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Revista Psicologia Política

versão impressa ISSN 1519-549Xversão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.17 no.38 São Paulo jan./abr. 2017

 

ARTIGOS

 

"Será que ele vai me chamar de mãe?": Maternidade e separação na cadeia

 

"He will call me mother?": Maternity and separation in the chain

 

"¿Se me llaman madre?": Maternidad y separación en la cárcel

 

Est-ce qu'il va m'appeler maman?: Maternité et séparation en prison

 

 

Lázaro BatistaI; Ana Jéssica Lima LoureiroII

IDoutorando em Psicologia (Estudos da Subjetividade) pela Universidade Federal Fluminense, mestre em Psicologia Social. Docente do curso de Psicologia da Universidade Federal de Roraima. lazaro.batista@ufrr.br
IIPsicóloga, graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Roraima. ajlimaloureiro@gmail.com

 

 


RESUMO

Esse estudo teve por objetivo conhecer as experiências de mães aprisionadas que passaram pelo processo de separação dos filhos nascidos em ambiente prisional no estado de Roraima, Extremo Norte do Brasil. Considerando esse contexto carcerário, foram realizadas entrevistas em profundidade com duas mulheres atualmente reclusas. Os resultados, agrupados em torno de categorias analíticas, indicam a dissonância entre um ideal de maternidade socialmente imposto e as dificuldades cotidianas de exercerem as práticas maternas ou acompanhar o desenvolvimento da criança tal como desejavam, dado o contexto de reclusão. Nesse sentido, constatou-se que a experiência da maternidade passa a ser experimentada por elas com sofrimento e frustração, em virtude da separação e da subsequente impossibilidade de acompanhar o crescimento dos filhos. Além disso, pontua-se também como o cotidiano da prisão implica na quase ausência de visitas ou de contato com os filhos e outros familiares e algumas das repercussões psicossociais disso decorrentes. Por fim, ressalta-se a necessidade de assunção de mudanças na atual política prisional brasileira, de modo que estas e outras mulheres em situação semelhante tenham, minimamente, seus direitos assegurados.

Palavras-chave: Mães aprisionadas; prisão; Maternalidade.


ABSTRACT

This study aimed to know the experiences of imprisoned mothers had to be separated from children born in prison in the state of Roraima, Extreme North of Brazil. Two women participated in the study through semi-structured interviews. The results, grouped into categories of analysis, indicate the dissonance between a socially imposed ideal of motherhood and the daily difficulties of exercising maternal practices or accompanying the development of children, due to the context of imprisonment. It was found that the experience of motherhood comes to be experienced with suffering and frustration, due to the separation and subsequent impossibility of following the growth of the children. It was also noticed that the daily imprisonment implies the almost absence of visits or contact with the children and other relatives and some of the resulting psychosocial repercussions. Finally, we affirm the need to take changes in the current Brazilian prison policy, so that these and other women in a similar situation have, in a minimum, their rights assured.

Keywords: imprisoned mothers; prison; motherliness


RESUMEN

Se trata de un estudio que busca conocer las experiencias de madres encarceladas que han pasado por el proceso de separación de los niños nacidos en el entorno de la prisión en el contexto de Roraima, Brasil. Dos mujeres participaron en el estudio a través de entrevistas semi-estructuradas en profundidad. Los resultados Indican la disonancia entre un ideal de maternidad impuesto socialmente y las dificultades cotidianas de ejercer las prácticas maternas o acompañar el desarrollo de los niños, por el contexto de la prisión. Se encontró que la experiencia de la maternidad viene a ser experimentada con sufrimiento y frustración, debido a la separación y posterior imposibilidad de seguir el crecimiento de los niños. También se observó que el encarcelamiento diario implica la casi ausencia de visitas o contacto con los niños y otros familiares y algunas de las repercusiones psicosociales resultantes. Por último, afirmamos la necesidad de introducir cambios en la actual política carcelaria brasileña, para que estas y otras mujeres en una situación similar tengan, como mínimo, sus derechos asegurados.

Palabras clave: madre detenido; prisión; Maternal


RÉSUMÉ

Cette étude a eu pour objectif de connaître les expériences de mères emprisonnées qui sont passées par le processus de séparation avec leurs enfants nés en milieu carcéral dans l'Etat de Roraima, à l'extrême Nord du Brésil. Dans cet environnement carcéral, des entretiens ont été réalisés de manière approfondie avec deux femmes purgeant actuellement leur peine. Les résultats, regroupés dans plusieurs catégories analytiques, indiquent de la dissonance entre un idéal de maternité socialement imposé et les difficultés quotidiennes rencontrées d'exercer certaines pratiques maternelles ou d'ac-compagner le développement de l'enfant tel qu'elles le désireraient, dû au contexte de réclusion. En ce sens, il a été constaté que l'expérience de maternité est vécue par ces mères comme un moment de souffrance et de frustration, du fait de la séparation et est la conséquence directe de l'impossibilité d'accompagner le développement des enfants. De plus, il faut souligner que le quotidien en prison implique la quasi absence de visites ou de contact avec les enfants ou d'autres membres de la famille et certaines répercussions psychosociales vont découler de cette situation. Enfin, il est important de noter la nécessité de changements dans l'actuelle politique carcérale brésilienne, de sorte que les enquêtées et d'autres femmes vivant cette même expérience de vie aient, au minimum, leurs droits sauvegardés.

Mots-clés: Mères emprisonnées; prison; Maternité.


 

 

Introdução

De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (2014), a população carcerária no Brasil é de 607.731 pessoas. Destas, 1610 são dententos em Roraima, estado com a menor população carcerária, em termos absolutos, do país. Dentre eles, 141 são mulheres, reclusas na única unidade de detenção, a Cadeia Pública Feminina de Boa Vista, capital do estado. É sobre um pequeno estrato desse montante que o presente estudo pretende se lançar: mulheres, detentas, que foram mães durante o período em que estavam/estão reclusas nas Cadeia Feminina do estado. Antes que o façamos, todavia, torna-se crucial mencionar o entendimento dado a alguns dos matizes que este trabalho persegue.

O primeiro deles, o de definir a prisão como uma instituição total (Goffman, 2010), com fins à "privação de liberdade" (Foucault, 2010). Como tal, as prisões ou ambientes prisionais, se notabilizam por objetivar a punição, a disciplina e garantia de manutenção da segurança (Foucault, 2000a, 2010), ao tempo em que se caracterizam por sua rotina institucionalizada e massificada, e por ser muitas se constituírem como locais de residência e trabalho (Goffman, 2010; Hildenbrand, Faceira & Sant'anna, 2014).

Também considera-se aqui o atual cenário do sistema carcerário brasileiro, com estabelecimentos superlotados, com administração comprometida pela corrupção e falta de investimentos. Acrescenta-se ainda que tanto a equipe de funcionários quanto a população carcerária sofrem efeitos do modelo prisional usualmente ineficaz, estigmatizador e facilitador da aprendizagem da criminalidade, servindo como ponto de encontro da cultura da delinquência (Nascimento, 2009).

Esse cenário é comum ao panorama prisional, não se diferenciando nas prisões femininas, apesar de suas especificidades. Em relação a essas, Lopes (2009) aponta a quase inexistência de trabalhos que contenham a história das prisões de uma perspectiva de gênero. Essa escassez de material teórico que traga a discussão sobre o universo feminino e seus desdobramentos apontaria para um distanciamento político histórico das causas femininas e sua problemática apontadas na literatura (Macedo, 2002; Lopes, 2004; Cejil, 2007).

A partir disso, esse estudo pretendeu lançar o questionamento a respeito de como se experimenta ser mãe em um contexto que exige a separação entre mãe e o filho nascido em ambiente prisional. Recorre-se, nesse sentido, a fragmentos narrativos de mães aprisionadas que passaram pelo processo de separação dos filhos após período de amamentação garantido por lei.

 

Mulheres, maternidade e prisão: breves anotações

Se nos lançarmos num breve esforço genealógico (Foucault, 2000b) a respeito da assunção de representações sobre a mulher, certamente nos depararíamos com uma crônica de desigualdades que remonta o surgimento das civilizações. Desde lá, o discurso, mascarado ou exposto, sobre a inferioridade das mulheres ampara-se na explicação quanto à sua "natureza" que demanda tutela. É assim que, como aponta Lopes (2004), entre os séculos IV e XV, eram tolhidas juridicamente, salvo se a causa fosse-lhes de direito individual, eram ainda proibidas ao ofício religioso e restritas ao ambiente e afazeres domésticos.

Por vezes aparecem aos cuidados do homem mais próximo, pai, marido ou um parente. O poder da mulher assemelha-se nesta época aos direitos que um de seus filhos possuia. Os matrimônios eram estrategicamente organizados ao sustento das relações sociais, principalmente pelas alianças políticas entre os aristocratas. Novamente, era levada como um ser passivo de um senhor ao outro, entregue do pai ao esposo (Macedo, 2002). A obediência e submissão eram características apreciadas em sociedades que idealizavam aquelas sempre prontas ao trabalho doméstico, ao contato sexual, parir e criar filhos.

Para essa idealização também contribui a construção do estereótipo da figura de mãe imaculada, o qual relaciona a mulher a uma condição de "sexo frágil", quando comparada aos homens (Stella, 2009). Nessa sua condição, ela se caracteriza pela forte expressividade de sentimentos, em oposição à "natureza" mais racional masculina. Assim, a elas era aceitável somente a exacerbação do sentimento de amor incondicional pelo filho, devendo-lhe a devoção dos cuidados e inteira atenção. O grande expoente de mãe imaculada da literatura religiosa seria a Virgem Maria: sua aparição histórica vem como forma redentora da figura de Eva, a pecadora que seduz o homem ao erro. As duas figuras, Maria e Eva apresentariam-se como duas tendências opostas de juízos relativos à natureza feminina. Eva, por sua vez, era vista por alguns teólogos não como feita à imagem e semelhança de Deus mas uma mera projeção da criação divina (Macedo, 2002).

Visto alguns dos padrões sociais de conduta de extrema restrição, certamente apareceram aquelas que não se encaixavam nesse modelo. Viafore (2005) aponta que os primeiros sinais de punição a criminalidade feminina datam do século XI, quando eram conhecidos tipos específicos de delinquência nesta população. Dentre os atos destacam-se punições a bruxaria e prostituição (Santa Rita, 2006; Viafore, 2005).

O mesmo vale para os relatos que apontam para a história da mulher no cárcere, datados entre os séculos XVIII e a primeira metade do século XIX, na Itália e Espanha. Nestes, o ideário burguês em torno do feminino se transveste em práticas de repressão, com o internamento de mulheres objetivando salvaguardar a honra, de forma a controlar seus corpos e sexualidade, numa tentativa de controle de delitos na esfera sexual. Ou seja, a mulher é presa porque desvia daquilo que, socialmente, dela se espera. Os castigos a ela dirigidos refletiam não somente o pagamento pela transgressão das regras, mas por ser mulher e ainda infringir os moldes de passividade a elas relacionado (Macedo, 2002; Helpes, 2013). Nesse sentido, "a mulher criminosa é duplamente discriminada, por ser mulher e por ter rompido com o modelo inferiorizado que a sociedade impõe" (Lopes, 2009, p.306).

Pois bem, dada essa concepção da agressividade como atributo dos homens ou como caracterítica masculina., as prisões foram pensadas por eles e para eles. Cabendo às mulheres, inicialmente, conviverem com os homens no espaço prisional. Não tardou na história do Ocidente para que surgissem espaços de confinamento específicos. Assim, a partir do final do século XVIII e XIX, seu aprisionamento passa a ser respaldado também em critérios científicos que apontam a necessidade de encarceramento feminino.

Conforme apontado por Lopes (2004), ainda que cientificamente respaldadas, essas primeiras apreensões apresentavam-se, via de regra, muito mais relacionadas a uma caráter expiatório moral do feminino, o qual toma o aprisionamento como castigo ou sanção contra comportamentos femininos socialmente inaceitaveis para a época (Lopes, 2004). Na esteira disso, Helpes (2013) observa ainda que, no Brasil, a prisão de mulheres guarda relação com essas mesmas práticas moralizantes do feminino, com especial atenção à prostituição. Dentro do projeto de modernização, vigoroso a partir da substituição da Monarquia pela República, surgem as perseguições contra alguns grupos tidos como nocivos à sociedade. Dentre eles, as prostitutas. O ato de prostituir-se nunca foi considerado crime, mas, a partir de então, aquelas pegas em tais práticas, passam a serem presas por "vadiagem". Razões para tanto: Para a sociedade brasileira do século XX, as prostitutas eram aquelas que não cumpriam seus deveres de mulher, de esposa na satisfação sexual do marido e genitora de filhos. Nesse sentido, Helpes (2013) e Viafore (2005) apontam que essas mulheres eram incompatíveis com o modelo feminino ideal, sendo vistas como as piores criminosas, embora não necessariamente tendo cometido crime.

Atualmente, a realidade carcerária feminina não foge ao modelo inicial, no que se refere a invisibilidade desta população ou mesmo reprodução de suas finalidades históricas. Assim, de uma forma geral, o sentido da pena continua sendo o encarceramento dos pobres e a reprodução do domínio masculino. Afinal, como aponta Lopes (2009), considerando a histórica associação entre humano e masculino, fortemente presente em nossa sociedade há séculos, "o que mais se sabe sobre as prisões foi registrado por estudiosos desse sexo, mas se as prisões foram durante muito tempo 'lugares de homens', isso talvez não cause surpresa" (p. 298).

Nesse sentido, segundo relatório produzido no Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional (Cejil, 2007), o menor número de mulheres presas se comparadas aos homens pode explicar parte da desatenção política a que estas estão submetidas. Porém, essa condição de invisibilidade apresenta-se primordialmente como sintoma e marca da desigualdade de gênero a qual as mulheres estão sujeitas na sociedade brasileira.

Uma desigualdade que encontra ressonância, inclusive, na forma como familiares e conhecidos lidam com as mulheres apenadas. Segundo aponta estudo do Ministério da Justiça realizado em 2008, apenas 37,94% das apenadas recebiam visitas. (DEPEN, 2008). Esse percentual é ainda menor quando se consideram apenas aquelas que recebem visitas íntimas: apenas 9,68%. Percebe-se, pelos números oficiais, que quando quem está atrás das grades é uma mulher as relações entre ela e o companheiro ou a relação familiar sofrem abalos drásticos. Algo que, segundo Ferrari (2010), não ocorre com a mesma incidência no cenário de confinamento masculino.

Desse modo, embora o direito à visita íntima para as mulheres seja garantido desde 2001, após 17 anos desse direito ser garantido aos homens, o que se percebe é que a maioria dos presídios não lhes garantem esse tipo de visita (Ferrari, 2010). Algo semelhante ao afirmado por Santa Rita (2006), para quem a privação sexual tem sido imposta às mulheres de maneira mais inflexível que para os homens; e Armelin (2010), que em estudo concluiu que (43%) de sua população amostral não recebem qualquer tipo de visita - fato que seria explicável, segundo aponta a autora, pela distância entre a unidade prisional em que se encontram e o domicílio familiar.

Segundo levantamento do Departamento Penitenciário Nacional - DEPEN (2014) a proporção nacional de visitas por pessoa presa é de 1,6 por mês, o que equivale a menos de 2 visitas ao mês. O cenário roraimense revela um dado abaixo desta proporção, a população prisional não chega a receber uma visita por mês. Apenas um dos cinco estabelecimentos prisionais do estado possui local específico para visitação e para visita íntima.

Como mencionado, sobre as instalações prisionais no Brasil, de acordo com Lopes (2009), são poucas aquelas construídas especialmente para mulheres. Muitos espaços atualmente ocupados por elas surgiram de adaptações em prédios destinados a outros fins. Dentre as peculiaridades das prisões femininas está a necessidade de infraestrutura física e recursos para a acolhida de mulheres gestantes e com filhos pequenos, obrigatoriamente no período de amamentação. Também aptos à assistência da criança desamparada, garantindo às mães presas e filhos os mesmos direitos que a população não presa. Esses direitos são previstos pela Constituição Federal (BRASIL, 1988), bem noutros documentos ou convenções, dentre os quais destacamos as Regras de Bangkok (Brasil, 2016).

No caso da Lei de Execução Penal, a Lei nº 11.942/2009 deu a ela uma nova redação, assegurando às mães presas e aos recém-nascidos condições mínimas de assistência. No Art. 83 da referida Lei de 1984, passou a vigorar o § 2o sobre a obrigatoriedade de berçário em estabelecimentos penais, onde as condenadas possam cuidar de seus filhos, e amamentá-los, no mínimo até seis meses de idade. Já em seu Art. 89, originalmente, a Lei n° 7.210 previa que a penitenciária feminina poderia ser dotada de seção para gestante e parturiente e de creche com a finalidade de assistir ao menor desamparado cuja responsável estivesse presa. A alteração realizada modifica tal artigo - os termos mudaram para "será dotada de seção e creche", de modo a assegurar a obrigatoriedade de local nas penitenciárias femininas apropriado para gestantes e crianças menores de 7 anos, com finalidade de assistir a criança desamparada.

Não há registros sobre o quantitativo de instituições prisionais dotadas dessa estrutura, embora a literatura demonstre a inefetividade legislativa quanto a esse aspecto. Indicativo disso, por exemplo, é um dos resultados do estudo feito por Santa Rita (2006), no qual aparece a falta de espaço físico adequado como maior sob justificativa dos filhos não permanecerem com suas mães em unidades prisionais.

Essa mesma realidade é descrita no relatório Mulheres encarceradas. Diagnóstico Nacional produzido pelo Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça, no ano de 2008. Nele, constata-se que apenas 19,61% dos estabelecimentos penais femininos possuem berçários ou estruturas separadas das galerias prisionais. Além disso, aponta o estudo, não há concordância entre o período máximo em que as crianças podem permanecer com as mães nas prisões. Cada Unidade Federativa tem seu regulamento quanto a essa questão. Na maioria das instituições as crianças ficam até os seis meses (58,09%), em locais improvisados para o atendimento infantil (51,61%) e convivendo com suas mães nas celas (47,24%).

Por fim, sob o ponto de vista da Psicologia, vale mencionar, a forma com que mães experenciam o evento separatório é debatido em alguns poucos trabalhos. Aqui, recorre-se preferencialmente às ideias de Winnicott (2005), autor para o qual a questão do vínculo mâe-bebê é categoria analítica substancial. Ao descrever as implicações da separação entre pais e crianças no período de guerra, esse autor postula que nada pode suprir para os pais a perda de contato com um filho pequeno e a responsabilidade pelo desenvolvimento físico e intelectual deste. As crianças passam por mudanças rapidamente, de maneira que, ao reencontrarem seus pais após meses ou anos de separação, certamente terão deixado de ser aqueles de antes.

Dessa maneira, afirma ele, quando retornam à convivência, mães e filhos precisam de um certo tempo para reajustar seu íntimo. Primeiro porque, de fato, os filhos mudaram. Tiveram experiências sem a mediação da mãe e estão cronologicamente mais velhos. O mesmo se aplica à mãe, já que ela também nutriu "os mais diversos pensamentos sobre os filhos enquanto estiveram fora, e precisa conviver com eles por algum tempo para poder voltar a conhecê-los como realmente são agora" (Winnicott, 2005, p.38).

Mesmo considerando tais postulados, ressalta-se que o número reduzido de pesquisas com esse interesse alerta para a necessidade de mais esforços em estudar e descrever como vivenciam e o que sentem as mulheres separadas de suas crianças.

 

Sobre o método

Esta é uma pesquisa de cunho qualitativa e do tipo exploratória (Richardson, 2012; Bauer & Gaskell, 2010). Dentro de seu delineamento, pretendeu investigar junto a mulheres detentas do Sistema Carcerário da cidade de Boa Vista como estas experimentaram e vivenciaram a maternidade nessa sua condição de reclusão. Para isso, procedeu-se a visitas formais e informais à Instituição e posterior aplicação de uma entrevista semiestruturada em profundidade (Duarte, 2005) junto a duas mulheres, participantes de pesquisa.

A primeira das visitas à Cadeia Pública Feminina de Boa Vista deu-se no dia 10 de setembro de 2014, no período da manhã, e objetivou conhecer o ambiente, bem como verificar as possibilidades e caminhos legais para a execução da pesquisa. A essa segui-se uma segunda visita, na manhã de 23 de setembro de 2014. Na oportunidade, foi possível conversar com algumas detentas, corroborando com o interesse em estudar sobre a separação entre estas e seus filhos. Em particular, a separação na população carcerária tornou-se foco deste estudo por ser um evento obrigatório vivenciado pelas mães, visto o regime disciplinar em que estas mulheres se encontram.

Quanto à fase de realização das entrevistas, estas ocorreram em março de 2015, em sala apropriada e cedida pela administração da Cadeia Pública Feminina, partindo-se de um roteiro previamente estabelecido, constando de perguntas acerca de: o que é ser mãe; experiências de ser mãe na prisão; vivências gestacionais; sentimentos envolvidos na separação; vivências atuais desta separação e rede de acolhimento à criança. Além destas, havia a possibilidade de outras, considerando o caráter semi-estruturado da entrevista.

Quanto à análise, foi realizada a partir de procedimentos de categorização, conforme proposto por Bardin (2011), partindo do agrupamento de conjuntos de comunicações semelhantes entre si. Desta feita, optamos pela categorização das falas das mulheres, agrupando seu conteúdo em sentidos comuns existentes entre as comunicações.

As participantes da pesquisa são mulheres/mães aprisionadas que passaram pelas vivências de separação de seus filhos após o período de amamentação de seis meses, garantidos pela Lei de Execuções Penais (Brasil, 1984).

Embora a autorização para execução da pesquisa na instituição prisional tenha sido concedida, a efetivação da pesquisa foi principalmente alicerçada no consentimento das participantes. Nesse sentido, antes da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido estas foram orientadas da não obrigatoriedade de participação apesar da autorização prévia da instituição.

 

Resultados e discussão

Nesse estudo constatou-se que as vivências maternas quanto à separação dos filhos contém aspectos e nuances interrelacionais complexos. Não descartada a impossibilidade de entendimento dissociado dessas vivências, a fim de tornar mais didática a exposição dos resultados dessa pesquisa, assim como a necessária articulação deles com o marco teórico que a sustenta, são apresentadas a seguir duas grandes categorias levantadas a partir das entrevistas das participantes1. São elas:

 

"Ser mãe": idealizações, experiências e vivências

Nesta categoria, entende-se o ser mãe como a representação que as entrevistadas têm sobre a condição materna em geral e de como essa representação convive com a sua vivência efetiva da maternidade. Desta forma, a maternidade é significada pelas entrevistadas como uma "bênção divina", ganha-se a condição de superioridade frente à sociedade, tal como podemos encontrar em Lopes (2004). Por outro lado, tal representação parte da ideia de que a efetivação dessa maternidade como dádiva dá-se na continuidade dos cuidados ao longo do tempo, bem como pela possibilidade de proteger e/ou transmitir confiança ao filho.

Por outro lado, uma das mulheres entrevistadas postula duas nuances da maternidade. A primeira delas, como sendo a possibilidade de participação ou acompanhamento do processo de desenvolvimento vital da criança. Nessa, a maternidade é significada como presença física, como estar perto. Já a segunda, se depreende da anterior, se ser mãe é estar perto, é também estabelecer com a criança, a partir dessa proximidade, uma relação de confiança ou de referenciamento afetivo. Assim, nessa acepção, o "ser mãe" aparece atrelado à responsabilidade de ensinar e proteger os filhos. Logo, ser mãe, embora sentida como dádiva também: "...ser mãe num é só ser mãe. É poder participar, ver o crescimento do nosso filho. O desenvolvimento, né?[...] ser mãe pra mim é poder passar pros nossos filhos que eles podem confiar na gente, que a gente pode proteger eles". (Alessandra, 2015)

Essa dualidade entre uma concepção de mãe como dádiva e, ao mesmo tempo, como presença e participação repercute nas vivências maternas das participantes. Assim, embora suas idealizações remetam o ser mãe a uma experiência maravilhosa e bênção divina que é capaz de trazer àquela com tal capacidade a uma posição de destaque frente à sociedade, suas experiências são tolhidas pelo cenário de encarceramento, impossibilitando as vivências desses ideais maternos. Dessa forma, a dissonância entre aquilo que acreditam ser mãe e sua experiência prática passa a ser experimentada por elas com sofrimento e frustração, exatamente pela impossibilidade de acompanhar o crescimento e oferecer os cuidados aos filhos. Utilizando recortes das entrevistas podemos pontuar que ser mãe é uma "coisa maravilhosa", mas ser mãe no presídio é "complicado e difícil". Entretanto ser mãe na prisão, em meio a demasiada dificuldade, faz com que uma das entrevistadas valorize mais a maternidade. Tal constatação foi semelhantemente encontrada por Lopes (2004) em sua pesquisa com mães presas.

Nesse contexto, ambas parecem relacionar a maternidade às representações tradicionais do papel feminino. Isso encontra respaldo no exposto por Stella (2009), quando esta autora se refere à presença de um ideal de mãe imaculada que deve prestar todos os cuidados aos filhos, abnegando-se em favor do outro. Ou ainda a figura de Maria, tão cara ao Cristianismo, como a mulher que gerou algo esplendoroso - O Redentor, a ponto mesmo de ser consagrada pelo seu exercício de maternidade. Tomando o mesmo exemplo, Lopes (2004) discorre sobre Maria na cultura ocidental como a mãe exemplar que fez da maternidade uma condição sublime e divina, além de um evento capaz de elevar a mulher acima da imperfeição humana.

Por outro lado, a não possibilidade de realização desse ideal para as entrevistadas remete também àquilo que Vásquez (2014) exprime: "o caráter moralizante, através do discurso de maternidade idealizada no campo religioso, como uma maternidade inatingível em que a figura feminina é obrigada a desempenhar bem seu maior papel: ser uma boa mãe. E não porque necessite disto mas para "diminuir a 'culpa' da luxuria do ato sexual" (Vásquez, 2014, p. 170).

Para as duas, serem presas em estado gravídico apresentou-se como um fato inesperado que acabou frustrando suas expectativas frente aos rituais de nascimento e acolhimento idealizados. Na seguinte fala de Alessandra podemos perceber que ela não planejava ter a filha em ambiente prisional. "Eu jamais pensaria que eu viesse parar aqui. Ter minha filha dentro de um presídio, né? Aí pra mim isso se torna difícil porque eu esperei tanto pra mim ter ela lá fora e vim ter ela dentro de uma cadeia. Eu achei muito...muito ruim mesmo." (Alessandra, 2015 )

Nesse mesmo sentido, Vanessa fala sobre suas expectativas frente a acolhida ao bebê e que a prisão impossibilitou, assim pontua: "Ter aquele momento prazeroso, aquele momento carinhoso de ir numa loja, comprar umas roupinhas de bebê e vê e tirar foto e d'êu curtir aquele momento que é muito gostoso... e hoje não. Hoje a minha vida é aqui. Fui presa." (Vanessa, 2015)

Nesse contexto resgatamos o papel da mãe descrito por Stella (2009) como a principal guardiã dos filhos, aquela que primeiro deve-lhe a devoção dos cuidados. Tal papel de cunho imaculado certamente não combinaria com o ambiente construidamente masculino das cadeias (Lopes, 2004). Tais construtos sociais e historicamente explicáveis refletem a forma pela qual essas mulheres vivem a maternidade no cárcere.

Quando encontramos nas falas das entrevistadas que estas gostariam de acompanhar o desenvolvimento dos filhos, podemos pensar nesse modelo de mãe guardiã descrito por Stella (2009). É necessário salientar que ao confrontarmos o que elas acreditam ser o papel materno e aquele papel que elas efetivamente desempenham encontramos um grande abismo entre a expectativa e a realidade. No discurso encontramos a mãe como aquela que dispõe os cuidados, acompanhando suas mudanças desenvolvimentais, doadora de proteção e segurança. Contudo, na prisão, essa idealização cede espaço a uma experiência de incerteza frente ao estado atual das crianças, no que tange tanto ao filho nascido em ambiente prisional quanto aqueles gerados em liberdade. Ou seja, reconhece-se uma disparidade entre o que se espera de uma mãe e o que as entrevistadas podem oferecer aos seus filhos, dado seu aprisionamento.

Essa maternalidade real foi percebida em momentos separados em Alessandra ao mencionar sua relação com a criança nascida em ambiente prisional e seus outros filhos, residentes noutro estado. Mencionando sua relação com a filha nascida na prisão, ela diz que seu contato ocorre unicamente no momento da visita. O mesmo impedimento se verifica na relação com seus outros filhos, como podemos perceber na fala a seguir.

Não tem como se comunicar... a minha família, às vezes que meu irmão vem me visitar aí que eu sei alguma coisa deles [...] Às vezes ela (ex sogra) liga pra minha mãe, minha mãe fala com ela aí manda perguntar como é que tá meus outros filhos, né? Aí ela fala pra mim. Só através dela a comunicação. Só através dela ou do meu irmão. Tirando isso não tem como. (Alessandra, 2015 )

Esse escasso contato entre presas e familiares parece comum ao cenário nacional, conforme apontam alguns dos estudos (Armelin, 2010; Ferrari, 2010). Tal assertiva encontra fundamento, especialmente no estudo "Mulheres encarceradas. Diagnóstico Nacional" (DEPEN, 2008), o qual aponta para a disparidade entre o número de visitas recebidas pelo público feminino, em comparação ao masculino. Tais fragmentos de entrevista, em consonância com o apontado pelo referencial, elucidam e corroboram o afirmado por Santa Rita (2006), para quem, no contexto carcerário, a privação sexual tem sido imposta às mulheres de maneira mais inflexível que para os homens.

Como apontado por uma das entrevistadas, essa falta de visitas não se dá apenas pela ausência do companheiro, mas a família e filhos são diretamente atingidos pelas barreiras carcerárias. Basta que recordemos aqui os números levantados por Armelin (2010), quando esta se refere ao fato de menos da metade das mães presas recebem qualquer tipo de visita. Conforme argumenta a autora, e pode-se constatar nas entrevistas realizadas, esse relativo abandono encontra motivações pessoais, mas também se explica na dificuldade de locomoção até a unidade prisional. Seja pela distância desta até o domicílio familiar, como aponta a autora, seja pelo dispêndio financeiro que isso acarretaria para as famílias.

De uma ou de outra maneira, o que se constata é que essa realidade muitas vezes apresenta o gradativo abandono pelo qual essas mulheres passam, um verdadeiro desfacelamento de sua relação familiar e entre mãe e filhos.

Nesse sentido, parece fundamental retomar aqui as considerações feitas por Lopes (2004), para quem a ausência de programas de incentivo e sustentação das visitas de familiares às presas denuncia o descaso com essas mulheres e fortalece a ideia retrógrada de que elas são desqualificadas para a maternalidade, logo não merecedoras de atenção.

Como se vê, a situação de cárcere traz consigo implicações fortes ao relacionamento das entrevistadas e seus filhos. O fato de não vê-los diariamente e participar das atividades e desenvolvimento das crianças é vivenciado com pesar pelas mães, que se sentem às margens das vidas dos filhos, aonde sua experenciação permite a autodefinição de estranhas à eles.

 

Separação entre mães e filhos: sentimentos e ressignificações

Nesta categoria estão reunidas as lembranças que as mulheres têm de como se sentiram no dia ou próximo ao dia da separação, assim como seus relatos de como sentem-se atualmente em relação a isso. De modo geral, foram verbalizados sentimentos como dor, sofrimento, impotência e tristeza. Tal acontecimento foi vivenciado por essas mães como um evento difícil e que interrompeu a relação contínua que estas experenciavam com seus filhos, seja no ventre ou até os seis meses de vida.

Afora essa percepção geral de sofrimento, duas especificidades devem ser mencionadas nessa categoria. Primeira delas, a de que essa percepção de sofrimento aparece relacionada para uma das mães ao fato de a criança ser sua única companhia na prisão. Nesse contexto, além de interromper a rotina de convívio entre mãe e filha - algo experimentado como doloroso para ambos, a ausência da criança também produz sofrimento por remeter a um contexto de solidão para a mulher.

O segundo aspecto, sugere-se, na esteira do afirmado por Lopes (2004) que a dor de despedir-se das crianças é compartilhada pelas mulheres que apresentam baixa sociabilidade e espírito mútuo, caracteristicos das relações em ambientes prisionais. Ou seja, esse sentimento de tristeza aparece como sendo experimentado de forma mútua, sendo ora compartilhado entre ela e o filho, ora entre ela e as demais detentas, mesmo aquelas que não passaram pela experiência da maternidade, conforme fragmento a seguir: "No dia que ele foi embora daqui eu morria de chorar. Quando chegava o dia dele ir embora chorava muito. E ele ficava triste, sabe? Com o semblante agitado. [...] Pra todas as que são mães, até pras que não são mães é uma dor." (Vanessa, 2015)

Além disso, a separação não foi vivenciada com tristeza apenas no momento em que se efetivou, mas até hoje continua influenciando as vivências dessas mulheres. Assim, elas passam a expor em seus discursos a impossibilidade de viver a maternidade em plenitude, como significavam no momento da gravidez e apresentam-se emocionalmente afetadas por essa impossibilidade. Tais constatações sustentam-se nas seguintes falas: "Assim, é complicado porque eu poderia tá lá fora convivendo com ela. [...] Isso é difícil óh porque... tem nem como explicar porque é difícil, muito difícil mesmo." (Alessandra, 2015). "A minha separação dele assim dói mais porque eu num tô. [...] E eu tô aqui só... vivendo de lembranças do que ficou e ele não tá aqui comigo." (Vanessa, 2015)

Entende-se que o evento de separação deu-se de forma diferente para as duas entrevistadas. Alessandra explica que lhe foi concedida a possibilidade de permanecer com sua filha por um período maior, visto que sua família morava em outro estado. Tal oferta foi recusada por ela por julgar a cadeia como um ambiente impróprio para o crescimento de sua filha, optando por deixá-la aos cuidados da ex-sogra residente em Roraima. Por sua vez, Vanessa relata sua impotência frente ao cumprimento das regras impostas. Conhecendo isso, percebemos que a primeira mãe separa-se aos seis meses da criança, pois não suporta ver a filha mesmo que em sua companhia em um ambiente que não lhe agrada. Já a segunda, parece dilacerada com a separação de forma que deixa manifesto seu desejo de permanecer com a criança, independente do ambiente em que se encontra.

Essa carga de sofrimento também se atualiza nas visitas mensais. Para elas, o baixo número desses encontros torna-se insuficiente para que os laços com os filhos ganhem forças. Tal momento apresenta-se, ainda, como uma ambiguidade de sentimentos: a felicidade de ver o filho versus a tristeza de ter que deixá-lo novamente (Lopes, 2004). Parece que as visitas são vivenciadas como repetidas separações que servem para evocar os sentimentos ruins vividos no dia em que as crianças partiram da cadeia.

Nesta situação, confrontamos o modelo materno clássico de proteção e cuidados que se dão na presença e no acolhimento, ao modelo idealizado de proteção mas, agora através da renúncia de permanecer com a bebê. Tais achados concordam com o trabalho de Gomes, Uziel e Lomba (2010) em relação às diferenciadas formas das mães presas vivenciarem a separação. Os autores apontam que algumas mães escolhem o não investimento em um vínculo afetivo mais duradouro com seus bebês por não aprovarem o ambiente como promotor de saúde para os filhos. Tal conclusão destas pesquisadoras ganha respaldo na decisão de Alessandra ao entregar sua filha.

Drasticamente a situação de encarceramento e consequente distância do filho é relatada por uma das entrevistadas através de uma pergunta: "Será que ele vai me chamar de mãe?" Essa incerteza diante do futuro reflete as preocupações relatadas em alguns dos trabalhos referidos nesta pesquisa (Lopes, 2004; Santa Rita, 2006). Tal interrogação não poderia passar despercebida, pois, acredita-se, sintetiza todas as dúvidas, incertezas e dores experimentadas por essa mulher, não apenas quando do processo de separação, mas na atualização disso em seu presente.

E como será quando eles se encontrarem fora das grades? Certamente terão de se reconhecer, como postula Winnicott (2005) ao referir as mudanças que ambos terão passado desde a separação. Este questionamento ecoa na mente desta mãe que duplamente encontra-se presa: de um lado grades físicas, na sua mente grades emocionais.

Afora essas categorias, mesmo não sendo o escopo prioritário desse estudo, mas por acreditarmos na sua influência frente as vivências das mães com seus filhos, que é o interesse desta pesquisa, alguns relatos de preconceito vivenciado pelas detentas merecem ser mencionados neste trabalho. Eles foram relatados pelas duas entrevistadas em contextos diferentes, mas em que ambas afirmam a discriminação por estarem em situação prisional.

Assim porque todo mundo olha, né? Porque nós somos presas, nós somos vistas nos olhos da... das pes soas lá fora somos vistas como outro tipo de pessoa. Pessoas diferente de hábito diferente. A gente é muito julgada por ser presa. As pessoas olham...olham mal, olham te atravessado. Não querem chegar perto assim. Se sente mal por isso. (Alessandra, 2015)

Com aquele constrangimento todo de chegar num lugar, de ver as pessoas te olharem com preconceito, te olharem de outra forma, é dolorido. Porque a gente, a gente que daqui desse lugar a gente é visualiza do assim, com muito preconceito. Ah aquela pessoa já foi presa, elas são do presídio. Será que é de com fiança?' Assim... mas, a gente tem que levantar a cabeça e mostrar pra sociedade que a gente pode sim mudar. (Vanessa, 2015)

Seus relatos reafirmam que, mesmo muitos séculos depois da entrada das mulheres no sistema de encarceramento, a discriminação não somente se manifestava nos primeiros sinais de punição à criminalidade feminina, quanto reverbera na atualidade. Ponto crucial para futuros estudos que se dediquem a aprofundar-se nesse aspecto em específico.

Provisoriamente, como contributo, pode-se afirmar que a prisão apresenta-se como o fator que desencadeia o preconceito relatado por essas mulheres. Disso resulta também a necessidade de investigação a respeito das formas como o encarceramento prejudica sua constituição enquanto sujeitos. Tal pressuposto é encontrado no entendimento de Goffman (2005) sobre a mortificação do eu e diminuição pessoal experimentados no contexto das insituições totais. Essas mulheres estão vivenciando o que o autor chama de status proativo desfavorável. Por esse entendimento, pode-se afirmar que essa condição faz com que as participantes tentem esconder seu passado ou tentem disfarçar sua condição de aprisionamento.

 

Considerações Finais

Esse estudo tinha por objetivo investigar as vivências e experiências de mães que, enquanto estavam presas, tiveram que separar-se de seus filhos, conforme preconiza a Lei. Seus resultados apontam para o fato de que o conteúdo emocional perpassa as vivências das mães entrevistadas, principalmente no que se refere às lembranças nutridas de convivência com os filhos e os questionamentos relativos ao estado das crianças. A prisão traz consigo condições peculiares que surpreenderam essas mulheres quando grávidas e as obrigaram a adaptar-se a nova realidade.

O momento da separação foi vivenciado com pesar e sofrimento, mesmo com as peculiaridades pessoais que alcançaram-nas. Contudo, essa forma de sentir não restringiu-se a elas mas também às suas crianças, as quais sentiram a falta das figuras maternas com o qual conviveram por seis meses. Atualmente, tal evento de afastamento continua reverberando nas vivências dessas mulheres, que reclamam por conta da ausência dos filhos e a impossibilidade de acompanhar as fases tão importantes em seus desenvolvimentos.

Como ponto nevrálgico dessas separações e encontros, as visitas mensais não são suficientes para que essas mulheres sintam-se plenas em relação aos filhos, que com o passar do tempo reagem de forma diferenciada a estas, como estranhas. Frente às barreiras da distância, um efeito inerente à condição de encarceramento é o prejuízo à relação mãe-filho(s). Conforme investigado, esta se dá na restrição da maternalidade às lembranças dos momentos de convivência entre eles, ou durante o único período que elas têm contato com as crianças que é durante a visita mensal.

As conclusões apontam, desse modo, para um vínculo entre mães e filhos que parece sofrer os prejuízos trazidos pela distância entre o cárcere e o domicílio dos bebês. Estar presa implica na impossibilidade de ver sua criança diariamente, em não ser reconhecida por ela como sua mãe, em impotência diante do desejo de garantir ao bebê a confiança e proteção necessários à sua vida. Esperançosamente, o retorno desse vínculo pleno, tal como idealizado por essas mães, poderá dar-se quando estas estiverem em liberdade e permitirem-se (re)conhecer suas crianças. Todavia, por certo, esse encontro lhes apresentará crianças que já não serão os bebêzinhos que elas amamentaram.

Ademais, a pesquisa teórica para este trabalho revelou a reduzida produção científica que objetiva discutir a problemática de mulheres presas. Uma condição recorrente para estas mulheres é a gravidez no cárcere, e menor é o número de pesquisadores que investem seu interesse no evento da separação das mães presas e seus filhos.

Cientes dessa realidade precária, levantamos a importância do cumprimento das políticas de garantia ao contato estendido de mães e crianças, no que tange inclusive ao ambiente específico para o acolhimento destes enquanto permanecerem no ambiente prisional. A esse respeito, menciona-se o descontentamento das participantes com a estrutura da Ala-Mãe da Cadeia Pública Feminina de Boa Vista-RR. Tal precariedade parece um fenômeno nacional, conforme visto nos relatórios referencia-dos neste trabalho.

O presente estudo teve a limitação do número reduzido de participantes, por depender totalmente da existência de mulheres que atendiam à necessidade da pesquisa na instituição, no que se refere ao regime prisional no qual estas se encontram. Percebemos que essa problemática é complexa e está longe de ser finalizada, de modo que, sugere-se a continuidade de estudos e debates que con-templem outras vivências de aprisionadas. Isso apoia-se na crença de que toda sociedade necessita conhecer as dores resultantes do aprisionamento e não alimentar o preconceito que ronda as mulheres presas.

Por fim, vale mencionar também a indagação feita por uma das entrevistadas e tomada emprestada como título deste trabalho: "Será que ele vai me chamar de mãe?" Se tal interrogação ressoa veemente, pela profunda carga de dúvidas e sofrimento que a ela associa-se, seu uso nesse estudo teve a finalidade de apontar para isso. Ao menos como modo de publicizar tal situação e de fomentar uma mínima discussão acadêmica em torno de ações que reduzam esse fardo. Quem poderia responder a essa mãe? As respostas, acreditamos, passam pela necessidade de assunção de mudanças na atual política prisional brasileira, de modo que estas mães tenham, minimamente, seus direitos assegurados.

 

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Recebido em: 2017-01-27
Aprovado em: 2018-03-03

 

 

1 Em respeito à identidade das participantes, são utilizados nomes fictícios para se referir a elas.

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