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Revista Psicologia Política

versión impresa ISSN 1519-549Xversión On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.17 no.39 São Paulo mayo/ago. 2017

 

ARTIGOS

 

Saúde Coletiva e movimento social

 

Colective health and social movement

 

Salud colectiva y movimiento social

 

Santé collective et mouvements sociaux

 

 

Hevelyn Rosa Machert da Conceição

Doutoranda em Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). hevelynconceicao@gmail.com

 

 


RESUMO

O presente artigo é resultado de uma pesquisa de mestrado e interessa-se por discutir a relação entre diferentes movimentos sociais na década de 1970 e o surgimento de um novo campo de práticas e saberes: a Saúde Coletiva. Partimos de uma contextualização do cenário nacional na área da saúde à época para, em seguida, analisar a formação de movimentos sociais e sua atuação no debate sobre a situação de saúde e a reforma sanitária. A metodologia busca lançar o olhar para uma história heterogênea à medida que os acontecimentos não são vistos como blocos lineares encerrados no tempo passado, permitindo a sua atualização no presente. A partir dessa análise, afirmamos a constituição plural da Saúde Coletiva e sua potência como um campo gerador de problemas, inventivo, capaz de criar novas questões para a área da saúde que atravessem as fronteiras disciplinares e que possibilitem outras construções de saber.

Palavras-chave: movimentos sociais; Saúde Coletiva; políticas públicas; interdisciplinaridade.


ABSTRACT

This article is the result of a masters research and aims to discuss the relationship between different social movements in the 1970s and the birth of a new field of practices and knowledge: Collective Health. We start from a contextualisation of the national scenario in the health area and then analyze the formation of social movements and their role in the debate on the health situation and health reform. The methodology aims to look at a heterogeneous history as events are not seen as linear blocks locked in the past, enabling their use in the present time. Based on this analysis, we affirm the plural constitution of Collective Health and its power as a problem-generating, inventive field capable of creating new questions for health field that cross disciplinary boundaries and enable other constructions of knowledge.

Key-words: social movements; Collective Health; public policies; interdisciplinarity.


RESUMEN

Este artículo es el resultado de una investigación de maestría y está interesado en la discusión de la relación entre los diferentes movimientos sociales en la década de 1970 y El nacimiento de un nuevo campo de práctica y saber: la Salud Colectiva. Partimos de un contexto de la escena nacional para analizar, a continuación, la formación de movimientos sociales y su papel en el debate sobre la situación de salud y la reforma sanitaria. La metodología quiere lanzar una mirada a una historia heterogénea a medida que los acontecimientos no se ven como bloques lineales encerrados en el tiempo pasado, permitiendo su actualización en el presente. A partir de este análisis, afirmamos la constitución plural de la Salud Colectiva y su poder generador de problemas inventivos, capaces de crear nuevas cuestiones para la salud que atraviesan las fronteras disciplinarias y permiten otras construcciones de saber.

Palabras-clave: movimientos sociales; Salud Colectiva; políticas públicas; interdisciplinaridad.


RÉSUMÉ

Cet article est le résultat d'une recherche de master et vise à discuter la relation entre les différents mouvements sociaux dans les années 1970 et l'émergence d'un nouveau champ de pratiques et de savoirs: la Santé Collective. Le texte fait une contextualisation nationale dans le domaine de la santé à l'époque, pour analyser, ensuite, la formation des mouvements sociaux et leur rôle dans le débat sur la situation de la santé et la réforme sanitaire. La méthodologie cherche à jeter un regard sur une histoire hétérogène, car les événements peuvent être actualisées au présent: ils ne sont pas considérés comme des blocs linéaires bloqués dans le temps passé. À partir de cette analyse, nous affirmons la constitution plurielle de la Santé Collective et de sa puissance comme champ générateur de problèmes. Il s'agit d'un champ inventif, capable de créer de nouvelles questions pour le domaine de la santé que traversent les frontières disciplinaires et permettent d'autres constructions de savoir.

Motsclés: mouvements sociaux; Santé Collective; politiques publiques; interdisciplinarité.


 

 

Introdução

O presente artigo é resultado de uma pesquisa de mestrado e interessa-se por discutir a relação entre diferentes movimentos sociais na década de 1970 e o surgimento de um novo campo de práticas e saberes, a Saúde Coletiva. Para tanto, partimos de uma contextualização do cenário nacional à época, focando no setor da saúde para, em seguida, analisar a formação de movimentos sociais e sua atuação no debate sobre a situação de saúde e a reforma sanitária.

De modo a discutir os acontecimentos que tomaram corpo ao longo dos anos 1970 e início dos anos 1980, construímos um olhar para a história voltado à heterogeneidade de seus processos, entendendo, em conjunto com Michel Foucault, que o privilégio da história reside na possibilidade de esta desempenhar "o papel de uma etnologia interna de nossa cultura e de nossa racionalidade" (Foucault, 2008, p. 76), ocupando-se de analisar o funcionamento dos discursos e as condições de suas transformações.

Trata-se de acionar memórias e saberes contra os efeitos de poder próprios da sistematização e da coerção de um discurso científico formal organizado no interior de nossa sociedade do qual poucos detêm os privilégios e lançam mão destes a fim de impor hierarquias (Foucault, 1979). Os efeitos de tal poder são produzidos na medida em que um discurso ambiciona a categorização de científico de maneira a favorecer uma forma específica de saber enquanto desqualifica e inferioriza os modos descontínuos, assim como as memórias locais.

Diante disso, localizar a Saúde Coletiva como integrante da dimensão social, como uma prática inserida na sociedade, é fundamental para o posicionamento político tomado neste artigo. Ao nos aproximar dessa ideia, abrimos possibilidades de encontro com o campo de forças no qual nasce a Saúde Coletiva, o que implica em considerar o campo como formado não somente pelos discursos que alcançaram hegemonia, mas também por saberes locais e por disputas que se atravessavam e que forneceram ocasião para que as transformações na área acontecessem e ganhassem visibilidade.

 

O Contexto Nacional

Na década de 1970, os paradigmas que alimentavam a área da saúde foram colocados em questão e o clima era de que havia na área um esgotamento tanto teórico quanto estrutural. A crise da saúde era vivida em múltiplas dimensões, pois a escassez de financiamento somava-se à falta de profissionais com formação qualificada e à avaliação de que o modelo desenvolvimentista de saúde fracassara. Tampouco o regime autoritário que vigorava no país gozava de plena aceitação popular, sendo os frustrantes resultados do milagre econômico um combustível para o movimento de oposição ao governo militar.

A ideia de que bons indicadores de saúde e melhor qualidade de vida seriam frutos do crescimento econômico deixou os defensores do milagre econômico desamparados, uma vez que ele foi acompanhado do crescimento da desigualdade social. A revisão crítica das teorias sobre o processo saúde-doença no país visou questionar, sobretudo, a elitização e a individualização das práticas médicas, a restrição de acesso e cobertura dos serviços assistenciais e a tímida consideração da dimensão social na compreensão e no enfrentamento das doenças. Pelo teor das problematizações colocadas, também a medicina foi impactada, pois ao que chamaram por crise de saúde integravam-na a técnica e a racionalidade praticadas pela classe médica.

No artigo "Introdução à crítica do setor saúde", Sergio Arouca (1975) denuncia a baixa eficácia da assistência médica cuja tecnologia demandava alto investimento de capital, já que se destinava a pequena parcela da população, e tinha como efeitos a produção de dependência a instrumentos e técnicas tanto de profissionais, como de usuários. O que se convencionou a chamar por medicalização, foi alvo de preocupações em outros países latino-americanos. O sociólogo e médico argentino Juan Cesar Garcia publicou em 1972 um estudo sobre a situação da educação médica na América Latina, cujo impacto ressoou em terras brasileiras e colaborou no mal-estar em relação à formação e à atuação médicas como estavam sendo organizadas. Por outro lado, a partir de estudos conduzidos no México, o pensador austríaco Ivan Illich lança em 1975, a obra chamada "Nêmesis da Medicina" na qual o autor desenvolve críticas severas ao campo médico e sua disseminação na vida da sociedade, cujo efeito último consiste, segundo ele, na desapropriação da saúde das pessoas pelo discurso médico (Illich, 1975).

Interessa destacar a peculiaridade do momento aí vivido, pois o continente americano assiste nos anos 1970 a um aumento exponencial das faculdades de medicina e do contingente de médicos graduados (Pires-Alves e Paiva, 2006). Se por um lado a medicina estava sendo criticada e problematizada no âmbito do ensino e da prática profissional, por outro lado novos cursos eclodiam, fazendo com que a formação em medicina alçasse uma oferta inédita de quantidade de vagas no país. Porém, no que diz respeito ao surgimento de novas faculdades, faz-se importante destacar que o aumento localizou-se, notadamente, nas instituições particulares de ensino. O crescimento no número de médicos formados no período tem valor expressivo: em 1960 o contingente médico no país era de 34.792 e em 1970 passou para 58.994, sendo duplicado na década seguinte para a marca de 137.347 médicos (Conselho Federal de Medicina, 2011). Vê-se que a abertura de novos cursos deu-se simultaneamente ao questionamento do papel do profissional de medicina na produção de saúde da população, levantando dúvidas sobre a capacitação dos profissionais que estavam sendo formados.

O aumento do efetivo profissional e dos cursos é contemporâneo da criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) em 1966, a partir da unificação dos Institutos de Aposentadoria e Pensão existentes. Sua atuação primou por investir prioritariamente na estrutura privada da assistência à saúde, financiando construção, ampliação e reforma de hospitais, e mantendo com estes, convênio para o atendimento dos trabalhadores. Foi por meio da adulteração do mecanismo de pagamento que a assistência médica conheceu "seu período de maior expansão em número de leitos disponíveis, em cobertura e em volume de recursos arrecadados, além de dispor de maior orçamento de sua história" (Escorel, Nascimento e Edler, 2005, p. 61), conquistado através de financiamento com dinheiro público via INPS por serviços prestados a pacientes.

O privilégio conferido ao setor privado na oferta de serviços de saúde pode ser visto também no aumento de instituições hospitalares de caráter lucrativo que subiu 200% em 10 anos, passando de 944 em 1964, a 2121 em 1974. Atuando em duplo movimento ao instaurar convênios entre o INPS e a medicina de grupo por um lado, e o incentivo à criação de empresas privadas de saúde por outro, a política de saúde vigente no regime autoritário investia no modelo curativo médicocentrado de saúde. Baseado em especialidades médicas, consultas individuais e alta tecnologia, um modelo assim constituído em face "à crise econômica que se seguiu ao "milagre", acabou por criar uma demanda ilimitada por assistência médica" (Ponte e Falleiros, 2010, p. 193). Gozando do apoio de organizações corporativas médicas, o processo de privatização da saúde ao longo do período da ditadura logrou agenciar interesses diversos que iam desde investimento em novos hospitais particulares a crescimento do número de instituições privadas de ensino da medicina.

Enquanto alguns médicos organizavam-se para construir e/ou ampliar seus hospitais, lucros e bens por meio da articulação com a Previdência Social, havia outros grupos que contestavam os rumos da medicina e da assistência sanitária no país, tomando posições públicas contrárias ao atrelamento da saúde com a economia de mercado. Em texto publicado em 1977, o médico sanitarista e professor Carlos Gentile de Mello problematiza as distorções na formação e atuação do profissional e na estrutura da rede assistencial, sendo que sob "qualquer que seja o aspecto considerado, a privatização da medicina previdenciária constitui um programa pleno de irracionalidade, explicando-se a sua implantação somente com o objetivo de privilegiar os produtores de serviços, em detrimento dos interesses de saúde da população" (Mello, 2007, p. 66). Dessa forma, o posicionamento de Gentile de Mello, assim como de outros críticos do governo, denuncia a participação de empresários e de profissionais da saúde nos projetos privatizantes.

A conexão entre o empresariado e os militares esteve presente antes mesmo do período ditatorial e deu-se em via de mão dupla, já que empresários ocupavam cargos de governo e oficiais eram convidados a integrar o corpo diretivo de renomadas instituições nacionais. Sobre o caso dos hospitais podemos vislumbrar favorecimento duplo através do financiamento público, pois se por um lado foram os donos de hospitais privados que lucraram com os subsídios para sua construção, por outro, estavam os empreiteiros da construção civil também favorecidos com o incentivo às obras.

O envolvimento de empresários e de profissionais da saúde com a ditadura brasileira ainda não pôde ser amplamente explorado e publicamente divulgado, assim como o mecanismo sistemático de tortura, sequestro e assassinato praticados por agentes do governo nesse período. Há esforços relevantes de grupos, associações e entidades sendo feitos a fim de sistematizar e tornar públicos documentos, depoimentos e provas referentes aos atos de violência, lutando contra o obscurantismo e o amordaçamento dos arquivos da ditadura. Entre eles, o Grupo Tortura Nunca Mais, criado em 1985, e a Comissão Nacional da Verdade, de 2012.

Estudos ligados às denúncias sobre repressão revelam o envolvimento também de profissionais da saúde, tais como médicos e psicólogos, na engrenagem da ditadura tanto no engajamento ideológico, quanto na prestação de serviços com fins de encobrir assassinatos - através, por exemplo, da falsificação de laudos -, ou de garantir por meio de conhecimento técnico a sobrevida de pessoas no momento da tortura (Vianna, 1994; Coimbra, 1995, 2000).

Portanto, torna-se necessário que ao falarmos em ditadura, levemos também em conta todo o suporte ao regime alimentado no âmbito extramilitar no país, visto o compartilhamento de seu ideário em variadas dimensões da sociedade. A respeito disso, Cecília Coimbra (2000, p. 01) diz: "quando se conhece a produção e o funcionamento destas perversas engrenagens percebemos a importância que tomam todos os elos que as compõem e tem possibilitado sua manutenção e fortalecimento". Essa perspectiva possibilita compreender a configuração do jogo de forças ao longo da transição política e do período pós-ditadura, no que se refere aos rumos da macropolítica para o Brasil.

O debate sobre saúde e outros direitos sociais na Constituinte será atravessado por todo o sistema arquitetado ao longo do regime ditatorial mesmo não se estando mais sob o regime, mas ainda permanecendo sob influência de um modus operandi onde grandes corporações têm poder de mando na direção político-econômica do país e sob a herança de um sistema financeiro eminentemente desigual, excludente e concentrador de renda.

Mediante o percurso que vamos realizando, faz-se necessário desconfiar de fins e começos estáticos e dispor de um olhar para os acontecimentos capaz de perceber os rastros daquilo que se toma por finalizado, a fim de compreender as formas como eles se atualizam no presente.

 

A Engrenagem e a Resistência1

No embate direto com a organização militar e seus colaboradores, lutando por direitos de cidadania e democracia, estiveram diversos movimentos sociais ao longo dos anos 1960, 1970 e 1980, e entre eles, alguns daqueles que viriam a integrar a reforma sanitária. Estudantes, profissionais, intelectuais e população em geral organizaram-se em associações e grupos de modo a discutir problemas das condições de vida. Greves aconteciam entre estudantes e metalúrgicos na década de 1970, assim como as "mobilizações contra a carestia, os clubes de mães, os conselhos comunitários e as organizações na Zona Leste e na periferia de São Paulo, muitos deles vinculados a setores progressistas da Igreja Católica" (Paim, 2008, p. 71).

No âmbito acadêmico, surgiu o Movimento de Renovação Médica e houve intensa participação de docentes vinculados aos programas de pós-graduação em Medicina Social (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e Comunitária (Universidade Federal da Bahia) e aos departamentos de Medicina Preventiva (Universidade de São Paulo, Santa Casa, Paulista de Medicina, Ribeirão Preto, Botucatu, Universidade Federal da Paraíba), com alinhamentos comuns em torno das críticas ao governo e às condições de saúde da população (Paim, 2008). O prejuízo para a qualidade de vida de grande parcela da população causado pela política governamental passou a ocupar pautas de análise devido também à produção de pesquisas que relacionavam o modelo de desenvolvimento praticado no país com o agravamento das condições de vida, o aumento da mortalidade e a crescente mercantilização da saúde (Escorel e cols., 2005).

A emergência de um descontentamento com os resultados da política adotada levou à retirada do apoio ao governo por parte de diferentes setores da população que passaram a construir uma atividade crítica em relação ao regime - como os grupos de mães, os coletivos de profissionais, usuários e estudantes de saúde, entre outros -, agenciando movimentos sociais pela transformação da realidade socioeconômica do país. A publicação de estudos que analisaram a situação de saúde denunciava a falta de acesso e a elitização dos serviços assistenciais ao mostrar uma cena caótica na qual problemas como desnutrição e doenças infectocontagiosas acometiam a população em números alarmantes. Um episódio acontecido na cidade de São Paulo pode nos oferecer um exemplo do entrecruzamento de forças responsável por fomentar o movimento por transformação do cenário político e social brasileiro a partir do contexto da saúde.

Entre os anos de 1969 e 1975, a taxa de mortalidade infantil na capital paulistana subiu de maneira a atingir patamares graves, aumentando cerca de 45% no período (Cebes, 1976). A inversão na tendência de queda do indicador foi observada como um mau sinal a respeito das condições de vida da população e da condução política do país, visto que colocava em xeque os benefícios do milagre econômico por estes não se reverterem em melhores índices sociais. No planejamento para o quinquênio de 1974 a 1979, o então ministro da saúde, Paulo de Almeida Machado, afirma ser a precariedade das condições sanitárias urbanas um grande desafio face ao despreparo da estrutura assistencial e ao agravamento de indicadores relevantes como a mortalidade infantil que, naquele ano de 1973, achava-se mais elevada do que em 1962 (Ponte e Falleiros, 2010). Mesmo com as investidas em abafar a divulgação pública do resultado dos indicadores de saúde, o agravamento da situação cobrou uma posição governamental no sentido de reunir esforços para enfrentar as doenças.

A deterioração na saúde em grandes centros urbanos foi, portanto, uma constatação que gerou inquietação e desconforto para o governo no começo dos anos 1970, dando visibilidade a um cenário onde o desenvolvimento econômico, a expansão da indústria e das cidades e a geração de riqueza eram fenômenos restritos à menor parcela dos brasileiros, por conta da alta concentração de renda com que esse processo se dava, acarretando em aumento da desigualdade social e degradação da qualidade de vida. O desequilíbrio entre a economia e a promoção de saúde refletia-se já no orçamento ministerial, pois enquanto o volume de verba destinada ao setor de transporte era de 12% e ao das forças armadas 18%, para a saúde restringia-se em por volta de 1% do total de despesas gerais da União no período entre 1970 e 1984 (Ponte e Falleiros, 2010).

A preocupação com os indicadores de saúde das grandes cidades caminhou ao lado do acelerado e desordenado crescimento urbano, pois a ocupação da cidade e os intensos fluxos migratórios não foram acompanhados na mesma velocidade pelo incremento das condições básicas de habitação, transporte, saúde e trabalho. A um só tempo, a conjugação entre específicos investimentos financeiros no setor rural e o aquecimento do mercado de trabalho urbano levou a um crescimento populacional inédito das cidades, atraindo grupos marginalizados pelo processo de mecanização da produção agrícola. O abandono das fronteiras agrícolas para a ocupação de territórios metropolitanos deveu-se, sobretudo, à forte política de incentivo à indústria, causando um verdadeiro êxodo rural entre as décadas de 1950 e 1980, já que até 1960 o país detinha 55% de sua gente no campo ao passo que em 1980 esse valor caiu para 30% (Ponte e Falleiros, 2010).

O delineamento dessas rotas de migração não pode ser compreendido sem levarmos em consideração discursos que tomavam a cidade grande, a metrópole, como lugar de promessas de futuro próspero e bem-sucedido, ao passo em que o interior, o sertão, passou a ser tratado como lugar que ofereceria apenas atraso, penúria e restrições. O canto da metrópole2, em plena performance, costurava todo fio de esperança por uma vida com mais fartura e dignidade ao tecido metropolitano. O fluxo humano em direção a cidades como Rio de Janeiro, Brasília e São Paulo não seria possível sem que, no mesmo movimento, os lugares de origem da população migratória assumissem um papel de força centrípeta de seus habitantes (Gomes, 2006). A complementaridade entre as regiões de saída e de destinos das pessoas deu-se, sobretudo, entre Nordeste e Centro-Sul, respectivamente.

A distribuição da migração no território nacional aconteceu segundo uma tendência fortemente centralizadora que privilegiava os centros urbanos da região Sudeste, especialmente a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) que ainda se mantém como maior locus de recepção no país, tendo recebido cerca de 3,2 milhões de pessoas somente nos anos 1970 (Baeninger, 2005). A relação entre migração e emprego é a grande responsável pelo volume de pessoas em direção à RMSP, sendo nos anos 1960 e 1970 ainda mais específica, pois estreitou o laço entre migração e indústria, configurando um operariado eminentemente plural. Em busca de trabalho e melhores condições de vida, os recém-chegados na cidade eram recrutados pelos pátios industriais a fim de integrarem uma força de trabalho intensamente explorada e que, "chamada a participar do esforço desenvolvimentista, era sacrificada pelo aumento da jornada e pelo arrocho salarial incorporados pelo modelo econômico como peças importantes da aceleração do crescimento" (Ponte e Falleiros, 2010, p. 186).

O pólo concentrador de indústrias achava-se na RMSP, mais especificamente na região do ABC paulista - território compreendido pelas cidades de Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano -, locais onde os trabalhadores organizaram-se e passaram progressivamente a introduzir questionamentos sobre a carga horária de trabalho, os benefícios sociais e a representação profissional. O movimento operário e sindicalista ganha forças a partir de 1978, quando entra em cena a classe dos trabalhadores com força para mobilizar pessoas na luta por direitos civis e trabalhistas, fazendo arrebentar uma série de greves e paralisações no chão das fábricas de forma a conduzir trabalhadores para ocupar ruas e praças com suas bandeiras políticas (Alves, 2000). Inicia-se à época um período de intensa articulação de movimentos sociais atuantes na reivindicação da ampliação e garantias de direitos, entre os quais, o sindicalismo teria papel fundamental, inclusive na luta pela democratização do Brasil.

O clima de descontentamento com o governo, de mobilização popular interessada em reivindicar por melhorias e investimentos sociais tornava ainda mais frágil a já prejudicada imagem do regime militar, exercendo pressão para que as autoridades reorganizassem seus planos de ação se quisessem garantir não somente a sua legitimidade, mas principalmente assegurar patamares de governabilidade possíveis. Entre as diversas medidas tomadas nesse intuito, citaremos aqui o convênio firmado entre Ministério da Saúde, Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo e Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo para a realização do "I Curso de Especialização em Saúde Pública" para médicos em nível local. O curso que foi oferecido no início de 1976 e teve a duração de quatro meses, formou 57 alunos com o objetivo de prepará-los para enfrentar os principais problemas sanitários nos serviços espalhados pelo território, de forma a transformar a amarga realidade dos indicadores de saúde (Cebes, 1976).

Voltado a responder demandas específicas, o curso nasceu como parte de uma racionalidade que visava preencher a rede assistencial do Estado com mão de obra técnica qualificada para atuação direta nas fragilidades apontadas pelos diagnósticos de situação de saúde. O grupo formado pela primeira edição do curso construiu fortes laços entre si e expandiu sua atuação para além do espaço da formação e das unidades de saúde em que os diferentes médicos se alocaram, organizando encontros para discutir estratégias de cuidado e enfrentamento de questões concernentes ao trabalho, e também, a criação em 1976 de uma entidade que acolhesse o movimento ali nascente: o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Escorel e cols., 2005; Merhy, 2013).

Nomeados como profissionais de saúde em unidades da rede pública, alguns dos médicos saídos do curso de especialização dirigiram-se a zonas periféricas da capital paulista, locais notadamente carentes de assistência e estrutura sanitárias. Uma das regiões paulistanas que recebeu esses técnicos foi a Zona Leste, sendo que ali os médicos encontraram precárias condições de saúde, elevada incidência de doenças infectocontagiosas, assim como uma intensa força de luta que desaguaria na articulação do Movimento de Saúde da Zona Leste (MSZL). Esse coletivo teve origem a partir de 1976 com a reunião de grupos menores e dispersos, geralmente ligados a Comunidades Eclesiais de Base - grupos vinculados à Igreja Católica -, inicialmente no Jardim Noroeste e no Jardim IV Centenário - dois bairros da região -, sendo formalizado apenas no início da década de 1980 (Carignato, 2007).

No processo de distribuição socioeconômica dos espaços da capital paulista, a Zona Leste caracterizou-se como região periférica estruturada a partir dos eixos que traçavam sua comunicação com o centro da cidade (Rolnik e Frúgoli, 2001). Atualmente com mais de três milhões de habitantes, a Zona Leste tem na formação de sua territorialidade a presença ativa do operariado fazendo-se como "cidade dormitório" dentro da própria cidade na dinâmica urbana. A rica natureza da gente que veio ocupar esse território é plural, pois advém também de fluxo significativo de imigrantes e migrantes, saídos principalmente da Itália, Espanha e Japão, por um lado, e, Nordeste por outro - sobretudo Bahia e Pernambuco (Baeninger, 2005; Gonçalo, 2009). E é justamente nessa miscelânea de culturas e etnias que, nos anos 1970, os novos bairros adquirem forma e pequenos coletivos passam a se constituírem com intuito de protestar por condições mais adequadas de vida. A resistência desse povo irá alimentar movimentos como o operário sindicalista e o da saúde, por exemplo, sendo este último com intenso protagonismo de mulheres (Carignato, 2007).

Ganhando reconhecimento pela construção de espaços coletivos de debate e deliberação, o Movimento de Saúde da Zona Leste alcançou sua primeira conquista formal em 1978, quando levou à Secretaria Estadual de Saúde a proposta de modificação da lei sobre o funcionamento dos conselhos de saúde: sair de uma representação composta apenas por representantes das elites locais (médicos, vereadores, delegados de polícia) para uma composição formada também pelos usuários dos serviços. A partir do aceite do então Secretário Estadual de Saúde, Walter Leser, uma comissão do MSZL deu início ao primeiro processo eleitoral do Conselho de Saúde, cuja votação alcançou público de cerca de 8 mil pessoas de um total de 20 mil habitantes do bairro (Carignato, 2007).

A reunião de pessoas na Zona Leste de São Paulo em torno das dificuldades socioeconômicas e dos desacordos com a gestão política não se iniciou apenas a partir de meados dos anos 1970, no entanto, foi nessa década que, junto ao corpo de médicos sanitaristas recém-chegados aos serviços, os coletivos mobilizaram-se, ganharam força e estruturaram suas lutas. Ao conhecerem a situação sanitária em que viviam os usuários dos postos de saúde, os profissionais - alguns deles recém-formados pelo curso de especialização em Saúde Pública - engajaram-se em um processo de transformação da realidade, convertendo-se, "com o tempo, num canal a serviço da organização popular, cumprindo um papel importante para a solidificação do Movimento [...]" (Carignato, 2007, p.11).

A organização do MSZL viabilizou a luta por mudanças no modelo assistencial e por democratização do sistema de saúde, com especial ênfase na participação popular em todos os âmbitos dos serviços através da criação dos conselhos de saúde, contribuindo para que o movimento se tornasse uma referência ao desempenhar papel fundamental na consolidação institucional dos espaços de participação social a serem posteriormente elencados na Constituição de 1988.

O cenário deflagrado na periferia paulistana nos dá notícia de um processo que somente fora possível mediante entroncamento de múltiplos vetores, transportando interesses variados e muitas vezes díspares. A institucionalização de uma instância decisória como o Conselho de Saúde, ocupada por representantes da população ocorreu mediante aprovação da mesma gestão política que firmou convênio com a universidade a fim de preparar médicos para a realidade sanitária da população carente. Nos chama a atenção um movimento que, ainda sob as circunstâncias dos anos de chumbo, logrou por experimentar novas configurações técnicas e institucionais, fazendo conviver forças austeras de fechamento e de manutenção da máquina autoritária com forças de mudança e abertura política e social.

A crescente pressão social vinda da articulação de coletivos variados mais a necessidade governamental de valer-se de projetos sociais em busca de legitimar a maculada imagem do regime e sustentar sua governabilidade levou a gestão pública a investir em políticas nessa dimensão. Todavia, a fim de institucionalizar algumas ações, o grupo militar "não tinha quadros para ocupar todos os espaços abertos e terminou por criar espaços institucionais para pessoas de pensamento contrário, senão antagônicos, ao dominante em seu setor" (Escorel e cols., 2005, p. 66). A partir de então, a nomeação de lideranças do movimento sanitário para cargos em órgãos públicos da área da saúde corroborou com a estruturação do movimento da reforma sanitária, influenciando no funcionamento de agências de pesquisa e de serviços assistenciais e em entidades de formação de profissionais.

A formação de grupos que estavam descontentes com o modo de fazer política e saúde em vigência, esforçou-se em visibilizar o atrelamento entre as dificuldades vivenciadas no cotidiano dos bairros ao modelo assistencial e social predominante em âmbito nacional. Assim sendo, podemos compreender que as disputas travadas por esses coletivos, ao posicionarem-se dessa forma, faziam com que os questionamentos extrapolassem o nível local de maneira a colocar em xeque a organização do Estado brasileiro. O mesmo pode ser pensado em relação às conquistas, como na instituição dos conselhos populares de saúde, uma vez que não só a participação daquela população nos respectivos serviços foi garantida, como também se abriu espaço para considerar a dimensão do controle social em toda a rede pública de assistência.

Também o movimento da Reforma Psiquiátrica reunia pessoas e forças a fim de desmontar manicômios que funcionavam como depósitos de pessoas e discutir o lugar da loucura na sociedade, "desencadeando a formação do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, embrião de todo um processo de reflexões teóricas e práticas inicialmente alternativas no campo da assistência psiquiátrica" (Paulin e Turato, 2014, p. 242). De forte articulação com a Reforma Psiquiátrica italiana, armou amplos espaços de debate para reorganizar a atenção psicossocial e empenhou-se em investigar e denunciar práticas cruéis e degradantes na saúde mental, muitas vezes operadas por hospitais privados conveniados com a previdência social, também envolvidos em desvio de verba e corrupção (Amarante, 1995).

Compõe também este quadro de mobilizações, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), firmado em 7 de setembro de 1979 quando 110 famílias ocuparam as terras de Macali, em vista da negligência do governo estadual em relação à falta de moradia e possibilidade de lavoura no Rio Grande do Sul (Fernandes, 2000). Portando o lema "Terra para todos", o MST logo se expandiu do estado gaúcho para outras regiões brasileiras, enfrentando uma batalha contra a desigualdade social na distribuição fundiária nacional. Visto como um dos principais movimentos sociais do país até dias atuais, o MST escancarou a lógica acumuladora que extrapolava os centros urbanos, fatiando a terra cultivável em largas porções destinadas a poucos senhores. Importa trazer o caso do MST à cena, pois ao empenhar a luta da reforma agrária, os trabalhadores sem terra estremeceram em alguma medida a estrutura social e a natureza da propriedade privada, não sem problematizar também a conivência - senão o incentivo - de políticos e políticas governamentais com a manutenção do latifúndio.

Portanto, vemos que as ondas de novos modos de relação entre Estado e sociedade arrebentam aqui e ali, arrastando com elas cada vez mais pessoas, ainda antes do anúncio do fim do regime militar. Entendemos que a disputa por assento nas instâncias decisórias como no caso do Movimento de Saúde da Zona Leste não se resume a mera conquista de poder de mando, mas sim, enseja a batalha por um modelo de se fazer saúde e de configurar a sociedade que travou confronto direto com o modo de produção capitalista vigente. Nesse sentido, o movimento da reforma sanitária porta uma proposta de reformulação para além do setor saúde, uma vez que está interessado em problematizar o modo de vida segundo sua organização política, social e econômica.

Segundo Paim (2008), a Reforma Sanitária Brasileira não pode ser restringida a seu compromisso com a criação e implantação do Sistema Único de Saúde, pois alcançava o terreno mesmo do funcionamento da sociedade. Para o pesquisador, é fundamental compreender a reforma sanitária como um projeto de "reforma geral, tendo como horizonte utópico a revolução do modo de vida, ainda que parte do movimento que a formulou e a engendrou tivesse como perspectiva apenas uma reforma parcial" (Paim, 2008, p. 38). A diferença interna ao movimento que consistia em trabalhar por uma reforma setorial ou trabalhar por uma reforma social, relacionava-se à existência de incentivos para uma reforma parcial que advinham de articulações institucionais, como a influência de órgãos internacionais como o Banco Mundial, e do desenvolvimento e consolidação de um modelo político-econômico no país cuja aposta residia em completo no capitalismo neoliberal (Merhy, 2013).

Neste cenário, o campo da Saúde Coletiva desponta como proposta brasileira multiprofissional e interdisciplinar para problematizar os paradigmas da área da saúde. Este campo surge como possibilidade de reflexão e instauração de novas práticas e de novas formas de pensar - teóricas, profissionais, políticas, institucionais - face à necessidade de incrementar a área da saúde que se agitava à época.

Entre as entidades que participaram da organização da reforma sanitária e da conformação do campo da Saúde Coletiva, o Cebes desempenhou um papel ativo como espaço convergente de pessoas, tendo responsabilidade importante na divulgação de uma gama de material bibliográfico que alimentou a formação intelectual da reforma sanitária. A articulação promovida pelo Cebes nas diferentes regiões brasileiras, aproximando o diálogo entre profissionais de saúde e intelectuais ligados à academia gerou também uma profusão de análises sobre a situação da saúde no país, constatando e denunciando os pormenores da crise e expondo as propostas e plataformas de luta.

Em setembro de 1979 acontece a fundação da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva em Brasília, que a partir de 2012 passará a se chamar Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Criada a partir de uma reunião entre ministérios e Organização Panamericana de Saúde (OPAS) a fim de discutir questões referentes à incorporação de profissionais formados na área da saúde, a Abrasco consolidou-se nacionalmente a medida que estabeleceu pontes entre os programas de pós-graduação e as agências financiadoras de pesquisa. Sua atuação comprometida com os movimentos sociais no país teve influência nas transformações políticas, assim como na conformação da Saúde Coletiva, localizando em si a própria institucionalização do campo.

A construção de um projeto de Saúde Coletiva "foi marcada pela ousadia na junção e intercessão entre as áreas específicas para produzir um novo que reunisse a riqueza das partes e das especificidades" (Leal e Camargo, 2012, p. 55). A diversidade deste campo é própria à sua conformação, pois esta reside no entrecruzamento de três disciplinas: ciências sociais e humanas em saúde, epidemiologia e planejamento em saúde, indicando a abertura de um espaço de convivência interdisciplinar que tensiona as fronteiras entre os territórios possibilitando que estas se corroam e se redesenhem a cada momento.

O processo de revisão teórica e de reordenamento das práticas em saúde atinge seu ápice na segunda metade da década de 1980, na ocasião da VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986, na elaboração da Constituição Federal em 1988 e na formulação do Sistema Único de Saúde em 1990. Orientado pelos princípios fundamentais de universalidade de acesso, integralidade da assistência, equidade e participação popular, o SUS explicita a fundamental atuação do campo da saúde como um dos agentes consolidadores da democracia no país.

A atuação do movimento pela saúde não se restringiu a transformações no setor saúde, pois encampou a luta por um Estado democrático, fazendo repercutir na redação da Carta Constitucional brasileira a onda provocada pela confluência da população com os profissionais e os estudantes em experiências locais de enfrentamento e mudança. Também a preocupação dos representantes governamentais com o conteúdo a compor o regimento da saúde na Constituição não foi espaço dado, dependendo, por sua vez, de intensa articulação de membros do movimento sanitário, organizados de forma a pautar junto aos homens da câmara e do senado os pontos fundamentais da afirmação de uma saúde enquanto direito universal de cidadania a ser oferecida em um sistema público de assistência (Merhy, 2013). As experiências vividas na periferia das cidades, a exemplo do MSZL, pressionaram a agenda política, apresentando o tema da construção de um modelo de saúde para o país apoiado na participação popular, na universalidade da assistência e na responsabilidade do Estado para com sua promoção.

Vimos que a convergência de movimentos que colocaram em ebulição o cenário social no país tinha um eminente viés político comportando não só uma análise crítica da situação, como também uma forte postura propositiva. Tal caracterização fez-se presente no processo de construção da nova Constituição, entendida como o marco normativo que rege o país e delimita suas prioridades; assim como na produção da Lei Orgânica da Saúde, sendo o elemento que estabelece a operacionalidade do setor saúde na amplitude de todo o território brasileiro.

No entanto, correndo ao lado da mobilização via reforma sanitária, outros interesses assediaram os responsáveis pela feitura da carta magna e da Lei Orgânica da Saúde em 1990. As forças conservadoras já atuantes no regime militar permaneceram em articulação no período da transição democrática, em busca de garantir espaço para seu funcionamento na nova conformação política do Brasil (Escorel e cols., 2005). O processo de construção e de manipulação das leis nos faz enfrentar a dimensão das políticas públicas como reconhecida arena de disputas, cuja estrutura está a todo tempo tensionada pelas forças que a compõem e que podem imprimir novos movimentos e também atualizar antigos modos de proceder. Também a partir dessa perspectiva nos é possível compreender a história como um campo não reconciliado habitado por distintos interesses e forças. No que se refere à assistência à saúde, vimos que em simultâneo ao processo de privatização dos serviços com investimento em um modelo curativo, individual e médico centrado, emergiram os movimentos pela reforma sanitária com a aposta em um modelo integral e universal de assistência.

O rápido crescimento dos planos de saúde privados a partir do início da década de 1990 revela um não antagonismo entre as dimensões do público e do privado no âmbito das políticas do Estado, no sentido de que a existência do movimento por uma Saúde Pública e a criação do SUS não excluiu do cenário sanitário nacional o investimento, ainda que indireto, em outro modo de se ofertar assistência: a rede privada. Salvaguardado pelos vetos presidenciais à Lei Orgânica da Saúde, o mercado privado da saúde pôde dar seqüência a seu crescimento em certa medida competindo com a rede pública e, em outra, sendo por esta alimentado, haja vista a existência de convênios para prestação de serviços e de renúncias fiscais (Ocke-Reis, Andreazzi e Silveira, 2006). Tais forças permaneceram em jogo durante o movimento sanitarista, assim como no processo de criação e regulamentação do SUS, atuando não somente por meio de mecanismos institucionais do Estado, mas também por meio de discursos que se esforçam por fazer do mercado o espaço capaz por excelência de responder aos problemas de saúde na sociedade.

 

Considerações Finais

Entendemos que, a partir de fins dos anos 1970 e início da década de 1980, o campo da saúde experimenta um importante momento no Brasil no qual a discussão sobre a crise da saúde no país floresce e para debatê-la mobilizam-se profissionais, teorias, instituições, políticas e população. Ou seja, a implicação da reforma sanitária, assim como da nascente Saúde Coletiva dava-se com a área da saúde, mas não se restringia a ela, uma vez que portava também questionamentos e proposições acerca da organização da vida em sociedade, incluindo diferentes atores nessa construção.

Como vimos, esse contexto de problematização da organização política, econômica e social do país era um espaço habitado também por diferentes movimentos, como o Movimento de Saúde da Zona Leste de São Paulo, o dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e o dos Trabalhadores em Saúde Mental. Guardadas as distintas origens e dinâmicas de cada grupo, vê-se a construção de um plano comum pautado pela ampliação dos direitos sociais e democráticos. Nesse plano comum, também o movimento pela reforma sanitária desempenhou seu papel e, ao mesmo tempo em que alimentava a pressão por transformações, ele mesmo era também impactado pela atuação de outros movimentos.

Considerando o jogo de forças onde foi possível emergir a Saúde Coletiva, concluímos que os movimentos trouxeram conteúdo e dinâmica fundamentais para a instituição do campo, indicando uma contribuição da dimensão social da vida que não se acha completamente enquadrada na esfera disciplinar dos campos científicos. Faz-se necessário compreender a proposta interdisciplinar da nascente Saúde Coletiva como uma produção em conjunto com saberes locais, possível também a partir destes. Isso pois, a análise histórica com seu interesse pela libertação dos saberes de sua sujeição a um discurso hegemônico e sua utilização nos combates atuais, torna possível identificar, no espaço temporal analisado por este texto, diversos efeitos das lutas sociais na construção de políticas públicas e de direitos, inclusive na área da saúde.

Junto aos movimentos sociais que se agitavam no Brasil, a Saúde Coletiva esforçou-se por assumir um posicionamento político referente tanto ao modelo de saúde quanto ao programa de Estado e, imbuída de um esforço de ruptura em relação à Saúde Pública institucionalizada, inscreveu seu território no limite entre as dimensões biológica e social, problematizando as condições de vida da população e sua profunda relação com o processo de adoecimento (Nunes, 1994). A confluência das diferentes disciplinas que compõem o campo é vista como uma nova disposição de saberes capaz de produzir conhecimento para além de suas fronteiras, inventando espaços em seus encontros, justamente entre si, de onde podem surgir outros sujeitos e outros objetos (Passos e Barros, 2000).

A responsabilidade política e social que a Saúde Coletiva assume para si desde sua constituição indica que as fronteiras tecnicistas da área da saúde precisam ser esboroadas na intenção de convocar outros saberes ao enfrentamento dos problemas, contribuindo, dessa forma, para a formação de um novo território de saber para além do simples somatório de disciplinas.

 

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Submetido em: 27/05/2018
Aprovado em: 12/09/2018

 

 

1 Referência aos versos "E no centro da própria engrenagem/Inventa a contra-mola que resiste" da canção "Primavera nos dentes", de 1973, do grupo Secos e Molhados.
2 Referência ao filme mudo "São Paulo, a sinfonia da metrópole". Direção: Adalberto Kemeny e Rudolf Rex Lustig. Brasil: 1929.

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