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Revista Psicologia Política

Print version ISSN 1519-549XOn-line version ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.17 no.38 São Paulo Jan./Apr. 2017

 

ARTIGOS

 

Ideologia da punição, penalização e criminalização em políticas de combate a violações de direitos: paradoxos das lutas por reconhecimento e direitos humanos

 

La ideología del castigo, penalización y criminalización en políticas de combate contra la violación de derechos: paradojas de las luchas por reconocimiento y derechos humanos

 

Ideology of punishment, penalty and criminalization in rights violation combat policies: paradoxes of the struggles for recognition and human rights

 

L'idéologie de la punition, pénalité et criminalisation dans les politiques de combat contre les violations des droits: les paradoxes des luttes pour la reconnaissance et les droits de l'homme

 

 

Maria Fernanda Cardoso Santos

Programa de Pós-Graduação de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social de Natal/RN. mariafernandacardososantos@gmail.com

 

 


RESUMO

O objetivo deste trabalho é refletir sobre a lógica punitiva no contexto das lutas por reconhecimento e direitos humanos. Pergunta-se pelas condições que possibilitam essa articulação entre o discurso dos direitos humanos, que critica a lógica punitiva, e o uso da punição aos violadores. Partiremos dos estudos de Nietzsche, Foucault e Wacquant acerca da ideologia da punição, penalização e criminalização, para relacioná-los a produções (sobretudo de autores brasileiros) da área da criminologia que abordam e questionam esses paradoxos. Aponta-se como uma das reflexões decorrentes do estudo que, na atualidade, as lutas e os movimentos sociais do campo dos direitos humanos estão em crescente judicialização, decorrente desta lógica que criminaliza as violações, colocando-as no campo estatal, judiciário e policial.

Palavras-chave: Ideologia; lógica punitiva; sistema prisional; direitos humanos; lutas por reconhecimento


RESUMEN

El objetivo de este trabajo es reflexionar a cerca de la lógica punitiva de las luchas por el reconocimiento y por los derechos humanos. Nos preguntamos sobre las condiciones que posibilitan la articulación entre el discurso de los derechos humanos - que critica la lógica punitiva - y el uso de la punición aplicada a los violadores. Como base para esa reflexión, son abordados los estudios de Nietzsche, Foucault y Wacquant, que tratan sobre la ideología de la punición, penalización y criminalización, para después relacionarlos a las producciones, sobre todo de autores brasileños, que cuestionan la paradoja de las luchas por reconocimiento y derechos humanos. Se señala como una de las reflexiones resultantes de los estudios que, en la actualidad, las luchas y los movimientos sociales del campo de los derechos humanos están en creciente judicialización, resultante de esta lógica que criminaliza las violaciones, colocándolas en los campos estatal, judicial y policial.

Palabras chave: Ideología; lógica punitiva; sistema prisional; derechos humanos; luchas por reconocimiento


ABSTRACT

The objective of this study is to reflect on the punitive logic inherent in the context of the struggle for the recognition of human rights. It questions the conditions that make possible the articulation between the discourse of human rights, which criticizes punitive logic, and the use of punishment for violators. The theoretical framework for this reflection is based on studies by Nietzsche, Foucault and Wacquant, regarding the ideology of punishment, penalization and criminalization to relate it to the production (most of them by Brazilian authors) who question the paradoxes in the struggle for the recognition of human rights. One of the reflections made by this study points that, today, the struggles and the social movements in the human rights field are going through an increasing judicialization, due to this logic which criminalizes the violations, placing them in the state, judiciary and police field.

Keywords: Ideology; punitive logic; prison system; human rights; struggle for recognition


RÉSUMÉ

L'objectif de cette étude est de faire réfléchir sur la logique punitive dans le contexte des luttes par reconnaissance et les droits de l'homme. Nous nous demandons pour les conditions qui permettent cette articulation entre le discours des droits de l'homme, qui critique la logique punitive, et l'utilisation de la punition aux violateurs. Nous allons partir des études de Nietzsche, Foucault et Wacquant à propos de l'idéologie de la punition, pénalité et la criminalisation, pour faire un rapport entre eux et les productions (principalement des auteurs brésiliens) du domaine de la criminologie qui abordent et questionnent ces paradoxes. Il est signalé comme l'une des réflexions resultant de l'étude que, aujourd'hui, les luttes et les movements sociaux dans le domaine des droits de l'homme sont en augmentation de la judiciarisation, en raison de cette logique qui criminalise les violations, les plaçant dans les domaines étatique, judiciaire et policier.

Des mots-clés: Idéologie; logique punitive; système pénitenciaire; droits de l'homme; lutte par reconnaiossance


 

 

Introdução

Neste trabalho refletiremos sobre a ideologia da punição e a forma como se articula às lutas por reconhecimento e direitos humanos. Começamos com algumas considerações acerca do que entendemos por ideologia quando usamos a expressão "ideologia da punição". Ao falar de ideologia, partimos da concepção pós-marxista de ideologia, trabalhada por Louis Althusser (1974) e por Alípio de Sousa Filho (2016, 2017). Nessa visão, ideologia não seria encobridora da realidade em si (essencial, oposta a uma aparência ilusória, enganadora) porque não partimos da ideia de que seja possível acessar o real de forma definitiva. O que se encobre, sob este enfoque, é o caráter construído, histórico, desta realidade. Ou seja: o que é encoberto não é o real, mas o fato de que ele não existe em si e que é inconsistente enquanto dimensão natural, universal, pretensamente apartada e anterior à cultura e aos embates de poder.

Nossa hipótese é a de que há uma ideologia da punição que, por seu caráter encobridor, dificulta que nos desvinculemos da disseminação de suas práticas, mesmo quando no contexto da busca por transformações sociais. E o que está encoberto no referente à sua constituição histórica quando falamos em punição? Nietzsche já dá pistas acerca desse encobrimento quando escancara, em Genealogia da Moral, o parentesco entre justiça e vingança. A justiça, na visão do filósofo, seria o próprio ressentimento requintado e formalmente estruturado para institucionalizar a vingança através do castigo. E para que serviria o castigo? Nietzsche, na segunda dissertação da Genealogia da Moral ('Culpa', 'Má Consciência' e coisas afins), enumera em uma lista as várias utilidades a ele atribuídas: "impedimento de novos danos (...) pagamento de um dano ao prejudicado (inclusive compensação afetiva) (...) isolamento de uma perturbação de equilíbrio (...) inspiração de temor (...) compensação pelas vantagens que o criminoso até então desfrutou (...) preservação da pureza da raça (...) festa (...) criação de memória (...) pagamento de honorário (...) compromisso com o estado natural da vingança" (Nietzsche, 1988, p. 85). Nietzsche ainda acrescenta à lista acima o item "inculcar sentimento de culpa" (1988, p. 85). O castigo, diz o filósofo, não gera culpa. Ao contrário: no castigo se recrudescem os piores sentimentos do castigado. O que sobra então? Vingança, que se concretiza como exercício de poder do ressentido, aquele a quem se causou um dano. Ou seja: o castigo não tem uma função social de produção de ordem ou paz, mas sim obedece a uma lógica da vingança.

Na mesma linha, e seguindo explicitamente a Nietzsche, Foucault (2011), em uma entrevista diz que um título pretensioso para o seu trabalho seria genealogia da moral. O autor começa a sua famosa obra Vigiar e Punir (2008) indagando sobre os efeitos que o alegado "fracasso da prisão" produz. Ou seja: qual o sucesso desse fracasso que é a prisão, em que sentido ela é bem-sucedida? No decorrer de seu estudo, Foucault procura, a partir da reflexão acerca das práticas e discursos implicados na instituição prisional, demonstrar que o que parecia uma humanização dos castigos cruéis teve efeitos bem diferentes dos anunciados. Supostamente os efeitos deveriam ser aqueles que Vera Malaguti Batista (2012) denomina "ilusões re" - reeducação, ressocialização, reintegração. No entanto, a prisão, não tem os efeitos que listamos acima, mas outros, conforme explicitado por Foucault (2008): produzir mão de obra barata, criminalizar condutas de delinquência que antes não eram objetos de atenção do Estado e produzir subjetividades, junto a outros dispositivos disciplinares, tais como as escolas, hospitais, fábricas, que se pautam no modelo da vigilância (melhor vigiar que punir) e que se alimentam do medo disseminado.

No começo de nosso século, Löic Wacquant (2003) mostra, em "Punir os Pobres: A nova gestão da miséria nos Estados Unidos" como naquele país esta economia em torno da punição se reorganiza quando o Estado caritativo (ligado a políticas públicas e ao modelo de Bem Estar Social) declina e por outro lado cresce o Estado penal (em que a centralidade da ação estatal se articula com a segurança pública). De um lado, a tendência neoliberal e o Estado mínimo que, pautado na ética do trabalho e na meritocracia entende que o indivíduo deve se haver com suas necessidades para não criar dependência em relação à assistência e, do outro, um Estado paternalista e intervencionista que se faz presente no âmbito penal, cada vez mais rigoroso. Aqueles desassistidos pelo Estado passam a ser vistos não mais como mão de obra barata a manter em subempregos, mas como uma espécie de excedente, de escória que deve ser afastada da convivência dos trabalhadores e, em linguagem tupiniquim que bem conhecemos, dos cidadãos de bem. Nem reeducar, nem ressocializar, nem reintegrar. Trata-se, melhor dizendo, de neutralizar, afastar do convívio e ao mesmo tempo vingar, fazer sofrer, sequestrar direitos. Voltamos, portanto, a Nietzsche e à ideia de castigo como vingança.

Nessa linha de pensamento é que gostaríamos de colocar uma questão a respeito de nossas práticas e militâncias: que dimensões estariam sendo encobertas quando a lógica punitiva é invocada na proteção aos direitos humanos e nas lutas por reconhecimento na atualidade? Será que as lutas por reconhecimento precisam dessa ferramenta da punição - e em especial, da prisão? Por que o discurso das militâncias que se identificam de certa forma como sendo do campo dos direitos humanos e que contestam a visão conservadora aparece tantas vezes ligado a esse âmbito ideológico da punição? Será que nestas lutas se reivindica, também, o direito de punir? E o que significaria punir, então? Qual a finalidade que atribuímos à punição, já que, como bem observa Batista, o neoliberalismo abandonou as "ilusões re" e trabalha, sem nem mais procurar disfarçar, com o objetivo de "armazenamento, emparedamento e neutralização" (Batista, 2012, p. 311)? O que significa, diante disso, aderir a esse discurso, essa "inculcação subjetiva do desejo de punir" (Batista, 2012, p. 309), que se constitui, no dizer da autora, em "adesão subjetiva à barbárie" (Batista, 2012, p. 310)?

Para melhor ilustrar a questão, tomaremos aqui, como exemplares do campo de discussão que pretendemos abordar, dois artigos brasileiros da década de 1990: A Esquerda Punitiva, de Maria Lúcia Karam, publicado em 1996; Direitos Humanos e Volúpia Punitiva, de Helena Singer, de 1998. Em ambos os textos, as autoras alertam para a crescente "volúpia punitiva" e para a preocupante reivindicação, cada vez mais recorrente, da utilização das estratégias punitivas por parte dos militantes dos movimentos e lutas sociais da esquerda. São artigos que contextualizam de forma sucinta e até mesmo visionária o campo problemático em que se inserem nossas investigações, já que têm por volta de duas décadas.

Comecemos pelo artigo de Karam (1996, p. 79), em que esta analisa e critica o que nomeia de "esquerda punitiva", uma esquerda que traz a lógica punitiva para o campo das lutas por transformações sociais e políticas. Refazendo a trajetória da articulação entre a esquerda e o discurso criminalizador e punitivo, a autora assinala que, em um primeiro momento, a esquerda se justifica a partir da ideia de que é preciso combater a impunidade e estender a punição "a condutas tradicionalmente imunes à intervenção do sistema penal". No entanto, ela aponta que, se de início o combate se dá, sobretudo, através da atuação de movimentos populares (a exemplo dos movimentos feministas com as punições exemplares para agressores de mulheres e dos ecológicos combatendo via sistema penal atentados ao meio ambiente), "acaba por atingir os mais amplos setores da esquerda" (Karam, 1996, p. 79).

Inquieta à Karam (1996) que essa onda punitiva passa ao largo das tendências abolicionistas "que vieram desvendar o papel do sistema penal como um dos mais poderosos instrumentos de manutenção e reprodução da dominação e da exclusão" (p. 80). Ou seja: parece que ninguém atenta para o fato de que se está tentando combater a exclusão e promover transformação social através da utilização de sua própria lógica excludente e conservadora, ainda que com o argumento de que a novidade seria utilizá-la contra os representantes das classes dominantes, tradicionalmente imunes à atuação seletiva do sistema penal.

Assim, diz ela, essas reações parecem ignorar "o fato de que nenhuma reação punitiva (...) pode pôr fim à impunidade ou à criminalidade de qualquer natureza, até porque não é este seu objetivo" (Karam, 1996, p. 80), mas ao contrário, é justamente um mecanismo "eficaz de proteção dos interesses e valores dominantes de sociedades que supostamente deveriam ser transformadas" (1996, p. 80). Além disso, essa sanha punitiva cada vez mais aumenta o poder policial e, portanto, estimula a sua arbitrariedade. Isso gera uma outra versão do paradoxo: sempre que a polícia passa do limite, essa mesma esquerda reivindica punição ao policial.

Na mesma linha de questionamento, em seu artigo Direitos humanos e volúpia punitiva, Helena Singer (1998) também critica a disseminação do uso da criminalização e da punição na resolução dos casos de violação de direitos humanos. Essa "volúpia punitiva" no âmbito dos direitos humanos seria um paradoxo, pois, como alerta a autora, "os grupos organizados em torno da defesa dos direitos humanos são os primeiros a criticarem a prisão, -a forma generalizada e homogênea que assumiu a punição no Brasil" (Singer, 1998, p. 12). Aliás, diz Singer, é justamente por considerar a prisão "ineficaz, cara, desumana, degradante" (p. 12) que os militantes dos direitos humanos são chamados, muitas vezes, de "defensores de bandidos" (p. 12). Por isso, ela indaga: "Ora, se a prisão é tão nociva, por que se empenhar tanto em colocar racistas, sexistas, torturadores, linchadores, corruptos, poluidores, motoristas e pais negligentes na prisão?" (p. 12).

Esse questionamento de Singer coloca-se dentro de uma hipótese que é interessante mencionar. Segundo ela, "a luta pelos direitos humanos no Brasil dá-se de modo fundamentalmente isolado em relação à massa da população, que não se identifica com suas reivindicações" (Singer, 1998, p. 12). Precisamente por essa contradição básica, "o debate em torno dos valores de liberdade, felicidade e igualdade está se restringindo ao tema da penalização que é, fundamentalmente, conservador" (1998, p. 12). Isto posto, ela propõe que se analise esse fracasso não da perspectiva de quem recepciona o discurso dos direitos humanos, mas que façamos a crítica tomando como ponto de partida os produtores desse discurso, os "agentes da luta". Em relação ao discurso que parte dos "agentes da luta", Singer nos adverte de que "não chegam à população sob a forma de igualdade, felicidade e liberdade, mas sim de culpabilização, penalização e punição, integrando um movimento mundial de obsessão punitiva crescente" (1998, p. 12).

De fato, ambas autoras nos alertam para a presença dessa "volúpia punitiva" que vem acompanhando, inadvertidamente, os discursos e práticas das lutas por reconhecimento e direitos humanos. E, malgrado críticas como a das autoras, a tendência criminalizante que vem cada vez mais se intensificando e disseminando, como atestamos pela crescente criminalização, judicialização e polarização que vivemos nas lutas atuais, em nível nacional e global. A lógica punitiva se dissemina em uma escala tal que, como nos diz Cecília Coimbra, em um artigo de 2010, tem como efeito um aprisionamento a céu aberto, pois produz subjetividades punitivas: "Ou seja, nesta subjetividade moralista-policialesca-punitiva-paranoica, além da moralização que se apresenta através do julgamento, das prescrições, do clamor por mais leis, temos também a produção do policial em nós. As instituições e seus dispositivos de controle social funcionam tão bem que todos tornamo-nos vigias e polícias de todos e de tudo" (Coimbra, 2010, p. 184-185).

Destarte, inclusive nas lutas por reconhecimento e direitos humanos, estas subjetividades policialescas se disseminam, dispensando gradualmente a centralização do poder punitivo no aparato estatal e, ao mesmo tempo, aumentando seu poder de ação. Novamente, aponta-se para os efeitos dessa "volúpia punitiva" e para o quanto é necessária a sua crítica, principalmente quando a proposta é de transformação social.

O que observamos é que as lutas e os movimentos sociais que buscam a efetivação dos direitos humanos na atualidade estão em crescente judicialização, decorrente desta lógica que criminaliza as violações e as coloca no campo estatal, judiciário e policial. Vemos a cada dia novas leis sendo elaboradas e promulgadas para a proteção destas minorias, com o objetivo de assegurar a tais grupos, no sentido mais geral, o direito de existir, em suas singularidades e diferenças, no contexto do Estado Democrático de Direito. São conquistas no campo legal que buscam garantir uma distribuição equitativa das oportunidades, visando o equilíbrio entre a igualdade formal e a material.

Como já mencionado, a questão é que cada vez mais aparecem também propostas que relacionam a proteção, a defesa e a garantia de direitos ao campo penal, na forma de leis em que as principais medidas previstas têm como ponto central a punição aos violadores de direitos. Ou seja, observamos, nesse contexto, o fenômeno, abordado por Wacquant (2003), do crescimento do Estado penal em detrimento do Estado caritativo. De fato, o aumento das medidas voltadas à punição em caso de violações de direitos humanos acontece, no momento atual de nosso país, emparelhado com o enfraquecimento das políticas públicas voltadas à promoção de igualdade e de direitos.

Nessa conjuntura em que o discurso orientado pela lógica punitiva vem se disseminando e intensificando na pauta das lutas por reconhecimento, como se houvesse, além das reivindicações ligadas ao reconhecimento, o clamor pelo direito de punir. Como se aqueles que buscam o reconhecimento de seus direitos estivessem pleiteando o direito de punir, direito ligado àqueles que têm estado em posição de dominação por tanto tempo. É importante questionarmos até que ponto a presença desse discurso punitivo encobre o enfraquecimento das políticas ligadas à promoção e garantia de direitos. Além disso, há que se avaliar se tais medidas punitivas têm realmente tido o efeito de proteger as vítimas. Ao que sabemos, sem ações concomitantes de espectro mais amplo (ligadas à promoção de direitos e de igualdade), as punições aos agressores não vêm protegendo satisfatoriamente as vítimas. A tudo isso se soma o fato de que a presença cada vez mais intensa dessa lógica punitiva no campo das lutas por reconhecimento termina por ser entendida como contraditória no contexto mais geral da sociedade, conforme já mencionado.

Dessa maneira, podemos localizar essa discussão em pelo menos dois grandes âmbitos: em um deles, nos perguntamos sobre os efeitos da presença da lógica punitiva no campo das lutas por reconhecimento e sobre a relação entre a supracitada lógica e o enfraquecimento das políticas públicas de garantia de direitos e, em outro, buscamos compreender a própria lógica punitiva em seus aspectos ideológicos. Neste segundo âmbito, é importante indagarmo-nos como a lógica da punição se articula e se sustenta, nos perguntando acerca de seus argumentos e trabalhando no sentido de desmistificar ideais pré-concebidas e irrefletidas sobre a punição. Nas palavras de Louk Hulsman e Jaqueline Celis:

É preciso desafiar as ideias preconcebidas, repetidas abstratamente, sem qualquer reflexão pessoal e que mantém de pé os sistemas opressivos. Quando se veicula a imagem de um comportamento criminoso de natureza excepcional, muitas pessoas, no geral inteligentes e benevolentes, passam a acreditar que se justifica a adoção de medidas excepcionais contra as pessoas apanhadas pelo sistema penal. E, quando se imagina que se trata de colocar tais pessoas separadas das outras, para que fiquem impedidas de causar mal, passa-se a aceitar facilmente o próprio princípio do encarceramento, que as isola. Para encarar os verdadeiros problemas que, de fato, existem, urge desmistificar tais imagens (Hulsman & Celis, 1993, p. 43).

A partir das indagações desenvolvidas acima, cabe-nos perguntar se as lutas por reconhecimento poderiam passar para um outro modelo de proteção contra as violações. Em outras palavras, a pergunta seria: haveria outra saída para a luta por reconhecimento e garantia dos direitos ou sem coação não há solução? Será que poderíamos pensar em alternativas às penas, como dizia o filósofo da criminologia crítica, Alessandro Baratta (2014)? A reflexão acerca da punição e a busca por alternativas às práticas e ao discurso punitivos são o centro das preocupações do abolicionismo penal. Nesta linha da criminologia, intenciona-se refletir de forma fundamentada se é realmente necessária a punição tal como se dá em nossa sociedade. Não iremos aqui aprofundar na exposição do abolicionismo, mas vale apontar certas questões relacionadas a essa linha de pensamento no campo das lutas por reconhecimento.

Encontramos uma interessante e recente réplica à crítica à "esquerda punitiva" feita por Karam citada por Pandolfo e cols. (2012, p. 03-04) que os autores afirmam que "nenhum real abolicionista pode se autorizar a ingenuidade de imaginar que o abolicionismo é simplesmente a supressão do direito penal" e que a contradição entre o discurso transformador da esquerda e a lógica punitiva não seria "meramente uma contradição lógico-discursiva, e sim da própria realidade". Os autores argumentam que "não fomos nós que decidimos a aplicação seletiva da norma, mas a própria configuração material das relações de poder na nossa sociedade hierárquica brasileira" (Pandolfo e cols., 2012).

A réplica ao artigo de Karam coloca interessantes questões, na medida em que estes posicionamentos e suas justificativas contribuem para a reflexão acerca da ideologia da punição. Os autores entendem que ao criticar a "esquerda punitiva", Karam estaria sendo uma abolicionista ingênua e que o real abolicionista entende a função da punição nos casos em que os direitos de minorias são violados. Neste trabalho, não temos a pretensão de resolver, obviamente, quem é o verdadeiro abolicionista, mas a simples menção desta celeuma reforça a importância de compreender melhor a ideologia da punição, até mesmo para refletir sobre os movimentos que se colocam como opostos a ela, como é o caso do abolicionismo penal.

Os artigos de Singer e Karam já têm por volta de duas décadas. De lá para cá, vemos que a situação por elas exposta se acentuou bastante, em um cenário em que a criminalização da vida e a lógica jurídico-punitiva se reafirmam cotidianamente, nas relações intersubjetivas e políticas. Cada vez mais, o Estado media, a partir da esfera jurídica, os conflitos entre os sujeitos, ocasionando a diluição progressiva dos limites entre o público e o privado. Por outro lado, há um crescente e intrigante individualismo que se dissemina na privatização e na psicologização (com consequente medicalização) dos fracassos, méritos, enfermidades, ações criminosas etc, como se tudo proviesse de um sujeito essencial, apartado da sociedade. Parece, portanto, que não só a contradição ilustrada por Singer e Karam no milênio passado não se diluiu, como, ao contrário, se intensificou.

Concordamos com Coimbra (2010, p. 188), quando diz que a lógica punitiva produz subjetividades "moralistas-policialescas-punitivas-paranoicas" e nos torna cada vez mais "policiais" da vida alheia e dos outros, de forma que parece ser cada vez mais comum a reivindicação de que julgar (e condenar) é um direito de cada cidadão. O recrudescimento das polarizações e das lutas, os linchamentos morais e físicos, as crescentes denúncias de violência das minorias e o aparelhamento cada vez mais ostensivo da polícia como braço armado do Estado, com prerrogativas de assegurar a ordem seguindo a "lógica do inimigo", incitam a um cuidadoso olhar para as possibilidades de abrir linhas de fuga e traçar resistências que os discursos e as práticas em defesa dos direitos humanos têm. Isso porque esses discursos e práticas têm sido importantíssimas ferramentas nas lutas e movimentos sociais das minorias, viabilizando transformações sociais concretas com ensejo de bem viver e de conviver.

Outrossim, é importante avaliar como esses direitos são recepcionados pela sociedade e quais os entraves para sua efetivação para nos mostrar que somos mais livres do que pensamos (Foucault, 2006) e quem sabe abrir espaço a novas práticas e discursos que se configurem como outras e criativas formas de resistência. Sabemos que a liberação completa não existe, pois, como bem expõe Sousa Filho (2008, p. 13), a "liberdade é uma agonística", mas resistir é necessário. Por isso, apostamos que um exame cuidadoso da contradição entre a lógica punitiva e o discurso dos direitos humanos ajudará a identificar efeitos que, talvez, estejam enfraquecendo as próprias conquistas almejadas pelos que militam por estas causas. Além disso, tal análise talvez permita compreender melhor como esse discurso punitivo se relaciona à desarticulação das políticas públicas voltadas à promoção de direitos.

Embora haja muito material sobre as temáticas correlatas à questão problema, ela foi pouco abordada com esta configuração. Há estudos sobre a relação entre a biopolítica e os direitos humanos; há críticas à punição e propostas de abolicionismo penal e justiça restaurativa e há estudos sobre pena, reparação e perdão em casos de violação de direitos humanos no contexto das ditaduras. No entanto, sobre o uso da lógica punitiva nas lutas das minorias por direitos humanos, focando no clamor à punição do violador (um outro cidadão, não um Estado, não uma instituição), temos pouca produção. Destarte, é um campo a se aventurar.

Talvez uma das razões para que não encontremos muita produção nessa área seja o fato de que é um tema delicado de ser abordado no campo da militância. Aqueles que sofrem na pele as violações querem ver justiça e é difícil quebrar o paradigma de que esta se faz quando os agressores são punidos. Por outro lado, embora pontuemos aqui a necessidade de crítica, é inegável que essa lógica punitiva tem seus efeitos e que, no contexto das lutas, é uma importantíssima estratégia. Não se trata de condenar a lógica punitiva sumariamente e de advogar por sua extinção, mas sim de examiná-la com mais cuidado, pensar sobre ela e procurar entender como se situa no contexto de enfraquecimento das políticas públicas voltadas à promoção de igualdade e de direitos. Refletir sobre o nosso fazer é desnaturalizar a realidade e abrir-nos para novas configurações, o que é sempre necessário, embora desafiador, para as práticas que se colocam como transformadoras da sociedade.

 

Referências

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Recebido em: 2016-11-30
Aprovado em: 2017-03-21

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