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Revista Psicologia Política

versão impressa ISSN 1519-549X

Rev. psicol. polít. vol.15 no.34 São Paulo dez. 2015

 

ARTIGOS

 

Trabalhadora e mãe: papéis, identidade, consciência política e democracia

 

Working mother: roles, identity, political consciousness and democracy

 

Madre trabajadora: papeles, la identidad, la conciencia política y la democracia

 

La femme travailleuse et mère : les rôles, l'identité, la conscience politique et la démocratie

 

 

Beatriz Cicala PucciniI; Mariana Luzia AronII; Evelyn Barreto SantiagoIII

IPsicóloga pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil. biapuccini@gmail.com
IIPsicóloga e mestre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil. Professora supervisora de estágio e Psicologia Política na Universidade Nove de Julho, São Paulo, SP, Brasil. marianaaron@hotmail.com
IIIPsicóloga pela Universidade Federal da Bahia, Brasil, e mestrado em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil. Atualmente é professora titular da Fundação Escola de Comércio Alvares Penteado e professora universitária da Faculdade Drummond, São Paulo, SP, Brasil. veusantiago@gmail.com

 

 


RESUMO

Diante da complexidade da vida da mulher contemporânea, levantou-se algumas questões sobre os principais conflitos que surgem da conjunção entre trabalho e maternidade. A maior inclusão da mulher no mercado de trabalho - e sua ascensão a cargos antes exclusivamente masculinos - aponta para o reconhecimento de suas competências laborais, mas desconsidera inteiramente a peculiaridade da sua condição em relação ao trabalhador homem, que não vivencia em seu corpo as transformações impostas pela geração de uma família, e não desempenha com a mesma responsabilidade o cuidado com a prole. A partir de uma breve revisão bibliográfica sobre maternidade e trabalho feminino, observou-se a persistência de representações enaltecedoras da maternidade, que pressionam as mulheres para que sejam mães enquanto trabalham - apesar das condições adversas que tornam penosa essa conciliação - e recriminam a escolha por uma destas vivências: a maternidade exclusiva ou o trabalho como prioridade integral, que não inclua o projeto de maternidade. Apontou-se a importância desse debate para o fortalecimento das políticas trabalhistas como proposição objetiva rumo à equidade de gênero na sociedade atual.

Palavras-chave: Trabalhadora, Maternidade, Identidade, Consciência Política, Democracia.


ABSTRACT

Faced to the complexity of contemporary women's life, we raised some questions about the main conflicts of working and motherhood conjunction. The increasing inclusion of women in the market, occupying positions previously exclusive for males, highlights their work skills, but entirely ignores the individuality of women compared to the man, who had not experienced body transformations imposed by the generation of a family, and does not play the same responsibility to the offspring care. Based on a brief literature review about maternity and women's work, we noted the motherhood representation is persistent, demanding women keeping to be mothers even while working - despite the adverse conditions which make those functions painful - and censure the choice for one of those experiences: the maternity exclusively; or primary work and do not include maternity plan. It has been shown the importance of that debate to reinforce the working policies aiming equity of gender in the modern society.

Keywords: Working, Motherhood, Identity, Political Consciousness, Democracy.


RESUMEN

Frente a la complejidad de la vida de la mujer contemporánea, planteamos algunas preguntas sobre los principales conflictos que surgen de la conjunción entre el trabajo y la maternidad. La mayor inclusión de las mujeres en el mercado laboral - y su ascenso a posiciones antes exclusivamente masculinas - puntos clave para el reconocimiento de sus habilidades al trabajo, pero ignora por completo la peculiaridad de su situación en relación al trabajador hombre, que no experimenta las transformaciones corporales impuestas por la formación de una familia y no desarrolla con la misma responsabilidad el cuidado de la prole. A partir de una breve revisión literaria de la maternidad y el trabajo de las mujeres, se ha señalado la persistencia de representaciones consolidadoras de la maternidad al presionarlas a que sean madres mientras trabajadoras - a pesar de las condiciones adversas que hacen dolorosa esta combinación - y la recriminación a la elección de uno de los roles: la maternidad exclusiva; o el trabajo como prioridad integral que no incluya el escenario del ser madre. Este trabajo apunta la importancia sobre este debate para la fortificación de las políticas laborales como proposición objetiva rumbo a la equidad de géneros en la sociedad actual.

Palabras clave: Trabajadora, Maternidad, Identidad, Conciencia Política, Democracia.


RÉSUMÉ

Face à la la complexité de la vie des femmes contemporaines, quelques questions se posent sur les principaux conflits qui résultent de la conjonction entre le travail et la maternité. De nos jours, la plus grande inclusion des femmes dans le marché du travail - et leur ascension à des postes auparavant exclusivement masculins - indique la reconnaissance de leurs compétences professionnelles, mais ignore totalement la particularité de leur statut par rapport à l'homme qui travaille, qui ne subit pas dans son corps les transformations imposées pour la génération d'une famille, et ne joue pas avec la même responsabilité de prendre soin de la progéniture. A partir d'une bref analyse de la littérature sur la maternité et le travail des femmes, nous avons constaté la persistance de représentations exaltées de la maternité, qui font pression sur les femmes pour qu'elles soyent mères tout en travaillant - en dépit des conditions défavorables qui rendent pénible cette conciliation - et reprochent la femme qui choisit une de ces expériences: la maternité exclusive; ou le travail comme une priorité complète, qui ne comprend pas la concéption de la maternité. Les auteurs signalent l'importance de ce débat pour le renforcement des politiques de travail en tant que proposition objective envers l'équité des sexes dans la société actuelle.

Mots clés: Femme Travailleur, Maternité, Identité, Conscience politique, Démocratie.


 

 

Introdução

O presente artigo objetiva discutir duas funções sociais exercidas pela mulher na contemporaneidade: trabalho e maternidade, tendo como contexto as discussões sobre identidade feminina, consciência política e democracia. Procura-se demonstrar que tais funções são possibilidades importantes na construção de identidades positivas, e o direito ao seu amplo exercício vem sendo pautado pelo feminismo em contraponto às leis trabalhistas que desconsideram as especificidades da condição feminina.

 

O Trabalho na Construção da Identidade

O trabalho é o principal meio pelo qual os indivíduos constroem sua existência. A participação das mulheres no mercado de trabalho tem crescido constantemente no Brasil. Em outubro de 2015, as mulheres ocupavam 46,1% do total de vagas de trabalho ocupadas, em média, nas seis regiões metropolitanas analisadas pela Pesquisa Municipal de Emprego (IBGE, 2015).

À medida que a mulher se tornou mais presente no mercado de trabalho, embora em condições ainda desiguais, o trabalho ganhou força para a formação de sua identidade e a fez dedicar-se ao seu próprio desenvolvimento profissional. Nesse contexto, é comum que a maternidade seja adiada em prol do investimento na carreira (Beltrame & Donelli, 2012). O período em que os projetos profissionais se impõem é coincidente com a época de vida fértil do ponto de vista biológico, por isso cada dia mais as mulheres se veem em ambivalência em relação a estas duas identidades: profissional e mãe.

Trabalhar é uma maneira de se inserir na sociedade, de ser e se mostrar útil. Para que esse sentimento de utilidade aconteça é necessário que ambos, sujeito e outro, reconheçam o comportamento laboral do indivíduo como relevante (Ribeiro, 2009; Santiago, 2011). É importante que o indivíduo se reconheça naquilo que faz, isto é, possa ver no seu trabalho o reflexo de sua criatividade, de suas expectativas. Do contrário, podem dificultar a realização de um projeto de vida (Ribeiro, 2009), tal como tornar-se mãe.

Por meio do trabalho, busca-se satisfazer as necessidades físicas e psicológicas (Ribeiro, 2009). O trabalho se constitui pela interação entre o indivíduo e o meio, entre a sua subjetividade (criatividade, desejos, expectativas) e objetividade (ação propriamente dita). "O homem produz sua própria existência na medida em que trabalha, arquitetando a estrutura social com suas próprias mãos, a mesma estrutura que lhe servirá de habitat; o homem é o meio ambiente do homem" (Codo e col., 1998:56). O trabalho abre a possibilidade de que o sujeito reproduza no mundo um pouco de si, confirmando-se enquanto sujeito e fortalecendo a sua identidade, sua individualidade.

A identidade é, ao mesmo tempo, consequência e condição das relações sociais: precisa do seu estímulo e reconhecimento para existir. Segundo Ciampa (1987), a identidade é uma espécie de metamorfose que se expressa empiricamente por meio de movimentos diacrônicos e sincrônicos de personagens que se sucedem, se repõem e se alternam. Personagens estes que são representados pelos indivíduos por meio das suas relações sociais.

No processo de construção da identidade humana, a influência que o outro exerce sobre o indivíduo é tão poderosa que muitas vezes as características que o outro lhe atribui são internalizadas. Esse outro não é qualquer um, há que se ter com o sujeito uma relação de vínculo afetivo (positiva ou negativa) suficientemente forte para que sua opinião tenha significativa relevância.

 

Dilema Feminino: trabalho e maternidade

A legislação brasileira, em sua vertente celetista, determina o período da licença maternidade em 120 dias. Comumente as trabalhadoras acumulam um mês de férias vencidas para somar a esse período, gozando cinco meses de afastamento para os cuidados com o filho. No setor público, a licença é de seis meses, o que favorece o atendimento à recomendação da Organização Mundial de Saúde de que se amamente com exclusividade e livre demanda pelo primeiro semestre de vida da criança.

Existe ainda a Lei nº 11.770/2008, apelidada de Empresa Cidadã, que permite que o empregador conceda 180 dias de licença sem, no entanto, oferecer-lhe um incentivo fiscal interessante e exigindo o cadastramento antecipado da empresa e da própria mulher empregada, em pleno gozo de sua licença, em até 30 dias após o parto, que é um período impróprio para qualquer cuidado burocrático e documental que venha a ser imposto.

Tem-se aí um paradoxo. Ao mesmo tempo em que o papel de trabalhadora não se restringe ao horário fixado em contrato, porquanto exija dedicação maior das profissionais que ocupam cargos gerenciais e com maior qualificação, não prevê a redução da jornada diária ou o tempo necessário ao cumprimento das prescrições médicas e de organismos internacionais que garantam a sua melhor saúde e a de seu filho.

Piccinini e col. (2011), ao revisarem a bibliografia produzida sobre o tema entre 2002 e 2010, demonstram a bidirecionalidade do fenômeno: o impacto da maternidade no trabalho e o impacto do trabalho na maternidade, e apontam que a multiplicidade de papéis a serem desempenhados concomitantemente pode ser fonte de ansiedade. Um dos motivos alegados pelas mulheres como justificativa para o desejo de retorno ao trabalho após a licença maternidade é a satisfação no desempenho desta atividade (Grant, 2001). Mulheres que se identificam mais com o seu trabalho tendem a querer retomá-lo após o período de afastamento, mesmo considerando o sofrimento causado pela separação precoce do bebê.

A maternidade, no caso da trabalhadora, cada vez mais demanda toda uma rede de apoio social, envolvendo creches, profissionais e familiares disponíveis e toda uma logística complexa em que muitos atores são mobilizados. "Os dados revisados mostram que muitas dificuldades decorrentes da vivência conjunta da maternidade e do trabalho podem afetar a vida da mulher em diversos aspectos, sobretudo no que se refere à sua saúde psicológica [...]" (Piccinini e col., 2011:272).

Por outro lado, a maternidade ainda é vista como a maior experiência amorosa e existencial possível. Em Barbosa e Rocha-Coutinho (2007:172), "as falas de M e S trazem o ideário do devotamento e do sacrifício, a visão da maternidade como um sofrimento voluntário e indispensável para a mulher normal, o que ainda hoje parece estar fortemente presente no pensamento social".

 

Democracia, Consciência Política e Trabalho

Deve-se atentar para o contexto histórico em que a maternidade como vemos hoje foi forjada. Numa sociedade que iniciava o capitalismo, em pleno século XVIII, foi providencial ocupar as mulheres com os cuidados relativos à saúde de sua prole, garantindo a criação de trabalhadores fortes e saudáveis que bem servissem ao sistema. Eram os princípios sanitaristas atuando no âmbito privado e designando para a mulher o seu papel primordial para a consolidação do modo de produção na sociedade do capital. Segundo Coelho e Baptista (2009:87), desde o século XVIII, com a industrialização, "o mundo moderno atribuiu à mulher funções próprias do domínio privado, como os cuidados da casa e dos filhos".

Diferentemente do que ocorria no século XVIII, nos dias de hoje tem-se constituído como desafio a conciliação entre a maternidade e o trabalho, pois a demanda do mercado pelo empenho e disponibilidade da profissional vem aumentando, enquanto a maternidade exige também uma dedicação ilimitada, o que tem feito com que muitas mulheres optem pela maternidade e para isso se afastem do mundo do trabalho por períodos mais longos que os previstos na legislação.

Parte das mulheres que não têm filhos não tomaram esta decisão, mas a foram adiando, em função de suas carreiras, até que se tornaram inférteis (Beltrame & Donelli, 2012). Se esse fato pode ser considerado positivo em relação ao envolvimento laboral como uma forma de realização de um projeto de identidade feminina que contempla o trabalho reconhecido socialmente, também sugere que há um descompasso entre a realidade biológica da mulher e as opções que se lhe apresentam para a plena liberdade democrática. Além de não ser desejada por muitas mulheres, a opção de abrir mão da vida profissional para se dedicar à maternidade pode ser considerada, em si, um privilégio, já que mulheres de classes socioeconômicas menos favorecidas não poderão prescindir do emprego que, por vezes, torna-se ainda mais necessário com a chegada de um novo integrante à família.

Para que a construção da identidade do indivíduo aconteça de maneira saudável, ele precisa ter um mínimo de liberdade para exercer os papéis sociais com os quais se identifica. Em que medida a sociedade capitalista fundada no patriarcado permitirá a vivência de tal liberdade?

Saffioti (2004) compreende a violência de gênero como um grande atravessamento das relações e importante componente dos modos de produção no sistema capitalista que, servindo-se dela, mantém as condições de dominação-exploração necessárias à sua perpetuação. "A violência simbólica impregna corpo e alma das categorias sociais dominadas, fornecendo-lhes esquemas cognitivos conformes a esta hierarquia, como já havia, há muito, revelado. Como o poder masculino atravessa todas as relações sociais, transforma-se em algo objetivo, traduzindo-se em estruturas hierarquizadas, em objetos, em senso comum" (2004:118-119).

Oliveira (1999:74) aborda com clareza este atravessamento, mostrando o quanto se reproduzem estas relações de poder nos âmbitos público e privado. "A relação entre os sexos não se esgota na relação conjugal, mas é ativa no lugar de trabalho, ao passo que a relação de classes não se esgota no lugar de trabalho, mas é ativa na relação com o corpo, ou na relação com as crianças".

Para corroborar a impressão de que uma violência em relação à emancipação feminina é praticada contra as mulheres que se aventuram a participar da esfera pública por meio de atividades laborais qualificadas, pode-se observar que as representações sociais negativas desaparecem quando o trabalho ocorre em âmbito doméstico: "[...] ficou evidenciado que a ambivalência que existe na sociedade em relação ao trabalho está relacionada fortemente à ausência da mãe em casa, mais do que uma objeção ao trabalho em si. Para os autores, a percepção, muitas vezes desfavorável, do trabalho é decorrente de atitudes morais que associam conflito à conciliação entre maternidade e trabalho" (Piccinini e col., 2011:275).

Contudo esta ideia tem de ser relativizada, pois segundo Coelho e Baptista (2009), o papel profissional feminino tendeu a uma ampliação, ao sair do contexto exclusivamente doméstico e ir para o público, colocando-se como ameaça ao trabalho executado restritamente pelos homens, somado ao potencial abandono de seu papel familiar.

Cria-se, assim, um cenário no qual a mulher vê parte de seus projetos de vida inconclusos ou concorrentes, sendo cruelmente julgada pela sociedade que a recrimina por abrir mão do trabalho para cuidar dos filhos, ou abrir mão da maternidade para se desenvolver profissionalmente, podendo ser vista como uma pessoa individualista e ambiciosa.

Vendo-se obrigada a assumir os papéis sociais de acordo com a pressão a que é submetida, o processo da construção de identidade feminina fica prejudicado, visto que:

Para que o indivíduo passe por transformações é preciso que condições necessárias se façam presentes. Muitas vezes, as condições encontradas levam a uma transformação nãodesejada (que obriga a certos desempenhos de papéis) ou então a uma reposição (aparência de não-transformação, "mesmice"). Esse bloqueio da "liberdade de ser", que implica identificações coercitivamente impostas, acaba prejudicando o equilíbrio mental do indivíduo, porque tolhe a comunicação dele consigo mesmo. O indivíduo se aliena de si mesmo. As angústias, a rejeição de si se tornam constantes, levando-o, assim, ao sofrimento (Santiago, 2013:13).

Ao refletir sobre as relações de trabalho que contemplam gênero, faz-se necessária a reflexão sobre o processo de socialização de valores e moralidade que pautam o comportamento da mulher. Espaços feminilizados do mercado de trabalho, tais quais escola de educação infantil e salão de beleza, por exemplo, levam a condições particulares, diferenciando-se de outras possibilidades de atuação feminina neste mesmo mercado. (Oliveira, 1999).

Neste debate não há como deixar de lado questões como preferências sexistas, já que diferentemente da ideia que se quer transparecer, o mercado de trabalho não é neutro ou indiferente ao gênero de seus trabalhadores. Há que se considerar cultura, valores, competências - neste quesito as mulheres-mães podem ter desenvolvido habilidades tais como mediação e resolução de conflitos e gestão de recursos, por exemplo.

De acordo com Silva (2011:320), "Na vida das mulheres o trabalho é uma dimensão de tal maneira e tão profundamente entrelaçada às demais, que em muitos contextos sociais se torna praticamente impossível isolá-la e examinar o que sucede na fronteira família-trabalho".

A consciência política, conforme elaborada por Sandoval (2015), compõe-se de aspectos da identidade, assim como da cultura, e transparece na sociedade por meio das crenças e valores e pela perspectiva politizada do contexto social em que o indivíduo está inserido, podendo ser entendida como um "[...] processo contínuo de elaboração de visões de mundo em seus sentidos normativos, pragmático-situacionais e cognitivo-informativos" (Sandoval, 1989:70).

O feminismo trouxe efetivamente à ciência a possibilidade de novas visões de mundo, pautadas na pluralidade das demandas objetivas em contraponto à unicidade com que eram abordadas as temáticas femininas como um grande bloco único em que a mulher era apenas objeto de estudos. "El establecimiento de demandas concretas es imprescindible para proponer y lograr políticas públicas, por lo que la priorización de las metas se convierte en un acicate que permite evaluar y rectificar el rumbo" (González-Suárez, 2013:512).

Considera-se que a gradual conscientização das mulheres sobre seus direitos tem-se dado, mas os resultados são insuficientes para garantir a cidadania e a consolidação da democracia que, de acordo com Monteiro e Vilela (2009), só é possível quando expressa no recente conceito de cidadania surgido a partir da Revolução Francesa, que contempla, além dos deveres, os direitos civis: garantias individuais, direitos políticos e direitos sociais.

A dificuldade descrita por Saffioti (1969) e Oliveira (1999) em reverter as desigualdades de gênero tem persistido na contemporaneidade e, apesar dos avanços obtidos com a inclusão da mulher no mercado de trabalho, podemos observar a perversidade com que isso se dá. A mulher tornou-se trabalhadora porque é necessária ao sistema produtivo, mas as demandas próprias do gênero feminino não foram atendidas. "Seu papel de coadjuvante, assistente, zelosa, reafirmado por séculos de história, é um ponto de grande dificuldade de superação." (Vaz, 2003:133).

Vaz (2003) observa que, quanto ao conservadorismo, grande parte das diferenças entre homens e mulheres - ele aponta diversos estudos em que as mulheres parecem tender ao conservadorismo enquanto os homens seriam mais progressistas - se dá pela oportunidade de trânsito dos homens em contextos sociais diversos. Quando as mulheres passam a atuar em espaços públicos e participam de ações coletivas, essas diferenças não são tão notórias. Entende-se que o direito a participar de diferentes esferas sociais, incluindo o trabalho em sua imensa gama de possibilidades, constitui-se como fundamental para garantir uma sociedade mais justa e igualitária.

Faz-se necessária a forte atuação dos movimentos feministas, que vêm tomando novas formas e dimensões, para que se conquistem a equidade de gênero nas relações de trabalho e a consolidação da cidadania plena para as mulheres do século XXI.

 

Considerações Finais

Em nossa sociedade vem ocorrendo um redesenho do cumprimento dos papéis sociais e da ocupação dos lugares de poder constituídos. Pouco a pouco a mulher vem ocupando espaço no mercado de trabalho, em parte beneficiada pela maior facilidade de acesso à educação formal. Nas últimas décadas as vagas do ensino médio público brasileiro estão sendo ocupadas, majoritariamente, por jovens do sexo feminino, quer pelo fato de elas serem poupadas do trabalho braçal - em relação aos meninos - quer porque o número de jovens do sexo masculino mortos pela violência é muito maior.

Ao se qualificar, pois permanece mais tempo nas instituições escolares, a mulher acaba adquirindo maior número de competências, inclusive para alcançar posições hierarquicamente superiores no mercado de trabalho. A carga - física e emocional - é pesada, pela necessidade de se firmar como profissional competente e como mulher plena, o que inclui desdobrar-se entre vida laboral e pessoal e defender-se das pressões sociais quando opta por não ter filhos.

Os tradicionais nichos profissionais - como engenharia civil para homens e magistério na educação infantil para mulheres - têm-se modificado quanto à presença hegemônica dos gêneros. Entretanto, há ainda o obstáculo da legislação trabalhista brasileira, datada e conservadora, que não acompanhou as mudanças sociais e dificulta a adoção da jornada de trabalho inferior a 40 horas semanais, que só é aceita na esfera informal.

É possível observar o conservadorismo se refletir nas representações sociais evocadas pela vivência concomitante dos papéis de trabalhadora e mãe, gerando uma série de conflitos psicológicos e ambivalências e tolhendo a liberdade das mulheres em desenhar seu projeto de vida de acordo com seus desejos e valores.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recebido em 01/07/2015.
Revisado em 03/11/2015.
Aceito em 18/12/2015.

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