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Revista Psicologia Política

Print version ISSN 1519-549XOn-line version ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.18 no.41 São Paulo Jan./Apr. 2018

 

ARTIGOS

 

Políticas de patrimonialização e a produção de subjetividades ao sul do Brasil

 

Patrimonialization policies and the production of subjectives to the south of Brazil

 

Políticas patrimonialización y producción de la subjetividades el sur de Brasil

 

Politiques de patrimonialisation et production de subjectivités au sud du Brésil

 

 

Flávia Cristina Silveira LemosI; Dolores GalindoII; Andrea ZanellaIII; Fernanda Cristine Santos BengioIV; Neiva de AssisV

IProfessora associada I, em psicologia social na UFPA. Bolsista de produtividade do CNPQ-PQ2. flaviacslemos@gmail.com
IIProfessora associada I na UFMT. dolorescristinagomesgalindo@gmail.com
IIIProfessora titular de Psicologia na UFSC. avzanella@gmail.com
IVDoutoranda em Psicologia na UFPA. fernandabengio@ymail.com
VProfessora de Psicologia na UFSC. neiva.assis@ufsc.br

 

 


RESUMO

Tensionar alguns paradoxos das práticas de patrimonialização cultural se apresenta como foco desse artigo. É inegável que as políticas de aferição de patrimônios culturais conferem legitimidade e importância a grupos sociais e suas práticas, porém ao mesmo tempo mantém à margem e invisibilizam vários outros, como os povos indígenas, que tem sido historicamente alijados de uma escrita da história amplamente reconhecida. Patrimonializar as práticas culturais desses grupos outros, por sua vez, produz efeitos não desejados, sendo um dos principais a anexação de múltiplas práticas culturais como arquivos de existências disciplinadas. Necessário, pois, se faz problematizar as práticas de patrimonialização vigentes e o reconhecimento de manifestações culturais sem, contudo, subjugá-las à morte em vida via cristalização de seus próprios movimentos.

Palavras-chave: Patrimônio Cultural; visibilidades; política; subjetividades; indígenas.


ABSTRACT

Tensioning some paradoxes of practices of cultural patrimonialization is presented as the focus of this article. It is undeniable that policies for the assessment of cultural heritage confer legitimacy and importance on social groups and their practices, but at the same time it keeps on the sidelines and invisibilizes several others, such as indigenous peoples, who have historically been left out of a widely recognized history writing. Patrimonializing the cultural practices of these other groups, in turn, produces unwanted effects, one of the main being the annexation of multiple cultural practices as archives of disciplined existences. It is necessary, therefore, to problematize existing patrimonial practices and the recognition of cultural manifestations without, however, subjecting them to death in life through the crystallization of their own movements.

Keywords: Cultural Heritage; Visibilities; policy; Subjectivities; Indigenous peoples.


RESUMEN

Tensionar algunas paradojas de las prácticas de patrimonio cultural se presenta como el foco de este artículo. Es innegable que las políticas de evaluación del patrimonio cultural confieren legitimidad e importancia de los grupos sociales y sus prácticas, pero al mismo tiempo mantienen al margen y invisibilizana varios otros, como los pueblos indígenas, que históricamente han sido alejados de la escritura de la historia ampliamente reconocida. Patrimonializar prácticas culturales de estos otros grupos, a su vez, produce efectos no deseados - el principal es la anexión de múltiples prácticas culturales como archivos existenciales disciplinados. Es necesario, pues, que se cuestione la patrimonialización de las prácticas y el reconocimiento de los eventos culturales de intensidad, pero sin someterlos a la muerte en vida a través de la cristalización de sus propios movimientos.

Palabras clave: patrimônio cultural; visibilidad; la política; subjetividades; indígena.


RÉSUMÉ

Cet article porte sur la mise en tension de certains paradoxes des pratiques de patrimonialisation culturelle. Il est indéniable que les politiques vérification du patrimoine culturel confèrent une légitimité et une importance aux groupes sociaux et à leurs pratiques, mais en même temps, elles restent en marge et invisibilise plusieurs autres groupes, tels que les peuples autochtones, historiquement laissés pour compte par une écriture largement recconue. Patrimonialiser les pratiques culturelles de ces autres groupes produit à son tour des effets indésirables. L'un des principaux effets indésirables est l'annexion de multiples pratiques culturelles en tant qu'archives d'existences disciplinées. Il est donc nécessaire de problématiser les pratiques patrimoniales existantes et la reconnaissance des manifestations culturelles sans toutefois les soumettre à mort dans la vie à travers la cristallisation de leurs propres mouvements.

Mots-clés: Patrimoine Culturel. Les visibilités. Les Politiques. Les subjectivités. Les Peuples Autocthones.


 

 

Introdução

Este artigo visa analisar práticas de patrimonialização a partir de olhares denominados de psicologia em conversação com a política. Resulta do interesse de pesquisa em que as autoras estiveram envolvidas nos últimos anos. Essas pesquisas foram documentais com viés social e histórico, porém, o presente texto não objetiva relatar os procedimentos metodológicos utilizados nos estudos realizados sobre o tema. O artigo foi constituído em formato de ensaio, trazendo alguns acontecimentos da política de patrimonialização no Sul do Brasil enquanto disparador analítico.

Várias e aceleradas transformações em tempos de comunicação globalizada e imediata têm alterado as maneiras de viver, em vários aspectos: transformações nas práticas políticas e econômicas, na circulação da cultura, na distribuição do fluxo das informações, nos deslocamentos geográficos, entre outras. Essas mudanças, erigidas sob a égide da internacionalização da lógica de mercado e que se espraiam por variadas esferas, como educação, cultura, direito e ciência, estão ligadas às crescentes práticas que visam classificar os fazeres de diferentes grupos sociais e dos valores que lhes são atribuídos, em circuitos entrecruzados de definição e guarda dos patrimônios globais, nacionais, regionais e locais.

Para Montero (2009), interessa à psicologia, no campo de seu estatuto político, analisar a multiplicidade de acontecimentos que ganham vulto de transformação social, cultural, econômica, subjetiva e histórica. No caso especial da cultura, vale ressaltar a importância dos estudos que problematizam a dinâmica da capitalização cultural e sua cada vez maior modulação por sistemas "supranacionais" (Bauman, 1999), não ficando restrita à gestão pautada na soberania do Estado. Ela praticamente se tornou uma moeda de importante valor no mercado neoliberal, sendo pauta de investimentos que transformam cidades em destinos turísticos justamente em virtude do que dispõem a seus visitantes como atrativos: arquitetura, museus, obras de arte à céu aberto, efervescência artística.

Nesse cenário, as práticas de patrimonialização, compreendidas como práticas de reconhecimento de algumas expressões culturais a serem preservadas, conferem maior legitimidade a alguns grupos sociais e suas práticas. Destaca Castro (2008) que a patrimonialização é um "terreno histórico e socialmente configurado, permeado por tensões de diversas ordens, que se tomam decisões a respeito de qual patrimônio deve-se preservar, como deve-se preservar, e para quem". Walter Benjamin (1987, p. 225) afirma que "nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie". As práticas de patrimonialização de bens culturais são, portanto, ao mesmo tempo afirmação de alguns grupos sociais, de seus valores e práticas, e negação de tantos outros, historicamente alijados de uma escrita da história amplamente reconhecida.

Necessário, pois, se faz problematizar as práticas de patrimonialização vigentes e a visibilidade de manifestações culturais consideradas menores. Porém, há que se ter em conta os riscos advindos do reconhecimento de uma prática cultural como patrimônio: a morte em vida via cristalização de seus próprios movimentos. Esse é um dos principais perigos dos processos de patrimonialização, a saber, a anexação de múltiplos saberes como arquivos de existências disciplinadas. Eis as questões que nos mobilizam para esta escrita.

Tensionaremos alguns paradoxos das práticas de patrimonialização que hierarquizam práticas culturais e instituem políticas de subjetivação nacionalistas dirigidas aos povos indígenas, destacando a importância de se visibilizar culturas outras, destoantes das hegemonicamente reconhecidas, e ao mesmo tempo alguns riscos desse processo. Ao longo desse artigo, buscaremos tensionar efeitos das políticas de patrimonialização tomando como estudo de caso a cidade catarinense São Francisco do Sul, com sua paisagem urbana reconhecida como patrimônio nacional e as políticas de subjetivação que sobrevieram sobre os povos da etnia guarani como efeitos dos processos de reconhecimento e construção de patrimônios.

 

Patrimônio, Cultura e Políticas de Subjetivação pela Diversidade

As primeiras décadas do século XXI dão fortes sinais de que a celebração da humanidade como uma grande nação unida pela diversidade tem fracassado, o que vem sendo evidenciado pela crítica à herança colonialista que homogeneíza práticas culturais de segmentos e grupos, tentando fixá-las, com usos apaziguadores em conflitos políticos entre grupos e indivíduos, cidades e bairros, países e continentes. Nesse cenário, são postas em cena práticas de patrimonialização cultural que garantem a sobrevivência de alguns grupos sociais e a exclusão de outros por meio de processos fincados numa forte herança colonialista que se produz na tolerância à diversidade e na negação das singularidades como políticas de integração.

Constata-se que o projeto de valorização da diversidade ganha destaque com a salvaguarda do que se chama de imaterial, mas em tempos de pequenas guerras cotidianas, o diverso precisa se adequar ao diagrama que fixa e cria guetos, permitindo sua circulação por determinados espaços apenas com autorização prévia descritas no jogo do consumo e apropriação. Neste cenário, é necessário examinar simultaneamente a atuação dos principais responsáveis pelas políticas culturais e as condições colocadas para a democratização via políticas de integração pautadas pelo multiculturalismo.

Nas políticas de integração de cunho patrimonialista, a diferença acaba sendo operada como sinônimo de não igual, de maneira que a singularidade se perde na criação de determinadas demandas, produzindo uma quase assepsia dos artefatos e práticas culturais, desconsiderando as condições de desigualdade social e segregação das quais são mudos porta-vozes. Assim, no processo de patrimonialização cabe perguntar: quais grupos podem requerer certos direitos, uma vez que o patrimônio nacional pertence a todos os filhos da nação e o patrimônio da humanidade, por conseguinte, pertence a toda humanidade? Como se conjugam as práticas de valoração de diferenças com a "persistência de construções culturais englobantes, como as associadas à ideia de nação" (Castro, 2008, p.17)?

As tomadas de decisão características das práticas de patrimonialização se conformam sob a égide de forças que se encontram em constante tensão, ainda que essas tensões sejam obscurecidas e as vozes que se opõem às lógicas dominantes sejam silenciadas. Ao dirigir o olhar à América Latina, Canclini (2008) constata que "choques interculturais e o racismo crescem em muitas fronteiras nacionais e em todas as grandes cidades do continente (p. 180)". Pensando nos povos indígenas brasileiros, se de um lado, a proteção mantém algumas práticas culturais e povos do extermínio promovido pela invisibilidade, de outro, coloca os indígenas numa relação com a terra e a cultura na qual se convertem em proprietários ao invés de pertencentes a ela. A distinção entre pertencer à terra e ser proprietário dela é uma singularidade indígena ignorada pelas políticas indigenistas do Estado Nacional.

 

Do Patrimônio Oligárquico à Patrimonialização Democrática

A legislação brasileira sobre preservação remete ao uso da palavra patrimônio na sua dimensão econômica, jurídica e de estrutura familiar, como bens familiares, heranças, propriedade (Camargo, 2002). As formas iniciais de atenção dispensadas ao patrimônio reuniam, sobretudo, trabalhos de inventário, conservação e restauro de bens arquitetônicos e objetos ligados à ideia de erudição e consolidação dos Estados-nação, e levaram à criação no Brasil do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) em 1937, posteriormente transformado em IPHAN, autarquia federal vinculada ao Ministério da Cultura.

O anteprojeto do IPHAN, criado por Mário de Andrade, dava especial atenção à cultura popular, todavia prevaleceu o tom hierarquizado das artes cultas quando de sua implantação. Nesse cenário, o patrimônio histórico se referia eminentemente às edificações; o patrimônio natural referia-se às riquezas existentes no solo e subsolo, e o patrimônio cultural, por sua vez, era conceito que paulatinamente foi sendo ampliado concomitantemente à expansão do conceito de cultura (Brusadin, 2012).

Vale lembrar que, antes do SPHAN, os museus etnográficos e Institutos Históricos e Geográficos eram as principais instituições incumbidas de "produzir e guardar" a história oficial do Brasil (Schwarcz, 1993). As primeiras décadas das práticas de patrimonialização efetuadas no Brasil foram balizadas pelo conceito de cultura identificado com "civilização".

Nos últimos 60 anos, a preocupação com a documentação das manifestações liga das à cultura tradicional e popular não esteve, no Brasil, restrita ao IPHAN ou à esfera patrimonial. Várias outras instituições se debruçaram sobre o assunto, entre elas destacando-se o Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, ligado hoje à FUNARTE. (IPHAN, 2003, p.15).

Durante as décadas seguintes à criação do IPHAN, várias transformações administrativas incidiram sobre a gestão da história e arte patrimonial e da cultura do Brasil. Serviços, departamentos e demais órgãos criados desde a década de 1930, relacionados ao campo da cultura, foram extintos ou anexados a outras estruturas de governo administrativo tais como o Instituto Brasileiro para Educação, Ciência e Cultura (IBECC) em 1946, a Comissão Nacional de Folclore, em 1947 (CNF).

Importante destacar que a criação do IBECC seguiu orientação da então instituída Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), em 1946, indicando que os países signatários de suas recomendações observassem os aspectos culturais dos países. A preservação de patrimônios está historicamente associada, portanto, à ideia de conservação, de cristalização de uma história de segregação, e centrou a sua atenção mais nos objetos e menos nos sentidos produzidos ao longo do tempo (Chagas & Abreu, 2003, p.11). No Brasil o foco nos bens - que coincidiam, fortemente, com o patrimônio das oligarquias; foi tensionado a partir da Carta Constitucional de 1988, a qual declara a existência de bens materiais e imateriais e o dever do Estado em protegê-los como patrimônio cultural nacional (Paoli, 1992).

Com a carta constitucional de 1988, os bens imateriais que abarcam a produção das culturas de grupos minoritários, historicamente excluídos como, por exemplo, os povos indígenas, foco deste artigo - são, definitivamente, assimilados à construção continuada de um projeto de identidade nacional cidadã. Esse projeto é caracterizado por políticas de subjetivação que circunscrevem os grupos sociais que serão ou não considerados os representantes legítimos da cultura brasileira aos quais caberá comprovar sua autenticidade com base em critérios delimitados pelas instituições transnacionais e nacionais responsáveis pelo reconhecimento.

 

Cultural Imaterial, Patrimônio e Identidade Nacional

Um passo importante a considerar na problematização do que pode vir a ser patrimonializado e alguns dos seus efeitos de subjetivação reside em discutir o marco regulatório que é o Programa Nacional de Patrimônio Imaterial, o qual instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza imaterial, por meio do Decreto 3.551 de 4 de agosto 2000. As bases de reinvindicação por decreto remontam aos modernizadores anos trinta: o poeta Mario de Andrade e o designer gráfico Aloísio Magalhães, expoentes do movimento modernista no Brasil, reivindicavam o registro dos aspectos imateriais do patrimônio cultural brasileiro, porém sem serem ouvidos.

Denominar um patrimônio como imaterial ou intangível remete a uma concepção de produções culturais transitórias, efêmeras, mutantes, continuamente renovadas. Abrangem aspectos da vida social e cultural variados, como lugares, festas, religiões, a medicina popular, a música, dança, culinária, técnicas etc (Fonseca, 2003). Para o IPHAN, o patrimônio imaterial engloba, pois, uma infinidade de manifestações prenhes de valores constitutivos da vida de uma população ou de uma comunidade. A literatura oral, os conhecimentos tradicionais, os saberes, as artes de representar e as línguas constituem estas diversas formas de expressão que são as fontes fundamentais da diversidade cultural dos povos. Preservá-las se configura como um dos meios de conter o risco de empobrecimento cultural decorrente da revolução tecnológica na área da informação e da comunicação (IPHAN, 2003, p.78-79).

Para a UNESCO (2003), a transmissão do patrimônio imaterial gera "um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana" (UNESCO, 2003, p. 04). Porém, as salvaguardas preconizadas por essas agências não são consideradas, por variados grupos sociais, como suficientes para lhes garantir a devida visibilidade e proteção. Descontentes com a autorepresentação dos patrimônios protegidos pela UNESCO, minorias questionam a concepção europeia, presente nas práticas de preservação de memória e patrimônio vigentes nesta agência cuja agenda se impõe aos países da América Latina.

 

Biopolítica, Processos de Patrimonialização e Subjetividades Sobreviventes

As cidades, que em seus primórdios foram construídas para proteger quem nelas habitava (Bauman, 1999), atualmente são altamente organizadas para prover desproteção e segregação, na intensificação da política de uns contra os outros. Na dinâmica da preservação de bens culturais, práticas várias ficam de fora desse suposto manto protetor. Muitas delas são então desqualificadas e colocadas em zonas cinzentas e tentativas de operar prescrições purificadoras dos riscos e perigos. Douglas (2010) ressalta que a prática de purificar as culturas é um ritual de classificação dos saberes e modos de vida, visando retirar destes o que é visto como sujeira primitiva e, assim, potencializar o que é retratado como riqueza cultural e diversidade. Lutas são travadas em meio a esses processos que tentam efetuar neocolonialismos e etnocentrismos, xenofobias e inclusões perversas, exclusões e ostracismos.

Agamben (2008), ao analisar os testemunhos do nazismo, na Alemanha, destacou a construção da figura dos sobreviventes à purificação civilizatória que gerou genocídios e extermínios dos povos considerados sujos, bárbaros e impuros. Sobreviver, para as vítimas do nazismo, implicou trazer as marcas de muitos assujeitamentos para não morrer fisicamente. Significou resistir às violências com aquilo que lhes restava, a própria vida. Viver, pois, pode ser um modo de não morrer, mas por vezes com custos altos que imprimem nos corpos viventes as marcas inexoráveis da não vida. Isso porque as mortes não são apenas da ordem de um corpo biológico, outros corpos afetivos, políticos, culturais e subjetivos são exterminados e colocados no cinza da sombra sem luz. O racismo da biopolítica se manifesta pela sociedade e pelo Estado, na guerra das raças, já analisou Foucault (1999), em defesa da sociedade, produzindo levas de vidas sem vida.

As estratégias da biopolítica são várias, e estas são destacadas a desqualificação cultural de povos e seus modos de vida. Foucault (2008) analisou historicamente a emergência da biopolítica ao interrogar como, na segunda metade do século XIX, aparece esse mecanismo e racionalidade de gestão da vida por meios de artes de governar as condutas, em nome da segurança e da saúde. Numa dimensão biopolítica, práticas culturais são administradas utilitariamente como mecanismo de regulação a sustentar a força política dos países e, mundialmente, em nome da criação da paz. Conforme Foucault (1988; 1999), o que sustenta o fazer viver e o deixar morrer na gerência da população é o racismo de Estado e de sociedade. Por isso, o autor declara que nunca se matou e tanto se deixou morrer quanto após o momento em que a vida entrou na história enquanto espécie biológica a ser politizada e calculada economicamente.

A gestão da cultura entra nesses cálculos de segurança e de economia política, passando aos arquivos patrimoniais das organizações internacionais multilaterais por meio do dispositivo diplomático-militar.

As mortes de bens considerados imateriais são efeitos da repartição na atualidade do que aceita ser domesticado e guardado, do que aceita receber a chancela de patrimônio da humanidade como rosto e retrato a continuar a se assemelhar perpetuamente, como se fosse um dispositivo de conservação cultural supostamente unitário e homogêneo. Dar continuidade aos espaços de experimentação de singularidades no cotidiano de grupos (in)visibilizados por condições de pobreza, implica, por sua vez, resistir a esse jogo do reconhecimento patrimonialista e se dirigir para a problematização das próprias práticas, em direção aos fazeres dissidentes, numa atitude problematizadora frente às homogeneizações subjetivas das políticas da vida baseadas no mercado da cultura.

 

Tolerância e Diversidade nas Tramas da Anulação de Diferenças Culturais

Paz, tolerância e respeito à diversidade aparecem como tramas discursivas de políticas de discriminação mobilizadas nas práticas de integração transnacionais. Diferenças forjadas no seio da cultura capitalística, definida por Guattari e Rolnik (1996) como agenciamento dos valores na produção mundial de subjetividades homogêneas, ganham contornos perversos em supostas práticas de garantias de direitos. Ao discorrer sobre a "produção dos consumidores", Certeau (2007, p. 38) opera um deslocamento de análises encontra a "diferença cultural" em grupos de contracultura, pois, no mercado das singularidades, estes são grupos, em parte, "folclorizados" (Certeau, 2007), já que são alvos permanentes de obliteração. Nessa direção, a diversidade aparece como marca forte da cultura capitalística, em seu aspecto de espetáculo.

Louzada (2011) assevera que, na vitrine de cultura para consumo que estava sendo construída no Brasil durante as décadas de 1960 e 1970, a faceta modernista destacava-se como uma bifurcação do que se refere ao popular. Nessa direção, foram sendo inventadas culturas imateriais marcadas por um caráter exótico e folclorizado, ou seja, das quais se busca expurgar a potência irruptiva; singularidades eram pacificadas, acionando o dispositivo da diversidade cultural com seu valor mercadológico, marca da cultura. A separação entre patrimônio material e imaterial vigente na legislação de proteção cultural é uma problemática que remonta aos monumentos da produção de um Brasil católico, branco e europeizado (IPHAN, 2003). Essa herança pode ser notada nas práticas preservacionistas em vigência e em seus efeitos, sendo alguns deles foco de nossas discussões.

 

A cidade de São Francisco do Sul, uma Paisagem-Patrimônio

Para contribuir com o debate, apresentamos uma situação específica que possibilita visibilizar como opera o dispositivo de patrimonialização e alguns de seus efeitos. Elegemos a cidade de São Francisco do Sul, reconhecida oficialmente como conjunto paisagístico urbano na década de 1980 pelo IPHAN, como acontecimento analisador para contribuir com a discussão sobre as práticas de patrimonialização e salvaguarda. O patrimônio cultural da cidade de São Francisco do Sul foi foco da pesquisa de doutorado de uma das autoras desse artigo. Na pesquisa, a autora analisou as relações construídas por moradores com os patrimônios culturais da cidade e perscrutou patrimônios não visibilizados, outros modos de preservação de memória ausentes no discurso hegemônico sobre a cidade (Assis, 2016).

São Francisco do Sul, uma cidade de pequeno porte, localizada no litoral norte do Estado de Santa Catarina, com processo de desenvolvimento urbano ligado às atividades relacionadas ao mar e ao porto. O patrimônio cultural está no valor do sítio arquitetônico, na composição urbana do Centro histórico, com conjuntos característicos coloniais e ecléticos, que apesar de modificações no tecido urbano ao longo dos tempos, o traçado urbano foi preservado e a imagem da cidade enquanto conjunto manteve-se muito próxima do que era antes das transformações do início do século XX. Há uma fachada visível a partir da observação do mar, em que é possível perceber a aglomeração urbana e delinear o que se considera a paisagem antiga de São Francisco do Sul, a qual justificou o tombamento nacional em 1987.

Não desvalorizamos o processo de patrimonialização dessa paisagem cultural, ao contrário: consideramos fundamental preservar edificações e práticas de tempos e modos de vida outros, condição para a compreensão de nosso próprio presente. Mas observamos, no caso desse processo de patrimonialização, assim como em tantos outros sítios preservados e monumentos oficialmente protegidos no Brasil, uma compreensão restrita, vinculada a políticas de patrimônio conservadoras e elitistas.

A arquitetura colonial portuguesa foi privilegiada, assim como os bens pertencentes aos grupos sociais de tradição portuguesa. Por conseguinte, produziu-se um retrato de cidade atrelado à colonização europeia e um apagamento de memórias de outros grupos culturais que se encontravam presentes naquele território e que foram partícipes ativos de sua edificação (Assis, 2016). E isso produz seus efeitos, pois

Reduzir o patrimônio cultural de uma sociedade às expressões de apenas algumas de suas matrizes culturais - no caso brasileiro, as de origem europeia, predominan temente a portuguesa - é tão problemático quanto reduzir a função de patrimônio à proteção, que evidentemente, representa também um ônus para a sociedade e para alguns cidadãos em particular. (Fonseca, 2003, p. 65)

Cabe, portanto, tensionar os silenciamentos, visibilizar grupos minoritários que configuraram a cidade, porém que não tiveram inscritas suas práticas na história oficial. Quais práticas culturais edificaram e ainda hoje constituem o município de São Francisco do Sul são silenciadas na cidade-paisagem? Diversas outras memórias que compõem a polifonia da cidade permaneceram mudas, invisíveis. Essas memórias podem vir a ser protegidas, considerando a inclusão de bens imateriais nas políticas de patrimonialização e salvaguarda. Mas com que olhar se salvaguardará um patrimônio que se realiza nas performances como, por exemplo, nas maneiras de viver de um povo guarani que se incrusta na cidade de São Francisco do Sul e se apresenta como uma das vozes que a compõem?

Um dos silenciamentos de vozes na patrimonialização da paisagem de São Francisco do Sul é o da cultura guarani que dá sequência ao etnocídio desta população no município. A patrimonialização se concentra nas contribuições arquitetônicas do processo de colonização europeia e as contribuições de outros grupos permanecem sem ou com pouco reconhecimento explícito da singularidade de segmentos populacionais.

 

(in)Visíveis em São Francisco do Sul

Entre Joinville, Araquari e São Francisco do Sul, cidades limítrofes na região norte do estado de Santa Catarina, existem dez aldeias da etnia guarani M'byá, duas delas no município de São Francisco do Sul, que tiveram origem com o deslocamento do Rio Grande do Sul.

Embora sejam moradores da cidade há várias décadas e representem uma das maiores populações indígenas do Brasil, os guaranis são considerados, em terras catarinenses, como estrangeiros. A mídia hegemônica a eles se refere como importados, pois teriam imigrado da fronteira entre Brasil, Bolívia, Paraguai e Argentina e tornando-se entrave ao progresso no Estado. De acordo com a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), são reconhecidas duas reservas indígenas guarani em São Francisco do Sul, sendo elas Morro Alto e Araçá. Seus moradores vivem basicamente da venda de produtos culturais artesanais nas ruas do centro, com destaque para a arte da cestaria. Alguns adultos trabalham no porto da cidade, exercendo funções operacionais e outros estão vinculados à programas de transferência de renda, dentro da política de assistência social.

Entre as construções coloniais portuguesas, nas calçadas das ruas, sentadas pelo chão, as mulheres vendem seus artesanatos em companhia de seus filhos aos turistas que curiosos observam suas presenças. Porém suas memórias, práticas sociais e modos de vida diferem do patrimonializado na cidade e permanecem invisíveis, embora façam parte da paisagem do centro histórico da cidade.

Na cidade repetem-se práticas de segregação com relação à população guarani como em outras partes do Brasil, das quais o genocídio e etnocídio em Dourados, Mato Grosso do Sul, ocupa o espaço de maior violência e visibilidade. O povo guarani vem sendo submetido à pauperização, descaracterização de seus modos de vida e assimilado à condição de pobreza nas cidades.

Em 2015, o litígio envolvendo a demarcação de terras indígenas no Morro dos Cavalos, no litoral catarinense, há aproximadamente 200 quilômetros ao sul de São Francisco do Sul, resultou em uma série de reportagens que explicitou o ponto de vista da aliança firmada entre partes de fronteira que comandam a política na região. As pesquisas antropológicas que contestavam a versão apresentada ao grande público foram simplesmente negadas, desacreditadas, assim como tem sido recorrente em relação às pesquisas que evidenciam os jogos de poder que envolvem a questão fundiária no Brasil e a demarcação de terras indígenas.

Em oposição às práticas de patrimonialização, algumas práticas culturais presentes na população indígena no Brasil têm recebido tratamento outro. Em 2014, a língua Guarani M'byá, uma das línguas indígenas faladas no Brasil, foi inserida no inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL) e foi reconhecida como referência da identidade brasileira. Para que uma língua seja reconhecida e passe a fazer parte do Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL) ela precisa ser falada em território nacional há pelo menos, três gerações - o marco temporal é em torno de 75 anos. O objetivo do inventário é associar a expressão linguística à sua comunidade de referência e valorizar a expressão enquanto aspecto relevante do patrimônio cultural brasileiro.

Tratamentos opostos, portanto, se apresentam em relação ao direito à terra e a valorização da língua. As questões econômicas envolvidas demarcam diferenças em relação ao que se permite visibilizar e também ao que se oculta, ao que move os aparatos jurídicos e midiáticos e as próprias práticas de patrimonialização. Salvaguardar uma língua que compõe a nação, que integra uma população historicamente não valorizada, é importante na medida em que contribui para restituir memórias de um grupo formador da sociedade brasileira que é negado e exterminado.

Contudo, os problemas relativos à demarcação das terras se opõem a supostos benefícios com a inclusão no inventário de línguas brasileiras, pois esse reconhecimento pouco contribui para a reversão da condição de sobrevida econômica e espoliação territorial em que se encontram os guaranis, como se observa, por exemplo, em São Francisco do Sul.

 

Considerações Finais

As questões apresentadas no decorrer deste artigo apontam para necessárias discussões que contribuam para a problematização das práticas de patrimonialização vigentes e a visibilidade de manifestações culturais menores sem, contudo, subjugá-las à morte em vida via cristalização de seus próprios movimentos. No curso A coragem da verdade, Foucault (2011) analisou que há mortes políticas, culturais e ostracismos quando se tenta buscar a atitude do pensar por si mesmo e sair das tutelas da obediência e da bajulação da retórica. Ora, muitos grupos realmente não estão dispostos a bajular para terem suas práticas culturais aceitas pela burocracia e especialistas do patrimônio e das artes enquanto técnica e perícia. Estes ousam arriscar-se a cair no ostracismo, a se limitarem à sobrevida da classificação de suas histórias singularizantes.

Das cinzas das histórias silenciadas podem surgir e ressurgir subjetividades mutantes e inventivas, híbridas e que nunca foram de fato puras já que as trocas culturais não são forjadas pela unidade homogênea mesmo que tentem as vidas se tornarem reativas e submetidas a essa ordem do discurso e controle afetivo-corporal de uma política da verdade e de um ritual de dominação e violência.

São inventados modos de se relacionar singulares também em meio a esses processos. A morte física poderia ser uma resistência à morte cultural e subjetiva nesse aspecto. Subjetividades em revolta e em dissidência, deslocamentos de valores e invenção de outros, descontinuidades das práticas de arquivar os testemunhos do tempo em variados espaços: públicos e privados de suporte cultural.

O arquivo de sobrevidas por meio da cultura é a atualização possível do direito à memória coletiva, na atualidade, para muitos grupos sociais e para os gestores das organizações de salvaguarda, tais como UNESCO e IPHAN. Contudo, sujeitar ao escrutínio julgador desses organismos o reconhecimento de práticas culturais conduz a uma economia do sobreviver reativamente, e não por afirmação da produção da diferença como singularidade múltipla.

Resistir à sobrevida não é uma prática fácil e nem simples de ser efetuada. Ser reconhecido e classificado nos arquivos do Estado via práticas de patrimonialização, se por um lado contribui para a visibilização de dissonâncias e diferenças, significa enredar-se em complexas teias de consumo e empresariamento da vida. Implica um sobrevivencialismo mais amplo assegurado por desigualdades sociais nas quais promessas de segurança pela afirmação de identidades culturais com uma noção de raízes e pertenças a grupos e comunidades mostram-se abertura para modos de vida e experiências dificilmente viáveis de outra maneira. São brechas consentidas em determinadas condições e que produzem seus efeitos. Importante se faz visibiliza-las, fazelas ecoar de modo que outras e outras sejam possíveis.

 

Referências

Agamben, G. (2008). O que resta de Auschwitz. Rio de Janeiro: Boitempo.         [ Links ]

Assis, N. de. (2016). Cidade polifônica: indícios de memórias outra na paisagem. (Tese) Doutorado em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.         [ Links ]

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Recebido em: 18 de janeiro de 2017
Aprovado em: 09 de agosto de 2017

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