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Revista Psicologia Política

Print version ISSN 1519-549XOn-line version ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.16 no.37 São Paulo Sept./Dec. 2016

 

ARTIGOS

 

A Saúde como Potência de Ação: uma análise do coletivo e de Comuna do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)

 

Health as a Strength Action: an analysis of the collective and the Comunne of the Landless Rural Workers Movement (MST)

 

La Salud como Potencia de Acción: un análisis del colectivo y de Comuna del Movimiento de los Trabajadores Rurales Sin Tierra (MST)

 

La Santé Comme Puissance D'action : une analyse du collectif et Commune du Mouvement des Travailleurs Ruraux Sans Terre (MST)

 

 

Ana Silvia Ariza de SouzaI; Bader Burihan SawaiaII

IPsicóloga, Mestre e Doutora em Psicologia Social - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil. silviariza@uol.com.br
IISocióloga, Doutora em Psicologia Social, Coordenadora do Programa de Psicologia Social da PUCSP. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa: A Dimensão psicossocial da dialética exclusão/ inclusão (NEXIN/PUCSP). Membro do GT/ ANPEPP: A Psicologia sócio-histórica e o contexto da desigualdade social. Líder do GT/CNPq: Afeto na análise e intervenção em questões sociais. Professora Titular do Departamento de Sociologia da PUCSP, São Paulo, Brasil. badbusaw@pucsp.br

 

 


RESUMO

O texto apresenta resultados de pesquisa ação participante com o objetivo de colaborar com os esforços do MST na promoção da saúde de seus trabalhadores. A perspectiva de saúde adotada é a da totalidade dialético-materialista, ressaltando a sua dimensão ético política, cujo norte é a concepção espinosista de potência de vida. O foco da pesquisa são as afecções sofridas em uma "Comuna da Terra" do MST. Foram realizadas 49 entrevistas e elaborado diário de campo. Uma unidade de sentido se destacou na análise desses registros: a relação entre saúde e terra, seguida da organização comunitária e ações políticas. A não regularização da terra gera sofrimento psicossocial continuado, um conjunto de prejuízos individuais e coletivos que impedem o desenvolvimento de vínculos comunitários e a expansão da saúde. Ressalta-se o risco da maioria relegar o cuidado de si, com um corpo que clama por atenção.

Palavras-chave: Psicologia Social Sócio-histórica, Pesquisa-Ação-Participante, Saúde na Perspectiva Ético-Política, MST, Potência de Ação.


ABSTRACT

This manuscript presents results from a participatory action research aimed to collaborate with the MST efforts to promote health for its workers. The concept of health here adopted refers to the dialectical-materialist as a totality, emphasizing its ethical-political perspective, based on Spinoza's concept concerning the force of life. The disorders occurred in Land Commune are the focus of this study. A total of 49 interviews were carried out and a field diary was elaborated. A meaningful unit was clear when analyzing these records: the correlation between health and land, followed by communitary organization and political actions. The non-regularization of land ownership leads to a continued psychosocial pain, a range of individual and collective damages that hampers the development of community bonds and the health expansion. It must be observed that most of them relegate taking care of themselves as if they were claiming for help.

Keywords: Social Historical Psychology, Participatory Action Research, Ethical-Political Perspective Health, MST, Force of Life.


RESUMEN

El texto presenta resultados de investigación acción participante con el objetivo de colaborar con los esfuerzos del MST en la promoción de la salud de sus trabajadores. La perspectiva de salud adoptada es la de la totalidad dialéctica-materialista, resaltando su dimensión ético política, cuyo norte es la concepción espinosista de potencia de vida. El foco de la investigación son las afecciones sufridas en una "Comuna de la Tierra" del MST. Se realizaron 49 entrevistas y elaborado diario de campo. Una unidad de sentido se destacó en el análisis de esos registros: la relación entre salud y tierra, seguida de la organización comunitaria y acciones políticas. La no regularización de la tierra genera sufrimiento psicosocial continuado, un conjunto de pérdidas individuales y colectivas que impiden el desarrollo de vínculos comunitarios y la expansión de la salud. Se resalta el riesgo de la mayoría relegar el cuidado de sí, con un cuerpo que clama por atención.

Palabras clave: Psicología Social Socio-Histórica, Investigación-Acción-Participante, Salud en la Perspectiva Ético-Política, MST, Potencia de Acción.


RÉSUMÉ

Le texte présente les résultats de l'action des participants à la recherche dans le but de collaborer avec les efforts du MST pour promouvoir la santé de ses travailleurs. La perspective de la santé adoptée est celle de la totalité dialectique-matérialiste, en soulignant sa dimension politique éthique, dont le nord est la conception spinoziste de la puissance de la vie. L'objet de la recherche sont les affections subies dans une "Commune de la Terre" du MST. Au total, 49 entrevues ont été réalisées et un journal de bord a été préparé. Une unité de sens a été mise en évidence dans l'analyse de ces documents: la relation entre la santé et la terre, suivie de l'organisation communautaire et des actions politiques. La nonrégularisation de la terre génère une souffrance psychosociale continue, un ensemble de dommages individuels et collectifs qui entravent le développement des liens communautaires et l'expansion de la santé. Le risque de la majorité est de reléguer le soin de soi, avec un corps qui demande de l'attention.

Mots clés: Psychologie Sociale Socio-Historique, Recherche Action-Participant, Sante Dans La Perspective Ethique-Politique, Mst, Puissance D'action.


 

 

Introdução

A ideia de saúde como "potência de ação" resulta da confluência entre as ideias de Espinosaem sua obra Ética, do conceito de sofrimento ético-político de Sawaia (2014), e os resultados da pesquisa ação participante (PAP) realizada em assentamento do MST. (Souza, 2012). Esta visava colaborar com o planejamento de ações de promoção de saúde e potencializar a capacidade de ação política, e demonstrou que essas duas ações constituem uma única: potencializar a ação política equivale a promover a saúde, uma imbricação já declarada pelo MST ao afirmar que "Lutar por reforma agrária é lutar pela vida. Lutar por saúde também élutar pela vida. É um caminho de mão dupla" (Tavares, 2010:2).

A dimensão ético-política da saúde tem sido bastante analisada por pesquisas que, na grande maioria, buscam compreender a associação entre ela e duas dimensões básicas da desigualdade: o trabalho e pobreza. Os estudos sobre saúde de trabalhadores rurais demonstram que a expansão do modelo de desenvolvimento agrário nas últimas décadas, marcado pela exploração do trabalho, do monocultivo para exportação e do uso de agrotóxicos e transgênicos tem gerado agravamento das condições de saúde da população brasileira, especialmente de trabalhadores rurais com precarização das condições de trabalho e grande impacto nos ecossistemas (Búrigo, 2010; Carneiro, 2007; Carneiro e col., 2012, Scopinho, 2010). Nessa direção, vários estudos, reiterando problemas de saúde decorrentes das condições precárias de trabalho e da alimentação no campo (ANCA,2005), destacam o desgaste orgânico das tarefas desenvolvidas na agricultura em contraponto à necessária disposição para atividades de trabalho (Esteves e Pinheiro, 2000) e também a prevalência de doenças cardiovasculares e osteomusculares, a partir dos 40 anos (UNB, 2001). Avaliam também que os territórios rurais têm sido marcados pela precariedade vivida em função da falta de saneamento e de tratamento da água (Carneiro e col., 2007), e da desigualdade entre campo e cidade em relação ao acesso a bens comuns e a serviços públicos relacionados à saúde (IPEA,2010) e, consequentemente, à incidência de doenças e déficits nutricionais. (Castro e col., 2004; Esteves, 2002; Ferreira e col., 2003; Souza e col., 2007). Ressalta-se ainda, a desigualdade do atendimento à saúde da população rural e da urbana em função da ausência de serviços oficiais de saúde bem como política pública específica para a população do campo (Cavalcante, Nogueira, 2008; Carneiro e col., 2008; Mendes, 2011; Santos, 2011; Scopinho, 2010; UNB, 2001).

No presente texto, buscamos ressaltar uma dimensão ético-política da saúde, que considera essas determinações sociais, mas vai além, coloca o processo de saúde/doença na ordem da dialética entre autonomia e heteronomia, o que significa tirar a saúde do campo biológico e das condições materiais, inserindo-as na ordem da virtude pública. A saúde vai além do estado de bem estar físico e espiritual, e adquire a dimensão da felicidade pública: poder de negociação com as autoridades de discutir os negócios públicos (Arendt, 2001) e de potência de ação deEspinosa (1983, Ética, prop. XI, XII e XIII). É útil ao homem aquilo que dispõe o seu corpo a poder ser afetado e afetar o corpo social (o que aumenta essa potência). E, inversamente, énocivo o que torna o corpo menos apto a isso (Ética IV, prop. XXXVIII).

Essa concepção de útil ao corpo e à mente insere as virtudes públicas como núcleo da saúde, pois a vincula à liberdade e ao poder de escolha e de ação política. Assim, participação social torna-se questão de saúde. Também não separa mente e corpo. Espinosa critica o dualismo introduzido na filosofia por Descartes, como se mente e corpo funcionassem segundo leis diferentes e existisse uma hierarquia entre eles, como na psicossomática (Ética, III, prefácio).

Para Espinosa, mente e corpo são da mesma substância e a alma só conhece o que é afetação do corpo. Assim, a potência do corpo para agir corresponde à potência da mente para pensar, sendo que essa potência do corpo é aumentada ou diminuída nos encontros que ele mantém com outros corpos (homens, pessoas, corpo social). O aumento da potência, segundo Espinosa significa passar da passividade a atividade e é experimentada como emoção alegre. A diminuição da potência de agir significa aumento da passividade e da servidão, o que é vivido como emoções tristes (medo, humilhação, ódio) e impede a formação do "comum", o agir coletivo.

O pensamento não é causa do corpo, nem as emoções, não se trata de substituir o materialismo pelo idealismo e este pelo emocionalismo, mas defender a integralidade da saúde:

[...] a consciência/sentimento de que nossa potência de agir de passar da passividade à atividade só é possível por meio do outro, nos torna comprometidos socialmente, não por obrigação, mas como ontologia. E são os afetos os responsáveis pela união de esforços (conatus), em nos fazermos um, como se fôssemos uma única mente e único corpo. Essa união de corpos e mentes constitui o sujeito político coletivo, a "multitudo" [...] categoria política fundamental, pois como afirma Espinosa, o desejo de resistência nasce do sentimento de indignação. Mas resistir não é só se indignar. O direito de derrubar a tirania depende da força para fazê-lo. Essa força, em situação de desmesura do poder, depende de uma potência de agir coletiva conquistada pela união de conatus, a qual por sua vez, é favorecida quando a lógica dos afetos permite a percepção da amizade e generosidade como algo útil". (Sawaia, 2009)

Para demonstrar com mais clareza essa dimensão da saúde, apresentamos uma pesquisa realizada com o MST. Trata-se de um contexto de pobreza, mas se diferencia pela organização do trabalho e pela ênfase no coletivo.

Trata-se de uma organização do trabalho que envolve um comum e a militância. Um trabalho que tem organização centrada no coletivo e na participação, mas é ao mesmo tempo precarizado. A pesquisa demonstrou que nessa condição social específica, a força do coletivo extrapola e se agrega à saúde, indo ao encontro de pesquisas realizadas (Santos, 2011; Scopinho, 2010) sobre saúde, desigualdade e trabalho. Elas mostram que grande parte das questões de saúde estão ligadas ao cerceamento que elas promovem à autonomia de diferentes formas: regulando horário, o fetiche da mercadoria, limitando o direito à mobilidade, à escolha e à decisão sobre o modo de produção

A presente pesquisa complementa essas análises, ressaltando o cerceamento da força do coletivo como questão de saúde.

Lutar por reforma agrária é lutar pela vida. Lutar por saúde também é lutar pela vida. É um caminho de mão dupla. Quando a gente luta por Reforma Agrária, não é só para distribuir a terra, é ter habitação, trabalho, alimentação saudável, educação, transporte, é ter vida. E isso é saúde, no entendimento do próprio SUS. Quando a gente faz uma ocupação, monta um acampamento, as pessoas começam a se organizar, assumem sua vida. Pessoas que historicamente não tiveram direito de exigir seus direitos. A partir do momento em que elas se põem em luta, elas assumem sua vida. E isso é ter saúde. Saúde prá gente é a capacidade de lutar contra tudo que nos oprime, inclusive a doença. Mas é também lutar contra o latifúndio, o agronegócio. (dirigente do Setor de Saúde do MST, Tavares, 2010:2)

Tal concepção "ampliada" de saúde deve ser aprofundada e construída permanentemente, segundo a dirigente do MST, já que tida como pauta organizativa para promoção de saúde e valorização da vida (Tavares, 2010). Santos (2011), ao refletir sobre a concepção de saúde do MST, afirma que é uma concepção "ampliada" que ressalta a organização social, política e mobilização coletiva, como estratégias de promoção de saúde.

 

Reforma Agrária, Saúde e Comuna do MST

A pesquisa foi realizada na Comuna da Terra Irmã Alberta do MST, escolhida por ser (à época) uma nova forma de assentamento idealizada pelo MST do Estado de São Paulo. Ela visava oportunizar o trabalho no campo para trabalhadores urbanos, o proletariado expropriado, que vivem na cidade e não tem necessariamente história recente com o campo. Suas características principais são a economia mista de subsistência em espaço menor (2 a 5 hectares); proximidade do centro urbano, que possibilita a comercialização direta dos produtos, agregando o valor à produção excedente para a produção e abastecendo cidades vizinhas; além de renda complementar, com a implantação de atividades não agrícolas1 (Goldfarb, 2007; Matheus, 2003).

Membros da Comuna da presente pesquisa realizaram, depois de oito anos de ocupação e espera pela regularização da terra, ato político-cultural, levando-a a ser reconhecida e declarada por atores e amigos/as do MST como "assentamento" de reforma agrária. Um processo feito pela participação popular e sem a sua regularização outorgada pelo Estado. Até o momento da pesquisa, a posse da terra não tinha sido regularizada.

Vale salientar que o processo de concentração de terras, marcado por presença de conflitos e violência no campo configura uma condição de grande vulnerabilidade à população dessa região, o que se acirra com a situação de acampamento (Mendes, 2011), caracterizada pela provisoriedade e tensões vividas devido à morosidade dos processos de desapropriação que os expõe ainda mais a graves riscos de saúde (Carneiro e col. 2007). Alguns estudos associam o estado nutricional com a posse da terra e processos de trabalho, demonstrando que ocorre maior déficit nutricional à medida que diminui a posse da terra (Carneiro e col., 2008; Lang e col., 2011).

Esse panorama impossibilita a exploração dos ambientes para produzir alimentos e garantir a manutenção do modo de vida da comunidade, inviabilizando a economia de subsistência e afeta inclusive o cultivo e cultura de plantas medicinais, o que pode acarretar a perda de espécies nativas com valor terapêutico e do conhecimento popular de muitas gerações (Amorozo, 1996; Mendes 2011), afetando também a saúde.

Porém, se por um lado, estudos apontam que a precariedade vivida tem levado a problemas de saúde e dificuldades de organização, por outro, algumas conquistas demonstram a capacidade de enfrentar obstáculos por meio das lutas, organização, mobilização e solidariedade (Carneiro e col., 2007; Santos, 2011).

A presente pesquisa levantou justamente tal contradição: a precariedade e a insegurança pela não regularização da terra afetando a saúde de diferentes maneiras, como desânimo, impotência, futuro desalentador e busca de solução individual. Ao mesmo tempo, ela demonstrou que mesmo nessas condições de sofrimentos, o que os mantem vivos é a luta política, a solidariedade prevalece e a reflexão torna-se uma aliada forte da saúde.

 

Metodologia

A pesquisa foi realizada entre os anos 2008 a 2011, período em que a pesquisadora acompanhou e participou da vida da Comuna. Ela se inseriu na organização do Setor de Saúde do Movimento compondo diversidade de experiências nos atos, Marchas, ocupações, reuniões na Comuna, mutirões, festas culturais, reuniões do Setor de Saúde - encontros de formação, etc. Com base nos pressupostos da PAP de Fals Borda (1999) e da enquete operária de Marx sugerida por Thiollent (1981), organizou, no ano de 2009, com militantes do Setor de Saúde da Comuna, entrevista para levantar informações para subsidiar o planejamento das estratégias voltadas à saúde na Comuna. Em 2010, foi realizada nova coleta de dados para aprofundar as informações contidas na primeira. Esse instrumental continha questões abertas e fechadas com o objetivo de compreender a saúde e a dinâmica da afetividade na experiência de viver na Comuna Irmã Alberta/MST.

Foram realizadas 49 entrevistas com membros de 31 famílias priorizando os mais integrados à dinâmica do assentamento, dado o vínculo já existente entre eles e com a pesquisadora. Vale ressaltar que a maioria dos entrevistados tinham 40 anos ou mais.

A pesquisa também compôs um coletivo que realizou ações como: Encontro Regional de Saúde e reuniões com representantes do Setor de Saúde de quatro assentamentos da região para planejamento conjunto das ações, oficinas de formação, encontros com representante de serviço oficial de saúde, dentre outras atividades. Todas as ações foram registradas em diário de campo e as entrevistas gravadas. Após várias leituras das entrevistas foi possível elencar as principais unidades de sentido que compõem o sentido da saúde. Utilizou-se ainda algumas informações contidas no diário de campo e registro de reuniões como uma forma de complementar os dados e explicitar a dinâmica da afetividade. Tal dinâmica constitui o subtexto da reflexão sobre a dialética entre potência de vida/emancipação e sofrimento ético político/potência de servidão /padecimento. Segundo Vigotski (1996), a motivação e emoção constituem a gênese dos sentidos, por trás de cada pensamento existe uma tendência afetivo-volitiva. Nessa perspectiva, os sentidos do discurso só podem ser compreendidos quando se compreende sua base afetivovolitiva. Buscou-se portanto captar tal dinâmica, compreender o sentido expresso pelos sujeitos e as unidades que o compõe, expostas a seguir.

As Queixas

Apesar da condição vivida na Comuna ser diferente dos acampamentos, dada a extrema precarização existente em grande parte deles e ao fato da Comuna ser mais próxima da cidade, os problemas de saúde citados são semelhantes aos constatados por pesquisa realizada em 1164 assentamentos (UNB, 2001). Dentre as doenças citadas em nossa pesquisa como mais frequentes: as osteomusculares, cardiovasculares, problemas psicológicos, respiratórios, pressão alta; chamou atenção o fato de grande parte relatar insônia.

Em relação às condições de habitação e saneamento, a maioria das casas são feitas de madeirite, madeira e algumas de lona, mas há também as de tijolos. As fossas foram discutidas coletivamente e organizadas em cada lote de forma a não prejudicar a saúde e a natureza.

Quanto aos serviços oficiais de saúde, muitos não têm acesso ao atendimento e vários, quando o fazem, veem-no como precário, com queixas da falta de acesso, demora, falta de qualidade e falta de ambulância. Já outros, avaliam o atendimento como satisfatório, embora haja demora. Há ainda relato de discriminação por serem Sem Terra e de situação humilhante em perícia médica de saúde com imposição de dano moral e dor. O que difere da avaliação do acesso aos serviços de saúde das crianças, que é positiva.

Uma questão chama a atenção: apesar das dificuldades, contraditoriamente, não reclamam da exaustão. Constatação que remete aos afetos e a forma como experimentam o trabalho e de como ela é mediada por outras experiências.

Os Afetos

Scopinho (2010) alerta a esta dimensão da saúde, por exemplo, ao realizar análise sobre as condições de vida e saúde de trabalhadores assentados, mostra os afetos passivos sentidos e os prejuízos à saúde decorrentes da incerteza em relação à regularização da terra e condições materiais:

[...] observei muitas situações e ouvi inúmeros relatos sobre o fato deles se sentirem adoecidos pela ansiedade das várias incertezas e longas esperas, vividas no processo de implantação de assentamento: a demarcação dos lotes, a instalação de rede de energia, a construção das moradias, a abertura dos processos e a canalização da água, o acesso aos recursos do Pronaf... A falta de condições objetivas para projetar a vida e o futuro gerava um sentimento de desamparo e de impotência, desgaste que afetava diretamente a saúde de cada um, e, sobretudo, afetava o processo organizativo do grupo, que perdia a unidade fazendo com que, cada vez mais, os trabalhadores investissem no cuidado individual em detrimento do coletivo. (Scopinho, 2010:1850)

Na presente pesquisa ficou clara a mediação dos afetos. O trabalho na Comuna afeta a saúde, mas não de forma imediata, ele é filtrado pela minha experiência emocional que marca o corpo e a mente. Vigostki criou o conceito de perijevánie para indicar que experimentamos o mundo também pelas emoções, que por sua vez são produto das afetações vividas por meu corpo memorioso: "a emoção é o radar ético das formas de afetação do meu corpo e mente pelos encontros que a existência oferece" (Silva & Sawaia, 2015:355). Assim, processa-se a conversão do mundo social do exterior para o interior configurando os sentidos de forma singular.

Texto construído coletivamente pelos/as "assentados/as" da Comuna da Terra reforça tal dimensão2

(saúde) É ter alegria, felicidade, amizade, companheirismo, é bem-estar, é con-viver, é terforça para enfrentar as doenças, crises e dificuldades. É a produção coletiva e agroecológica, a alimentação orgânica, é a luta contra toda forma de exploração, é a luta contra ocapitalismo, é a segurança e a soberania alimentar, é a terra. É a liberdade, é a justiça, é ter respeito à religiosidade, é a distribuição de renda, é resgatar e respeitar a sabedoria popular, é estudar, é a cultura, é lutar, criar, é o poder popular. ISSO É VIDA!!!!"

O Trabalho

Os sentidos do trabalho, antes da entrada no assentamento, era de que ele prejudicava a saúde e a expansão de si, fonte de adoecimento/padecimento. Para uns, ele era fonte de inclusão perversa no processo de produção que se configura como sofrimento ético-político e impede o desenvolvimento do potencial humano, já que impossibilita a expansão da liberdade e promove a desumanização e o padecimento. Outros, sofreram pela condição de desemprego, não só pelas dificuldades materiais, mas pela humilhação e vergonha. Por isso, buscam no MST outra forma de reprodução da vida.

Nesse sentido, a maior parte associa saúde ao trabalho, especialmente na terra. Entendem que o trabalho na terra representa a possibilidade de trabalhar para si, com o que gostam e com liberdade de poder organizar o próprio ritmo com uso da força de trabalho para si, o que traz o sentimento de realização pessoal/coletiva.

O produto do trabalho traz orgulho e o sentimento de pertença. As conquistas e avanços conquistados com o trabalho individual e os realizados junto à comunidade e à vizinhança (como a doação de uvas produzidas na Comuna), que passa a vê-los de forma diferente, trazem maior sentimento de reconhecimento, aumenta a possiblidade de bons encontros e promove outros afetos aliados da saúde: maior confiança em si, nos outros e felicidade.

Conseguem tirar parte do sustento no lote, produzir diversos alimentos e encontrar coletivamente estratégias para escoamento da produção. Relacionam a qualidade de alimentação com a regularização da terra e afirmam que a melhoria da saúde deve dar-se com a melhoria da produção na terra. Porém, há dificuldades em relação à produção que é sazonal e de pequena quantidade, aliadas à falta de condição financeira para comprar outros alimentos complementares e de infraestrutura.

A falta de regularização da Comuna e de investimentos do governo trazem diversidade de sofrimentos/dor: a necessidade da realização de "bicos" para complementar a renda e garantir a subsistência, sentimento de exploração, desgaste físico/psicológico, sensação de perda de tempo e mal estar pela impossibilidade de realizar atividades criativas, que eles associam à falta de saúde. Suas conquistas representam, portanto, "realização parcial" (Santos, 2011) dada a imposição da necessidade de se afastarem do trabalho no lote e outras atividades criativas como o estudo, e por serem obrigados a reproduzir as relações perversas de trabalho vividas antes da entrada no assentamento

Porém, como já dito, eles não sucumbem à exaustão. Eles buscam superar as dificuldades vividas a partir das estratégias que se mostram ao alcance, mas com grande precariedade não apenas para a garantia da subsistência de si e da família, mas da reprodução e permanência no assentamento.

A terra

A terra é o núcleo central da saúde. Ela tem o sentido de se contrapor à periferia da cidade relacionada à violência, à precarização e à falta de perspectiva, um espaço das vidas descartáveis. Tem o sentido de segurança, espaço amplo, paz e qualidade de vida, o lugar da perda do medo, de melhoria e ampliação das relações sociais. Tem ainda o sentido de relações afetivas próximas, como o amor para com a mãe, família, cuidado. Enfim, a terra os liberta das experiências da classe social pobre marcada pela inclusão perversa e segregação espacial: a terra para os assentados representa "tudo", "negação do homem-máquina", "a vida".

Alguns relatam melhorias da saúde (na dimensão subjetiva) como superação da depressão, dependência/ou uso indevido de álcool, possibilidade de convivência com natureza e longe da poluição que causa doenças.

Com relação à especificidade da Comuna, de um lado, apontam maior facilidade de acesso aos serviços públicos, dada a proximidade da cidade vizinha bem como maior ajuda das pessoas da Comuna. Por outro, alguns demonstraram sentimento de insegurança e necessidade de constante vigilância do espaço, pela proximidade à cidade e ausência de políticas públicas.

Alimentação é um dos sentidos mais destacados dentre as positividades da terra. A terra é o lugar da alimentação de qualidade, com fartura, sem agrotóxico, saudável, além da diversidade de alimentos. Apontam melhorias nos hábitos alimentares fruto do aprendizado no MST em relação aos prejuízos das "químicas" e da possibilidade de comer alimentos "naturais", o que também não é possível na cidade; além do maior acesso a alimentos que não tinham anteriormente. Porém, reclamam da falta de diversidade e quantidade de alimentos produzidos na Comuna, que gera a necessidade de comprar alimentos industrializados, com hormônios ou agrotóxicos.

A água é frequentemente citada pelos assentados como um bem comum que promove saúde, mas, ao mesmo tempo um bem escasso, de difícil acesso e poluído, o que se torna um agravante da saúde: (Saúde) "é ter água limpa!"; "Tem poluição das águas, rios por parte da comunidade das redondezas, fábricas da região e o saneamento precário"; (Saúde): "Precisa cuidar da água, ter água para plantação/poços artesianos e água adequada".

Eles demonstram grande apego à terra, sentem-se parte dela. Ela significa vida: o resgate do passado perdido, a pertença à família e a libertação das mazelas vividas no urbano. Ela permite a proximidade e cuidado com as plantas e animais, além de fruição da beleza da natureza. Como também afirma Mendes (2011) se a terra é o lugar que produz saúde, acolhe e liberta é também um espaço que merece respeito e deve ser cuidado e protegido.

Em síntese, a terra é o subtexto da saúde e o outro, é o coletivo.

O coletivo

Apareceu com muita força o sentimento de pertença e apego à comunidade do MST, além da terra. A memória da história da Comuna relembrada constantemente, traz o sentimento de alegria, orgulho e desejo de persistência no MST: "Essa luta não é prá qualquer um" é frase comum entre Sem Terras.

Desejam permanecer nela e almejam o estudo para seus filhos que é sentido como realização pessoal, alegria e para garantir uma melhor condição a si e aos filhos. O que os potencializa para novos investimentos nos estudos com preponderância, na escolha, de áreas atreladas ao trabalho na terra e MST.

Frente aos encontros que enfraquecem a potência de vida, o grande potencializador da saúde ético-política são o coletivo e as ocupações, embora grande parte deles afirme que a família é o grupo de pertencimento mais significativo da solidariedade, sentido que se fortalece enquanto sentimento e ação, à medida que não adquirem a posse da terra.

Aqui, aparece uma questão importante: a existência, em paralelo, de duas formas de solidariedade, a que busca promover o coletivo de classe e permanecer como comunidade de base afetiva e material. A outra, que reproduz no assentamento o modelo centrado na família, imposta necessidade de cuidar da sua subsistência frente a escassez de recursos materiais. Tal solidariedade gera a divisão da Comuna em um agregado de famílias, enfraquecendo o coletivo.

Tal condição é um empecilho à ação política e gera sofrimento como a solidão e melancolia, vivenciado mais por alguns dos poucos que moram sozinhos. Alguns desses acabam demandando maior atenção e novas intervenções, embora afirmem que os vizinhos são parte significativa da vida e que recorrem a eles quando precisam de ajuda. De modo geral, o isolamento das famílias e consequente enfraquecimento do coletivo acena à perda da terra e de sua capacidade de garantir a sobrevivência, o medo de voltar às condições degradantes de vida urbana. Uma espécie de situação traumática.

As atividades coletivas na forma de atos, festas, ocupações são potencializadores da saúde, possibilitam o sentimento da alegria e coragem. O trabalho coletivo no campo, a participação nos atos e nas ocupações promovem bons encontros que proporcionam manifestações afetivas (solidariedade, companheirismo, ajuda mútua, coragem e alegria), com alto grau de profundidade emocional entre plurais e com continuidade no tempo (Sawaia, 1997b). São espaços do estabelecimento de relações intersubjetivas, troca de experiências e, com isso, maior percepção de si e do mundo e do sentimento de poder e autonomia: "[...] quanto mais determinações um ser possui, mais real, mais perfeito e, sobretudo, mais livre é. E a liberdade... sendo a potência intelectual e corporal para o múltiplo e para o plural na simultaneidade...". (Chauí, 2003:236).

O coletivo permite inverter a afetação do medo, por exemplo, que deixa de ser experimentado como paixão passiva e passa a ser um recurso de resistência à dominação. É possível impor o medo a quem me amedronta. Alguns/as falam do medo da pressão psicológica policial que foi se perdendo pelo "sentimento do comum" (Espinosa, 1977). Outros ressaltam a perda da vergonha e melhorias na comunicação a partir das relações estabelecidas com os pares, contrapondo-se a uma política de afetividade dominante que busca manter uma ordem social excludente. Nessa concepção, culpa, vergonha, humilhação e exploração social são facetas da mesma questão (Sawaia, 1999). Para Espinosa não se vence uma paixão triste com uma ideia, faz-se necessário outra mais forte e contrária (Ética, IV, prop. VII). Ou como expressa Sawaia:

O aprendizado de uma regra não conduz necessariamente à ação, pois o compromisso político não é uma questão puramente cognitivo-instrumental. Ele é vivido como necessidade do eu, como desejo. Mesmo quando o indivíduo age em nome do bem comum, a ação implica em exercício de motivação individual, portanto, a vontade e a afetividade são suas dimensões fundamentais [...] ninguém é motivado por interesses coletivos abstratos e não se pode exigir que o homem abandone a esfera pessoal da busca da felicidade. Bemestar coletivo e prazer individual não são dicotômicos e o consenso democrático não é conquistado necessariamente à custa do sacrifício pessoal. (Sawaia, 1997a:155)

A ocupação como fomento à saúde ético-política aparece na forma de sentimento de ser sujeito da ação, como expressa assentado:

[...] é você tomar prá si a própria luta sua, você necessita de terra e aí você vai e conquista e também a questão da solidariedade que você já tem terra, você vai e ocupa pra quem não tem, isso dentro do MST é muito bonito, não vejo isso em outros movimentos, quando já tem o nosso lote a gente vai ocupar prá outra família que não tenha, né? Então eu acho lindo isso do MST, acho isso formativo, que é a questão da solidariedade que tá faltando muito no planeta aí...

Na ocupação, "agir e alegrar-se são sinônimos" (Brandão, 2008) e o singular e o coletivo se fundem:

Eu sinto muita dignidade quando eu tenho a oportunidade de falar, por exemplo quando vem algum grupo, de falar da luta, do MST, da história, dentro da história do MST a história da minha família, e dentro da história da minha família a minha história de vida, trazendo a luta universal pra luta particular e pra luta singular... eu acho muito legal fazer isso, não é a toa que eu tô no Setor de Formação... Ah o particular é isso que tá dentro do assentamento eu faço parte dessa luta, e o singular é minha luta pessoal.

Como afirma Sawaia (2001:8): "os benefícios de uma coletividade organizada são relevantes a todos, a vontade comum a todos é mais poderosa do que a individual, e o coletivo é produto do consentimento e não do pacto ou do contrato". Leite (2008) compreende a amizade como prática social potencial para questionar modos de relações estabelecidas socialmente bem como para tornar-se exercício político, que ao ser realizada no espaço público pode valorizar a pluralidade de ideias e formas de pensamento, expansão, debates, conflitos e a vivência da alteridade. Como expressa a entrevistada: "Adoro, porque a gente faz amizades de vários lugares".

Mas a saúde ético-política não é um estado que se alcança ou não, é processo marcado pelo conflito e a ocupação não é a varinha mágica que elimina todas as contradições, o que equivale a negar a lógica dialética e esquecer que somos seres de paixão e de imaginação, como fala Espinosa (Ética IV, prop. IV, Corolário). As ações políticas também evidenciam diferenças e contradições que persistem no Movimento em contínuo processo de disputas internas de ideias, embora se resguarde a importância do comum e a amizade entre pares, o que bem expressa um assentado: "A gente vê as separações de interesses, quanto cada um tá envolvido prá sua realização, tem as separações de interesses...".

Se o coletivo favorece a saúde ético-política, não significa que não gere sofrimento. Alguns se queixam do tempo despendido com a militância em contraposição ao pouco tempo para si e para o convívio com a família; da ansiedade com acúmulo de tarefas, da insônia e preocupação constante frente à pressão sentida na militância. Queixas que embora sofridas, não geram o abandono do MST:

Participei de um ato, gostei muito, enfrentamos policiais e aprendi que não é só uma reinvindicação por terra, quando você ocupa um lugar que tá vazio, passa pela cerca e você tá falando: Não! Tem que ser meu, porque se não, não serve essa terra, prá que essa terra ociosa? Então era muito simbólico a ocupação ali, acho que cada ato que a gente faz, cada ocupação, acho que pode às vezes ser uma conquista imediata, ou às vezes nem tem conquista, mas vai forjando essa consciência de que a luta é necessária, de que as conquistas são coletivas. (Assentada)

Se nos momentos de "luta" pela regularização da terra da Comuna ficam mais mobilizados para as diversas atividades, nos momentos de sua ausência ou falta de reflexão conjunta com dirigentes sobre o andamento do processo da terra, muitos, especialmente aqueles que ficam a maior parte do tempo dentro do assentamento, mostram-se tristes, desanimados/as, pessimistas e participam menos das atividades coletivas e comunitárias, embora continuem se esforçando para fazer a terra produzir.

Na ação política há uma superação do medo-passividade aquele que ensandece o homem e perdura quando alimentado por outras paixões como cólera, humilhação e aversão à felicidade(Espinosa, Ética, prop. LXIII, escólio).

 

Reflexões Finais

As doenças mais citadas (osteomusculares, respiratórias, a insônia, dentre outras) parecem em grande parte relacionadas às condições de trabalho, moradia e insegurança pela não regularização da terra ou ausência de infraestrutura. Mas há, embora não explicitada como doença, a tristeza, o desânimo do retrocesso, da perda do futuro e da autoestima.

Por isso se apegam à terra e MST e focam toda sua força neles. Assim, eles demonstram uma concepção ético-política de saúde que extrapola a saúde biológica ou o acesso aos serviços oficiais de saúde, corroborada pelos sentidos de saúde que constituem o subtexto dos sentidos da terra, trabalho, estudo, ação política e organização comunitária. Em pesquisa de assentamento do MST, Scopinho (2010:1583) afirma que: "[...] a prioridade dos trabalhadores ainda era a luta para concluir a implantação do projeto de assentamento e para viabilizar a produção. Lutar pelo acesso aos recursos do PRONAF tem sido mais importante do que as lutas pelo acesso aos serviços de saúde já que a produção envolve a segurança alimentar, considerada essencial da saúde".

O mesmo ocorre com os sujeitos de nossa pesquisa. Há grande dificuldade de mobilizar mais militantes para participar do Setor de Saúde e dar continuidade às ações iniciadas. Aparentemente há a tendência de relegar o cuidado com a saúde em favor das lutas gerais pela terra, deixando a discussão de saúde em segundo plano.

Mas este descaso é aparente, a pesquisa permitiu entender que a luta pela terra e pelo coletivo é a luta pela saúde, o que não significa relegar o cuidado de si, como ser biológico que se abriga, alimenta-se e se reproduz com um corpo que clama por necessidades. E no que se refere à falta de acesso ao atendimento à saúde nos serviços oficiais, impõe a colocação na pauta da ação coletiva, e de forma contundente, a contraposição à privatização da saúde, o que não ocorreu no período da pesquisa.

Extrai-se daí a necessidade de trabalhar a saúde em uma dimensão da totalidade do ser humano, na dialética do singular-particular-universal. Lutar pela saúde é também lutar pelas transformações sociais. Como mostra Sawaia: "Promover a saúde equivale a condenar todas as formas de conduta que violentam o corpo, o sentimento e a razão humana, gerando, consequentemente, a servidão e a heteronomia" (Sawaia, 1995:157).

As relações intersubjetivas estabelecidas no coletivo através das ações políticas aumentam a potência de ser e existir em ato, e portanto de afetar e ser afetado, configurando novas formas de relação com o mundo. Assim, a pesquisa demonstra que a coletividade potencializa a saúde ético-política.

Para finalizar, esperamos que a presente pesquisa colabore com o alargamento da concepção de saúde como integralidade, rompendo as cisões entre biológico, cultural, social e o subjetivo e que ela pressupõe a criação de novas possibilidades ao invés da adaptação às normas (Canguilhem, 1990). Esta dimensão ético-política da saúde não se restringe à condição das Comunas e do MST, revela a potência de ação coletiva e o sentimento do comum como inerentes à saúde, e que seu bloqueio rouba o interesse vital dos cidadãos.

Se duas pessoas concordam entre si e unem as suas forças, terão mais poder conjuntamente e, consequentemente, um direito superior sobre a natureza, que cada um deles não possui sozinho e, quantos mais numerosos forem os homens que tenham posto as suas forças em comum, mais direito terão eles todos. (Espinosa, Tratado Político, II, 13)

 

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Recebido em 15/09/2017.
Revisado em 11/10/2017.
Aceito em 16/10/2017.

 

 

1 Com as Comunas, a disputa em relação ao capital empreendida pelo MST ganha outra dimensão já que disputa áreas próximas aos centros consumidores e às grandes rodovias. Assim, disputa espaço privilegiado do capital do ponto de vista não só agrícola - mas também imobiliário e industrial.
2 Construído coletivamente por proposta da pesquisadora acerca da concepção de saúde em "mutirão" realizado para limpeza da "área social" (coletiva) da Comuna e que foi utilizado para ornamentar "barraca da saúde" (que vende produtos medicinais) em festa/ato político-cultural.

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