que só eles poderiam aportar à RPP e à própria Psicologia Política.

E quem foi esse alguém que me abriu essa janela em um momento em que nada via diante de mim nos idos de 1997?! Foi Jaqueline de Oliveira Moreira, que, sem saber, mudou os rumos de minha vida quando me convidou a deixar para trás os "tijolos amarelos e as portas azuis". Jaque, muito obrigado!

Encerro minha participação na RPP desejando como sempre uma boa leitura!

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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