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Revista Psicologia Política

versión impresa ISSN 1519-549Xversión On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.17 no.39 São Paulo mayo/ago. 2017

 

ARTIGOS

 

Precarização do trabalho e efeitos subjetivos: interlocuções entre práticas de pesquisa

 

Work precarization and subjective effects: interlocutions between research practices

 

Precarización del trabajo y efectos subjetivos: interlocuciones entre prácticas de investigación

 

Précarisation du travail et effets subjectifs: interlocutions entre pratiques de recherche

 

 

Sergio Dias Guimarães JuniorI; Vanessa Ribeiro de OliveiraII; Alfredo Assunção MatosIII

IMestrando do Programa de Pós Graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. sergiodiasguima@gmail.com
IIMestra do Programa de Pós Graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. vanessa.rib.oli@gmail.com
IIIDoutorando do Programa de Pós Graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. alfredoassuncao17@gmail.com

 

 


RESUMO

Neste artigo, procurou-se observar os efeitos subjetivos do processo de precarização do trabalho na contemporaneidade. Para tal, promoveu-se a articulação dos resultados de três pesquisas realizadas com diferentes sujeitos que têm, em sua singularidade, um ponto de interseção: a imersão nesse contexto de precarização. Como procedimento de análise de dados, foi adotada a Psicodinâmica do Trabalho a partir da qual propôsse uma reflexão sobre as formas precarizadas de trabalho e seus desdobramentos. As pesquisas articuladas envolvem psicoterapeutas que atendem em clínicas vinculadas a planos de saúde, trabalhadoras e trabalhadores terceirizados do Departamento de Trânsito do Estado do Rio de Janeiro - e aspectos legislativos da terceirização no Brasil - e funcionários subcontratados de uma universidade pública. Observou-se que as práticas flexíveis que constituem o cenário de precarização do trabalho tendem a instrumentalizar o fazer singular de cada sujeito, dificultar a formação de coletivos e movimentos de resistência que visam o reconhecimento de direitos e afirmam a criação de formas de trabalho que estejam a favor da vida em suas dimensões ético-políticas.

Palavras chave: Psicologia Política; Psicologia do Trabalho; Precarização do trabalho; Serviços Terceirizados; Psicodinâmica do Trabalho


ABSTRACT

In this article, we seek to observe the subjective effects of the process of work precarization in the contemporaneity. For that, we promote the articulation of the results of three researches conducted with different subjects that have, in their singularity, a point of intersection: the immersion in this context of precarization. The Psycho-dynamics of Work was adopted as a data analysis procedure from which we intend to propose a reflection about the precarious forms of work and its consequences. The articulated researches involve psychotherapists who work in clinics linked to health plans, outsourced employees from DETRAN/RJ - and legal aspects about outsourcing process in Brazil - and subcontracted workers of a public university. Therefore, we observe that the flexible practices that constitute the scenario of the work precarization tend to instrumentalize the singular work of each subject, to hinder the formation of collectives and resistance movements that aim at the recognition of rights and affirm the creation of forms of work that are linked to life in its ethical-political dimensions.

Keywords: Political psychology; Psychology of work; Work precarization; Outsourced services; Psychodynamics of Work


RESUMEN

En este artículo tratamos de observar los efectos subjetivos del proceso de precarización del trabajo en la contemporaneidad. Para eso, promovemos la articulación de los resultados de tres investigaciones realizadas con diferentes sujetos que tienen, en su singularidad, un punto de intersección: la inmersión en ese contexto de precarización. Como procedimiento de análisis de datos, se adoptó la Psicodinámica del Trabajo a partir de la cual buscamos proponer una reflexión sobre las formas precarizadas de trabajo y sus desdoblamientos. Las investigaciones articuladas implican a psicoterapeutas que atienden en clínicas vinculadas a planes de salud, trabajadores y trabajadoras tercerizados del DETRAN/RJ - y aspectos legislativos de la tercerización en Brasil - y empleados subcontratados de una universidad pública. Observamos, por lo tanto, que las prácticas flexibles que constituyen el escenario de precarización del trabajo tienden a instrumentalizar el hacer singular de cada sujeto, dificultar la formación de colectivos y movimientos de resistencia que apuntan al reconocimiento de derechos y afirman la creación de formas de trabajo que están a favor de la vida en sus dimensiones ético-políticas.

Palabras clave: Psicología política; Psicología del trabajo; Precarización del trabajo; Servicios tercerizados; Psicodinámica del Trabajo


RÉSUMÉ

Dans cet article, nous avons cherché à observer les effets subjectifs du processus de précarisation du travail à l'époque contemporaine. À cette fin, nous avons favorisé l'articulation des résultats de trois enquêtes menées auprès de sujets différents qui ont, dans leur singularité, un point d'intersection: l'immersion dans ce contexte de précarité. En tant que procédure d'analyse des données, il a été adopté la psychodynamique du travail à partir de laquelle une réflexion sur les formes de travail précaires et son déroulement a été proposée Les enquêtes impliquent des psychothérapeutes qui fréquentent des cliniques liées à des régimes de soins de santé complementaria, des travailleurs soustraités du Département de la Circulation de l'État de Rio de Janeiro - ainsi que les aspects législatifs de la soustraitance au Brésil - et des employés soustraités d'une université publique. Il a été observé que les pratiques flexibles qui constituent le scénario de précarisation du travail tendent à instrumentaliser la pratique singulière de chaque sujet, à entraver la formation de mouvements collectifs et de mouvements de résistance visant à la reconnaissance des droits et affirmant la création de formes de travail en faveur de la vie dans ses dimensions éthiques et politiques.

Motsclés: Psychologie politique; Psychologie du travail; Précarité du travail; Services externalisés; Psychodynamique du travail


 

 

Introdução

As linhas que seguem representam uma materialização de reflexões que se propõem, principalmente, a analisar os efeitos subjetivos do processo de precarização do trabalho na contemporaneidade. Para tal, empreendemos uma articulação entre três pesquisas diferentes cujos sujeitos envolvidos são psicoterapeutas que atendem em clínicas vinculadas a planos de saúde, trabalhadores e trabalhadoras terceirizados do Departamento de Trânsito do Estado do Rio de Janeiro (DETRAN/RJ) e funcionários subcontratados de uma universidade pública. Paralelamente, buscamos propor uma reflexão acerca da legislação da terceirização no cenário brasileiro ao longo das últimas décadas. Desse modo, mais do que apontar os principais efeitos subjetivos de cada categoria profissional, buscamos explicitar através de realidades distintas o quanto o processo de precarização social do trabalho atinge diferentes públicos, de diferentes formas; e, independente do modo como se apresenta, mantém-se enquanto um fator preponderante na inter-relação entre saúde mental e trabalho.Em ressonância com o referencial teórico-metodológico da Psicodinâmica do Trabalho, os resultados desses estudos serviram de base para a análise dos efeitos produzidos pelos seus pontos de interseção, ou seja, pelo processo de precarização do trabalho no qual todos - e aqui incluem-se instituições e sujeitos participantes - estão inseridos.

A conjuntura social contemporânea revela um cenário no qual o poder e o controle mantém uma relação de intimidade peculiar para com a vida que, por sua vez, parece integralmente atrelada a mecanismos de modulação da existência (Pélbart, 2008). Tais ferramentas de controle ultrapassam barreiras e tecem os fios que atravessam os diversos âmbitos da vida dos sujeitos, com destaque para o trabalho e os processos de subjetivação que com ele estão articulados.

A noção de trabalho aqui considerada refere-se ao "poder de sentir, pensar e inventar", proposta por Dejours (2004) como algo que está para além de prescrições e normatividades instituídas. Em consonância, Ferreira (2011) afirma que este fazer e seus sentidos são refletidos nos processos de subjetivação e, portanto, representam uma maneira de reinvenção da própria vida.

Assim, é possível observar que no mundo do trabalho imperam práticas pautadas na flexibilização, na informalidade e na precarização das relações laborais (Antunes, 2014). Neste movimento, observa-se que os imperativos do contexto trabalhista refletem na esfera subjetiva, atribuindo dosagens de caráter flexível e efêmero à vida dos sujeitos. Assim, como esfera central da vida e elemento constituinte da identidade dos sujeitos, o trabalho também foi influenciado por tais transformações. Neste contexto, Fonseca, Engelman & Giacomel (2004) afirmam que os modelos econômico-produtivos tayloristas e fordistas de caráter centralizador e estável cederam lugar, nas sociedades de controle, a práticas toyotistas traduzidas pela flexibilidade de relações, aumento da competitividade e presença de inúmeras incertezas cotidianas.

Na contramão de outros tempos, as técnicas atuais de gerenciamento perdem o seu caráter disciplinar e caminham para a direção de um autocontrole e de uma autovigilância (Gaulejac, 2007). Em paralelo, índices elevados de competitividade, exigências e inseguranças diante da iminência de desemprego formam um conjunto que abre passagem para vivências de sofrimento no trabalho que, por sua vez, acarretam graves quadros de adoecimento físico e mental, principalmente quando se trata, por exemplo, de sujeitos envolvidos no processo de terceirização (Antunes & Druck, 2015).

No Brasil, este fenômeno processual é caracterizado principalmente pela articulação do domínio das formas de acumulação flexível de capital com as bases do capitalismo financeiro e os preceitos neoliberais, de emergência mais acentuada na década de 1990. Combinados em meio às oscilações da conjuntura socioeconômica, esses elementos abriram caminho para as formas características de flexibilização, informalidade e precarização do trabalho, predominantes no cenário contemporâneo (Druck, 2011).

Este artigo, portanto, está estruturado da seguinte maneira: primeiro é apresentada uma breve reflexão sobre a constituição e caracterização do que representa a conjuntura de precarização do trabalho - temática central do texto. Em seguida, são apresentadas as contribuições teórico-metodológicas da Psicodinâmica do Trabalho em articulação com as três pesquisas mencionadas, cujos resultados serviram de subsídio para a promoção de reflexões acerca dos desdobramentos do atual contexto de precarização. Será possível perceber, neste caminho, as interlocuções, interseções e características comuns entre os resultados dos diferentes estudos que, por sua vez, revelam importantes sinalizações sobre os efeitos subjetivos do contexto observado.

 

Apontamentos sobre a conjuntura laboral e a ofensiva da precarização

O termo precarização é derivado da palavra precário, do latim precarius, que significa o que é obtido pela prece. O presente significado está relacionado àquele que se subordina ao desejo do outro implorando algo desse ser, entendido como o todo poderoso (Cruz, 2013).

Existem ainda definições como a de Herlardot (2005) que o entendem como algo que não é perene, nem estável. Esta noção vincula-se ao processo de desestabilização das relações laborais, também expressa como desfiliação por Castel (1995).

Compreendido como objeto de estudo por diferentes campos epistemológicos, o fenômeno processual da precarização do trabalho - assim como,a nível estrutural, a precariedade das formas e vínculos laborais contemporâneos - revela um consenso por parte de diferentes autores e autoras no que se refere a sua natureza. De maneira convergente, afirma-se que as suas condições de possibilidade estão atreladas ao predomínio da lógica financeira na economia global - acentuado nas décadas de 1980/90 -, à vigência das formas de acumulação flexível de capital, à ofensiva neoliberal e aos governos defensores da chamada desregulamentação dos mercados. A combinação desses fatores serviu como "adubo para a germinação" do fenômeno da precarização do trabalho.

No âmbito das clínicas do trabalho, particularmente da Psicodinâmica,o processo de precarização é considerado na perspectiva de uma " (...) adversidade socialmente gerada pela manipulação neoliberal da competição pelo emprego." (Dejours, 1999, p.124). Nesta consideração, parte-se do pressuposto de que a precarização não se refere apenas às formas de vínculo empregatício mas também - e isso bastante nos interessa - engendra-se na constituição de condições sociais, subjetivas e existenciais.

No bojo dessas reflexões, Dejours (1999) afirma que os principais efeitos do processo de precarização giram em torno de: mecanismos de intensificação do trabalho, com consequente aumento do sofrimento dos sujeitos; enfraquecimento de ações e movimentos coletivos contra a dominação e sofrimento no trabalho; estratégias defensivas de sujeitos que se veem "(...) negando o sofrimento alheio e calando o seu" (Dejours, 1999, p. 51); e o crescimento do individualismo devido, de forma particular, à constante ameaça de demissão presente nesses contextos.

A inscrição atual do cenário de precarização do trabalho pode ser observada através da fragilização dos arranjos laborais - que criam vínculos de trabalho "(...) terceirizados, temporários, em tempo parcial, por tarefas" (Costa & Gomez, 1999, p. 412). Segundo esses autores, a vulnerabilidade produzida por essas diversas formas de precarização tende ao desemprego recorrente, e consequentemente à exclusão social, já que esse processo aumenta o desemprego estrutural - causado pela substituição do trabalho humano pela tecnologia (Perche, 2011) - ao mesmo tempo que dificulta o acesso e reingresso aos postos de trabalho. Antunes (2001) nomeia a sociedade que emerge a partir deste cenário de "sociedade dos excluídos e precarizados".

As relações político-econômicas têm sido a bússola orientadora deste processo à medida em que a manutenção ou melhoria do cenário econômico é eleita como critério para analisar a organização e os vínculos do trabalho. A partir de crises econômicas surgem novas modalidades empregatícias, dentre elas os chamados subempregos que fortalecem a informalidade, a mercantilização da força de trabalho e a flexibilização das leis trabalhistas (Cruz, 2013).

Druck, Franco e Seligmann-Silva (2010, p. 237) entendem a precarização como: " (...) um processo social que cria uma permanente insegurança e volatilidade no trabalho, fragilizando os vínculos e impondo perdas nas mais variadas áreas (direitos, emprego, saúde e vida) para todos os que vivem do trabalho", como um fenômeno social, multidimensional e eminentemente político. Trata-se de um enredo que estabelece uma relação sujeito-trabalho que limita e individualiza, enquanto poderia desenvolver a dignidade, a solidariedade e as potencialidades do ser humano. Com isso, destacam que modificações aparentemente sutis na forma de gerir a economia de legislar sobre o trabalho produzem novas formas de ser, estar e viver no mundo (Antunes & Druck, 2015).

A partir das considerações anteriores, apresentaremos uma articulação realizada entre noções da Psicodinâmica do Trabalho - principal referencial teórico aqui escolhido, e os resultados de três pesquisas que mantém, em sua singularidade, um aspecto compartilhado: a imersão no contexto de precarização do trabalho.

 

Interlocuções entre práticas de pesquisa

Ao se debruçar sobre as relações dinâmicas entre aspectos da organização do trabalho (divisões, conteúdos, relações de poder e responsabilidades) e de processos de subjetivação (produção de modos de viver, pensar, sentir e agir), a Psicodinâmica do Trabalho revela-se como uma importante ferramenta para a análise dos desdobramentos subjetivos do contexto laboral na contemporaneidade (Mendes, 2007).

Esta disciplina parte de uma perspectiva que considera o trabalhar como a tentativa do sujeito de produzir em meio à lacuna existente entre as dimensões prescritas do seu trabalho (normas, regras, etc.) e o que efetivamente acontece no cotidiano de suas atividades, aspectos nomeados como trabalho real. Assim, o ato de trabalhar se estabelece como a tentativa de preencher a lacuna existente entre o trabalho prescrito e o trabalho real. Esse movimento produz sofrimento à medida em que as prescrições não abrangem os incidentes e imprevistos aos quais todo trabalho está sujeito. É o destino desse sofrimento que será responsável pelo processo de promoção de saúde e/ou doença nas situações de trabalho.

O aspecto prático desta disciplina busca mapear esses processos de saúde e adoecimento na relação do sujeito com o trabalho identificando quais modos de ser, estar e viver no trabalho são produzidos. Tais análises podem ser melhor observadas nas intervenções da clínica do trabalho e práticas de pesquisa, que evidenciam a preocupação para com os espaços de fala e escuta do sofrimento dos sujeitos imersos em diferentes conjunturas trabalhistas que podem, a partir dessa prá xis, refletir sobre o seu fazer, os aspectos que o atravessam, e, desta maneira, criar meios para transformá-lo.

Para Dejours, a Psicodinâmica do Trabalho é uma disciplina clínica na qual a teoria é alinhavada a partir de práticas, de encontros, de fala e escuta, de um campo. Por isso mesmo, partimos do pressuposto de que só é possível pensar os efeitos subjetivos do processo de precarização do trabalho a partir de falas dos sujeitos imersos nesses processos.

A Psicodinâmica nos fornece relevantes contribuições para efetuarmos análises no âmbito das situações de trabalho - considerando, evidentemente, as especificidades de cada contexto e o fazer singular de cada sujeito. A mesma analisa os contextos de trabalho a partir de três eixos: a organização do trabalho, a mobilização subjetiva e o sofrimento, defesas e patologias (Mendes & Araújo, 2012).

Na consideração desses fatores, partiremos agora para o desenvolvimento de nossas reflexões acerca dos resultados das pesquisas aqui mencionadas, observando de que maneira o processo de precarização do trabalho engendra diferentes efeitos subjetivos e modos de existir. Vale pontuar que a discussão das pesquisas privilegia aspectos mais conceituais do que práticos, entendendo que os efeitos subjetivos - embora manifestos de formas diversas - de maneira geral denunciam a inter-relação entre saúde mental e trabalho. Desse modo, partiremos de três categorias profissionais que servirão como dispositivos para pensar a precarização enquanto um fenômeno social.

Apresentaremos, primeiramente, um estudo intitulado "Fazendo atendimentos estilo drive-thru: a situação de trabalho dos psicoterapeutas atuantes em clínicas de planos de saúde". Esta pesquisa contou com a participação de oito psicoterapeutas que atuam em diferentes clínicas no estado do Rio de Janeiro, todas credenciadas a diversos planos de saúde. Foram realizadas uma entrevista coletiva (envolvendo três psicólogos) e cinco entrevistas individuais. Utilizou-se entrevistas semi-estruturadas que foram analisadas de acordo com a Análise de Núcleo de Sentido, proposta por Mendes (2007). Em todas as entrevistas, a pergunta "Como tem sido a sua experiência de trabalho em uma clínica credenciada a planos de saúde?" funcionou como disparador da conversa.

Começaremos a análise da situação de trabalho desses profissionais a partir de uma cena que foi narrada ao longo de uma das entrevistas realizadas:

O paciente entra no consultório, e em certo momento da sessão, pergunta ao psicólogo:

Paciente: - Nossa Doutora, você está bem? A sua cara está péssima.

A psicóloga ri e responde:Não estou muito bem, estou com muita dor na coluna e muito casada.

Paciente: - Puxa doutora! Se você quiser, eu posso ficar aqui quietinho, aí você pode usar o meu tempo para dormir ou descansar um pouquinho.

A psicóloga sorri e responde: Não, não precisa... sobre o que você estava falando mesmo?

Essa foi uma situação real de trabalho de uma das entrevistadas, a quem chamaremos de Clarissa. No período em que esta situação ocorreu, ela trabalhava há dois anos na clínica e, atendia quatro dias por semana, durante doze horas, com apenas 30 minutos de almoço. Sua agenda envolvia 23 atendimentos diários, cada um com 30 minutos de duração.

A partir dessa situação, é possível contextualizar a organização do trabalho desses profissionais que atuam em clínicas credenciadas a planos de saúde e precisam lidar com as particularidades e regras das operadoras (Quayle & Sady, 2007) e da clínica onde atuam. Nesse contexto, encaminhamentos médicos são necessários para que o psicoterapeuta realize a sua função; a baixa remuneração é uma realidade e quem estabelece um prazo para o acompanhamento psicológico é a operadora do plano (Quayle & Sady, 2007). Ademais, tem-se como agravante o fato de que ao prestar serviço a um terceiro, o valor recebido por este profissional precisa garantir o lucro do "intermediador", que também não convém chamar de empregador, já que os vínculos trabalhistas estabelecidos nestes contextos são diversos (Quayle & Sady, 2007).

Partindo da perspectiva da Psicodinâmica, analisar a organização do trabalho desses profissionais torna-se fundamental para pensar o processo de precarização da profissão de psicólogo clínico, posto que na situação de trabalho de um prestador de serviços de uma clínica tratamos de um cenário deflexibilização dos direitos e das relações de trabalho que facilita vínculos diferenciados. Os psicólogos de clínicas vinculadas aplanos de saúde não possuem vínculo empregatício, eles são prestadores de serviços dessas clínicas, que também funcionam como prestadores de serviços das operadoras de saúde. Essa situação diminui o controle sobre os vínculos, relações e o cumprimento dos direitos trabalhistas, facilitando um aumento de situações de trabalho precarizadas. Esse enredo, atrelado ao aumento da competitividade, constrói uma realidade de baixos salários, que por sua vez, sugere a necessidade do aumento do número de horas trabalhadas. Uma conjuntura que reflete uma precarização do trabalho, que no limite, se desdobra na precarização da saúde e da vida desses sujeitos.

Ao longo das entrevistas o fazer terapêutico foi apontado como um dos principais fatores de prazer do trabalho, lhes permitindo acompanhar histórias e contextos de melhora dos pacientes. A pesquisa também mostrou que as principais estratégias de defesa estavam relacionadas aos silenciamentos das necessidades e dores, tendo como base a medicalização quando a cabeça ou a coluna estavam doendo pelos atendimentos sucessivos e a interrupção das necessidades como prender a urina. Essas eram as formas encontradas por esses psicólogos de diminuir a sua percepção sobre os incômodos causados por esse contexto. Dentre as mobilizações, destacaram-se as ações criadas coletivamente para "burlar" algumas regras da clínica. Os entrevistados relataram muitos procedimentos das clínicas que feriam o código de ética do psicólogo, dentre eles o acesso que as recepcionistas tinham aos prontuários e registros dos pacientes. Nesse sentido, afirmam que "burlar o sistema era seguir o código de ética... ou você se submete às normas da clínica, ou você fere a sua consciência, a sua relação terapêutica, você fere mil coisas". Estes foram os movimentos que esses sujeitos conseguiram fazer na tentativa de atrelar as exigências dessa organização do trabalho e as suas necessidades pessoais e profissionais em relação ao fazer psicoterapêutico.

Dito isso, um dos nossos propósitos com esse artigo é explicitar como essa precarização apresenta-se nas situações cotidianas de trabalho e os efeitos subjetivos desse processo. No caso dos psicoterapeutas pesquisados observou-se que a sobrecarga de trabalho facilita o silenciamento das necessidades e dores, e a insatisfação constante é um dos principais efeitos subjetivos frente a realidade de trabalho. Nas palavras de Catarina: "Não tem um espaço adequado, não tem um tempo adequado, não tem uma remuneração adequada", e por isso, como afirma Fabrício: "Para poder compensar a remuneração que não é dada de maneira adequada, justa, a gente passa aí de 10 a 12h fazendo atendimentos estilo drive-thru, né... e perdendo exatamente nisso, em qualidade de vida, perdendo em tempo".

Por fim, destacamos que para além da insatisfação, da sensação de perda de tempo e de qualidade de vida e dos silenciamentos das necessidades, as ações micropolíticas de resistência como a burlagem das regras das clínicas que ferem o código de ética da profissão também compõem os efeitos subjetivos do processo de precarização do trabalho desses psicólogos clínicos.

Mediante a tudo isso, foi possível entender essa situação de trabalho como um contexto precarizado que faz coincidir tantos aspectos adoecedores quanto movimentos em direção à afirmação da vida, por parte destes profissionais. Sobretudo, é preciso destacar que quando perguntados sobre o vínculo que possuíam com a clínica, muitos profissionais não conseguiram ter certeza ao responder: alguns se classificaram como terceirizados, outros como prestadores de serviço. Entendemos que essa pesquisa nos convocou para um olhar sobre os vínculos de trabalho. Pensando nisso, apresentaremos duas pesquisas acerca da temática da terceirização, que poderão nos auxiliar com algumas reflexões.

Discutir a vulnerabilidade no mundo laboral a partir da terceirização sob a ótica da saúde do trabalhador é uma necessidade de extrema relevância. De acordo com Assunção-Matos e Bicalho (2016), alterou-se a forma de exigir e escolher novos trabalhadores e trabalhadoras para o mercado a partir das transformações ocorridas pela historicidade, os modos de trabalhar assumem outros contornos, com predomínio da atividade laboral temporária e terceirizada, inserida em um mercado mais dinâmico, com exigências de maior flexibilidade e polivalência.

Diante desses modelos dicotômicos de operacionalização dos novos modos de trabalho, cabe destacarmos que recentemente foi aprovada no Brasil uma lei envolvendo o processo de terceirização: esta sanção ocorreu mais precisamente em 31 de Março de 2017, sob o número 13.429/17. A lei dispõe, entre vários temas em tensionamento neste artigo (precarização do trabalho, perda de direitos, pejotização1 etc) sobre a permissão das empresas terceirizarem suas atividades-fim, ou seja, suas atividades essenciais. Entenderemos, em seguida, este e outros pontos importantes que irão influenciar positiva e negativamente a vida dos trabalhadores e trabalhadoras, das empresas, do mercado de trabalho e da economia como um todo. As análises aqui expostas foram feitas através da própria lei 13.429/172 (divulgada no Diário Oficial da União), Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) de 1988 e no site da Câmara dos Deputados.

Iniciaremos nossa discussão apresentando os pontos positivos de se ter legitimado a terceirização em um país onde esse entendimento ficava a cargo de cada juiz. Quanto às obrigações trabalhistas, o texto aprovado estabelece a "responsabilidade subsidiária" da empresa contratante em relação à responsabilidade da empresa de serviços terceirizados pelas obrigações trabalhistas que, anteriormente, estava acrescido a "responsabilidade solidária". Porém, a responsabilidade subsidiária é mais benéfica ao trabalhador, pois lhe garante mais segurança quando no caso de falência da empresa, ou seja,os bens da empresa contratante somente poderão ser penhorados pela Justiça se não houver mais bens da fornecedora de terceirizados para o pagamento da condenação relativa a direitos não pagos.

Já as obrigações previdenciárias deverão seguir a regra estipulada na Lei 8.212/91, que prevê o recolhimento de 11%, feito pela empresa contratante e descontado do valor a pagar à empresa terceirizada. Assim, a empresa terceirizada não poderá sonegar mais a previdência do empregado, sendo descontado na fonte.

Pensar em uma legislação pela ótica do empresariado, é entender que o trabalhador assalariado, aquele que efetivamente produz a riqueza para o país, não possui relevância ética para a economia e, entendemos desta forma, pois os pontos elencados a seguir demonstram que esta nova lei é claramente tendenciosa para a classe empresária. Acreditamos ser um novo marco regulatório da terceirização no Brasil, principalmente quanto à sua constitucionalidade e assinala-se um evidente mistifório entre os conceitos de empresas que prestam serviços e empresas de trabalhos temporários.

O primeiro ponto, que acreditamos ser o mais polêmico devido às possíveis consequências na economia e no mercado, diz respeito à autorização para terceirizar a atividade-fim de uma empresa. Outro ponto importante é que a lei, estende o prazo de três para seis meses no que se refere ao tempo permitido para trabalho temporário (entram nesse "pacote" todos os empregados que iniciam qualquer tipo de trabalho em empresas privadas, estagiários, etc). Sobre as garantias contratuais para os trabalhadores e trabalhadoras, foram mudadas cláusulas que deverão constar obrigatoriamente no contrato de prestação de serviços sobre a relação da fiscalização da tomadora de serviços quanto ao recolhimento de obrigações previdenciárias e trabalhistas e a previsão de multa de R$ 5 mil (cinco mil reais) por descumprimento dessas obrigações a cada trabalhador prejudicado.

Quando abordamos a temática das condições de trabalho, também identificamos perdas: O texto sancionado pelo Presidente da República, não prevê o mesmo atendimento médico e ambulatorial destinado aos empregados da contratante: ele o torna facultativo, incluindo nesse caso o acesso a refeitórios. De acordo com a nova lei é permitida às empresas terceirizadas subcontratarem alguns de seus serviços, pois é facultada a subcontratação de outras empresas para realizarem serviços de contratação, remuneração e direção do trabalho a ser realizado por seus trabalhadores e trabalhadoras nas dependências da empresa contratante.

Entendemos que a nova legislação altera o nosso olhar sobre esta condição de trabalho, evidenciando a importância da pesquisa e de seus resultados. A partir destas considerações, apresentaremos a pesquisa intitulada "Satisfeito ou Satisfazendo? Estudo sobre a satisfação dos trabalhadores e trabalhadoras terceirizados do DETRAN/RJ: quando trabalhar precariamente não é uma questão de escolha", a partir da qual identificou-se uma ampla reflexão sobre aspectos relacionados ao legislativo brasileiro acerca da terceirização e da precarização do trabalho: identificamos que a legislação, de um certo modo, consolida a precarização das relações de trabalho, reafirma a perda de direitos dos sujeitos assalariados e consequentemente secciona o trabalho coletivo, entendido até então como algo que justificava a luta de uma classe de assalariados, ficando notória a necessidade de repensarmos como as normas legislativas afetam diretamente não só os direitos mas também aspectos subjetivos que vêm causando a cada dia mais vivências de sofrimento, como: aumento dos níveis de estresse e absenteísmo no trabalho; crescimento do individualismo e conflitos e um sentimento de desmotivação coletiva.

Utilizou-se duas abordagens metodológicas distintas para explorar o impacto da terceirização sobre a satisfação no trabalho. A primeira abordagem foi eminentemente qualitativa: realizamos entrevistas individuais com trabalhadores e trabalhadoras terceirizados. Observou-se, em sua grande maioria, relatos de vivências de sofrimento voltadas para as condições laborais e relatos de satisfação e prazer no trabalho no que se refere a questões das relações entre sujeitos, principalmente com as chefias imediatas. A segunda abordagem utilizada pode ser compreendida como quantitativa: contamos com a participação de 260 funcionários, sendo 50 concursados que representaram o contingente de todos os trabalhadores e trabalhadoras primários3 que trabalham nas Unidades de Serviço do DETRAN/RJ e 210 terceirizados.

A partir dessas considerações, apresentamos alguns resultados da pesquisa. Essas sinalizações deverão ser analisadas e pensadas como algo que faz com que a satisfação entre trabalhadores e trabalhadoras primários e terceirizados não seja igual. Analisamos a média geral de satisfação desses sujeitos e constatamos que existe uma diferença, ficando comprovada pelo fator "média" que os trabalhadores e trabalhadoras primários encontram-se no geral, mais satisfeitos do que os terceirizados. Como principal conclusão pudemos identificar uma maior diferença entre a satisfação com o salário e satisfação com as promoções.

Aqui, observamos que a particular satisfação desses sujeitos com relação a aspectos salariais e promoções representa um fator que, de certa forma, é tido como algo positivo, como um elemento que ameniza, parcialmente, as debilidades e adversidades dos seus contextos de trabalho. Deste modo, podemos pensar, baseados nessas sinalizações, que a ausência desses fatores promotores de satisfação poderia catalisar a complexidade desses contextos, conduzindo os sujeitos a horizontes de sofrimento no trabalho.

As sinalizações deste estudo apontam para os múltiplos desdobramentos oriundos da brecha contratual presente entre trabalhadores e trabalhadoras terceirizados e sujeitos com vínculo contratual direto, revelando os diferentes modos de sentir, agir e pensar germinados a partir desta lacuna. Deste modo, e com base no material teórico-prático já desenvolvido pelo campo da Psicodinâmica, observaremos, por meio das sinalizações obtidas na próxima pesquisa a ser apresentada, que os sujeitos denominados "terceirizados" estão envolvidos em um contexto no qual predominam formas e práticas instituídas de trabalho que, em relação umas com as outras, abafam as possibilidades vivas do fazer singular e da ação coletiva, oferecendo aos sujeitos um cotidiano normativo, regular, prescritivo e linear, delimitando claramente um campo restrito de possíveis.

Sobre este ponto, sabemos que o próprio trabalhar atrela-se a um engajamento da subjetividade e, como desdobramento, a um tensionamento entre experiências singulares e ações coletivas (Dejours, 2004). Observa-se, portanto, que a materialização de incômodos, estranhamentos e vivências de sofrimento dos sujeitos em ações de resistência, movimentos coletivos de transformação e reconfiguração dos seus contextos de trabalho evidencia o potente caráter transformador do trabalho tal como ele é considerado pela Psicodinâmica.

Neste cenário, haveria espaço para outros possíveis? Seria possível identificar uma brecha através da qual podem-se engendrar movimentos de resistência diante dessa lógica normativa e identitária dominante? No âmbito dessas indagações, por fim, poderíamos nos questionar: como os sujeitos poderiam, então, se engajar coletivamente em ações de enfrentamento que estejam a favor de formas de trabalho pautadas na ética e na dignidade da vida?

Em consonância com tais questões, e com a intenção de promover uma reflexão crítica acerca da articulação entre a dinâmica da terceirização e processos de subjetivação, foi realizada uma pesquisa qualitativa que tinha como principal objetivo analisar o trabalho de sujeitos que possuem vínculo contratual terceirizado em uma universidade pública brasileira.

Os sujeitos participantes - quatro mulheres e dois homens - possuem vínculo contratual terceirizado na prestação de serviços para uma universidade federal localizada no município do Rio de Janeiro. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas individualmente com base no referencial mencionado. Para a análise das sinalizações obtidas também foi escolhido o método de Análise de Núcleos de Sentido - ANS, desenvolvido por Mendes (2007). Os principais resultados do estudo apontam que os sujeitos subcontratados são dotados de certa invisibilidade, vivenciando situações de discriminação e outras inúmeras injustiças em seus contextos de trabalho. A falta de reconhecimento pelo seu fazer acompanhada dos atrasos salariais, da sobrecarga de atividades e das más condições estruturais de trabalho apresenta-se como uma das sinalizações mais críticas obtidas durante as entrevistas.

Aqui, podemos promover uma reflexão que orbita em torno do fato de que o sofrimento, em tensionamento nas condições de trabalho, vem sendo estudado por diversos campos de conhecimento, tanto no que tange aos seus efeitos subjetivos quanto ao que se refere às suas condições de possibilidade sócio-históricas (Druck, 2011; Antunes, 2014; Hamraoui, 2014). No âmbito dos sujeitos envolvidos no processo de terceirização, suas realidades de trabalho são ainda mais preocupantes, visto que possuem inúmeras diferenças frente aos trabalhadores e trabalhadoras com vínculo de trabalho direto, recebem menores salários, possuem jornadas de trabalho maiores e, dentre outros fatores, estão mais expostos aos riscos de acidentes e situações produtoras de sofrimento que possam resultar em quadros de adoecimento no trabalho (Antunes & Druck, 2015).

Neste contexto, observa-se a predominância de formas prescritivas, regradas, lineares, fixas e processuais de trabalho em detrimento de um fazer singular, único, arriscado, imprevisível e construído por cada sujeito, que escapa à sujeição normativa. Este movimento de subtração das capacidades criativas no trabalho pode ser entendido, de acordo com Lhuilier (2012), como um processo de invisibilidade e opacidade do trabalho real.

Em paralelo, é possível observar diversos efeitos subjetivos decorrentes da constituição deste cenário. O surgimento do medo e da submissão vai de encontro com a prevalência de práticas flexíveis no trabalho que, de acordo com Ferreira (2009), podem ser refletidas nas diferentes formas de patologias sociais oriundas desses contextos. Como exemplo, a constituição das patologias do silêncio e das patologias da solidão revelam situações de violência - de diversas sortes - que foram vivenciadas nos ambientes laborais produzindo, por sua vez, sérios efeitos na saúde psíquica dos sujeitos. Tais consequências, uma vez postas, acentuam o aparecimento de processos de adoecimento no trabalho e dificultam a formação de movimentos coletivos de cooperação e transformação (Dejours, 2007).

Pode-se refletir que se o sofrimento no trabalho emerge a nível individual, a solução para os obstáculos desse contexto se dá na ordem dos coletivos. Os coletivos de trabalho representam um processo no qual acordos normativos são construídos pelos trabalhadores e trabalhadoras voluntariamente, no seio da vontade comum. São espaços de resistência dossujeitos no caminho que conduz à preservação da sua saúde mental. Em contrapartida, a falta desses coletivos, desses espaços públicos de discussão, leva ao individualismo e outras práticas que respaldam as formas normativas de dominação presentes nas organizações. Desta maneira, a criação de formas de resistência e enfrentamento no trabalho advém da luta de relações solidárias e cooperativas, no seio da vontade coletiva (Cruz Lima, 2013). Percebe-se que a precarização das formas de trabalhar tende a, constantemente, abafar a emergência de formas outras que promovam abalos nas estruturas já instituídas assim como dificultar as possibilidades de reconfiguração dos imperativos nessas conjunturas.

Diante de tal realidade, alguns movimentos de enfrentamento para com as condições normativas começam a emergir como esperanças que apontam para horizontes de transformação e mudança, dando destaque para possíveis formas de resistência no trabalho (Martins & Mendes, 2012). No espectro da pesquisa em questão, frente à ofensiva da multifatorialidade dos obstáculos que constituem as dinâmicas de subcontratação, foi possível observar, curiosamente, um importante processo fertilizado no seio das ações coletivas dos trabalhadores e trabalhadoras participantes do estudo: a criação e a manutenção da Associação dos Trabalhadores Terceirizados da UFRJ (ATTUFRJ), instância que visa a promoção de maior legitimidade e ações que garantam o cumprimento de direitos trabalhistas para essa classe.

Como efeitos dessa iniciativa, são observados importantes desdobramentos como o recebimento de salários atrasados, a diminuição da carga horária de trabalho, campanhas de arrecadação de alimentos para os seus integrantes e maior aproximação nos diálogos com a Reitoria da universidade. Tais avanços reafirmam a potência adormecida das ações dos coletivos de trabalho diante da precarização naturalizada e re-produzida na maioria das condições laborais na contemporaneidade.

Diante desse contexto, as resistências podem ser entendidas como "linhas desobedientes que problematizam os princípios de ordenação e conservação da vida" (Heckert, 2014, p. 473). Baseado neste esforço desobediente, entende-se que o cotidiano se revela como um campo de forças nos quais podem ser produzidas repetições das práticas que se encontram cristalizadas em sua vigência ou, em contrapartida, ações de criação de processos insurgentes que venham afirmar outros modos de existência. Assim, os movimentos de resistência orbitam em torno de tal invenção, no caminho contrário ao da naturalização que impossibilita aos sujeitos o processo de resistir e, consequentemente, (re)existir.

Em outras palavras, - e tendo como base as sinalizações obtidas nesta pesquisa - pode-se afirmar que os movimentos de resistência podem conduzir os sujeitos a horizontes de não adaptação normativa e identitária, e à não-sujeição alienada, levando-os a cenários imprevisíveis e a percursos que necessitam ser criados e não meramente obedecidos. Na perspectiva das situações de trabalho, esses movimentos representam fissuras, brechas e escapes nas lógicas enrijecidas e naturalizadas de como se deve trabalhar e, no limite, viver.

 

Considerações finais

Na intenção de observar os efeitos subjetivos do processo de precarização do trabalho na contemporaneidade por meio da interlocução entre práticas de pesquisa, observamos que os três estudos apresentados possuem importantes pontos de interseção. A saber: neles, os contextos de trabalho e a forma como se dá a sua organização são fatores que produzem sofrimento subjetivo dos trabalhadores e trabalhadoras observados; a flexibilização e debilidade dos vínculos trabalhistas são aspectos que delimitam dinâmicas laborais voláteis e pautadas, muitas vezes, pelo sentimento de "não pertencimento" por parte dos sujeitos; o surgimento e continuidade do medo, dos silenciamentos e da submissão diante das práticas de trabalho precarizado;o aparecimento de processos de adoecimento psíquico no trabalho; e os impasses encontrados pelos sujeitos para a formação de movimentos e ações coletivas contra a dominação e sofrimento nesses contextos.

A partir das reflexões aqui desenvolvidas, e também da consideração das tendências político-econômicas da atual conjuntura trabalhista do Brasil, constata-se que o horizonte para o qual as relações de trabalho caminham possui uma configuração de caráter ainda mais precarizado. Tomemos como exemplo as recentes decisões políticas relacionadas à aprovação da "terceirização sem limites" e o Projeto de Lei sobre o ensejo da Reforma Trabalhista no Brasil.

Diante do solo não propício para a germinação dos coletivos de trabalho, os movimentos de resistência e enfrentamento para com as lógicas vigentes representam o adubo necessário para que floresçam ações destinadas à reconfiguração dos campos normativos e identitários cuja função é observada nas formas flexíveis de dominação no trabalho.

Entendemos, por fim, que a produção de estudos relacionados à temática da precarização do trabalho deve ser catalisada, tanto pelos intensos efeitos gerados na vida dos sujeitos que nela se encontram quanto pelas previsões e tendências político-econômicas lamentáveis do país. Para além dos efeitos subjetivos da precarização do trabalho, este artigo também deseja convocar uma reflexão sobre a legitimidade do reconhecimento de direitos e formas de trabalho que estejam a favor da vida e pautadas na ética e na dignidade - observa-se, aqui, um importante campo de tensionamentos para reflexões e movimentos da psicologia política como instrumento de reconfiguração de lógicas normativas. O não estranhamento das práticas de dominação no trabalho abre caminho para a sedutora naturalização dessa lógica que, de maneira constante, insiste em nos tornar seus meros reprodutores.

 

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Submetido em: 20/05/17
Aceito em: 24/11/2017

 

 

1 Termo referente à contratação de serviços, realizados por pessoas físicas, por meio de pessoa jurídica constituída para esse fim.
2 Diário da União: http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=31/03/2017&jornal=1000&pagina=1&totalArquivos=8
3 Trabalhadores e trabalhadoras contratados de forma direta e/ou concursados.

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