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Revista Psicologia Política

versão impressa ISSN 1519-549X

Rev. psicol. polít. vol.15 no.34 São Paulo dez. 2015

 

ARTIGOS

 

Institucionalização e descentralização do movimento LGBT no Brasil

 

Institutionalization and decentralization of the LGBT movement in Brazil

 

Institucionalización y descentralización del movimiento LGBT en Brasil

 

Institutionnalisation et de la décentralisation du mouvement LGBT au Brésil

 

 

Guilherme E. VergiliI; Felipe G. BrasilII; Ana Cláudia N. CapellaIII

IGraduado em Administração Pública pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Brasil, e mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, Brasil. efraimvergili@gmail.com
IIBacharel em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade de São Paulo, Brasil, mestre e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, Brasil. Realizou estagio doutoral na Universidade Estadual da Carolina do Norte, Raleigh, NC, Estados Unidos da América. fbrasil.pp@gmail.com
IIIProfessora-Doutora do Departamento de Administração Pública da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Araraquara, SP, Brasil, e professora-colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, Brasil. acapella@terra.com.br

 

 


RESUMO

Com a Constituição Federal de 1988 e a redemocratização do Estado, fundamentados, sobretudo, por princípios democráticos e pela descentralização federativa, surge uma dinamização no modo de formular e gerenciar políticas públicas no país. Neste momento, grupos do movimento LGBT passam a se estruturar fortemente no formato de organizações não governamentais estabelecendo uma atuação ambígua ao mesmo tempo em que se colocam como movimento social e prestadores de serviços públicos. O objetivo deste trabalho é revisitar a construção e institucionalização do movimento LGBT no Brasil, evidenciando a descentralização de canais de participação institucional voltados para o setor LGBT por meio da análise da criação da ONG Visibilidade LGBT, a realização de Paradas e instituição do tripé da cidadania LGBT na cidade de São Carlos.

Palavras-chave: Descentralização, Institucionalização, Movimento LGBT, ONGs, Políticas Públicas.


ABSTRACT

With the Federal Constitution of 1988 and the democratization of the state, based, above all, by democratic principles and the federative decentralization comes a promotion in order to formulate and manage public policies in the country. At this time, the LGBT movement groups spend heavily structure in the form of non-governmental organizations establishing an ambiguous performance while facing as a social movement and public service providers. This paper is to revisit the construction and institutionalization of the LGBT movement in Brazil, highlighting the decentralization of institutional participation channels aimed at the LGBT sector through the analysis of the creation of the NGO LGBT visibility, conducting stops and citizenship tripod institution LGBT in the city of São Carlos.

Keywords: Decentralization, Institutionalization, LGBT Movement, NGOs, Public Policy.


RESUMEN

Con la Constitución Federal de 1988 y la democratización del Estado, basada, sobre todo, por los principios democráticos y la descentralización federativa viene una promoción con el fin de formular y gestionar políticas públicas en el país. En este momento, los grupos del movimiento LGBT pasan en gran medida la estructura en forma de organizaciones no gubernamentales que establecen una actuación ambigua mientras se enfrenta como un movimiento social y los proveedores de servicios públicos. El objetivo de este trabajo es revisar la construcción e institucionalización del movimiento LGBT en Brasil, destacando la descentralización de los canales de participación institucionales dirigidas al sector LGBT a través del análisis de la creación de la visibilidad de las ONG LGBT, la realización de paradas y la ciudadanía institución trípode LGBT en la ciudad de San Carlos.

Palabras clave: Descentralización, Institucionalización, Movimiento LGBT, ONG, Políticas Públicas.


RÉSUMÉ

Avec la Constitution fédérale de 1988 et la démocratisation de l'État, sur la base des principes démocratiques et de la décentralisation fédératve une nouvelle manière de formuler et de gérer les politiques publiques dans le pays se dynamise. Dans ce moment, les groupes du mouvement LGBT dépensent prendent la forme d'organisations non-gouvernementales, et étlablissent une performance ambigu, de mouvement social au même temps que de fournisseurs de services publics. Le but de cet article est de revoir laconstruction et l'institutionnalisation du mouvement LGBT au Brésil, en soulignant la décentralisation des canaux de participation institutionnels destinés au secteur LGBT à travers l'analyse de la création de l'ONG Visibilidade LGBT dans la ville de São Carlos.

Mots clés: Décentralisation, l'Institutionnalisation, Mouvement LGBT, ONG, Public Policy.


 

 

Introdução

Este texto tem por objetivo discutir a ação do movimento LGBT brasileiro de maneira descentralizada pelo território nacional em prol da formulação de políticas públicas específicas aos segmentos que lhe compõe, a partir de um estudo sobre a "ONG Visibilidade LGBT" da cidade de São Carlos, no interior de São Paulo. Embora desde os primórdios de uma atuação movimentalista grupos de militantes tenham procurado transformar uma realidade de exclusão e marginalização daqueles que não se enquadram em uma visão heteronormativa das relações humanas, é a partir das décadas de 1980 e 1990 que ações no âmbito estatal tomaram forma. Resultado das relações tecidas entre atores do movimento social e agentes públicos, essas ações paulatinamente apresentaram certa descentralização concomitante a uma multiplicação do número de organizações do movimento.

Neste sentido, a criação e inserção do movimento em canais institucionais de diálogo, a ampliação das suas redes de atuação e um maior grau de formalização de seus grupos em decorrência da adoção do formato de "organizações não governamentais", contribuíram para o estabelecimento de estratégias de ações ativo-propositivas na arena política (Carrara, 2010; Facchini, 2005; Machado & Prado, 2005; Silva, A., 2008). Todavia, especificamente, o advento da I Conferência Nacional LGBT, no ano de 2008, marca um momento no qual as questões vinculadas ao tema da diversidade sexual receberam uma maior atenção, do que até então, pelos formuladores de política pública. Fortemente vinculada a um acúmulo institucional anterior, como o "Programa Brasil sem Homofobia", a fixação do tripé da cidadania LGBT no governo federal, entendido como resultado direto da conferência, serviu de incentivo para que grupos organizados passassem a atuar de maneira descentralizada para que outros entes da federação, destacando-se os municípios, adotassem políticas semelhantes.

Por se tratar de um período histórico ainda relativamente recente, são escassos os estudos que apresentem as dinâmicas envoltas dessas políticas. Contudo Melo, Brito e Maroja (2012) apresentam como diretriz uma atuação descentralizada, isto é focada de modo local, cujos resultados dependem diretamente das relações estabelecidas entre militantes e atores políticos específicos, tais como partidos, vereadores e o chefe do executivo. No entanto, as singularidades que derivam das práticas ramificadas desses atores ainda são um tanto nebulosas. E para compreendê-las, um estudo sobre a política de diversidade sexual proposta e desenvolvida pela Prefeitura de São Carlos durante os anos de 2009 a 2013 pode ser bastante significativo.

A cidade é uma das primeiras no interior do estado a desenvolver políticas por meio de todos os componentes que compõe o tripé da cidadania LGBT (um conselho participativo, órgão no poder executivo e um plano de ação). Segundo integrantes do movimento e formuladores de políticas locais, a adoção do tripé foi resultada da articulação e estruturação advindas da "ONG Visibilidade LGBT", até hoje a única organização formal local que se propõe a combater a homofobia e defender direitos de Gays, Lésbicas, Bissexuais e Travestis e Transexuais. A ONG foi criada em 2009 com o objetivo específico de pressionar o poder público para o desenvolvimento de ações no município e desde os seus primórdios estabeleceu relações muito próximas com o Diretório Local do Partido dos Trabalhadores.

Deste modo, pretende-se apresentar como a "ONG Visibilidade LGBT" se formalizou e estabeleceu relações com atores governamentais locais no intuito de apontar algumas das especificidades e questionamentos que podem surgir de análises sobre uma atuação descentralizada do movimento social. Para tal, foram realizadas análises nas legislações produzidas sobre a política, e observações participantes nas reuniões da ONG e do conselho municipal de diversidade sexual. Além de entrevistas com os formuladores da política e os principais fundadores da ONG que desempenharam o papel de liderança do movimento local durante o período de 2009 a 2013. Contudo a fim de auferir maior clareza sobre o caso, também se buscou debater os resultados obtidos com os apontamentos trazidos pela literatura que discute a trajetória do movimento LGBT brasileiro (Carrara, 2010; Doimo, 1995; Facchini, 2005; Green, 2000; 2003; Marques & D'Ávila, 2010), e alguns aspectos relacionados a psicologia política (Klandermans, 2003; Machado & Prado, 2005; Prado, 2002; Silva, A., 2008; 2011; 2012).

Assim, a primeira seção do texto foi destinada a apresentação de uma breve contextualização da história do movimento LGBT brasileiro através do surgimento de suas primeiras organizações formais e a sua relação com o aparelho estatal. Seguida por uma seção que é destinada a abordar a criação ONG Visibilidade e as estratégias adotadas por ela que resultaram no tripé da cidadania LGBT na cidade. E por fim, as conclusões procuram retomar os principais questionamentos que surgiram com o seu estudo.

 

Seção I

Globalmente, a partir do final do século XX, houve uma multiplicação de novos atores sociais que expandiram as questões políticas na sociedade em decorrência de uma ressignificação dos limites postos entre a esfera pública e privada. De modo que os movimentos sociais passaram a ser não somente o local de origem das principais contestações culturais como também a representa-las na arena política, a exemplo do movimento LGBT, aqui discutido, dos movimentos feministas, pacifistas, ecológicos, nacionalista e tantos outros. Esses movimentos contemporâneos, assim, "apontaram para um reconhecimento de aspectos do político em esferas da vida social ainda não politizadas" (Prado, 2002:63) e com o avanço da passagem de século a chamada "participação movimentalista" se tornou uma forma cada vez mais comum de exercer a atuação política. Seja por que "the social movement sector has grown so much because western societies have become less hegemonic" (Klandermans, 2003:672), ou pelo fato de que "contentious collective actions can be remarkably effective, provided that the right ingredients are in place" (Klandermans, 2003:672).

No caso brasileiro, os movimentos sociais foram carregados, pela literatura especializada, de um forte viés sociocultural e político, o que incorreu a ideia de que eles eram os responsáveis por efetivamente transformar o Estado e a sociedade. Neste sentido, destaca-se o texto de Arim Soares do Bem (2006) no qual o autor faz uma abordagem direta sobre a dialética estabelecida entre os movimentos sociais e o Estado entre os séculos XIX e XX. Ao passo que a recente literatura, mais focada nos aspectos simbólico-culturais assumidos pelos movimentos entre os anos de 1970 a 1990, é capaz auxiliar no entendimento da relação entre os movimentos e as mudanças nos paradigmas teóricos e políticos do período analisado. Assim, Doimo (1995), Gohn (2001), Dagnino, (2004) e Sousa do Bem (2006) propõem uma interpretação da trajetória dos movimentos no Brasil principalmente pela ressignificação que eles passaram a ter: não mais preocupados com demandas materiais, mas com reivindicações não-materiais, de identidade, de direitos, da necessidade de renovação das formas de vida política. E compartilham do entendimento de que os movimentos contribuíram para uma ampliação da participação social na vida política nacional, ocorressem mudanças na formulação de políticas públicas e na adoção de um novo "fazer político" (Machado & Prado, 2005:37).

A abertura de canais institucionais de exercício pleno da cidadania, bloqueados pelo regime ditatorial, possibilitou uma atuação conjunta entre o Estado e a sociedade civil (Cardoso, 2004) que resultou em "avanços na questão participativa e na construção de um debate político mais elaborado" (Brasil, 2013:28). A década de 1980 significou um período de transição. Anteriormente constituídos a partir da ideia de representação espontânea e de oposição ao regime fechado, os grupos organizados dos movimentos sociais, em geral, tiveram que se adaptar às mudanças impostas pela redemocratização e a Constituição Federal de 1988 (Cardoso, 2004). Uma vez que se dinamizou o modo de formular e gerenciar políticas públicas, ao se estabelecerem parâmetros para a criação de espaços de negociação direta entre sociedade civil e poder público, a participação social ganhou um novo fôlego e alcançou um estágio sem precedentes na história do país (Brasil, 2013).

Especificamente a respeito do movimento homossexual brasileiro, grande parte da literatura aponta a fundação do grupo SOMOS e a circulação do jornal Lampião da Esquina, em 1978, como o seu ponto de eclosão, isto é, o momento da gênese de um movimento coletivamente organizado (Facchini, 2005; Green, 2000; Silva, A., 2008; Trevisan, 2000). As marcas da sua primeira onda de politização foram esforços no sentido de afirmar uma identidade homossexual, na medida em que uma parte da militância buscava uma maior integração social e outra, em especial as feministas lésbicas, priorizavam justamente a construção de uma comunidade gay autônoma (Silva, A., 2008). Entretanto, em igual medida esses atores se viam inseridos em uma realidade social em que eram forçados "a viver em segredo, no subterrâneo, sua vida sexual e afetiva, sem direitos e dignidade, abrindo mão da palavra que liberta e de uma memória publicizável, que não lhe oprime" (Silva, A., 2012:87); o que colaborou para que trabalhassem em prol da construção de uma memória coletiva, uma "contramemória" política frente à memória oficial dominante.

O surgimento do Lampião e do SOMOS foi importante para que "na década de 1980, ocorresse uma expansão significativa dos movimentos LGBT a partir do surgimento de inúmeros outros grupos por todo o país" (Silva, A., 2008:174). Contudo as transformações do regime político e a abertura democrática provocaram mudanças significativas na forma de organização e atuação dos grupos formados por militantes. As análises sobre o período, que denota a segunda onda de politização do movimento, não apresentam um consenso sobre a real dimensão desse cenário. Ao mesmo tempo em que se afirma que houve um declínio da atuação do movimento, como era conhecido anteriormente, mediante a amenização do seu tom ideológico e uma ligeira diminuição do número de grupos e ativistas ligados a ele; existe também o entendimento de que os contornos assumidos pelo Estado na pós-constituinte influenciaram diretamente a sua organização interna e atuação (Carrara, 2010; Facchini, 2005; Green, 2000; Silva, A., 2008; Trevisan, 2000).

Pragmaticamente, o movimento mudou as prioridades de sua agenda e estratégias, buscando a promoção de direitos humanos como forma de transformação política e social. Merecem destaque o Grupo Gay da Bahia e o Triângulo Rosa do Rio de Janeiro que desempenham um papel de destaque no período e juntos com o grupo "Libertos" articularam uma das primeiras e mais significativas ações do movimento em nível nacional, a exclusão da homossexualidade do código de doenças mentais (Silva, A., 2008). Em um contexto caracterizado por uma ausência de garantias institucionais acerca de direitos e pelo avanço da epidemia HIV/AIDS, vinculada diretamente ao público homossexual sob o estigma de "câncer gay" (Facchini, 2005; Machado & Prado, 2005; Silva, C., 1998; Silva, A., 2008); a gramática da organização do movimento passou a obedecer a uma lógica formalista. O modelo de combate a AIDS adotado no Brasil, que contou com o apoio de organizações não governamentais para a implementação de ações assistência a soropositivos, prevenção e controle da doença junto a grupos de risco; acabou incentivando a criação de organizações não governamentais e colaborou para certa institucionalização do movimento social.

Neste sentido, Silva, C. (1998) argumenta que as primeiras ações de combate a AIDS foram desenvolvidas por organizações já existentes do movimento homossexual, como o próprio GGB, ou vinculados a outras temáticas, a exemplo da Associação Nacional de Hemofílicos. Mas a epidemia também influenciou o surgimento de novas organizações especificas sobre a temática, como a Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS e o Grupo de Apoio à Prevenção à AIDS - GAPA. Este último, em específico, se estruturou no ano de 1985 na cidade de São Paulo e foi seguido pela criação de outros GAPAs em diversos estados. Além de grupos como o "Grupo Pela Vida - RJ", fundado no ano de 1989, que tratavam de maneira híbrida a defesa por direitos e visibilidade de indivíduos vivendo com HIV e dos homossexuais (Silva, C., 1998). Mas, embora as ONGs HIV/AIDS possam ser interpretadas como integrantes de um movimento bastante peculiar, "a relação entre AIDS e o homoerotismo passou a ser naturalizada gradativamente, devido aos números de casos de AIDS entre homens que fazem sexo com outros homens e pela viabilidade que o movimento homossexual propiciou a questão" (Silva, C., 1998:130).

Indiretamente a epidemia de HIV/AIDS acabou contribuindo para um aumento da homofobia na sociedade, gerando ainda mais exclusão e violência contra LGBTs. Assim, os grupos do movimento procuraram discorrer menos sobre a construção de identidades e "mais nas práticas sexuais e seus desdobramentos na vida cotidiana" (Silva, A., 2008:187), consequentemente a sexualidade passou a integrar de forma mais evidente o debate público. Isso em conjunto com a atuação de órgãos internacionais, tal como a Organização Mundial de Saúde por meio do seu Programa Mundial de AIDS de 1987, foi um importante mecanismo de pressão para que uma política nacional de prevenção fosse adotada pelo governo federal. Fortemente respaldada nas ONGs, a política abriu a possibilidade de financiamento de suas atividades junto ao governo federal, mas também a outros atores político-sociais, o que inflou um deslocamento de grande parte dos ativistas do movimento homossexual para a linha de fronte no combate a doença. Nas décadas seguintes, que compreendem uma terceira onda de politização, o movimento "não somente aumentou o número de grupos/organizações, como houve a diversificação de formatos institucionais e propostas de atuação" (Facchini, 2005:149) e "notam-se também uma ampliação da rede de relações do movimento e a presença de novos atores" (Facchini, 2005:149).

Isso ocorreu porque as ONGs possuem interações específicas, mais institucionais e de participação conjunta, houve um crescimento da ação coletiva do movimento LGBT. As ONGs estabelecem relações formais, institucionais e de parceria com diversos outros atores, além de "recursos financiamentos, o reconhecimento e o know-how advindos da participação/inserção em fóruns nacionais, e principalmente internacionais, possibilitam-lhes alcançar maior visibilidade como representantes de determinado 'grupo social discriminado'" (Facchini, 2005:83). E isso as torna um tipo de organização bastante singular por ora se situar como uma prestadora de serviços públicos, mediante o seu aspecto assistencial, ora como grupo de pressão ao ser um ente intermediário "entre o movimento de base e o Estado" (Silva, C., 1998:132).

De forma que o sujeito político do movimento LGBT também passou a se tornar mais complexo, caminhando em direção a uma "sopa de letrinhas" formada pela heterogeneidade dos seus próprios atores com diversas reivindicações e demandas especificas (Facchini, 2005). Travestis e transexuais, grupos sociais que foram mais fortemente impactados pela AIDS não somente no aspecto de saúde, mas principalmente no estigma social, no preconceito; passaram a contar com organizações e fóruns específicos para si. Muitas das primeiras ONGs exclusivas de travestis e transexuais surgiram no interior dos GAPAs, mas em 1991 houve a criação da Associação de Travestis e Liberados - ASTRAL e no ano de 1993 a realização do I Encontro Nacional de Travestis e Liberados em DST/AIDS (Silva, C., 1998). As lésbicas também passaram a ter um fortalecimento na organização de grupos, encontros e fóruns de discussão específicos para as suas demandas e militância, de modo a reivindicar por uma maior visibilidade dentro do movimento. Pois embora muitas vezes fossem incluídas no universo homossexual, se passou a buscar por uma maior visibilidade do segmento, que muitas vezes foi colocado de maneira indireta fora da disputa política do movimento (Silva, A., 2008). No entanto, a própria atuação das ONGs por meio de projetos, relações formais e orientação por resultados também denotaram uma maior necessidade de especificação de públicos-alvo e demandas por segmentos de maneira clara. Em resumo: "a inclusão de cada uma dessas categorias no nome do movimento deveu-se tanto à existência de sujeitos assim identificados no interior do mesmo quanto a momento políticos propícios à sua inclusão" (Facchini, 2005:179-180).

Embora existissem esforços desde a década de 1980, durante as primeiras edições do Encontro de Homossexuais Militantes e do Encontro Brasileiro de Grupos Homossexuais Organizados que ajudaram a construir a agenda do movimento, a ideia de uma coordenação nacional floresceu em 1995 (Silva, A., 2008). Durante o oitavo Encontro Nacional, assim, foi criada a primeira rede institucional de atuação política em nível nacional, a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros - ABGLT. Composta por diversas organizações da sociedade civil com o intuito de estimular a produção de políticas que garantam cidadania e direitos humanos aos seus segmentos, a ABGLT veio, desde então, desempenhando um importante papel no estabelecimento de diretrizes gerais sobre a atuação do movimento de maneira descentralizada pelo território nacional, colaborou para a consolidação de uma importante rede de relações entre militantes e promoção de ações em nível nacional (Facchini, 2005). Além disso, a partir de meados da década de 1990 os números de pesquisas e núcleos de estudos nas universidades cresceram de modo consistentemente sólido, a oferta de bens e serviços para o público LGBT foi expandida e houve uma maior evidencia de LGBTs nos veículos de comunicação aliada a um enquadramento que pode ser entendido como positivo para a desconstrução de uma imagem dos homossexuais como grupo marginalizado (Carrara, 2010; Facchini, 2005; Trevisan, 2000).

Isso marca uma nova fase do movimento LGBT brasileiro tanto no que se referem as suas estratégias de apoio entre pares e de visibilidade pública (Silva, A., 2008; 2011), de forma que:

As paradas do orgulho LGBT têm se mostrado uma face bastante eficaz na visibilização das agendas dos movimentos e um espaço potencial de captação de ativistas, além de produção e reconfiguração de consciências em prol da participação na luta política pelo reconhecimento da diversidade como valor estruturante da vida cotidiana. (Silva, A., 2008; 2011:137-138)

Chamadas de 'fenômeno cidadão', por Silva, A. (2008), as Paradas ajudam a questionar o contexto no qual os LGBTs se inserem, por meio de um processo de reconhecimento de aspectos grupais e individuais, ao mesmo tempo em que resgata e publicitiza uma interpretação sobre a realidade de grupo social por meio da sua própria narrativa. No Brasil as paradas surgiram no final da década de 1990, na cidade de São Paulo, carregando, como estandarte principal, a igualdade de direitos, multiplicaram-se nos anos posteriores e possuem um estreito vínculo com a consolidação do reflorescimento de um ativismo pelos direitos de LGBTs no país. Pois ocorre que a diversificação de propostas de atuação alinhada a uma maior rede de relações com atores governamentais, característicos da terceira onda do movimento, contribuiu para as paradas fossem realizadas por meio de alíquotas em programas estaduais e nacionais de prevenção a DST/AIDS, órgãos públicos, financiamentos privados e/ou até mesmo pelas ONGs de maneira autônoma (Silva, A., 2008). Ainda que a forma de organização tenha sofrido mudanças ao longo dos anos e existam discordâncias até mesmo internamente nos movimentos sobre as paradas como estratégia de visibilidade LGBT, ela não pode ser ignorada justamente por ter se tornado um ato político de grande relevância (Silva, A., 2011) em comparação a outras, como o dia do trabalho. Isso porque "só no ano de 2007, foram realizadas, no Brasil, cerca de 70 marchas do Orgulho LGBT. Em 2011 foram mais de 200 segundo dados de secretarias de turismo e registros de organizações militantes como a ABLGBT" (Silva, A., 2011:153).

Neste cenário, o final da década de 1990 e os anos 2000 marcam a formulação de políticas públicas específicas para os LGBTs sob uma perspectiva de direitos, amparada pelo movimento LGBT tanto em sua construção como na sua gestão (Aguião, Vianna & Gutterres, 2014). O I Plano Nacional de Direitos Humanos, de 1996, inovou ao delimitar pela primeira vez, e explicitamente em documentos oficiais do governo, o segmento homossexual como público-alvo de ações da administração pública (Carmona & Prado, 2009; Carrara, 2010). Mas os PNDHs II e III inovaram em relação ao primeiro ao carregarem o elemento da participação conjunta de ativistas, acadêmicos e gestores governamentais na sua formulação (Carrara, 2010; Aguião, Vianna & Gutterres, 2014). Sob o ponto de vista institucional e difusão de ideias, a participação do país na III Conferência Mundial das Nações Unidas de 2001, em Durban na África do Sul, foi significativa, pois durante a conferência uma das propostas feitas pela delegação brasileira, que era composta por especialistas e ativistas em direitos humanos, foi a criação de um órgão dentro da ONU para ações afirmativas contra práticas discriminatórias para com LGBTs, mulheres, negros e índios. A proposta acabou não sendo aprovada no âmbito da ONU, mas teve como resultado direto a criação, no mesmo ano, do Conselho Nacional de Combate à Discriminação como parte integrante do Ministério da Justiça (Aguião, 2014), o primeiro componente do tripé da cidadania LGBT.

Outro ponto de destaque é o Programa Brasil sem Homofobia de 2004. Inicialmente proposto pela militância durante o seu Encontro Nacional realizado no ano anterior, o BSH incentivou medidas de caráter transversal e intersetorial no trato de questões LGBTs ao descentralizar suas ações entre os entes federativos por meio do apoio financeiro a projetos de fortalecimento de ONGs e capacitação de profissionais. Mas também no incentivo institucional para a inserção de representantes do movimento em conselhos participativos e mecanismos federais de controle social (Carrara, 2010). Como a realização da I Conferência Nacional LGBT, que foi um marco na formulação de políticas específicas para os LGBTs e representou o reconhecimento estatal da importância de se tratar o tema através de instrumentos de negociação direta entre governo e sociedade civil. No que diz respeito à participação desses atores a conferência de 2008 segundo Carrara (2010) caracterizou-se como sendo o "mais amplo processo político relativo a tais grupos de que se tem notícia" (Carrara, 2010:141-142), porque contou com a mobilização de recursos de todos os entes federativos, bem como a participação massiva de grupos organizados do movimento social na proposição de diretrizes para a criação de uma política nacional e avaliação das ações implementadas pelo BSH.

De modo que o resultado da conferência foi a elaboração do I Plano Nacional de Promoção a Cidadania e Direitos Humanos LGBT. Precedida por etapas municipais e estaduais que discutiram a interiorização e a ampliação da participação do movimento social, a conferência contou com grupos de discussão circunscritos a diversos eixos temáticos (saúde; educação; justiça e segurança pública; cultura; comunicação; turismo; trabalho e emprego; previdência social; cidades; e esportes) e resultou na atribuição de uma maior importância ao Conselho Nacional de Combate à Discriminação ao ser transformado em um "espaço efetivo de decisão e deliberação" (Aguião, Vianna & Gutterres, 2014:247). Em 2010 o Conselho foi renomado Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção da Cidadania e Direitos LGBT e juntamente com a atribuição de status ministerial a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República no mesmo ano, completou o tripé da cidadania LGBT no Governo Federal.

Mas ainda sob a lógica da institucionalização, as demandas do movimento passaram a ser capturadas pelas estruturas político-partidárias por meio da criação de setores e núcleos no interior de partidos políticos para a representação do setor LGBT. Tal abertura e inserção deu origem a organização de ações parlamentares, e, mais recentemente, a proposição de leis e legislaturas que carregam explicitamente a bandeira do movimento e as suas reivindicações (Carrara, 2010; Facchini, 2009; Marques & D'Ávila, 2010). O maior expoente desse movimento institucional consiste na formação da Frente Parlamentar pela Cidadania LGBT, de 2003, relançada como Frente Parlamentar pela Cidadania LGBT em 2007, que possui entre os projetos de lei defendidos por parlamentares o diálogo direto com a agenda setorial do movimento (Marques & D'Avila, 2010). Além disso, Carrara (2010) também cita que a atuação do poder judiciário em todos os entes federados foi favorável ao reconhecimento de direitos historicamente negados para os LGBTs, como no caso em que uma série de jurisprudências influenciaram o reconhecimento da união estável homoafetiva pelo Supremo Tribunal Federal em 2011 (Carrara, 2010).

Entretanto anteriormente a formação do tripé da cidadania, propostas institucionais semelhantes já vinham sendo adotadas em alguns entes da federação. Em nível estadual houve a criação da Coordenação de Políticas Públicas da Diversidade do Estado de São Paulo, em 2009. E em nível municipal a Coordenação de Assuntos da Diversidade Sexual da Prefeitura de São Paulo e a Coordenadoria Municipal de Direitos Humanos de Belo Horizonte no ano de 2005 (Carmona & Prado, 2009) e quarenta e cinco Centros de Referência entre os anos de 2005 a 2006 (Aguião, 2014 citado por Mello, Brito & Maroja, 2012). A promoção do tripé da cidadania LGBT, unida a uma descentralização e ramificação estadual e municipal, já pertencia a agenda do movimento social desde meados dos anos 2000. Pois foi compreendida pelo movimento como algo estratégico para que suas demandas fossem trazidas para mais perto da sociedade e do poder público (Melo, Brito & Maroja, 2012). O que na visão de especialistas, principalmente inseridos no movimento social, auxiliaria na:

[...] ampliação, para além das esferas de competência dos poderes Legislativo e Judiciário, do campo das possibilidades de efetivação de direitos para esses segmentos. E, em segundo lugar, por favorecer a construção de uma cultura política compromissada com a superação dos preconceitos, discriminações e exclusões na esfera dos direitos sexuais, que atinge principalmente, mas não só, a população LGBT. (Melo, Brito & Maroja, 2012:425)

E tal seria o consenso entre os especialistas sobre a ideia de um tripé de políticas para as questões LGBTs, que Aguião (2014) relata o seguinte sobre as Conferências Nacionais:

Em geral, é comum que representantes de estados e municípios comecem a [sua] apresentação dizendo quais dos elementos do "tripé da cidadania" a sua região "já" implementou ou "ainda não. (Aguião, 2014:141)

Todavia a efetivação de cada um de seus componentes depende diretamente do empenho de ativistas locais na apresentação e convencimento de atores políticos sobre a sua importância. Uma iniciativa institucional que pode ser entendida como um "empoderamento político [...] que aponta para um incremento real da capacidade dessa população em atuar afirmativamente e, agora, também no interior de espaços institucionais de poder" (Silva, A., 2011:148). Neste sentido, a cidade de São Carlos pode ser entendida como referência no processo de descentralização por conta de um aspecto importante, apontado por membros da militância, ser a primeira cidade do interior do estado a promover políticas LGBTs por meio da atuação conjunta do movimento social e da administração pública local.

 

Seção II

Ao traçar um panorama geral do movimento LGBT a partir da segunda metade da década de 1990, Fachini (2005) destaca que, no âmbito interno do movimento, não é possível afirmar de maneira precisa se há uma aproximação consistente das suas organizações e de uma tipologia ideal de ONGs. Pois tamanha foi a multiplicação de organizações do movimento LGBT que se auto definem como ONGs, que elas "apresentam as mais diversas e/ou contraditórias posições políticas, definições de homossexualidade, formas de militância e origens históricas" (Machado & Prado, 2005:41). No entanto, se uma unidade comum pode ser apontada sobre essas organizações é, justamente, o seu dualismo entre ser uma instituição formal e ao mesmo tempo atuar como grupo de pressão, ou melhor, variar entre possuir um aspecto mais assistencialista, isto é voltado para a oferta de serviços públicos, e atuar na negociação de demandas coletivas (Silva, C., 1998).

As origens da ONG Visibilidade LGBT de São Carlos denotam do ano de 2008, especificamente com o advento da realização da I Conferência Municipal LGBT na cidade, como prévia para a Conferência Nacional. Na época, a promulgação da Lei Municipal 14.417 em março de 2008, cuja autoria é da ex-vereadora Silvana Donatti (PT), apresentou uma importante e particular característica frente a outras localidades: obrigatoriedade de realização da conferência local a cada dois anos e de modo independente da realização das Conferências Nacional e Estadual. Isto é, foi auferida para o poder público a responsabilidade de discutir as questões sociais vinculadas aos LGBTs de maneira contínua e sem a necessidade de intervenção de outros entes federativos. Porém especificamente no que tange a sua realização, foi estipulado o seguinte:

Art. 3º. A Conferência Municipal dos Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais deverá ser organizada e coordenada ela Secretaria Municipal de Cidadania e Assistência Social e pela Comissão de Direitos Humanos e Direitos do Consumidor da Câmara Municipal de São Carlos.

Parágrafo Único - As entidades, associações, sindicatos, conselhos e movimentos GLBT organizados no município deverão participar na sua organização, como meio de garantis a mais ampla democracia. (São Carlos, 2008).

Essa pluralidade de movimentos, descrita na lei da conferência, entretanto, ainda não era uma realidade na data de sua publicação, pelo menos do ponto de vista politicamente organizado. Dessa forma militantes e simpatizantes da pauta LGBT que desempenhavam ações junto a indivíduos em situação de marginalidade social, promoção da comunidade LGBT e prevenção a DST/AIDS, deram origem a uma série de reuniões abertas para a toda a sociedade com o intuito de estimular um maior interesse e engajamento político no tema. Esses atores acabaram ficando conhecidos como, e em certa medida assumindo para si esse título, representantes de um autodenominado "Movimento LGBT de São Carlos". Das reuniões desse coletivo se originou a comissão organizadora da I Conferência Municipal que aconteceu no dia 17 de maio, com a participação de sessenta pessoas no total, destacando-se entre elas um "número expressivo de gestores públicos" (Conferência Municipal GLBTT, I, 2008b:1).

As discussões da conferência foram divididas em três eixos temáticos (educação, cultura e lazer; violência, segurança pública e direitos humanos; e Saúde) coordenados por militantes do movimento social estadual e nacional. Ao final, como esperado, foram selecionadas propostas e delegados para a etapa estadual, mas também encabeçadas uma série de reivindicações para poder público de ações especificas em prol da comunidade LGBT local que apontavam para: um centro de referência; serviços especializados no auxilio psicológico e jurídico para casos de violência; assistência a processos de transexualização; ações de prevenção a DST/AIDS; criação de sanções administrativas para atos de discriminação dentro de órgãos públicos e estabelecimentos comerciais; um Conselho participativo; e uma delegacia específica para lidar com crimes de intolerância. Mas a maior herança da conferência foi a semente de uma militância interessada em uma atuação política mais incisiva e em formas de pressionar sistematicamente o poder público local na implementação das propostas discutidas durante o evento.

Logo após a conferência o coletivo "Movimento LGBT de São Carlos" continuou a se reunir e procurou ter uma estrutura burocrática mínima com a redação de atas, documentos oficiais e estatuto, reuniões mais sistemáticas, mailing de e-mails, criação de uma "árvore de contatos" com o intuito de facilitar a troca de informações entre os integrantes e com gestores governamentais, e a aproximação de um modelo de organização formalizado. Além disso, o coletivo procurou estabelecer-se como uma ponte de contato direto entre a secretaria municipal de saúde e as travestis e transexuais que viviam casas de cafetinagem e eram profissionais do sexo da cidade, desenvolvendo ações de distribuição de preservativos, instruções sobre as DSTs e acompanhamento de maneira muito direta as demandas dessa população junto a secretaria. No entanto a pluralidade de perspectivas processuais sobre como atuar estrategicamente no convencimento dos formuladores de política para a adoção das propostas da conferência serviu de motivo de diáspora.

Especificamente a aproximação e participação de políticos locais junto ao coletivo, em um eminente período eleitoral que se aproximava, foi vista com grande desconfiança por parte dos militantes. Assim como constatado por Facchini (2005), Santos (2006), Silva, A. (2008) e Aguião (2014) em outros contextos e localidades, a aproximação de políticos ou atores com uma maior vinculação partidária, foi a preocupação central dos militantes com uma possível apropriação da pauta e de integrantes do movimento para fins eleitoreiros. No entanto, as divergências sobre inserir-se na arena política via partido dos trabalhadores ou por meio de uma atuação autônoma e sobre a condução das atividades do coletivo, contribuíram para catalisar uma divisão no movimento local. Muito embora o movimento local seja composto por outros coletivos de gênero e diversidade sexual, surgidos dentro das universidades instaladas na cidade e em núcleos de juventudes partidárias - atualmente o Coletivo Trá!, Coletivo de Mulheres da Universidade Federal de São Carlos e do da USP São Carlos, Coletivo Nuances de São Carlos e núcleo de jovens nos diretórios locais do PC do B, PSOL e PT - foi a ONG que desempenhou, desde a sua criação, o papel de protagonista na luta por promoção e visibilidade da população LGBT local.

Neste sentido, a ONG Visibilidade teria surgido a partir de uma demanda pública especifica que em muito se assemelha com a Associação Lésbica de Minas - ALEM estudada por Machado e Prado (2005). Os autores ao descrevem o surgimento da associação, apontam que ela foi influenciada por esforços no sentido de organizar o III Seminário Nacional de Lésbicas em Belo Horizonte, suas integrantes possuíam uma forte relação com o movimento sindical e, principalmente, se estruturou em torno de demandas específicas. Esse processo de mobilização social pode ser entendido como fato gerador da estruturação de um poderoso sistema de valores e crenças que é capaz de nortear a construção de identidades políticas. No caso da ONG Visibilidade e da ALEM a realização de eventos que se configuram como espaços exclusivos para a discussão da realidade social de seus sujeitos aponta para um processo de estruturação de ações coletivas, que leva "os sujeitos coletivamente criarem um espaço de expressão de antagonismos, onde o reconhecimento das relações de opressão possa ser enfrentado pela ação mobilizadoras das demandas por equivalência" (Prado, 2002:64).

Essa "tomada de consciência" propiciou um processo de articulação política e eventualmente mudanças sociais. Em São Carlos a motivação para a criação da ONG Visibilidade foi a busca por garantir uma política específica para os LGBTs no município de maneira institucionalizada juridicamente, por entender que isso asseguraria a sua continuidade e efetividade. Formada por gays, de maneira majoritária, lésbicas e uma transexual, a ONG possuía em seus primórdios o caráter de agregar sob uma mesma organização indivíduos dotados de certa experiência político-partidária e jovens ainda em processo de formação, que procuravam estabelecer-se como representante dos LGBTs da cidade. Conforme foi relatado por um de seus fundadores, desde o início as suas atividades foram centradas na articulação política local, muitas vezes se mesclando com a própria história da política municipal de diversidade sexual:

A partir da Conferencia Municipal teve muita participação tanto da sociedade civil quanto do poder público e foi a primeira vez que [se] teve um debate institucional. Depois disso a gente começou a desenvolver algumas políticas pontuais em parceria com a prefeitura e no ano seguinte a gente decidiu formalizar a ONG. Em 2009 a gente achou quer era necessário algo mais institucionalizado do que apenas um movimento social e aí começaram outras leis que a gente conseguiu aprovar na cidade.

Embora a ONG Visibilidade tenha sido oficialmente criada no dia vinte e sete de março de 2009, alguns de seus membros já eram bastante atuantes em outros movimentos sociais locais e inseridos em uma rede estadual de militantes; mas possuíam em comum um forte vínculo com o PT. Isso se iniciou em um período anterior a realização da conferência municipal e da própria formação da ONG, alguns dos seus membros participaram da fundação do diretório local ou assumiram, posteriormente, cargos importantes dentro do partido. Conforme foi citado por um deles:

Na verdade, o meu envolvimento com política começou através do PT. Quando me filiei ao PT eu era bem novo ainda, tinha dezesseis anos e comecei a conhecer os setoriais dentro do partido. E na época o setorial LGBT era um dos setoriais que mais tinha atuação. Eu comecei a ter contato com esse pessoal, participar de reuniões e a acumular um tanto de conhecimento do movimento social, conhecer algumas ONGs do estado e isso me motivou a conversar com algumas pessoas daqui da cidade pra gente começar a organizar um movimento, isso foi em 2008.

Essa inserção possibilitou um contato direto com importantes atores políticos na agenda governamental local, participação em eventos e discussões ligados ao Fórum Paulista LGBT e as setoriais nacional e estadual do partido, de modo que algumas das discussões desses espaços foram trazidas para o nível local. Entre elas uma campanha a nível nacional promovida pela ABGLT para a criação do tripé da cidadania LGBT. Um mês após a criação da ONG, os seus membros começaram a discutir propostas de criação do tripé local com os vereadores do partido, fazer um uso sistemático da tribuna livre na casa legislativa, sempre destacando a importância de se combater a violência homofóbica apresentada por dados nacionais de forma a relaciona-la com a criação de um tripé da cidadania LGBT local; e a organizar a 1ª Parada do Orgulho LGBT de São Carlos. Especificamente as Paradas começaram a ser realizadas mediante a um forte apoio do poder público e a atuação da exvereadora Silvana Donatti que destinou emendas no orçamento municipal. Em um contexto em que, na época, a grande maioria das cidades do interior do estado já realizava paradas do orgulho, a ONG Visibilidade procurou fazer do evento um ato político capaz de promover na cidade uma discussão sobre a homofobia e pressionar o poder público para ações que atendessem a população LGBT.

As paradas são um tipo de manifestação presente entre as tecnologias sociais largamente utilizadas pelo movimento, que vão "desde a manifestação pública ao protesto escrito junto a órgãos públicos julgados competentes" (Anjos, 2002). Pois, mesmo com a existência de divergências no interior dos movimentos LGBTs sobre esse tipo de evento como estratégia política, muitas vezes, chamando de festa e criticado por certo esvaziamento no seu conteúdo ele conseguiria captar atenção na agenda sistêmica gerando uma discussão pública sobre os temas encabeçados pelo movimento social (Silva, A., 2008). Em outras palavras, na visão dos organizadores das Paradas em São Carlos, elas possuem o poder de chamar a atenção para o movimento social e a sua pauta discussão, visibilidade que, na fala de um dos membros ONG constitui em:

Mesmo que fosse só na época da parada, mas pelo menos em algum momento isso estava sendo discutido na mídia, na cidade. Sempre quando o pessoal que organizou a primeira Parada conversa [a gente] lembra, que em todo lugar que você ia à cidade tinha alguém falando da Parada. E a gente achava que quanto mais é debatido o tema, melhor é.

Mas conforme a assessora parlamentar da ex-vereadora Silvana Donatti ressaltou, a destinação de emenda orçamentária e a própria realização de uma manifestação com tal porte, apresentou desafio:

A demanda principal era no começo a Parada, porque ela é um momento em que você abre um grande diálogo com a população do ponto de vista da ação política estratégica. Ela abre um caminho muito interessante porque você da visibilidade e ao mesmo tempo as pessoas vão abertas a essa discussão. E não é um processo que começou aqui né, em São Paulo e tal. Mas ela é um ícone, que quando é levada para outras localidades, ela transfere esse ícone [...] do ponto de vista político ela tem o mesmo impacto. E aí o enfoque principal foi realizar a primeira Parada, um desafio. Acho que o maior desafio de todos, não sei se eles te falaram isso, mas pra mim foi o maior desafio de todos.

Como tema do evento, a primeira edição da Parada de São Carlos seguiu como modelo as Paradas realizadas na cidade de São Paulo e abordou o lema "Unidos pela Diversidade na Luta contra a Homofobia". Mas também na estruturação de atividades prévias que consistiram em uma "Semana da Diversidade", voltada para a discussão política e promoção da cultura LGBT no município. Assim, na edição do ano de 2009 foram realizados um cine debate sobre a história do primeiro gay norte-americano publicamente assumido a se eleger para um cargo político nos EUA; uma mesa de debate sobre como diminuir a discriminação e homofobia entre crianças e adolescentes, com a escritora Lucia Franco; e uma palestra com Julian Rodrigues, intitulada "Construindo Políticas, Garantindo Direitos LGBT". Estas atividades objetivaram-se em promoveram a memória coletiva de movimento social, uma percepção da homofobia como um problema local e a necessidade de instituir políticas públicas sobre a temática.

Durante o trajeto da Parada consistiu-se no percurso da principal avenida da cidade, passando em frente à Câmara Municipal para que os participantes fossem lembrados do aspecto político que o evento carrega por meio de discursos feitos por autoridades e lideranças do movimento social. Simbolicamente, na primeira edição para além dessas falas, houve a sanção oficial da Lei que criou o Conselho Municipal da Diversidade Sexual, pelo recémempossado Prefeito Oswaldo Barba (PT). Esse importante canal de diálogo entre movimento social e governo, segundo Silva, A. (2012) aponta para:

[...] uma nova forma de se pensar o ator responsável pelo processo de formulação, implementação e avaliação de políticas públicas. Nasce um novo caminho descentrado do Estado, no qual os múltiplos atores do processo são legitimados e reconhecidos, sendo integrados ao processo de construção política das políticas públicas. (Silva, A., 2012:149)

Mesmo que os fundadores da ONG possuíssem vínculo com o partido da situação, a sanção da lei do conselho não ocorreu de maneira holística. Uma das formas de atuação da ONG, conforme relatado pelos seus militantes, foi o insistente diálogo e sensibilização dos vereadores eleitos para com as demandas da população LGBT. Os primeiros resultados dessa pressão foram a promulgação da Lei Municipal nº 14.785 de 2008, que institui o dia 17 de maio como dia municipal de combate a homofobia, e a Lei Municipal nº 14.417/2008, que institui a obrigatoriedade de realização da Conferência Municipal LGBT na cidade. Ambas são de autoria da ex-vereadora pelo Partido dos Trabalhadores Silvana Donatti e representam o reconhecimento de uma história de luta contra opressões e estigmas destituídos de voz e direitos. Durante a I Conferência Municipal, foi debatida e colocada em pauta a necessidade de criação de órgãos de Estado específico para a discussão contínua das demandas dessa população em nível local entre eles um conselho participativo. A ONG se embasou nisso para que proposta da lei fosse capitaneada no diretório do partido.

À medida que os integrantes da ONG procuravam se afastar de uma organização voltada para ações assistências, caminhando em direção de se estruturar como um grupo de pressão local fora do partido, mas quando preciso se utilizando de recursos dele que lhe poderiam ser úteis; a votação e aprovação do primeiro componente do tripé da cidadania foram possíveis mediante um lobby com atores na arena política e intrapartidários. Como lembra uma exassessora parlamentar que bastante auxiliou nos primeiros trabalhos da ONG, a lei conselho só foi posta em votação porque o presidente da câmara era do partido e:

Ele fez isso daí na pressão. Ele só fez isso porque ele era do PT, se não fosse não tinha feito isso não. Não tinha como ele falar não, vai falar que isso é preconceito? E a gente batia isso e dizia que... e ele contra. Aí eu falei 'sabe o que nós vamos fazer? Vamos catar assinatura, vamos fazer um projeto de lei popular, vai virar uma desgraceira isso ai' Ai começou a ficar feio né, e batendo, batendo, batendo, ai não tinha jeito, teve que fazer. Teve que fazer não, quem fez o texto nem foi ele. O texto foi a gente que fez e ele só apresentou 'é isso, é isso aqui o texto'. Você entendeu? Era só pra ele apresentar o projeto.

A dinâmica presente na organização da primeira parada foi reproduzida nas demais edições realizadas durante todo o governo do petista Oswaldo Barba. A segunda edição, no ano de 2010, abordou o tema "Nossa Luta é por Direitos, nossa Bandeira é por Respeito" e também sediou o 4ª Fórum Estadual Paulista da Militância LGBT - "Estado Laico e Políticas Públicas". Diferentemente da edição anterior os eventos "pré-parada" foram divididos com o Fórum. A Semana da Diversidade ficou responsável por atividades de promoção da cultura LGBT e o Fórum Paulista se resguardou das discussões políticas promovidas pelo movimento social estadual. Entretanto, movimento social e poder público local estabelecem um novo paradigma de atuação com a promulgação do Decreto Municipal nº 295, de julho de 2011, que institui a Divisão de Políticas para a Diversidade Sexual da Prefeitura, vinculando à Secretaria Municipal de Cidadania e Assistência Social.

Na 3ª Parada do Orgulho LGBT, que aconteceu em 2011, a proposta de eventos destinados à discussão de questões vinculada aos LGBT teve a sua duração ampliada para o Mês da Diversidade que começou no dia sete de junho com uma festa organizada dentro das dependências da Universidade Federal de São Carlos, uma das primeiras festas universitárias LGBT na cidade e terminou no dia cinco de julho com a parada. Esse aumento na dimensão do evento representou uma aproximação da ONG junto com o meio universitário, o movimento de mulheres e a comunidade negra local explicitada no estandarte "Por uma São Carlos sem Machismo, Racismo e Homofobia". Algumas integrantes do movimento social de mulheres eram atuantes e pertencentes ao coletivo "Movimento LGBT de São Carlos" e continuaram mantendo relações informais com a ONG Visibilidade. Mas havia em curso na administração local um amplo processo de estruturação do aparelho estatal em várias áreas setoriais, como a Divisão de Políticas para as Mulheres e a Divisão de Promoção de Políticas de Igualdade Racial. Isso levou a ONG Visibilidade a se articular com esses movimentos para que fossem feitas pressões conjunta via legislativo e dentro do partido para que a Divisão de Políticas para a Diversidade Sexual fosse instituída pelo prefeito durante a tradicional parada do trio elétrico em frente à casa legislativa.

Assim, a Divisão foi responsabilizada por apurar os casos de homofobia no município, bem como a promover a sensibilização da sociedade para as demandas da população LGBTT e realizar capacitação de servidores públicos municipais, cidadãos, categorias profissionais, para a temática da diversidade sexual e de gênero. Ou seja, a Divisão assumiu a responsabilidade de promover e desenvolver, em caráter contínuo, ações e políticas ligadas à diversidade sexual e de gênero. Entre as ações de destaque estão a organização da Conferência Municipal e demais eventos ligados à área, como a Parada LGBTT e Semana da Diversidade, além da coordenação e elaboração do Plano Municipal de Políticas para Diversidade Sexual e o auxílio administrativo ao Conselho Municipal da Diversidade Sexual. É, portanto, a criação da Divisão de Políticas para a Diversidade Sexual da Prefeitura que se configurou a possibilidade de formação do tripé da cidadania LGBTT na cidade de São Carlos. Plano, Conselho e Divisão municipais passaram a configurar o elemento central não apenas no funcionamento, mas na manutenção desse tripé da cidadania, instituído apenas um ano após o governo federal.

A 4ª e última Parada do governo PT na cidade foi realizada em 2012 e apresentou o tema "Contra a Discriminação e Impunidade, Homofobia também é Crime" como forma de reivindicar a aprovação de uma lei nacional sobre a criminalização da homofobia. Essa edição contou com o apoio, até então inédito, da Associação Brasileira de Gays Lésbicas e Transexuais, Aliança Paulista LGBT e do Programa Municipal de DST/AIDS. O Mês da Diversidade foi mantido, mas, nele, pela primeira vez, um segmento foi destacado da sigla LGBT para uma atividade específica. As lésbicas tiveram, pela primeira vez, uma passeata para chamar a atenção da população para a violência contra as mulheres. E, no palco da dispersão da Parada, ocorreu o lançamento oficial do I Plano Municipal de Políticas para a Diversidade Sexual, o último componente a formar o Tripé da Cidadania LGBT na cidade São Carlos.

Conforme o quadro retrata, a fundação da ONG serviu para auferir organicidade à promoção da importância de se combater a homofobia relacionando-a diretamente a garantias de direitos aos LGBTs. Assim, o movimento LGBT de São Carlos, de 2008 até início dos anos 2011, foi pautado por um processo de estruturação na qual, por meio da atuação da ONG Visibilidade foram conquistados espaços simbólicos de participação social e reconhecimento da importância do respeito à diversidade sexual. Concomitantemente a isso, as ações da ONG Visibilidade se tornam mais complexas com uma forte atuação no Conselho LGBT, pois a maioria dos integrantes da sociedade civil eram membros da ONG.

 

 

Mas também na gestão de um ponto de cultura do "Programa Cultura Viva" do Ministério da Cultura. O Programa fazia parte de uma política de incentivo a construção e manutenção de espaços físicos de apoio a cultura por meio de convênios de prestação de serviços com o MinC e a flexibilidade na submissão, aprovação e desenvolvimento de propostas para a gestão desses espaços teria permitido a ONG desenvolver atividades não apenas no âmbito da cultura junto à comunidade LGBT local. Além de desenvolver ações voltadas para indivíduos em situação de vulnerabilidade socioeconômica, como também voltadas para a capacitação profissional, suporte à política municipal de HIV/AIDS e implementação de algumas das propostas contidas no Plano Municipal LGBT, assumindo parcialmente os serviços de um Centro de Referência.

De forma que o tom da sua atuação passou de uma pressão por criar uma política LGBT local para um modelo compartilhado de formulação e implementação delas com o poder público. E o ápice da política local, com a formulação do Plano de políticas, acabou se mesclando com a própria organização. O Plano teria a vigência de dez anos e nortearia as ações da Divisão, mas nunca chegou a ser implementado completamente. Mudanças governamentais de gestores e novos limites de jurisdição decorrentes de uma reorganização administrativa, nova legenda partidária no poder executivo e alterações no equilíbrio institucional do legislativo reverberaram diretamente na política de diversidade sexual.

A relação entre a criação da Divisão de Políticas para a Diversidade Sexual da Prefeitura de São Carlos e as transformações na atuação da ONG aponta para a uma elevada porosidade nas relações entre governo local e movimento social, uma vez que a ONG não apenas auxilia na formulação de políticas públicas, ao utilizar mecanismos de participação social para apresentar suas demandas, mas assume a gestão de parcela delas. Quando instituída a Divisão de Políticas em 2011, o seu cargo de chefia foi atribuído a um dos principais militantes e membro da ONG Visibilidade.

Embora essa nomeação de um militante para a ocupação de uma nova instância governamental possa ser entendida como uma permeável aproximação dos tomadores de decisão dos destinatários dessa política, ou mesmo dos atuantes do movimento social, por muitas vezes o processo acaba por confundir os papéis de cada um dos atores que compõem a dinâmica social. Afinal, quem representa o movimento social? Qual o papel da ONG? Quem é governo?

Essa problemática não é exclusiva do caso aqui apresentado e vem sendo trabalhada pela literatura. Carrara (2010:142) destaca: "Parece advir da íntima relação que passa a unir sociedade civil e Estada, representada cada vez mais frequentemente como 'parceiros' em uma empreitada comum. Atualmente, torna-se quase impossível separar tais entes". E Silva, A. (2011:150) argumenta:

Dilemas da institucionalização constituem outro conjunto de problemas que pode decorrer desse processo de reconhecimento e legitimação. Na medida em que a agenda política dos movimentos LGBT é incorporada à agenda do Estado - o qual reconhece o papel daqueles para que essa agenda possa realmente ser implementada -, uma parte da liderança é incorporada a estruturas de governo e pode viver desconfortáveis situações de pressão, controle ou tutela do poder público no que concerne à liberdade de ação do próprio movimento, devido a uma sensação psicológica de perda de oportunidades e benesses que poderiam melhorar a vida de grupos organizados e mesmo do coletivo como um todo (Silva, 2008). Há uma possibilidade de captura dos movimentos e a conseguinte fragilização do processo de luta e resistência, que garantiu a emergência do próprio processo de conquista das políticas públicas em fase de implementação país afora.

Sociedade e Estado nem sempre precisam ser entendidos como uma dicotomia. Entretanto, os limites que separam a ação desses atores por tornar difusos. Essa problemática não é exclusiva do caso aqui apresentado e vem sendo trabalhada pela literatura. Carrara (2010) destaca que o movimento social organizado no formato de ONGs e atuando como parceiro da administração pública, lida com esse problema por conta de um processo que "Parece advir da íntima relação que passa a unir sociedade civil e Estada, representada cada vez mais frequentemente como 'parceiros' em uma empreitada comum. Atualmente, torna-se quase impossível separar tais entes" (Carrara, 2010:142).

Tal problemática na relação e captura dos movimentos sociais pelos órgãos do Estado é trabalhada por Silva, A. (2011). Segundo o autor:

Dilemas da institucionalização constituem outro conjunto de problemas que pode decorrer desse processo de reconhecimento e legitimação. Na medida em que a agenda política dos movimentos LGBT é incorporada à agenda do Estado - o qual reconhece o papel daqueles para que essa agenda possa realmente ser implementada -, uma parte da liderança é incorporada a estruturas de governo e pode viver desconfortáveis situações de pressão, controle ou tutela do poder público no que concerne à liberdade de ação do próprio movimento, devido a uma sensação psicológica de perda de oportunidades e benesses que poderiam melhorar a vida de grupos organizados e mesmo do coletivo como um todo (Silva, A., 2008). Há uma possibilidade de captura dos movimentos e a conseguinte fragilização do processo de luta e resistência, que garantiu a emergência do próprio processo de conquista das políticas públicas em fase de implementação país afora. (Silva, A., 2011:150)

Paralelamente ao processo de novas eleições municipais realizadas em 2012, a dificuldade de articulação dos movimentos sociais com as novas instâncias diretas de atuação quase chegou a minar o desenvolvimento da política LGBT no município. Com a vitória de Paulo Altomani (PSDB) sobre o candidato à reeleição Oswaldo Barba (PT), a troca de legendas e de prioridades alterou o curso das políticas na cidade (Vergili, 2015). O estreito vínculo criado entre membros do movimento social e Poder Executivo até 2012 foi enxergado com desconfiança e cautela pelo novo governo. Essa profunda alteração no cenário político envolvendo o Executivo Municipal acarretou grandes mudanças. No que se refere às mudanças na Divisão de Políticas para a Diversidade Sexual, fatores importantes deste período envolvem a destituição da chefia da Divisão de Políticas, e a consequente impossibilidade de realização das reuniões do Conselho Municipal e da Parada do Orgulho LGBT de 2013. Outra mudança drástica nas ações até então estabelecidas na cidade foi a não renovação do convênio de gestão dos Pontos de Cultura na cidade, previsto até março de 2015. A descontinuidade prematura da política, levou a ONG Visibilidade a perder a principal fonte de financiamento de suas atividades.

Contudo, novas conquistas simbólicas surgiram em meio às dificuldades enfrentadas. A Divisão de Políticas para a Diversidade Sexual passou a ser chefiada por uma mulher transexual, a primeira do estado de São Paulo a assumir um órgão municipal dessa natureza. Desvinculada da atuação direta nos movimentos sociais, a nova gestora deu continuidade à política LGBT no município, bem como ao tripé da cidadania, restaurando as atividades do Conselho e, junto à divisão, criando um Plano Municipal. A ONG Visibilidade fortificou sua atuação na representatividade e expressão política dentro do movimento social local e no Conselho Municipal, mas a desvinculação com programas governamentais impôs dificuldades para o financiamento de suas atividades e manutenção de suas estruturas. Com membros reduzidos, a ONG teve de se reestruturar internamente para continuar atuando.

A 5ª Parada, que aconteceu após um hiato de dois anos em relação a sua edição anterior, e apresentou o tema: "Liberdade de Expressão não deve ferir Direitos! Pela Criminalização da Homofobia". Nesta edição, ao invés de um Mês da Diversidade, como as duas edições anteriores haviam adotado, o formato das atividades de discussão sobre questões LGBTs foi restringido para uma Semana. Declarações do Prefeito Paulo Altomani (PSDB), feitas durante o evento, sobressaltaram dentre os discursos de autoridade e do movimento social, sendo carregadas de vaias dos participantes do evento. Altomani justificou o término da política de pontos de cultura na cidade porque os responsáveis por eles se apropriavam dos recursos destinados para a sua manutenção para "fumar maconha".

 

Conclusões

Este trabalho procurou retomar, a partir da literatura sobre movimento sociais, a formação e atuação do movimento LGBTT no Brasil evidenciando a institucionalização e descentralização deste movimento por meio do estudo da Divisão de Políticas para a Diversidade Sexual da Prefeitura de São Carlos. Fundamental para a compreensão desse histórico que se inicia em meados dos anos 1970 no Brasil é o conceito de processo. Vimos ao logo das duas primeiras seções deste artigo que, da formação dos primeiros coletivos que buscavam romper barreiras ideológicas e simbólicas em meio ao regime ditatorial à criação das instâncias participativas institucionalizadas via leis e decreto governamentais, a atuação dos movimentos LGBTTs no Brasil foi ressignificada ao longo do tempo. O reconhecimento dos atores como um grupo, as dinâmicas de organização e reorganização de demandas, os movimentos de enfrentamento e afastamento do Governo e a seguinte aproximação e parceria com entes governamentais fazem desse histórico um grande processo de conquistas e transformações. Transformações essas que permeiam não só o campo social e político, mas, principalmente, o campo simbólico das ideias, dos valores e das crenças.

Primordial para a institucionalização de espaços e de políticas LGBTTs, o reconhecimento de uma minoria portadora de direitos só teve espaço na agenda governamental após a atuação dos movimentos sociais e da estruturação desses grupos, quer via atuação de ONGs, quer pela pressão exercida pelos movimentos aos representantes legais. As constantes transformações nos movimentos e, consequentemente, em suas demandas, nos ajudam a entendem a forma como os problemas eram entendidos pelos movimentos e pelos representantes do governo. Se no início da década de 1980 a luta dos movimentos era pela despatologização da homossexualidade, os anos seguintes marcam a busca por mudanças sociais concretas por meio de políticas intersetoriais que envolvem a promoção à saúde, o acesso ao mercado de trabalho e à educação, segurança pública e combate à discriminação e à violência e, principalmente, o reconhecimento de aspectos mais subjetivos relacionados aos direitos básicos da pessoa humana, à visibilidade e construção e acesso à memória coletiva. Entretanto, a institucionalização das políticas LGBTTs, ainda que possa ser compreendida como um avanço para garantir a continuidade de ações e direitos conquistados, acaba por apresentar novos desafios aos movimentos sociais. As transformações nas relações entre atores governamentais e os movimentos na gestão dessas novas políticas de Estado podem confundir as atribuições e os papéis dos atores envolvidos no processo. Como resultado desse modelo de atuação conjunta, nota-se a possibilidade de enfraquecimento e desestabilização da luta dos movimentos.

A descentralização do movimento retratada nesse estudo pela análise da criação da Divisão de Políticas para a Diversidade Sexual da Prefeitura da cidade de São Carlos representou uma iniciativa precursora no interior do estado de São Paulo. Inserida em um contexto político e social favorável, marcado pela forte atuação do movimento social, pela alta receptividade do governo local e pela emergência de ações desta temática no âmbito federal, a cidade de São Carlos vivenciou, entre os anos de 2008 e 2013, a criação de uma complexa estrutura institucional voltada para a visibilidade e defesa da comunidade LGBTT. O chamado tripé da cidadania, composto por um Plano local, um Conselho Municipal LGBTT e pela Divisão de Políticas para a Diversidade Sexual, potencializou o diálogo e a consequente conquista de direitos. A mudança de legenda partidária, ainda que possa ter causado instabilidades durante o período de transição, decorrente da mudança de prioridades de governo, não foi capaz de romper totalmente com as conquistas anteriores, já institucionalizadas. Neste caso, a institucionalização dessas políticas explicita a mecanismos de garantia de continuidade, ao passo que a descentralização consegue promover a aproximação do público-alvo ou beneficiários dos tomadores de decisão na formulação e implementação de políticas.

 

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Recebido em 02/06/2015.
Revisado em 09/10/2015.
Aceito em 15/12/2015.

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