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Revista Psicologia Política

versão impressa ISSN 1519-549Xversão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.16 no.35 São Paulo jan./abr. 2016

 

ARTIGOS

 

O conceito de ideologia na psicologia social de Martín-Baró

 

The concept of ideology in the social psychology of Martín-Baró

 

El concepto de ideología en la psicología social de Martín-Baró

 

Le concept d'idéologie dans la psychologie sociale de Martín-Baró

 

 

Gabriel Silveira MendonçaI; Vera Lucia Trevisan de SouzaII; Raquel Souza Lobo GuzzoIII

IGraduado em Psicologia pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil. mendoncags@gmail.com
IIDoutora em Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Docente e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia e do curso de graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil vera.trevisan@uol.com.br
IIIDoutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (USP). Professora do programa de pós-graduação em psicologia da PUC-Campinas e líder do grupo de pesquisa "Avaliação e Intervenção psicossocial: Prevenção, Comunidade e Libertação". Campinas, São Paulo, Brasil. rslguzzo@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo discute o conceito de ideologia nas formulações do psicólogo social espanhol-salvadorenho Martín-Baró, tendo como referência um de seus principais livros: Acción e Ideología, de 1983. Após uma breve contextualização histórica da obra do autor e das circunstancias em que escreve o referido livro, analisamos o conceito de ideologia, suas articulações com as classes sociais e função social. Há na obra do autor duas acepções do conceito; uma que é sinônimo de visão de mundo e, outra, mais elaborada, de falsa consciência que encobre e oculta os determinantes sociais segundo os interesses da classe dominante. Deste último significado, Martín-Baró afirma que a ideologia fomenta nas classes dominadas uma consciência alienada que as impede de compreender sua realidade e de serem sujeitos de sua própria história. Essa compreensão de ideologia e alienação conduz o autor à proposição da conscientização como aporte político da psicologia para enfrentar essas barreiras psicossociais que produzem sofrimento e obstruem o desenvolvimento e libertação das camadas populares.

Palavras-chave: Ideologia, Martín-Baró, Psicologia Social.


ABSTRACT

This article discusses the concept of ideology in the formulations of the spanish-salvadoran social psychologist Martín-Baró, having as reference one of his main books: Acción e Ideología, 1983. After a brief historical contextualization of the author's work and the circumstances in which he writes the book, we discuss the concept of ideology, its articulations with social classes and social function. There are in the author's work two meanings of the concept; one that is synonymous with worldview and another, more elaborate, conceived as false consciousness that conceals and hides social determinants according to the interests of the ruling class. Of this last meaning, Martín-Baró affirms that the ideology foments in the dominated classes an alienated conscience that prevents them from understanding its reality and being subjects of its own history. This understanding of ideology and alienation leads the author to the proposition of consciousness as a political contribution of psychology to face those psychosocial barriers that produce suffering and obstruct the development and liberation of the popular strata.

Keywords: Ideology, Martín-Baró, Social Psychology.


RESUMEN

Este artículo aborda el concepto de ideología en las formulaciones de la española-salvadoreña psicólogo social Martín-Baró, con referencia a uno de sus principales libros: Acción e ideología, 1983. Después de una breve reseña histórica de la obra del autor y las circunstancias en las que escribe dijo que el libro, discutimos el concepto de ideología, sus vínculos con las clases sociales y la función social. Hay en la obra del autor dos acepciones del concepto; uno que es sinónimo de visión del mundo y otra, más elaborada, concebida como falsa conciencia que encubre y oculta los determinantes sociales en interés de la clase dominante. Este último sentido, Martín-Baró dice que la ideología fomenta las clases dominadas conciencia enajenada que les impide comprender su realidad y sean sujetos de su propia historia. Esta comprensión de ideología y alienación conduce al autor a la proposición de la concientización como aporte político de la psicología para enfrentar esas barreras psicosociales que producen sufrimiento y obstruyen el desarrollo y liberación de las capas populares.

Palabras clave: Ideología, Martín-Baró, Psicología Social.


RÉSUMÉ

Cet article traite du concept d'idéologie dans les formulations du psychologue social hispanosalvadorienne Martín-Baró, en se référant à l'un de ses principaux livres: Acción et l'idéologie de 1983/2012. Après une brève contextualisation historique de l'œuvre de l'auteur et des circonstances dans lesquelles le livre est écrit, nous analysons le concept d'idéologie, ses articulations avec les classes sociales et la fonction sociale. Il y a deux significations dans le travail de l'auteur; celui qui est synonyme de vision du monde et un autre, plus élaboré, de fausse conscience qui cache et cache les déterminants sociaux selon les intérêts de la classe dirigeante. De ce dernier sens, Martín-Baró affirme que l'idéologie fomente dans les classes dominées une conscience aliénée qui les empêche de comprendre sa réalité et d'être des sujets de sa propre histoire. Cette compréhension de l'idéologie et de l'aliénation conduit l'auteur à la proposition de prise de conscience en tant que contribution de la psychologie politique pour surmonter ces obstacles psychosociaux qui produisent la souffrance et entraver le développement et la libération des classes populaires.

Mots clés: Idéologie, Martín-Baró, Psychologie Sociale, Psychologie Critique, Aliénation.


 

 

Introdução

O presente trabalho analisa o conceito de ideologia em Martín-Baró, sua centralidade na perspectiva da Psicologia Social que autor apresenta no principal livro de sua obra (Acción e Ideología) e suas implicações psicossociais na promoção da alienação e obstrução do desenvolvimento das classes populares. Um dos termos mais polissêmicos no campo das ciências sociais (Konder, 2002), o conceito de ideologia possui significativa importância na história da psicologia crítica latino-americana, sendo marcante nas perspectivas de importantes pesquisadoras, como a venezuelana Maritza Montero (1990; 2008; 2015), e a brasileira Silvia Lane (1984a; 1984b; 1999). Este texto discute o referido conceito na obra de um autor específico e suas implicações para uma análise psicossocial da luta política, visando, também, contribuir para o processo de resgate teórico e histórico de uma obra desenvolvida a partir da proliferação, no continente latino-americano, de debates sobre a chamada "crise da psicologia social" nos anos 1970, no contexto de intenso acirramento de conflitos sociais em El Salvador, pais em que vive o autor, durante as décadas 1970 e 1980.

Diversos autores latino-americanos (Dobles, 2009; Freitas,1996; Lacerda Jr. & Guzzo, 2011; Lane & Freitas, 1997; Sandoval, Amaral & Ansara, 2014) destacam a importância teórica de Martín-Baró para a Psicologia na América Latina, especialmente para a Psicologia SocialCrítica e a Psicologia Social Comunitária. Outros estudiosos (Álvaro & Garrido, 2007; Burton, 2013; De La Torre, 1989; Dobles, 2009; Lacerda Jr., 2010) também ressaltam a produção do autor como mobilizadora do impulso crítico e renovador da psicologia latino-americana de seu período.

Martín-Baró é conhecido pelo desenvolvimento de uma proposta contra hegemônica de Psicologia que, inspirada na Teologia da Libertação, no Marxismo e nas aspirações dos movimentos populares da América Latina, foi denominada Psicologia da Libertação (Dobles, 2009; Martín-Baró, 1986; Pereira, 2013). Crítico das poucas contribuições da Psicologia latinoamericana, como ciência e práxis, para as necessidades históricas das classes populares, o autor construiu sua obra visando uma ciência psicológica que se colocasse a serviço dos pobres em sua luta pela libertação das barreiras históricas e sociais obstruidoras de suas possibilidades de governar o próprio destino.

Embora de naturalidade espanhola, o também jesuíta Martín-Baró viveu a maior parte de sua vida em El Salvador, naturalizando-se salvadorenho. O país que inspirou a maioria de seus escritos tinha como contexto a ditadura militar, e caracterizava-se pela exclusão da classe trabalhadora, profunda desigualdade social, número elevado de mortes, sendo muitas resultantes de assassinatos, repressão em massa, perseguições políticas, torturas e prisões (Burton, 2013; Dobles, 2009) que representam as marcas históricas do que se concretizou em uma guerra civil de 12 anos.

O legado teórico do autor é extenso. São mais de 100 artigos e sete livros que atravessam as décadas de 1960, 1970 e 1980 com diversos temas pertinentes às realidades salvadorenha e latino-americana e à ciência psicológica. Temas como pobreza, fatalismo, problemas habitacionais, racismo, machismo, família, violência e guerra, religião e comportamento político, opinião pública, drogadição, processos pedagógicos, processos grupais, psicologia do trabalho, entre outros, marcam a trajetória do autor (De La Corte, 2001; Lacerda Jr. & Guzzo, 2011). Lacerda e Guzzo (2001:23) destacam também a importância de seus trabalhos sobre "o papel do psicólogo e sua enorme revisão crítica das categorias básicas da Psicologia Social, assim como a formulação de uma concepção alternativa".

Destacamos aqui estudos teóricos e epistemológicos de revisão de algumas categorias básicas da Psicologia Social e de formulação de um projeto alternativo, o qual tem o conceito de ideologia como suporte basilar. As principais sínteses dessas formulações teórico-epistemológicas para a Psicologia Social estão presentes nos livros Acción e Ideología: Psicología Social desde Centroamérica de 1983 (objeto de estudo deste trabalho), e Sistema, Grupo y Poder: Psicología Social desde Centroamérica (II) de 1989.

O primeiro livro discute o caráter histórico e social das relações humanas, a relação indivíduo e sociedade e reformula conceitos basilares da psicologia social (atitude, socialização, percepção, etc.), enquanto o segundo, publicado seis anos depois, examina "processos mais relacionados com a vida dos grupos e com as mudanças sociais, sempre no marco de uma psicologia social crítica e desde a perspectiva dos povos centro-americanos" (Martín-Baró, 2012:IX).

Destarte, apresentamos uma análise sobre as formulações sintetizadas por Martín-Baró no primeiro destes livros indicados, com ênfase na ideologia, considerada por ele objeto de estudo da psicologia social por excelência. Não propomos indicar inovações do autor em tais formulações, mas sim, apresentar e analisar de que modo o autor vê na psicologia, a ideologia e a alienação como produtoras de sofrimento e impeditivos à emancipação de pessoas que vivem condições sociais em determinados contextos políticos e econômicos que se constituem em ameaças à existência física e psíquica dos sujeitos. O que visamos discutir, portanto, é a plausibilidade do conceito de ideologia em sua obra para a compreensão do político na produção do sofrimento e, consequentemente as formas de enfrentamento da alienação decorrente dessa produção. Este objetivo demanda que antes de passarmos propriamente à a referida análise e discussão, apresentemos uma síntese do contexto histórico que sustentou tais formulações de Martín-Baró.

 

Circunstâncias Históricas e Influências Teóricas

Localizado na América Central, ao Sul de Honduras e oeste da Guatemala, El Salvador é o menor país da América Latina, com apenas 20.935 km², área inferior ao Sergipe (menor estado brasileiro), e, em 1980, tinha cerca de 5 milhões de habitantes (Montgomery & Wade, 2006). Entre os anos 1970 e início dos anos 1990, foi palco de um dos mais emblemáticos exemplos das tensões sócio-políticas vividas na América Latina e da realidade centro-americana. A sociedade salvadorenha dos anos 1970 e 1980 se apresentava com as seguintes características: dependência político-econômica internacional, estrutura social de herança oligárquica e profunda desigualdade e violência política estatal (De La Corte,1998; 2001; Martín-Baró; 1985d; Montes, 1986; 1988; Montgomery & Wade, 2006).

Colônia espanhola de poucos investimentos antes da independência, em 1822, El Salvador consolidou sua economia baseada no setor primário e exportação (primeiramente de cacau e índigo e depois café). A combinação entre grandes latifúndios e a monocultura de exportação conferiu-lhe uma marcante dependência político-econômica internacional desde os tempos coloniais com subserviência aos EUA (Martín-Baró, 1985d; Montes, 1986; Montgomery & Wade, 2006).

Esta formação social estabelecida em torno da questão da propriedade de terras, decorreu de uma herança oligárquica e se configurou como fundamento principal das desigualdades e injustiças sociais (Montes, 1988). Para manter seus privilégios, a burguesia oligárquica salvadorenha mantinha uma forte aliança com o exército e a igreja católica desde o início do século XX. Assim, articulava os poderes econômico, militar e político para a manutenção da ordem, constituindo um poderoso sistema de repressão. Sempre que "necessário", esse sistema lançava mão de modos repressores da sociedade, como das forças armadas, por exemplo, para exercer ações caracterizadas pelo terror, fazendo da violência marco da vida política cotidiana no país (De La Corte, 2001; Ellacuría, 1976; Montes, 1986; Montgomery & Wade, 2006).

A combinação desse sistema sócio-político com os sucessivos golpes de Estado ao longo do século XX, sustentados e agenciados pelas oligarquias e militares com reforço dos Estados Unidos culminou, em 1980, na explosão de uma violenta guerra civil, com 12 anos de duração e 75 mil mortos. Um intenso conflito social e uma pesada repressão sobre o povo salvadorenho (De La Corte, 2001; Montgomery & Wade, 2006).

Em 1980, após uma década de acirramento dos conflitos sociais, e pouco depois do assassinato do arcebispo de El Salvador, Monseñor Romero, setores insurgentes da sociedade se organizam em uma ofensiva de guerrilheiros que constituem a Frente Farabundo Martí para la Libertación Nacional (FMLN)1, dando início a guerra civil. Entre 1980 e 1983, uma grande ofensiva da FLMN esteve perto de ganhar a guerra. Operando em áreas rurais, conquistou terras importantes onde promovia educação, serviços de saúde, e novas formas de governo e participação política (Call, 2002; Montgomey & Wade, 2006). Entretanto, o forte auxílio econômico, bélico e militar estadunidense evitou a derrota do governo (Call, 2002). De 1984 em diante, prevaleceu a estagnação de possibilidades vitoriosas de ambos os lados. Conflitos e ofensivas se intercalaram até o início das negociações, em 1989, também sob influência do ataque de um batalhão especial do exército à Universidad Centroamericana José Simeón Cañas (UCA), responsável pelo assassinato de Martín-Baró, então vice-reitor, outros cinco jesuítas professores e duas funcionárias. O atentado, que ocorreu na madrugada de 16 de novembro de 1989, mirou as dependências da UCA em que moravam e dormiam os professores jesuítas e que servia de abrigo para as servidoras naquela noite de conflito entre militares e insurgentes na região. Todas as vítimas foram mortas à tiro, quatro foram baleadas no jardim, quando saíram para verificar o que de estranho acontecia, os demais foram atacados onde repousavam (De La Corte, 1998).

Como tais eventos históricos, as tensões políticas e sociais em El Salvador atingiram todas as instâncias do país, em especial a UCA, onde Martín-Baró foi professor entre 1970 e 1989. Inspirados na Teologia da Libertação, os jesuítas dirigiram a UCA assumindo uma opção preferencial pelos pobres, tendo como prioridade a realidade nacional e o povo salvadorenho. Em meio aos conflitos políticos e à guerra civil, a UCA se voltou a uma prática científica que ouvisse o povo e evidenciasse seus verdadeiros interesses, fato que muito desagradou o exército nacional (De La Corte, 2001).

Outra influência na obra martinbaroniana foi a Teologia da Libertação, fonte de inspiração para sua proposta de uma Psicologia da Libertação. Essa teologia tem como ideia central a "opção pelos pobres" e como principais características: a luta contra a idolatria, a releitura da bíblia a partir da ideia de libertação, a crítica moral e social ao capitalismo, a utilização do marxismo como instrumento de análise da realidade e o desenvolvimento de comunidades de base (Lowy, 1991; Sofiati, 2009).

No âmbito teórico-científico, é possível identificar três vertentes. Em primeiro lugar, a influência do pedagogo brasileiro Paulo Freire, cujas ideias estão na base das discussões do autor sobre, fatalismo (Martín-Baró, 1972), conscientização (Martín-Baró, 2012; 1985) e psicologia de classe (Martín-Baró, 2012), só citar alguns exemplos. Em segundo lugar, a influência marxista, oriunda da Teologia da Libertação, da conjuntura histórica centroamericana influenciada pela revolução cubana, e o estruturalismo marxista, como é o caso de Louis Althusser. Por último, ressaltamos a influência da crise da Psicologia Social dos anos 1970 e 1980, que teve em uma de suas vertentes o embate com as concepções hegemônicas da área, sobretudo pelas articulações entre a ordem instituída e as aspirações positivistas de "neutralidade" das tendências dominantes em um período de inquietações sociais pelo mundo (Lacerda Jr. & Guzzo, 2011). Vale lembrar que Martín-Baró cursou mestrado e doutorado na Universidade de Chicago e, embora tenha sido crítico da psicologia social tradicional, guardou algumas influências dos modelos prevalecentes nos EUA.

Como já afirmamos, a assimilação crítica que faz da Psicologia Social tem como expressão principal seus dois livros mais conhecidos Martín-Baró (2012; 1989) e, neste artigo temos como foco o primeiro. Escrito no auge da guerra civil salvadorenha, em um período em que as possibilidades de vitória dos insurgentes eram reais, o livro expressa a síntese das pesquisas e teorizações do autor ao longo da década de 1970. Concentra as articulações teóricas feitas pelo autor em suas investigações sobre aglomeração, fatalismo, machismo, as causas estruturais da pobreza e debates com a psicanálise, clássicos da Psicologia (como Piaget e Skinner) e teorias da Psicologia Social de base positivista.

A análise da referida obra nos instiga a questionar: o que leva um pensador preocupado com a realidade de seu país e engajado na luta pela superação dos problemas sócio-políticoseconômicos de seu povo a escrever um manual de revisão da revisão teórica e epistemológica da Psicologia Social contemporânea em pleno contexto de guerra civil? Como a redefinição de modelos e teorias poderiam contribuir com as maiorias populares neste contexto? Quarenta mil vítimas em três anos de conflitos, assassinatos e desaparecimentos de operários e sacerdotes, e o autor se preocupou em debater pilares da psicologia social e repensá-la colocando a ideologia no cerne deste projeto? A essas questões acreditamos que a análise proposta nos permite certa aproximação, sobretudo no que concerne à contribuição das ideias de ideologia e alienação para a compreensão das condições vividas naquele contexto e como fundamentos de uma psicologia social que incorpora o político enquanto ação que pode produzir novas condições de vida em sociedade.

 

Ação e Ideologia

Martín-Baró apresenta algumas reelaborações teóricas e epistemológicas da Psicologia Social dominante, assumindo uma perspectiva histórico-dialética e tomando por base a realidade do povo centro-americano e as pesquisas que realizara até então (Martín-Baró, 2012; Mendonça, 2014; 2017). Sua proposição de uma nova concepção de Psicologia Social se assenta em críticas às vertentes tradicionais que se caracterizariam por uma inconsistência teórica e epistemológica, por preocupações principais e objetos de estudo descolados da realidade, e pelo enraizamento na perspectiva do poder político-econômico estabelecido (Martín-Baró, 2012).

Para o autor, a psicologia social hegemônica é expressão de uma ciência definida por aqueles que dispõem de poder econômico e social e determinam os problemas de pesquisa correspondentes às suas necessidades e interesses de classe, ditando as perguntas e suas resoluções, as quais visam a aceitação das normas regidas pelos poderosos a fim de aliviar as tensões macroestruturais (Martín-Baró, 2012).

Isso justifica a Martín-Baró a necessidade de redefinir perspectivas, objetos e os objetivos da psicologia social. A partir de um marco teórico histórico e dialético que unifica criticamente as diversas pesquisas e teorias disponíveis, Martín-Baró propõe assumir como objeto de estudo a relação entre as ações humanas e a ideologia e define a

[...] psicologia social como o estudo científico da ação enquanto ideológica. Ao dizer ideológica, estamos expressando a mesma ideia de influência ou relação interpessoal, do jogo do pessoal e social; porém estamos afirmando também que a ação é uma síntese de objetividade e subjetividade, de conhecimento e de valorização, não necessariamente consciente, quer dizer, que a ação está significada por conteúdos valorados e referidos historicamente uma estrutura social (Martín-Baró, 2012:17).

Para o autor, isso significa a conexão entre a estrutura pessoal, entendida como personalidade humana e sua prática concreta e a estrutura social, constituída por cada sociedade e grupo social específico; e sua investigação demandaria buscar o momento em que o social se torna pessoal e que o pessoal se torna social, nesses termos, representaria compreender como a ideologia se materializa na vida cotidiana (Martín-Baró, 2012).

A sugestão de um novo objeto para a psicologia social envolve uma perspectiva dialética que compreende os fenômenos pelo pressuposto de que pessoa e sociedade constituem-se mutuamente pela negação entre ambos os polos, ao mesmo tempo em que se afirmam como tais em um processo histórico. Implica também pensar a realidade com o intuito de transformá-la a partir da realidade e visão de mundo das classes populares latino-americanas em direção a uma ordem social justa e igualitária. Isso revela pretensões de contribuir para a liberdade individual e social, ou seja, pretende "que o sujeito tome consciência desses determinantes [de classe] e possa assumi-los (aceitando-os ou rechaçando-os) mediante uma prática consequente" (Martín-Baró, 2012:48 [acréscimo nosso]).

Tendo como base a situação concreta de El Salvador, de organização popular para enfrentar uma opressão secular, a psicologia social de Martín-Baró toma partido pelo povo em suas lutas e aspirações, oferece seus conhecimentos científicos para os sujeitos sociais compreenderem as mediações de suas ações com a realidade e procederem em função de alguns valores e princípios sociais de seu conhecimento. Propõe incorporar o fazer cientifico a uma práxis libertadora, sem dizer ao povo o que fazer, mas ajudando-o a desmascarar a manipulação e a construir uma sociedade baseada na solidariedade e na justiça.

O conceito de ideologia é central para esse projeto de psicologia social, e esta sustentação tem íntima articulação com os conceitos de alienação e conscientização. Antes de detalharmos a discussão em que o autor define ideologia, faz-se necessário apresentar a concepção de sociedade que guia as teses de Martín-Baró (2012).

Martín-Baró (2012) assume que a totalidade das relações sociais (a sociedade) tem como substrato material fundamental a organização do trabalho e a divisão social de classes. A divisão da sociedade em classes refere-se à posição social que determinado grupo (e seus indivíduos) ocupa em relação aos meios de produção de uma sociedade e, por isso, remete-se ao trabalho.

Para afirmar isso, diz assumir a compreensão marxista de que a divisão social do trabalho sustenta a divisão da sociedade em classes sociais distintas, e que as organizações sociais têm seguido a história das exigências do trabalho e sua divisão social, constituindo-o o marco mais determinante da interação humana, atividade basilar para existência e o desenvolvimento humano. A partir da "divisão social do trabalho em relação com a propriedade dos meios de produção, separa a sociedade em grupos e classes contrapostas" (Martín-Baró, 2012:184), a qual determina a separação dos indivíduos em dois grupos fundamentais, os que se apropriam dos meios fundamentais de produção (grandes meios de produção) e os que "não possuem mais que sua inteligência e suas mãos para obter sua subsistência. Esta divisão é tão crucial que gera dois grandes grupos sociais, a burguesia e o proletariado, cujos interesses resultam antagônicos e moldam a totalidade da organização social" (Martín-Baró, 2012:75).

Essa divisão de classes não é mecânica, por isso demanda analisar as duas classes fundamentais em suas gradações internas e as classes intermediárias entre elas balizando-se em suas expressões concretas em cada sociedade. Martín-Baró (2012) sintetiza três elementos característicos de uma classe social: 1) sua referência aos modos de produção existentes em cada sociedade como determinantes fundamentais para as relações sociais e a constituição de grupos com interesses contrapostos; 2) as classes sociais só existem enquanto postas em conflito, ou seja, na luta de classes. As classes existem por fatores que dividem e contrapõem os grupos e classes e esse enfrentamento histórico define em cada formação social quais são as classes; e 3) a realidade de uma classe e o pertencimento dos indivíduos a ela é um dado objetivo, que não depende da consciência ou vontade subjetivas.

Em sociedades divididas em classes sociais, como são as latino-americanas, estruturadas por um sistema capitalista, onde um grupo social exerce sua hegemonia a partir do poder que tem mediante a propriedade dos grandes meios de produção, a capacidade de regulação ou controle social não pressupõe uma integração harmoniosa de todos os grupos ao todo social, nem, tampouco, a motivação generalizada ao conformismo, senão, que pressupõe um poder coercitivo, tanto ao nível da coletividade quanto dos indivíduos concretos. (Martín-Baró, 2012:146)

Isso sustenta a tese de que os fenômenos humanos estão inseridos na totalidade das relações sociais por meio de diversas mediações. Possuem diferentes níveis de determinação da individualidade que se complementam: o nível primário, nível funcional, e o nível estrutural (ver Martín-Baró, 2012, cap. 3). Para este momento, nos interessam somente as repercussões às relações estruturais nas formas de ser e agir dos indivíduos e grupos, o que se remete à configuração das classes sociais nas possibilidades concretas de existir no mundo. Pois, nas sociedades capitalistas, fundadas na contradição de interesses entre grupos sociais e na exploração do homem pelo homem, o corpo humano se converte na sede das contradições sociais, processo que não escapa do funcionamento psíquico; a realidade psicológica é também uma concretização nos indivíduos de elementos de origem estrutural (Martín-Baró, 2012).

A individualidade, portanto, expressa as formas concretas em que a dialética de classes se manifesta em determinadas sociedades, situações e conjunturas. "Ao definir os tipos de relações sociais que se produzem em cada caso, a classe social define também as possibilidades concretas de humanização e as formas concretas que podem adquirir as pessoas em um determinado contexto social" (Martín-Baró, 2012:98).

É nessa concepção de sociedade, suas classes sociais e suas determinações nas esferas pessoais de cada indivíduo, que o autor ancora as discussões sobre ideologia, alienação e conscientização. Mas qual a relação entre ideologia e as classes sociais? Como isso se relaciona com alienação e conscientização? Vejamos a síntese do autor.

Martín-Baró compreende que, em termos muito gerais, existem duas definições diferentes de ideologia, uma funcionalista e outra marxista. Para o autor (Martín-Baró, 2012:17), "A concepção funcionalista entende ideologia como um conjunto coerente de ideias e valores que orienta e dirige uma determinada sociedade e, portanto, que cumpre uma função normativa a respeito da ação dos membros dessa sociedade". Por outro lado, a "concepção marxista (que tem suas raízes em Maquiavel e Hegel) entende a ideologia como uma falsa consciência em que se apresenta uma imagem que não corresponde à realidade, a qual a encobre e justifica a partir dos interesses da classe social dominante".

Segundo Martín-Baró (2012:17),

A visão marxista compreende que a sociedade se configura pelo conflito entre grupos com interesses contrapostos e que o indivíduo é fundamentalmente um representante de sua classe social. A corrente do estruturalismo marxista, principalmente desenvolvida por Louis Althusser (1968), concebe a ideologia como um sistema ou estrutura que se impõe e atua através dos indivíduos, porém sem que os indivíduos configurem por sua vez essa ideologia. Trata-se de uma totalidade atuante, porém, sem sujeito propriamente dito, já que, na ideologia assim entendida, o sujeito atua na medida em que é "atuado", 'Os homens vivem suas ações, referidas comumente pela tradição clássica à liberdade e à consciência, na ideologia, através e pela ideologia' [...]. (Althusser, 1968:193)

A partir dessa assimilação de Althusser, Martín-Baró apresenta uma interpretação crítica para explicar a concepção de ideologia que assume. Inicialmente, destaca os elementos da teoria althusseriana da ideologia que lhe parecem pertinentes. Afirma que, na referida concepção, a ideologia não é algo externo às ações individuais ou grupais, mas "um elemento essencial da ação humana já que a ação se constitui por referência a uma realidade significada e esse significado está dado por interesses sociais determinados" (Martín-Baró, 2012:17). O que implica tanto em vê-la a partir da totalidade dos interesses sociais que a geram, quanto dotada de sentido nas ações pessoais como esquemas cognitivos e valorativos das pessoas ou grupos, cuja origem última é sempre social.

Entretanto, em seguida, critica o enfoque estruturalista do filósofo francês por eliminar o papel ativo do sujeito. Nessa crítica, afirma que, embora atue em meio à ideologia, o indivíduo não se reduz a ela, podendo, inclusive, transcendê-la mediante uma tomada de consciência. Para Martín-Baró (2012:18), a ideologia é como os pressupostos "da vida cotidiana em cada grupo social, supostos triviais ou essenciais para os interesses do grupo dominante. Na medida em que uma ação é ideológica, faz referência à uma classe social e a uns interesses, quer dizer, está influenciada por interesses grupais a partir dos quais adquire sentido e significação social".

Desse modo, a ideologia, afirma Martín-Baró (2012:18), cumpre um conjunto de funções, que seriam: "oferecer uma interpretação da realidade, subministrar esquemas práticos de ação, justificar a ordem social existente, legitimar essa ordem como válida para todos, quer dizer, dar categoria de natural ao que é simplesmente histórico, exercer na prática a relação de domínio existente e reproduzir o sistema social estabelecido".

Discriminar a função ideológica das ações envolve revelar razões e formas de ser que se mostram a partir dos interesses e valores sociais dominantes e da reprodução do sistema estabelecido. Em contrapartida, tomar consciência da função ideológica é localizar cada processo psicológico na totalidade dos processos sociais, superando compreensões apenas parciais. Isso sustenta a afirmação de que o indivíduo não se reduz à ideologia, pois pode superá-la mediante a tomada de consciência.

Essa concepção de ideologia, declaradamente oriunda da tradição marxista, pode ser sintetizada como falsa consciência que encobre e justifica a realidade segundo os interesses da classe social dominante (burguesia) numa sociedade de classes com interesses antagônicos e corresponde a um conjunto e sistema de valores e crenças que atuam através dos indivíduos e se fazem presentes em suas ações, sempre referenciadas à uma realidade significada por interesses sociais determinados. Apesar da ênfase nessa definição, o autor parece mesclar e/ou alternar essa concepção de ideologia como falsa consciência com a de visão de mundo, dando mais de um significado ao mesmo termo. Vejamos no texto.

Martín-Baró diz que a ideologia, a partir de suas funções, efetiva as forças sociais que "se convertem em formas concretas de viver, pensar e sentir das pessoas, quer dizer, a objetividade social se converte em subjetividade individual" (2012:18). Isso leva o autor a afirmar que a ação humana "é por natureza ideológica, já que está intrinsecamente configurada pelas forças sociais operantes em uma história determinada" (2012:24), quer dizer, "determinada por fatores sociais vinculados aos interesses de classe dos diversos grupos" (2012:48).

Assim, o indivíduo atua sempre em meio à ideologia, mas suas origens últimas sempre estão nas estruturas grupais e sociais que os indivíduos fazem parte.

Por isso, o conjunto de atitudes fundamentaos das pessoas pode ser concebido como a estrutura que, em cada indivíduo articula psiquicamente a ideologia social em forma de atitudes, como um conjunto 'psico-lógico' de crenças e avaliações sobre o mundo. Desta perspectiva, o conjunto de atitudes corresponde adequadamente à definição de ideologia dada por Althusser [...]. A ideologia em sua vertente pessoal seria 'essa estrutura relacional que determina a modalidade de intercâmbios entre o indivíduo e seu mundo em uma circunstância histórica concreta, modalidade vivida antes de ser explicitada, prática antes de ser teórica'. (2012:294-295)

Esses trechos parecem nos mostrar a alternância desses significados que o termo ideologia carrega. Mesmo com a prevalência do sentido de falsa consciência, há também indícios para a compreensão de ideologia como expressão de diferentes interesses de classe e visões de mundo. É o que se pode deduzir quando o autor afirma, por exemplo, que as ações são ideológicas por estarem vinculadas ao interesse dos diversos grupos, ou que revela a estrutura de valores de cada indivíduo ou grupo. O que aparece mais evidente em passagens como a seguinte: "A ideologia, entendida como o conjunto de esquemas pessoais que traduzem a nível individual os interesses de uma classe social, faz ver e analisar as situações de determinadas maneiras e orienta a determinados comportamentos" (Martín-Baró, 2012:354).

Das sínteses feitas por Martín-Baró (2012) em Acción e Ideología, podemos analisar a atribuição de dois significados ao termo ideologia. O primeiro e mais explícito lhe concebe o significado de falsa consciência que ofusca a compreensão das relações sociais de classe, naturalizando-as como universais e consensuais para esconder os interesses das classes dominantes e reproduzir o sistema social de dominação. O segundo sentido dado ao termo expressa a ideia de visão de mundo de um grupo ou classe social, perspectiva de classe, a qual pode ou não corresponder aos interesses objetivos desse segmento social. Enquanto ideologia, no primeiro caso, tem uma função negativa, criticada e condenada por Martín-Baró, no segundo, o sentido não necessariamente o tem. Somente quando a visão de mundo das classes populares não corresponde aos seus interesses objetivos que se tem um processo indesejado, pois, neste caso, visão de mundo e falsa consciência são combinadas.

 

Ideologia, Alienação e Conscientização

A discussão sobre alienação e conscientização no livro Acción e Ideología evidencia a fundamental relação que possuem com o conceito de ideologia na obra martinbaroniana, precisamente em seu sentido negativo, como instituição de ideias e normas sociais para ocultar os interesses e conflitos entre as classes sociais sob o viés da classe dominante. Referindo-se às normas de uma sociedade e à função da ideologia para que sejam aceitas, Martín-Baró (2012:29) afirma que "os homens levam interiorizada esta norma social que responde aos interesses da classe dominante, se impõem como uma estrutura não consciente e guia o processo de alienação e desumanização das pessoas".

É possível afirmar que o autor compreende alienação como o estado em que uma classe social expressa os interesses da classe dominante em detrimento de seus próprios interesses. Afirma que a "relação entre pertencimento objetivo a uma clase social e psicología de classe pode mostrar uma importante dimensão social na existencia das pessoas: seu grau de autenticidade ou seu grau de alienação" (Martín-Baró, 1983:102). Essa definição remete-se à alienação como fenômeno objetivo e subjetivo, o qual, segundo o próprio autor, sustenta-se no diálogo com as perspectivas de Marx, Alain Touraine e Paulo Freire.

Em sua dimensão objetiva, a alienação tem relações com a divisão social do trabalho no capitalismo. Segundo o psicólogo, que afirma apoiar-se em Marx, essa dimensão da alienação corresponde ao "estado que o capitalismo produz no ser humano ao desapossa-lo do produto de seu trabalho, reificar suas relações interpessoais e ocultar as raízes de sua realidade histórica, desintegrando assim sua essência humana" (Martín-Baró, 2012:103).

Martín-Baró torna mais robusta esta afirmação ao dizer que "mediante a apropriação do produto do trabalho, um setor da população adquire poder para impor seus interesses, enquanto que a alienação do fruto do seu trabalho deixa a outro setor da população impotente para avançar seus interesses no interior do sistema social" (2012:184). Por isso, no mundo do trabalho, a pessoa "entra no jogo dialético de sua realização ou alienação, de sua expressão e desenvolvimento pessoal através do seu fazer (quehacer), ou de sua alienação instrumental como elemento produtivo no interior de um sistema social despersonalizante" (Martín-Baró, 2012:185).

Essa seria a base objetiva para situar a alienação no âmbito das relações entre as classes. No âmbito subjetivo, se efetiva com as classes dominadas assumindo como próprios os valores, ações e práticas sociais da classe dominante. Processo, que, segundo Martín-Baró, se faz possível pelo ocultamento das relações de dominação promovido pela ideologia em sentido negativo. Seria uma forma de negação da dominação, ou melhor, uma privação da consciência sobre tais relações, o que corresponde à alienação subjetiva. Assim, a alienação é entendida "como impotência e insatisfação objetivas, como carência e desapropriação real, porém, unidas a uma falsa consciência" (2012:105) sobre as determinações reais da sociedade. Parece-nos que, para o autor, a alienação é a concretização da ideologia (dominante), ou seja, é a expressão da forma de consciência desenvolvida pela ideologia, uma consciência parcial, a qual não consegue apreender o real em suas determinações e, por isso, se expressa como falsa consciência.

É nesse sentido que Martín-Baró (2012) declara se inspirar na "Pedagogia do Oprimido" de Paulo Freire e reivindica a conscientização (sucessivos processos de tomada de consciência) como uma forma de promover a desalienação das pessoas e a construção de mudanças sociais. Uma vez que o processo de libertação histórica de relações de opressão exige formas de organização e práticas políticas capazes de mudar as estruturas básicas da organização social exploradora, a tese martinbaroniana é de que a libertação social supõe um passo da alienação social para a identidade social, quer dizer, avançar da consciência presentista (interesses individuais e imediatos) para uma consciência de classe (orientada para a satisfação das necessidades correspondentes aos interesses da comunidade social dos oprimidos). O que envolve uma mudança dos valores e aspirações dos oprimidos, com atividades coletivas organizadas, visando as necessárias transformações das estruturas sociais objetivas (ver Martín-Baró, 2012, cap. 3).

O fato é que as possibilidades de avanço da consciência sobre os fundamentos reais das relações sociais têm um limite imposto pela própria realidade, uma vez que objetividade e subjetividade determinam-se dialeticamente. Nesse sentido, para mudanças sociais acontecerem, está em questão uma aproximação da psicologia de classe com os interesses objetivos de classe (uma confluência entre psicologia e consciência de classe), favorecida pelos momentos de crise social, como o enfrentado em El Salvador e em outros países da América Latina nos anos 1980. Isso acontece porque as crises sociais abrem brechas na estrutura ideológica dominante, o que permite o avanço da consciência de classe dos grupos oprimidos (Martín-Baró, 2012).

A psicologia corresponde desmascarar os vínculos que ligam aos atores sociais com os interesses de classe, por em evidencia as mediações através das quais as necessidades de uma classe concreta se tornam imperativos interiorizados pelas pessoas, desarticular o emaranhado de forças objetivadas em uma ordem social que manipula os sujeitos através de mecanismos de falsa consciência. (Martín-Baró, 2012:48)

Na acepção martinbaroniana de 1983, no processo de conscientização, o autor insere aquilo que apreende do marxismo como a relação entre classe em si e classe para si, além de acrescentar o conceito de psicologia de classe, numa complexidade não explicitada anteriormente em sua obra. Pois bem, se a sociedade é dividida em classes sociais com interesses antagônicos, os indivíduos, por sua vez, ocupam posições no modo de produção social e por isso ocupam uma posição de classe. Então as relações estabelecidas entre classes sociais produzem e se concretizam numa psicologia de classe, isto é, "formas de pensar, sentir, querer e atuar próprias dos indivíduos que pertencem às diversas classes sociais históricas" (Martín-Baró, 2012:101). E complementa, "é essencial uma análise psicossocial que mostre o caráter ideológico da psicologia de classe, quer dizer, que examine em que medida a psicologia de classe de uma determinada pessoa ou grupo expressa a realidade ou interesses de sua própria classe ou está mediatizada pelos interesses de outra classe (a dominante)" (Martín-Baró, 2012:102).

Para o autor é justamente pela possibilidade de o indivíduo pertencente a uma classe objetiva ter um conjunto de ações em função dos interesses sociais de outra classe social que podemos falar em alienação. Esta se refere à incongruência entre psicologia de classe e consciência de classe, que remete à diferença entre pertencimento objetivo de classe e consciência social de classe, em que a primeira é objetiva e independe do conhecimento ou vontade subjetiva (classe em si), enquanto a segunda refere-se à articulação entre saber e fazer conforme os interesses objetivos da própria classe (classe para si). Assim, consciência não se resume ao entendimento da classe a qual se pertence, mas ao conjunto de conhecimentos, afetos e ações que expressam os interesses objetivos desta classe (Martín-Baró, 1983).

Nesse sentido,

A prática das classes dominadas pode e frequentemente está regida pelas pautas, normas e valores que operam em uma ideologia dos interesses das classes dominantes. Somente se fala de prática de classe quando a práxis ou atividade intencional de uma pessoa expressa, concretiza e promove os interesses da classe social a qual objetivamente pertence. (Martín-Baró, 2012:81)

Pois é nesta relação entre psicologia de classe e consciência de classe que se ancora a conscientização como uma forma de propiciar a desalienação e a construção de mudanças sociais, avançando a consciência imediata para uma consciência de classe; como tarefa coletiva, criar formas de organização e práticas políticas capazes de mudar as estruturas básicas da organização social exploradora. Nesses termos, está em questão uma aproximação da psicologia de classe com os interesses objetivos de classe (uma confluência entre psicologia e consciência de classe), favorecida pelos momentos de crise social. Martín-Baró chama a atenção para a necessidade de considerar os limites do avanço de consciência também postos pela própria realidade, dada a determinação dialética de objetividade e subjetividade. Assim, o avanço da conscientização tem como eixo fundamental o processo de transformação da realidade, pois, na medida em que se transformam as relações dos sujeitos com o mundo, também se modificam as formas de compreender a realidade, assim entende a práxis.

Martín-Baró (2012) apresenta uma compreensão que opõe alienação à consciência/conscientização. De um lado a alienação (despersonalizante, desumanizante, expressão da falsa consciência de classe) e, de outro, a conscientização (autenticidade, identidade social, formação de consciência de classe). Assim, essas definições de alienação e conscientização adquirem significado completo quando referidas às razões do autor para o livro e sua proposta para a psicologia social, isto é, ao objetivo de revelar a dimensão ideológica das ações humanas, como determinadas por interesses de classe dos grupos diversos, a fim de que o sujeito possa tomar consciência desses determinantes para assumi-los ou negá-los. Isso significa superar a falsa consciência expressa na alienação e sustentada pela ideologia mediante um processo de conscientização, o que ressalta tanto a centralidade dessas três categorias conceituais nessa obra quanto a importância da relação que entre elas se estabelece.

 

Considerações Finais

Parece-nos plausível afirmar que Martín-Baró utiliza o termo ideologia com dois significados: o de visão de mundo e de falsa consciência. O primeiro aparece de forma mais implícita, mas claramente presente quando o autor discute toda ação como expressão de diferentes perspectivas de classe, concepções políticas e visões sobre o mundo. Por exemplo, não teria sustentação dizer que toda ação expressa uma falsa consciência. O segundo refere-se propriamente a um conceito sistematizado pelo autor, concebido como falsa consciência, como ocultamento da realidade sob interesses e visão de mundo das classes dominantes. Nesta definição, que inclui a primeira acepção, o autor a transcende e efetua uma síntese conceitual, afirmando utilizar Althusser e Marx.

É, pois, à esta última acepção, a de falsa consciência, que se articulam os conceitos de conscientização e de alienação. Enquanto alienação é a expressão da ideologia na consciência individual, a concretização da ideologia, conscientização é o processo de desenvolvimento da consciência na contramão da ideologia. Também por essas razões, em alguns momentos ideologia e alienação parecem se confundir.

A utilização do mesmo termo com diferentes significados pode confundir e dificultar a compreensão do conceito de ideologia e os conceitos que a ele se articulam. Por isso, o entendimento de que visão de mundo e falsa consciência, embora estejam relacionados, não são puramente sinônimos é ponto chave na leitura mantinbaroniana.

Além das influencias da tradição marxista e Paulo Freire nessas definições, cabe ressaltar a proximidade que as formulações de Martín-Baró têm com outros contemporâneos da psicologia social latino-americana. É o caso de Montero (1990; 2008; 2015) e Lane (1984a; 1984b; 1999), autoras que também debateram o conceito de ideologia como falsa consciência e em articulação com alienação e veem a conscientização como possibilidade de enfrenta-las.

Ademais, se perguntarmos ao texto qual é a visão de mundo que Martín-Baró afirma em seus escritos, teríamos uma resposta clara: a visão de mundo das classes populares de El Salvador. Essa é a intenção explícita que permeia os escritos do autor e a justificativa que tem para construir uma nova perspectiva teórico-epistemológica em relação à Psicologia Social dominante de sua época. A necessidade de, além de centrar-se nos problemas das maiorias populares da América Central, focar os problemas psicossociais na perspectiva daqueles que tem suas verdades históricas negadas pela opressão e o sistema social injusto.

 

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Recebido em 03/03/2017.
Aceito em 08/09/2017.

 

 

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