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Revista Psicologia Política

versão impressa ISSN 1519-549X

Rev. psicol. polít. vol.15 no.34 São Paulo dez. 2015

 

ARTIGOS

 

Narrativas do silêncio: movimento da luta antimanicomial, psicologia e política

 

Narratives of silences: antimanicomial movement, politics and psychology

 

Narrativas del silencio: movimiento de la lucha contra el asilo, psicología e política

 

Narratives de silence : mouvement des anti-asile, la psychologie et la politique

 

 

Pâmela de Freitas MachadoI; Helena Beatriz K. ScarparoII; Aline Reis Calvo HernandezIII

IGraduada e Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil. Atualmente é Coordenadora de Saúde Mental do município de Esteio, RS, Brasil e docente no Centro Universitário Unidade Integrada Vale do Taquari de Ensino Superior, Lajeado, RS, Brasil. pamelafmachado@gmail.com
IIPsicóloga, mestra em Educação e doutora em Psicologia e professora no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil. helena.scarparo@gmail.com
IIIDoutora em PsicologiaSocial e Metodologia pela Universidad Autónoma de Madrid, Espanha. È a atual Secretária Geral da Associação Brasileira de psicologia Política (2015-16). Atualmente é docente no Programa de Pós-Graduação em Ambiente Sustentabilidade e líder do grupo de pesquisa em Psicologia Política, Educação e Histórias do Presente da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, São Francisco de Paula, RS, Brasil. alinehernandez@hotmail.com

 


RESUMO

Este trabalho associa práticas profissionais no campo da psicologia e da saúde mental coletiva, tendo em vista pressupostos da pesquisa histórica. Neste sentido, buscou-se compreender como os (as) psicólogos (as) militantes da Reforma Psiquiátrica do Rio Grande do Sul constituíram suas trajetórias e como formularam noções de política, tendo em vista as experiências desenhadas no decorrer de suas trajetórias no campo da saúde mental. Realizou-se uma pesquisa qualitativa na qual se coletou e analisou narrativas de profissionais da área que participaram nas décadas de 1980 e 1990 do Movimento da Luta Antimanicomial no estado. A partir das análises das narrativas, e através do método proposto por Shutze, emergiram dimensões que transversalizaram as narrativas individuais e constituíram uma possível trajetória coletiva. A articulação dos achados com o pensamento de Hannah Arendt, ressaltou a importância da discussão acerca das relações entre política e psicologia.

Palavras-chave: Movimento da Luta Antimanicomial. Saúde Mental. Psicologia. Política. Psicologia Política.


ABSTRACT

This paper associates practices in psychology and in collective mental health, regarding historical research assumptions. We aim to understand how Psychiatric Reform militant psychologists, in Rio Grande do Sul, brought their paths together and how they formed notions of politics, considering the experiences designed throughout their careers in the mental health field. We performed a qualitative research, collecting and analysing narratives of professionals who took part in the Anti-Asylum Movement in Rio Grande do Sul, in the 80's and 90's. From the narratives analysis, and with the method proposed by Shutze, dimensions that transverse individual narratives and that constitute a possible collective path have arisen. These dimensions refer to resistance strategies, militancy experiences, and processes of (dis)accommodations. The connection of the findings with Hannah Arendt's thought, especially in relation to the concepts of active life and public sphere, emphasized the importance of discussing the relationship between politics and psychology. This dialogue is the basis to establish fundamental changes in the mental health field and even in other social policies.

Keywords: Anti-Asylum Movement. Mental Health. Psychology. Politics. Political Psychology.


RESUMEN

Este trabajo combina prácticas profesionales en el campo de la psicología y la salud mental colectiva, supuestos determinados de la investigación histórica. En este sentido, hemos tratado de entender cómo (los) psicólogos (as) militantes de Rio Grande do Sul Reforma Psiquiátrica constituido sus trayectorias y cómo la política formulada nociones, teniendo en cuenta las experiencias extraídas en el curso de sus carreras en el campo de la salud mental. Hemos llevado a cabo un estudio cualitativo en el que se recoge y analiza las narrativas profesionales del área que participó en los años 1980 y 1990 el movimiento anti-Asylum en el estado. A partir del análisis de los relatos, y por medio del método propuesto por Shutze surgido dimensiones transversalizaram narrativas individuales y constituyó un posible viaje colectivo. La articulación de los hallazgos en el pensamiento de Hannah Arendt, destacó la importancia de la discusión sobre la relación entre la política y la psicología.

Palabras clave: Movimiento de la Lucha Contra el Asilo. Salud Mental. Psicología. Política. Psicología Política.


RÉSUMÉ

Ce travail combine la pratique professionnelle dans le domaine de la psychologie et de la santé mentale collective, les hypothèses données de la recherche historique. En ce sens, nous avons cherché à comprendre comment (les) psychologues (les) militants du Rio Grande do Sul Réforme psychiatrique constituait leurs trajectoires et que les notions de politique formulées, compte tenu des expériences tirées au cours de leur carrière dans le domaine de la santé mentale. Nous avons mené une étude qualitative dans laquelle ils ont recueilli et analysé secteur professionnel des récits qui ont participé dans les années 1980 et 1990, le Mouvement Anti-Asile dans l'état. De l'analyse du récit, et par la méthode proposée par Shutze émergé dimensions transversalizaram récits individuels et constitué un voyage collectif possible. L'articulation des résultats à la pensée de Hannah Arendt a souligné l'importance de la discussion sur la relation entre la politique et la psychologie.

Mots clés: Mouvement Anti-Asile. Santé Mentale. Psychologie. Politique. Psychologie Politique.


 

 

Introdução

O movimento da Luta Antimanicomial e, neste sentido, o processo da Reforma Psiquiátrica tem despertado reações e atenção da sociedade. No entanto, após a legitimação de alguns dos pressupostos desta proposta, parece que nos encontramos em um "adormecimento" de luta, seja pelo próprio avanço destes paradigmas, seja pelo cenário dos movimentos sociais na atualidade, que não tem uma única bandeira de luta e acabam, muitas vezes, por fragmentar-se.

Por outro lado, vislumbramos no campo da psicologia uma ênfase nas vertentes que buscam explicações lineares e pragmáticas para a vida humana. Neste sentido, este artigo busca compreender como os psicólogos e as psicólogas militantes do movimento da Reforma Psiquiátrica do Rio Grande do Sul construíram suas concepções de política e militância. Este intento procura salientar a importância destas conceitualizações, visto que nossa área do conhecimento urge de trabalhos que possam sustentar práticas que preconizem transformações sociais e compreendem o ser humano com um sujeito complexo e coletivo.

 

Que Caminho é Esse? cenário atual dos movimentos sociais

Os movimentos sociais surgem como uma concepção alternativa à cidadania desengajada, tendência contra-hegemônica que politiza as desigualdades sociais moldadas por práticas sociais e culturais. Justamente por politizar questões sociais, os movimentos refizeram as fronteiras do político e da democracia, indo além do modelo representativo, com seus partidos, instituições e Estado (Diaz, 2008).

No Brasil, os movimentos sociais atingem seu ápice na resistência ao regime autoritário dos anos 70 e sua construção coletiva se fez na forma de rede, articulando-se com outras organizações, tais como sindicatos e partidos políticos. A mobilização pautava-se em uma motivação individual, mas sobretudo, por um desejo coletivo de transformação social. Englobando o conceito de cidadania, a característica que se tornou mais forte foi a construção da "cultura de direitos": a partir de lutas específicas e de práticas concretas, novos direitos criados ou inventados incorporam-se à agenda política.

A construção de espaços plurais de representação dos sujeitos coletivos a partir da década de 80 no Brasil foi pautada pela consolidação dos movimentos sociais (Paolli e Telles, 2000). Com a redemocratização e a promulgação da Constituição de 1988, os movimentos sociais puderam introduzir a luta de grupos sociais subalternos, integrados e unidos pelo modo como são excluídos, oprimidos, descaracterizados e marginalizados. Esses grupos podem, coletivamente, problematizar em público uma condição de desigualdade da esfera privada e questionar a sua exclusão de arranjos políticos. As autoras apontam que o mundo da cidadania e das regras de civilidade tem como avesso, nessa década, o fosso da exclusão e a crise econômica ininterrupta. Portanto, ao mesmo tempo em que tenta garantir os direitos políticos democráticos, o Estado mostra-se ineficaz na garantia dos direitos sociais, quanto mais a ordem legal promete igualdade, mais a realidade se mostra desigual (Diaz, 2008).

Neste contexto e adentrando diferentes reflexões, nos anos 90, os sujeitos coletivos constituídos nos movimentos sociais estabelecem novas relações com o Estado. Ao invés de práticas clientelistas e assistencialistas, criam-se vários fóruns de negociação e participação, onde as demandas populares tomam forma nas políticas públicas, como é o caso das conferências. Por outro lado, o neoliberalismo reitera a proposta de um Estado mínimo, despolitizando a questão dos direitos e reduzindo a sociedade civil a consumidores de mercado (Diaz, 2008).

Gohn (2010) aponta que um movimento social com certa permanência cria a sua própria identidade, construída através de suas necessidades e desejos. Não assume uma identidade pré-construída, não está em busca de uma identidade política consentida ou doada, mas é um processo de luta perante a sociedade civil e política, sendo que o reconhecimento jurídico, ou seja, a elaboração formal do direito - para que tenha legitimidade - deve ser uma resposta do Estado à demanda organizada (Barbosa, Costa e Moreno, 2012).

Deste modo, para Sônia Alvarez (2000:45), "o que está em jogo para os movimentos sociais de hoje é o direito de participar na própria definição do sistema político, o direito de definir aquilo no qual querem ser incluídos". Os "novos" movimentos sociais seriam, então, antes grupos ou minorias que grandes coletivos. Suas demandas seriam simbólicas, girando em torno do reconhecimento de identidades ou de estilos de vida.

 

Como estamos caminhando? movimento da luta antimanicomial

De acordo com Luchmann e Rodrigues (2007), O Movimento Nacional da Luta Antimanicomial (MNLA) é uma ação coletiva cuja orientação comporta solidariedade, manifesta conflitos e implica a ruptura dos limites de compatibilidade de saúde mental no País. A configuração dos atores e instituições (trabalhadores, profissionais, políticos, empresários, usuários e familiares) conforma um quadro multipolar deste campo que, embora atravessado por diversos conflitos e ambiguidades, vem promovendo alterações significativas nas quatro dimensões apontadas, quais sejam: epistemológica, técnico-assistencial, políticojurídica e sociocultural.

Em 2012, o movimento da Luta Antimanicomial completou 25 anos de existência. Desde sua formação, tem por objetivo a luta em prol de serviços de saúde pautados pela atenção, dignidade e cuidado para com os usuários da saúde mental. Seus princípios estão ancorados na criatividade e no protagonismo destes usuários, bem como na transformação do imaginário social frente à loucura (Barbosa, Costa e Moreno 2012).

No que tange à trajetória oficial deste movimento, o mesmo foi decisivo para transformações importantes nas conferências de saúde, principalmente na I Conferência Nacional de Saúde Mental em 1987, na qual tem como um dos resultados a garantia de umcaráter participativo. É importante ressaltar que este movimento engendra-se em um período de redemocratização política, após o regime militar, no qual existe um sentimento de "revolução" em várias instâncias da sociedade. Além disto, em 1988 é promulgada a constituição cidadã, que estabelece importantes mudanças no que tange aos direitos dos(as) cidadãos(ãs) brasileiros(as).

Neste contexto de coletividade, luta social e reconhecimento das desigualdades, ocorre aimplementação do SUS (Sistema Único de Saúde), sendo um dos principais avanços no campo das políticas públicas brasileiras. Colocando na arena das reivindicações princípios como territorialidade, equidade e universalidade, o SUS movimentou as estruturas estaduais e municipais de todo país.

Deste modo, atualmente, o movimento da Luta Antimanicomial conquistou diversos avanços e legitimou muitos de seus objetivos. No entanto, ocorre um esvaziamento deste movimento, que ainda deve lutar por muitas transformações, principalmente no campo da saúde mental.

 

Quando se Escolhe o Caminho: a metodologia

Para compreender quais as concepções de política de psicólogos (as) militantes da Reforma Psiquiátrica no Rio Grande do Sul, optou-se por uma abordagem qualitativa, tendo como apoio as perspectivas da História Oral e como foco de análise as narrativas de profissionais da Psicologia que participaram de movimentos em prol da Reforma Psiquiátrica no Brasil (ou da Luta Antimanicomial). Além disso, no decorrer das análises, evidentemente, consideramos as especificidades dos contextos associados aos conteúdos das narrativas.

Essa escolha metodológica parte do pressuposto da inexistência de resultados ou análises definitivas e da descrença na eficiência da lógica linear para a produção de conhecimentos. São tão diversas as possibilidades de perceber, decidir e avaliar as práticas humanas que seu estudo e registro não podem se limitar a uma perspectiva. Nesse sentido, optamos pela abordagem da história oral como ferramenta que torna possível contemplar, ao mesmo tempo as peculiaridades do sujeito narrador e, portanto, protagonista da narrativa, e a condição coletiva das práticas humana.

A pesquisa realizou entrevistas com sete psicólogas e psicólogos militantes da Reforma Psiquiátrica do Rio Grande do Sul. Foram sendo contatados através da metodologia "Bola de Neve", na qual o primeiro participante indicou outro e assim sucessivamente. Posteriormente, foi encerrado o número de participantes através do método de saturação (Fontanella, Ricas & Turato, 2008).

 

Tecendo Sentidos no Caminho: análise de uma trajetória coletiva

A relação entre os movimentos sociais e a Reforma Psiquiátrica brasileira é um tema que nos remete à história contemporânea (Diaz, 2008), nesse "encontro com seres de carne e osso que são contemporâneos daqueles que lhes narra a vida" (Chartier, 1998:215). O historiador do tempo presente convive com seu objeto e, portanto, se associa aos demais atores do processo na construção de modos de pensar e construir significados sobre ele. Muitos desses pensamentos e significados não habitam os espaços da visibilidade por sofrer processos de esquecimento e/ou apagamento em prol de uma versão oficial que, como qualquer versão ou narrativa, sempre é específica e parcial.

Nessa perspectiva, vale destacar o pensamento de Pollak (1989) para quem a fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, separa uma memória coletiva subterrânea da sociedade civil dominada ou de grupo específicos, de uma memória coletiva organizada, que resume a imagem que uma sociedade majoritária ou o Estado desejam passar ou impor. Esse mesmo autor acrescenta: "o denominador comum de todas essas memórias, mas também as tensões entre elas intervêm na definição do consenso social e dos conflitos num determinado momento conjuntural

A partir dessa afirmação é possível, então, associar memória e construção de identidade como processos coletivos engendrados nas e a partir das relações sociais. Assim, a identidade coletiva se articula à memória e torna possível compreender investimentos grupais que fortalecem a unidade, continuidade e coerência dos grupos humanos pela construção de memórias coletivas mediadas por instituições, ideologias, linguagens e pelo senso comum (Diaz, 2008).

 

Apagamentos e Silêncios da História

Para falar em apagamentos e silêncios dessas histórias precisamos compreender que é impossível reviver o passado tal como ocorreu; nós rememoramos ofuscados pela condição de viver outro tempo - o do presente. Como bem lembrou o historiador Quentin Skinner (1969), ao interpretar no presente as ideias do passado não se pode desconsiderar os significados originais de conceitos e explicações. Caso contrário, convidamos para dialogar interlocutores que já não podem fazer parte do debate, ou por outro lado, atribuímos intencionalidades que não correspondem aos contextos das práticas por nós estudadas (Jasmin, 2005).

Porém, a importância da tentativa de registrar o passado reside na função social exercida pela atividade mnêmica. O indivíduo em suas histórias de vida, no ato de rememorar tende a definir seu lugar social e suas relações com os outros. Nas tensões e contradições entre a imagem oficial do passado e suas lembranças pessoais, faz aparecer os limites desse trabalho de enquadramento, ao mesmo tempo em que aproxima a memória da identidade pessoal e coletiva.

Deste modo, o foco desta dimensão da trajetória coletiva dos (as) participantes da pesquisa é justamente poder dar voz a silêncios mantidos pela história e produtores de vazios que só podem ser contemplados quando coloridos por memórias ainda não registradas. Estas lacunas, segundo Michael Pollak (1989) denominam-se de "memórias subterrâneas" e, no presente estudo estão relacionadas com processos de naturalização e de resistência que marcaram as trajetórias da luta antimanicomial. Os processos de resistência mencionados como forças do movimento, mas que pela naturalização dos sentidos de loucura e das práticas a eles associadas podem estar sucumbidas pela institucionalização da própria Reforma Psiquiátrica.

É curioso observar que o cenário atual da Reforma Psiquiátrica no Brasil tem despertado a atenção e reações da sociedade. O campo da saúde mental passa por metamorfoses, com ressonâncias nos campos econômico, social, afetivo e ideológico. Entendendo essa metamorfose a partir do descrédito atribuído aos lugares de segregação, a transformação do modelo de saúde mental como uma expressão de uma outra política torna-se um conjunto instável, repleto de conflitos, de tensões, de crises e de derrapagens. Neste sentido, os embates tornam-se uma convocação para a militância a favor ou contra o ideário da luta antimanicomial (Amarante, 2012). Desse modo podem promover a explicitação de posicionamentos e de práticas construídas para a derrubada dos muros manicomiais, como pode também gerar o apagamento de algumas memórias ou, pelo menos, silenciá-las.

Nesta arena de conflitos a memória coletiva pode subsidiar estratégias e possibilitar espaços para diferentes construções. Um dos tópicos abordados por Amarante (2012) é o fenômeno da profissionalização de alguns militantes na área da saúde mental. Habilidades, vantagens simbólicas, prestígio, autoestima e poder são adquiridos. Neste contexto, a intuição e a criatividade, elementos tão caros aos profissionais acabam tonando-se apenas lembranças:

Eu acho que o intuitivo é que se perde, aquela coisa de tu buscar dentro de ti formas de fazer, de agir, como se tu não pudesse pensar tanto onde está tudo tão pronto. Eu me refiro em uma época em que todos os usuários do CAPS vão fazer uma vaquinha, vamos lá, com uma equipe, vamos lá fazer o almoço, eles chamam o usuário cada um faz a sua parte, vai todo mundo fazer almoço para todo mundo. Hoje eu não sei, se a cozinheira ficasse doente, talvez se ligasse para uma outra instituição que mandasse outra cozinheira, entendeu? (Entrevista 1)

Neste trecho da entrevista 1, podemos notar que a institucionalização trouxe legitimidade para os objetivos da luta antimanicomial, fundamentalmente através da lei 10216 da Reforma Psiquiátrica. Por outro lado, a proposta de subverter a ordem instituída criando e inventando formas diversas de cuidado que preconizem a dignidade humana ficam vinculados à burocratização e à hierarquização também presente nas políticas públicas (Leite, 2012). Segundo Arendt (2010), o ser humano tem em si a possibilidade de começar continuamente, ou seja, de sempre colocar em movimento. Consideramos ser esse um processo criativo e, portanto, de desinstitucionalização. É desse criar e desse recomeçar, tão presente nas trajetórias narradas, que as práticas atinentes à regulamentação e, como decorrência, à institucionalização da Reforma Psiquiátrica podem contribuir para promover silêncios e apagamentos.

A leitura de Arendt (2010) oferece ainda a ideia de que que a ação humana só é possível na relação com o outro. Assim, tanto a produção de apagamentos e de silêncios, como aconstrução de relações igualitárias se estabelecem no convívio social. É nele que se formulam práticas sociais conservadoras e/ou inovadoras e se estabelecem seus efeitos. O novo, o diferente, o transformador advém desse espaço plural e diverso, da capacidade do diálogo e da construção conjunta, como podemos observar no seguinte trecho:

A Zona Rural é tão grande que ela é muito extensa em termos geográficos, 60, 70 km e, são usuários que iam para a casa e eles acabavam não tendo nenhuma supervisão e acabavam retornando depois para o hospital psiquiátrico, porque era muito longe para a gente conseguir ter perna para isso. E aí foi bem legal que a gente pensou em montar um programa de agentes comunitários de saúde que eram procuradas como líderes. A mulher da venda, a mulher leiteira, a mulher do motorista de ônibus... (Entrevista 1)

Maria utilizou-se da criatividade e das forças que dispunha em prol do objetivo de possibilitar acolhimento e cuidado às pessoas as quais aquele serviço atendia. Descortinava-se um interesse genuíno pelo mundo, pautado na possibilidade de considerar a dignidade da vida ativa (Arendt, 1972/1987). Por isso, quando nos reportamos à noção de vida ativa e quando mergulhamos nas memórias priorizamos o pensar no que fazemos em cada momento e no que se faz quando se é ativo. Como decorrência, não tratamos aqui de repetições produtoras de silêncios e tampouco de prescrições e normativas que possam gerar apagamentos. Interessanos processos humanos de vida ativa - contínua interrogação e criação de marcas no mundo.

Como afirma Barbosa, Costa e Moreno (2012), a Reforma Psiquiátrica não vem como solução definitiva. Sua tendência, seja qual forem seus direcionamentos, é inspirada pela incessante questão da diferença no plano comum. É justamente na reinvindicação da igualdade que se reconhece a pluralidade e, por conseguinte, as potências transformadoras e revolucionárias dos seres humanos (Arendt, 2004). A luta pela igualdade não pode restringirse ao pomposo texto da lei ou às publicações científicas.

Para Arendt (1988), a postura ética do ser humano reside na sua responsabilidade como agente ativo. A autora é precisa ao falar do compromisso pessoal, social e político de cada pessoa. A partir do momento em que nascemos somos responsáveis por nossos atos (palavras) e por seus efeitos. Defender as ideias da desinstitucionalização e da Reforma Psiquiátrica está muito além de apenas fazer parte de um serviço vinculado a esta proposta ou bradar tais pressupostos em reuniões, conferências e publicações. É necessário ter consciência e deixar clara a posição que se adota, tendo em vista as implicações éticas e políticas de cada prática social exercida.

Eu acho que esse é um outro ponto na política, que na Saúde especialmente, a gente tem que avançar, que é não pensar a saúde através da construção maravilhosa que nós temos que oferecer, e sim o que é que o usuário nos demanda, a gente tem feito historicamente o contrário, a gente oferece ao usuário os serviços e diz "se encaixe, faça a sua adesão. (Entrevista 4)

Na fala da entrevista supracitada podemos constatar que ainda estamos arraigados ao desejo de mostrar que existe alguém que tem o conhecimento e é detentor da verdade. Deste modo, podemos nos questionar: qual o intuito que "aparecemos" para os outros? Nas palavras arendtianas "a aparência constitui para nós a realidade; só estamos seguros da realidade do mundo e de nós próprios através do testemunho dos outros" (Amiel, 1996:76). No entanto, esta aparência, ação, de acordo com a filósofa é por natureza imprevisível, pelo fato de sua pluralidade ser a sua condição.

Quando possibilitamos espaços que dão vozes aos silêncios, temos o objetivo de colocar na arena da vida ações e palavras. Não temos o controle das ressonâncias e das relações que irão produzir. Mas, de fato, esta não é nossa proposta. O objetivo primordial é exercer a natalidade (Arendt, 1972), recomeçar, colocar em movimento e iniciar pensamentos e reflexões. Mencionando Arendt: "o que é importante é a incapacidade de predizer, a falta de controle, isso é para os humanos o preço da liberdade, o preço que pagam pela pluralidade e pelo real, pela alegria de morar juntos num mundo cuja realidade é garantida a cada um pela presença de todos" (Amiel, 1996:71).

Então se a gente olhar historicamente tem um determinado momento em que a loucura é segregada a um segundo plano, antes desse momento a gente convivia com a loucura no ambiente da cidade, assim como a gente convivia com outras situações... eu acho que a gente está vivendo um momento de reparar essas coisas também, de retomar significados que já tiveram anteriormente e que vê que não está tão fora... (Entrevista 4)

Partindo das inspirações arendtianas e do trecho da entrevista acima, observamos como a história vai produzindo significados e transformando formas de vida. E essas transformações ocorrem pelas discussões, pelos embates e pelos conflitos, pela possibilidade de mudança. No entanto, como afirma Walter Benjamin (1948) "o passado não cessa de existir", tanto ressoa suas fragilidades quanto suas potencialidades. Neste engendramento histórico oficial, no qual o subterrâneo pode ser considerado "a sujeira" do qual fala Bauman (2001) "a sujeira é essencialmente desordem... sua presença é uma ofensa ao senso esteticamente agradável e moralmente tranquilizador da harmonia".

Deste modo, podemos adentrar os diferentes espaços institucionais, como a psicologia que nasce como ciência para controlar, medir e predizer. Contudo, através das relações, do contato com o outro, da reflexão e do coletivo, psicólogos e psicólogas se desacomodaram e puderam "iniciar" diferentes movimentos. Outras formas de compreender a atuação da psicologia podem ser construídas, ainda que em muitos momentos através da subversão e da não legitimidade (Machado & Scarparo, 2010). No movimento da luta antimanicomial, principalmente no Rio Grande do Sul, esta categoria foi decisiva, articuladora e esteve à frente das principais reinvindicações e manifestações deste movimento, como podem ser verificadas na fala a seguir:

No Rio Grande do Sul, foi significativo o número de psicólogos que estiveram à frente dessas mudanças. Teve um período que nós contávamos, nós tivemos nove, dez serviços, sete eram dirigidos ou tinham uma importância, um importante papel dos psicólogos. (Entrevista 5)

Mais importante do que a natureza da atividade do (a) psicólogo (a) é o caráter político de sua ação profissional (Martín-Baró, 1996). Por vezes, este aspecto vem se perdendo frente às tecnologias, à necessidade de resultados rápidos e efetivos e ao incremento de estudos vinculados ao comportamento cerebral humano. Concomitantemente o poder da ciência e da tecnologia que constituiu tais avanços científicos em sofisticados laboratórios, favoreceu a incapacidade humana de refletir criticamente sobre tais inovações, tendo em vista o contexto em que vivemos e a sociedade que estamos construindo.

Trata-se de um processo de obscurecimento do espaço público, no qual se interroga com maior propriedade as transformações políticas de cada tempo e lugar. Se falarmos especificamente no campo das políticas públicas fica evidente essa necessidade, o trabalho nesses espaços requer posicionamentos, o reconhecimento das lutas e a articulação de estratégias de enfretamento das circunstâncias que promovem existências indignas plenas de desigualdades.

De acordo com Ansara e Dantas (2010), neste contexto, a atuação do (a) psicólogo (a) cumpre dupla função: contribui para a identidade social dos grupos (aqui usuários (as) da saúde mental) e ao mesmo tempo garante a legitimidade do Estado. Esta mesma autora também coloca que por mais avanços que tivemos, as estratégias neoliberais continuam acentuando as desigualdades sociais, penalizando as camadas populares e intensificando contradições sociais que agudizam a miséria, a marginalização e a violência.

 

(Des)Acomodações da Trajetória

A intenção de visitar e significar as histórias que engendram o processo da Reforma Psiquiátrica reside na possibilidade de também olhar para as práticas psicológicas. Ao refletir sobre tais práticas, na perspectiva da historicidade, se encontra fazeres voltados para a predição e para o controle do comportamento. Tal marca cunhou também a profissão que, ao ser oficializada em 1962, era pautada pela psicotécnica, pela indicação de comportamentos adequados e pela prevenção de desajustes (Scarparo, 2012). Tal característica marcou também os registros sobre a profissão no período do golpe civil-militar. Se, por um lado havia psicólogas e psicólogos que estabeleciam estratégias de resistência à repressão política imperante, por outro, também havia profissionais que corroboravam o regime. Neste sentido, podemos afirmar que a construção da profissão de psicólogo no Brasil é plena de diversidade (Hernandes & Scarparo, 2008; Scarparo & Ozorio, 2009) o que a credencia ao debate e à continua transformação, características de uma ciência viva.

Nos anos setenta a profissão expande seu processo de consolidação e, no campo da saúde mental, participa de projetos pautados, predominantemente pela lógica da Psiquiatria Comunitária. Esse enfoque tinha a saúde mental como objeto de práticas preventivas e se dirigia à coletividade o que tornava a comunidade um espaço privilegiado de intervenção. Nessa perspectiva encontramos a experiência do Centro Médico Social São José do Murialdo que contou com a participação de psicólogas desde o início de sua instituição (Scarparo, 2005). Ao mesmo tempo nessa época instaurou-se a "Crise da Psicologia Social", um momento de problematizaçãoes acerca do conhecimento produzido, dos lugares ocupados, da cientificidade e da sua pertença ao campo das ciências humanas (Lima, 2011).

É no final dos anos 80 que o Conselho Federal de Psicologia (CFP) adotou o compromisso social como norteador da atuação psicológica. Não obstante, este termo não é novo, nem mesmo na psicologia, afinal já existia uma forte discussão de diversos autores dentro da psicologia social e em outras áreas, como Arendt no campo da filosofia. Esta autora refere que a responsabilidade do ser humano reside em ser atuante; agir no mundo (Arendt, 2010). No entanto, a "oficialidade" do compromisso social tem por objetivo a construção de práticas comprometidas com a construção social em direção a uma ética voltada para a emancipação humana e avessa à produção de práticas que corroborassem os processos de acomodação e naturalização.

Quando se fala de resistência às práticas naturalizantes (acomodadas) proporcionadas pelo exercício da psicologia, uma das referências primordiais é o pensamento de Martin-Baró, com a Psicologia da Libertação (Martin-Baró, 1996). Este psicólogo el-salvadorenho defendeu até sua morte uma psicologia que assume a perspectiva das maiorias populares e que opta por acompanhá-las no seu caminho histórico em direção à libertação. Neste sentido, esta dimensão denominada "des(acomodações)" terá como foco demonstrar que o quão necessário é a sustentação cotidiana de discursos e práticas transformadoras.

As pessoas que trabalham no CAPS são pessoas diferentes, elas tem uma capacidade de uma mobilização maior eu acho do que o resto da comunidade assim, uma capacidade de se importar... (Entrevista 1)

Como pode ser observado neste trecho da entrevista 1, a sustentação da proposta da Reforma Psiquiátrica não se reduz a simplesmente ser trabalhador de um serviço preconizado pela mesma. Em alguns momentos, temos a ideia de que todo profissional de um espaço pautado na Lei da Reforma Psiquiátrica terá uma prática antimanicomial. Neste contexto, percebemos que a pesquisa histórica, buscando rememorações adquire relevância também pelo ser caráter denunciador e reivindicatório. O processo da desisntitucionalização nos mostra que os trabalhadores que lutaram por uma sociedade sem manicômios, eram pessoas que se destacavam pelo seu compromisso político e social. No entanto, esta noção "acomodou-se" (naturalizou-se), ou seja, acreditamos que todos os trabalhadores destes serviços têm essa consciência coletiva, mencionada nas palavras de Martín-Baró (1996).

Arendt (2010), nossa fonte inspiradora neste artigo, coloca que toda a origem da responsabilidade advém do ato de julgar (avaliar, refletir) e de implicar-se. Esta autora ainda coloca que para julgar, precisa-se o conhecimento, afinal o mundo não é algo dado, mas o resultado de uma decisão permanentemente renovada de juízo (reflexão) e interpretação do diálogo. Na manifestação abaixo, podemos verificar que o diálogo que embasa o coletivo e os movimentos sociais, atualmente torna-se um grande desafio, principalmente no que tange ao trabalho da psicologia.

Eu sinceramente, voltando para a categoria e para os psicólogos, não sei se esse debate (com o era Fórum dos Movimentos Sociais, o Sindicato lá da Construção Civil, ou o Movimento Sem Terra inicial, bem inicial, já permear ou abraçar, ou apoiar a nossa luta e assim nós também),não sei se hoje teria espaço, dos psicólogos puxarem um debate dentro, não sozinhos, claro, mas dentro do Movimento de Saúde Mental. Isso quando a gente relata hoje, as pessoas ou os estudantes não conseguem imaginar isso, o que uma coisa tem a ver com a outra... (Entrevista 4)

A heterogeneidade e o uso banalizado do termo social adquire papel de modismo e de vocabulário politicamente correto no meio dos profissionais sem uma correspondente mudança na realidade do trabalho. Desta forma, dificultam o aprofundamento e a compreensão das questões envolvidas e esvaziam de sentido um projeto técnico-político para a profissão e para os profissionais em exercício (Senra & Guzzo, 2012). Para Guareschi (2001), a concepção de social se concretiza na prática, nas condutas, nos comportamentos, nos tipos de relações que estabeleço e nos posicionamentos que adoto. O trecho seguinte aborda justamente estes paradoxos que nos tensionam na psicologia.

Um usuário de CRACK que chega assim, "o meu problema não é a droga, a droga eu estou muito bem obrigado, inclusive até vocês chegarem aqui eu tava ótimo, não tinha problema nenhum, depois que vocês chegaram vocês bagunçaram o meu coreto aqui, criaram uma visibilidade que antes não existia, o meu problema é que eu não tenho moradia", e aí, a gente quer ouvir isso? Ou a gente só quer oferecer aquilo que a gente acha que tem para dar, porque daí, a ideia de botar dentro da categoria. (Entrevista 5)

Scarparo, Pizzinato e Accorssi (2011) pontuam a importância da consideração da história, de suas marcas e de seus silêncios para compreender e discutir os processos de instituição de lugares sociais e as práticas delas decorrentes. Ao mesmo tempo que ciência positivista e categorizante amplia seus espaços, frente a uma sociedade que preconiza os especialismos em detrimento de outras formas de conhecimento, nos convoca a produzir espaços de resistência e transformação.

 

Resistências

A observação de sentidos construídos no senso comum traz para a palavra resistência a conotação de: não ceder ao choque de outro corpo; opor força à força; conservar-se firme; durar e subsistir. Na medida em que o conhecimento cotidiano é mediador da construção das relações sociais (Martins, 1997) e é neste espaço que se processa a ciência, esses significados, ancoram disparadores para pensarmos no conceito de resistência no campo político.

A historiografia brasileira mostra que a resistência foi mote das lutas contra o regime ditatorial, especialmente, nas décadas de 1960 e 1970. Neste sentido, a resistência balizava-se nos movimentos sociais contra-hegemônicos, que reivindicavam transformações sociais voltadas para as noções de liberdade e democracia (Fausto, 2009; Moreira Alves, 2005). É também nesta época que o movimento da luta antimanicomial ganha força, na medida em que é associado ao clima reivindicatório da época potencializado por outros movimentos sociais voltados para os direitos humanos. Também é interessante observar a vinculação das estratégias de resistência à valorização da ética da solidariedade expressa no dia a dia como espaço coletivo de intervenção e transformação.

Primeiro a gente começou assim, não tendo nada dentro da casa, além de quatro paredes, então a gente fez um chá de panela, nós convidamos a população para trazer alguma coisa que não usasse mais em casa, em troca nós fizemos um chá com bolo, que não era financiado nesta época. Então com vários fogões nós conseguimos fazer um, com várias cadeiras nós conseguimos fazer uma, então até isso era terapêutico, os pacientes ajudavam a consertar as coisas. E aí nós ficamos com o básico e ainda não tínhamos pessoal. (Entrevista 1)

Neste trecho da entrevista 1 observamos, que a resistência se constituía no cotidiano, na tentativa de colocar em prática os objetivos da Reforma Psiquiátrica, inspirada no Paradigma da Desinstitucionalização (Rotelli, 2001) e na Psiquiatria Democrática (Basaglia, 1982), pensamentos francamente resistentes às ideologias ditatoriais. Nesta narrativa fica clara a preocupação com a ação, fazendo com que a luta não se perca no discurso e nas palavras (Guareschi, 2007). Deste modo, mobilizar-se para a resistência significa perceber que uma situação adversa e/ou um problema social não é apenas individual, mas coletivo - macrossocial. Trata-se da conversão de uma série de ideias e convicções em ações (Scarparo & Hernandez, 2007). Deste modo, verificamos que as pequenas atitudes vão sendo engendradas em busca de motes coletivos e solidificam mudanças fundamentais em nossa sociedade.

No entanto, por vezes a resistência adquire um caráter utópico, visto que na atualidade não temos um objeto único, ou francamente delimitador de espaços de resistência ou "inimigos" facilmente reconhecíveis, como no caso das mobilizações contra o regime civil-militar. A atualidade nos mostra que há uma "pulverização" dos motes de luta, fazendo com que existam diferentes resistências e diversidade de objetivos. Assim, ideias de sociedade em transformação não fomentam unidades sociais e, sim sistemas de relações específicos e, muitas vezes, fragmentados. Um desafio dos dias de hoje é justamente encontrar um fio condutor que possa unir estas "inúmeras resistências". Prado (2002), buscando adentrar este contexto, discute a ideia de identidade política, demonstrando que é necessário visualizar o "nós" e o "eles". Este primeiro estaria relacionado à nossa identificação enquanto coletivo e, o segundo diria respeito ao antagonismo, contra "o que", contra "quem" lutamos.

Prado (2002), ainda coloca a importância do conflito, visto que a sociedade está sob a égide de um modelo liberal hegemônico pautado por uma política do consenso. Na mesma direção, Arendt (1983) afirmou que a política se constitui pela ação, pelo discurso e pela divergência. Embasando-se nestas perspectivas, verificamos que nossas resistências adquirem identidade, pois convergem na ideia de continuar efetivando espaços de diálogo e de reconhecimento das diferenças. Mostrar a forma de estar no mundo é assumir uma posição política e afirmar diferenças - características da vida ativa.

Então eu acho que isso é uma atitude antimanicomial, que ela é muito intensa, ela é uma forma de estar no mundo, estar no trabalho, com o outro, com a qual eu acho que não dá para retroceder depois que tu inicia nisso. (Entrevista 7)

No início era uma coisa muito de sonho, a gente não tinha parceria, era um, dois que tu contava. Eu cansei de ficar dormindo na Santa Casa com o usuário porque não tinha quem ficasse, não queriam ficar. Todo mundo fazia parte da Saúde Mental, mas ninguém queria ficar. (Entrevista 6)

Nestas duas falas, podemos constatar que uma atitude antimanicomial se pauta nas diversas formas de cada ser humano estar no mundo. Resistir vai além dos objetivos da Reforma Psiquiátrica, encontra-se em cada comportamento, em cada fala, em cada gesto e nos seus posicionamentos. No entanto, fica evidente que é impossível resistir sozinho. Precisa-se da mobilização coletiva que se converte numa força inovadora e poderosa legitimada pela sociedade, um recurso útil e estratégico de influência e intervenção social (Scarparo & Hernandez, 2007). A ação coletiva passa por um processo político traduzida na reunião de atores sociais criando e formando espaços de práxis política.

A gente já tava tentando fazer com que a lei Paulo Delgado, o Projeto de Lei, que ele colocou na roda a partir de 88, pudesse ser aprovado. Eu me lembro que levou dez anos isso, mas no início dos anos 90 a gente ia em cada senador, tentava convencer eles assim... (Entrevista 2)

Esta criação de estratégias de luta também qualifica um processo de resistência, pois é uma forma de efetivar os antagonismos. Arendt (1993), defende a ideia de que a imaginação acaba conseguindo ter ao menos um vislumbre da sempre assustadora luz da verdade. Distinguindo fantasia e imaginação, a autora coloca que esta última não passa de um novo nome para a visão mais clara, a amplidão de espírito e para o humor mais exaltado da razão. Inspirando-se nesta filósofa podemos ancorar a importância da criatividade e da instituição humana. A articulação, a invenção e a criação tornam-se fundamentais quando pensamos no conceito de resistência.

 

Quando os Sentidos Produzem o Caminho: concepções de política e militância

A análise das dimensões produzidas pelas narrativas individuais proporcionou encontrar pontos de contato, intersecções e, até mesmo, divergências. A construção desta trajetória coletiva teve por objetivo engendrar memórias que pudessem compor as concepções de políticas destes psicólogos e psicólogas, militantes da Reforma Psiquiátrica do Rio Grande do Sul. Ao construir esta caminhada tomamos como mote o conceito de política de Hannah Arendt (2004). Para ela, a política ocorre no intraespaço, se estabelece como relação e se faz no diálogo. Isso implica afirmar que a política se estabelece na possibilidade de comunicação, no conflito de ideias e no exercício de encontrar consensos e suscitar divergências. É nesta perspectiva que fomos tecendo as concepções de política dos(as) participantes.

Trabalhar com a inserção do doente mental na cidade, e pensar as questões do trabalho, da família, que tem as dimensões políticas, só que aquela política do cotidiano. (Entrevista 2)

Ser parte desse protagonismo, ser uma força ativa, que constrói, que é produtor dessas mudanças, dessas rupturas. (Entrevista 3)

Eu acho que política é um conjunto de ações, que visa a melhoria de uma determinada parcela da comunidade. (Entrevista 1)

Quando a gente desconecta a mão da cabeça, a gente perde essa capacidade inventiva, criativa, propositiva, perde a capacidade de indagar a ferramenta. (Entrevista 4)

Como podemos observar pelos trechos das entrevistas supracitados, existe uma convergência em considerar a política como possibilidade de ação. Assim, o trabalho de inclusão cotidiana pretendido e/ou realizado tem como ferramenta a capacidade de pensar ou de querer, que torna livre o ser humano, pois a liberdade se dá na medida da consideração da condição de diversidade e da possibilidade de ação a partir dessa diferença. Assim, agir é chance de liberdade, pois oferece condições para a instituição do novo (Arendt, 2010).

As falas selecionadas acima denotam que se estabeleceram no decorrer das experiências diferentes formas de traduzir a política como o meio para se efetivar sonhos e utilizar-se das suas capacidades inventivas e singulares tendo em vista a perene possibilidade latente de começar (Arendt, 2010). Nessa perspectiva pode surgir o imprevisível que implica o movimento, a interação e a ação política. Essa não se realiza no isolamento, sempre é uma ação em conjunto, configurando acordos e desacordos entre iguais (seres humanos). Arendt (2010) afirma que por não termos o controle das consequências de nossas ações, não podemos saber integralmente qual o resultado do processo irreversível que desencadeamos no mundo. Por isso, que apesar de agirmos, não somos os autores de uma história, pois o significado da mesma só pode ser encontrado ao "fim", de maneira retrospectiva por quem se dispõe a narrá-la. A constituição de nós mesmos, de nossa biografia e de nossa existência é uma atividade imbuída de pluralidade - presente no desejo coletivo da transformação das condições de cuidado ao portador de sofrimento psíquico - e de diversidade expressa na construção cotidiana de políticas de existência. Neste contexto de diálogo com as concepções de política fica evidente pensar em aspectos que transversalizam a responsabilidade e o compromisso social. Para Arendt (2010), a postura ética reside na responsabilidade do ser humano como atuante no mundo.

No que tange ao processo de desinstitucionalização e Reforma Psiquiátrica, é notório que este compromisso estava pautado na defesa dos direitos da pessoa dita "doente mental". No entanto, os movimentos sociais, como o movimento da Luta Antimanicomial, engendram suas ações através do que denominam como militância. Mas o que é ser militante hoje?

O conceito de militância tem alguns estudos nas áreas sociológicas, filosóficas e das ciências políticas (Martins, 1997). Na psicologia, este conceito ainda não se encontra com maiores discussões, porém aparece como "naturalizado" no que tange aos profissionais que estão engajados de algum modo em temáticas e movimentos da psicologia social e política. Contudo, como afirma Martin-Baró (1998), desnaturalizar significa revirar, questionar, movimentar aquilo que parece corriqueiro e habitual. Para tal é necessário o exercício da militância que pode ser considerada uma forma de participação política engajada e crítica, na qual são desenvolvidas ações para a conscientização política da população, buscando desenvolver novos valores que possibilitem às pessoas se organizarem e lutarem para a construção de uma sociedade justa e digna (Baltazar, 2004; Guareschi & Vinadé, 2007).

Se leigamente olharmos para a palavra militar, talvez possamos associar como militarismo, ordem, organização, controle, entre outros. Porém, estamos nos referindo à prática da militância, que se efetiva na luta por um projeto social que pode ser em prol das minorias, da confrontação de opositores e, quiçá, da desordem. Neste sentido, torna-se relevante discutir este conceito a partir de algumas falas dos(as) participantes da pesquisa, quando interrogados(as) sobre o que seria "militância" para eles(as).

Ser militante é não baixar a bandeira... ser militante é estar atento... ser militante é estar perspectivando sempre a vida... (Entrevista 3)

Militância com uma formação profissional... (Entrevista 5)

Militância é o estar junto, é debater, é defender o que tu pensa sabe, ouvir o contraditório, é tentar dialogar com esse contraditório e tentar construir um outro caminho... (Entrevista 6)

Porque é algo que é dos afetos, que é da militância... (Entrevista 7)

Na tentativa de compor um conceito de militância que possa ser disparador desta discussão dentro do campo da psicologia, ancoramos um diálogo coletivo dos (as) entrevistados (as) com as perspectivas arendtianas, que nos acompanharam e nos iluminaram nesta trajetória. Sugerimos então, não como uma verdade, mas como uma possibilidade desta construção conjunta, o seguinte conceito de militância: diz respeito à ação política, que ancora seus pressupostos na ética e no compromisso com o outro. Se efetiva no cotidiano, como prática de resistência e de transformação. Busca a possibilidade de construção conjunta (na relação) através do reconhecimento das desigualdades e da impossibilidade de lutar sem a implicação do afeto. Se sustenta no movimento contínuo de nascimento, invenção e criatividade.

 

Breves Considerações

Esta pesquisa demonstrou que os caminhos não surgem como um milagre; eles são construídos a cada passo, a cada escolha e a cada possibilidade. Neste sentido, ao propiciar espaços de rememorações de trajetórias, observamos que o passado tem como função instigar diferentes formas de construção do caminhante. Aprendemos com Arendt que podemos conhecer cada detalhe do caminho a ser percorrido, mas jamais teremos a total previsibilidade de nossas ações e, esta concepção do improvável é o que nos faz precisar do outro, da existência do coletivo.

As experiências e histórias de psicólogos e psicólogas militantes do movimento da luta antimanicomial demonstrou que a Reforma Psiquiátrica ainda está distante de sua completa efetivação - se é que um dia isto será possível. Verificamos que nossas utopias se transformam, mas o mote de nossas lutas ainda se ancora no estabelecimento dos direitos humanos e no reconhecimento das diferenças. Nossa sociedade ainda alimenta as desigualdades através dos preconceitos.

É necessário buscar nossa "natalidade", nossa capacidade criativa, que possibilita a desacomodação e a resistência. É preciso discutir nossos posicionamentos políticos e nossaética diante desta sociedade. É urgente buscar espaços na psicologia que sejam lugares do diálogo e do coletivo. Precisamos da militância afetiva e transformadora; singular e coletiva; que se inspira no passado e luta no presente.

 

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Recebido em 12/03/2015.
Revisado em 09/08/2015.
Aceito em 15/10/2015.

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