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Revista Psicologia Política

versão impressa ISSN 1519-549Xversão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.18 no.41 São Paulo ajn./abr. 2018

 

TRADUÇÃO

 

Hegemonia e novos sujeitos políticos: em direção a um novo conceito de democracia1

 

Hegemony and new political subjects: towards a new concept of democracy

 

Hegemonía y nuevos sujetos políticos: hacia un nuevo concepto de democracia

 

Hégémonie y des nouveaux sujetes politiques: vers un nouveau concept de Démocratie

 

 

Chantal Mouffe; Tradução de Henrique de Oliveira LeeI

IDepartamento de psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). holiveiralee@gmail.com

 

 

É incompeensível que a igualdade não penetre o mundo político como tem feito em outros lugares. É inconcebível que os homens tenham que ser eternamente desiguais entre eles em relação a um único aspecto e iguais em outros. Um dia, portanto, eles alcançarão igualdade em todos os aspectos. (Alexis de Tocqueville - Democracy in America)

Apesar do notável insight de Tocqueville sobre as implicações potenciais de uma revolução democrática, é improvável que ele tenha imaginado que chegássemos, como hoje, ao nosso questionamento da totalidade das relações sociais. Ele acreditava, como se pode ver em suas reflexões sobre a igualdade da mulher, que o inexorável impulso em direção a igualdade deveria levar em conta certas diferenças enraizadas na natureza. É exatamente esse caráter de alteridade permanente, baseadas em certas concepções de essências naturais, que hoje é contestada por um importante segmento do movimento feminista. Não se trata apenas de que a revolução democrática provou ser mais radical do que previa Tocqueville; a revolução tomou formas as quais ninguém poderia ter antecipado, pois ela ataca formas de desigualdade que não existiam anteriormente. Lutas ecológicas, antinucleares, antiburocráticas, juntamente com todas as outras lutas freqüentemente rotuladas de "novos movimentos sociais" (Eu prefiro chamá-las de "Novas lutas democráticas"), devem ser entendidos como resistências às novas formas de opressão que estão emergindo em sociedades de capitalismo avançado. Essa é a tese que meu ensaio vai desenvolver, para tanto, tentarei responder as seguintes perguntas: (1) Que tipos de antagonismo expressam os novos movimentos sociais? (2) Qual a ligação deles com o desenvolvimento do capitalismo? (3) Como eles poderiam ser posicionados numa estratégia socialista? (4) Quais são as implicações destas lutas na nossa concepção de democracia?

 

Posições Teóricas

1. Dentro de qualquer sociedade, cada agente social está inscrito numa multiplicidade de relações sociais, não apenas relações sociais de produção mas também outros tipos de relações sociais, de raça, sexo, nacionalidade e vizinhança. Todas essas relações sociais determinam posicionamentos ou posições de sujeito, todo agente social é, por isso, o locus de várias posições de sujeito e não pode ser reduzido a apenas uma. Assim, alguém inscrito nas relações de produção como um trabalhador é também, homem ou mulher, católico ou protestante, francês ou alemão e por aí vai. A subjetividade de uma pessoa não é construída unicamente com base na sua relação de produção. Além do mais, cada posição social, cada posição de sujeito, é em si o locus de múltiplas construções possíveis de acordo com os diferentes discursos que podem construir tal posição. Assim, a subjetividade de um dado agente social é sempre precária e provisoriamente fixada ou, para usar um termo Lacaniano, suturada na interseção de vários discursos. Consequentemente, me oponho ao reducionismo de classe presente no Marxismo clássico, no qual todos sujeitos sociais são necessariamente o sujeito de uma classe (cada classe social com seu respectivo paradigma ideológico, e todo antagonismo, no fim das contas, reduzido a um antagonismo de classe). Afirmo, ao invés, a existência em cada indivíduo de múltiplas posições de sujeito correspondendo tanto as diferentes relações sociais na qual o indivíduo está inserido quanto aos discursos que as constituem. Não há razão para se privilegiar, aprioristicamente, uma posição numa "classe" como a origem da articulação da subjetividade. Além disso, é incorreto atribuir, necessariamente, uma forma paradigmática a tal ou tal posição numa classe. Por conseqüência, é requerida uma crítica da noção de "interesses fundamentais", tal noção tem como inevitável a fixação necessária de formas políticas e ideológicas em uma determinada posição no processo de produção. Mas interesses nunca existem como formas anteriores aos discursos que os articulam e os constituem, eles não podem ser a expressão de uma posição já existente no nível econômico.

2. Eu me oponho a visão econômica da evolução social, como algo regido unicamente pela lógica econômica, a visão que concebe a unidade das formações sociais como resultado de "efeitos necessários"2 produzidos nas superestruturas políticas e ideológicas pela infra-estrutura econômica. A distinção entre infra e superestrutura precisa ser questionada, porque implica a economia como um mundo de objetos e relações antes de qualquer condição política e ideológica de existência. Essa visão parte do pressuposto que a economia é capaz de funcionar e seguir segundo sua própria lógica, uma lógica absolutamente independente das relações que ela supostamente determinaria. No lugar, eu defendo a concepção da sociedade como um conjunto complexo de relações sociais heterogêneas que possuem dinamismo próprio. Não se pode reduzir todas essas relações às relações sociais de produção ou com suas condições políticas e ideológicas de sua reprodução. A unidade de uma formação social é o produto de articulações políticas que por sua vez são o resultado de práticas sociais que produzem uma formação hegemônica.

3. Entendo por "formação hegemônica" um conjunto de formas sociais relativamente estáveis, a materialização de uma articulação social nas quais diferentes relações sociais interagem para oferecer condições mútuasde existência, ou pelo menos para neutralizar efeitos potencialmente destrutivos de certas relações sociais na reprodução de outras tais relações. Uma formação hegemônica está sempre centrada em torno de certos tipos de relações sociais. No capitalismo são as relações de produção, não se explica este fato como um efeito de estrutura, mas que a centralidade das relações de produção está sendo conferida por uma política hegemônica. Entretanto, a hegemonia nunca se estabelece de forma definitiva. Uma luta constante deve criar as condições para validar o capital e sua acumulação. Isto implica uma configuração de práticas que não são meramente econômicas mas políticas e culturais.

Dessa forma, o desenvolvimento do capitalismo está submetido a um incessante luta política, periodicamente modificando as formas sociais através das quais as relações sociais de produção asseguram sua centralidade. Na história do capitalismo podemos ver o ritmo de sucessivas formações hegemônicas.

4. Todas as relações sociais podem tornar-se o locus de antagonismos, com tanto que elas sejam construídas como relações de subordinação. Várias e diferentes formas de subordinação podem se tornar origem de conflitos e lutas. Assim existe portanto na sociedade uma multiplicidade de antagonismos em potencial, sendo o antagonismo de classe apenas um entre vários. Não é possível reduzir todas as formas de subordinação e luta a expressão de uma única lógica localizada na economia. Nem é possível evitar tal redução propondo uma mediação complexa entre antagonismos sociais e a economia. Existem múltiplas formas de poder na sociedade que não podem ser reduzidas ou deduzidas de uma única origem ou fonte.

 

Novos Antagonismos e Formações Hegemônicas

Minha tese é a de que os novos movimentos sociais expressam antagonismos que emergiram em resposta a uma formação hegemônica que estava plenamente instalada nos países ocidentais depois da Segunda Guerra, uma formação em crise hoje. Digo "plenamente" porque estes processos não começaram naquela época, essas formas hegemônicas vinham sendo germinadas e colocadas em seus lugares desde o início deste século. Assim, existiam movimentos sociais antes da Segunda Guerra, mas eles se encontraram inteiramente desenvolvidos apenas após a Guerra em resposta a uma nova formação social hegemônica.

Os antagonismos que emergiram depois da guerra, entretanto, não derivavam de imposições de formas de subordinação que não existiam antes. Por exemplo, as lutas contra o racismo e sexismo resistem a formas de dominação que existem, não apenas antes da nova formação hegemônica, mas antes do capitalismo. Podemos ver a emergência desses antagonismos no contexto de dissolução de todas as relações baseadas na hierarquia e isto, é claro, está ligado ao desenvolvimento do capitalismo que destrói todas estas relações e as substitui por relações de commodity3. Então, é com o desenvolvimento do capitalismo que essas formas de subordinação podem emergir como antagonismos. As relações poderiam existir antes, mas não podiam emergir como antagonismos antes do capitalismo. Portanto, devemos atentar para as transformações estruturais que forneceram algumas das condições objetivas para a emergência destes novos antagonismos. Todavia, não se pode automaticamente derivar antagonismos e lutas da existência dessas condições objetivas, elas são necessárias, mas não suficientes. Ao menos que se suponha que as pessoas vão, necessariamente, lutar contra subordinação. Obviamente, sou contra tal postulado essencialista. Precisamos perguntar sob quais condições essas relações de subordinação podem dar à luz a antagonismos e que outras condições são necessárias para a emergência de lutas contra essas subordinações.

É a formação hegemônica instalada depois da Segunda Guerra que de fato forneceu estas condições. Essa formação pode ser caracterizada por articular: (a) um certo tipo de processo de trabalho baseado nas linhas de produção semiautomáticas. (b) um certo tipo de Estado (o Estado intervencionista Keynesiano) e (c) novas formas culturais que podem ser descritas como "cultura de mídia". A consolidação desta formação hegemônica envolveu processos complexos, articulou um conjunto de transformações, cada uma delas derivada de uma lógica diferente. É impossível derivar qualquer uma dessas formas de outras de modo automático - assim como na lógica econômica. É verdade que as transformações no trabalho que levaram ao Taylorismo e finalmente ao Fordismo foram governadas pela necessidade de destruir a autonomia que os trabalhadores continuavam a exercer no processo do trabalho e acabar com a resistência trabalhista a valorização do capital. Mas a linha de montagem semiautomática do Fordismo fez possível a produção em massa que devido ao baixo nível dos salários tiveram resultados insuficientes. De modo que o estilo de vida da classe trabalhadora teve que mudar significativamente a fim de criar condições necessárias para acumulação e assim reaver sua ascensão social. Entretanto, o fato de que certas condições eram necessárias para que a acumulação e a reprodução das relações sociais capitalistas pudessem funcionar, de forma alguma garantiram que estas condições surgiriam. A solução foi utilizar as lutas trabalhistas - que vinham se multiplicando em resposta à intensificação do trabalho - para estabelecer uma conexão entre aumento da produtividade e aumento de salários. Mas isso demandou intervenção estatal com um duplo propósito: era tão urgente fazer frente à inclinação capitalista de baixar os salários quanto configurar um contexto político em que as demandas dos trabalhadores pudessem tornar-se compatíveis com a reprodução do capitalismo. Isso fornece evidências significativas de que a nova formação hegemônica resultou de uma política de intervenção.

Essas mudanças no processo de trabalho também podem ser definidas como transformações de um regime extensivo de acumulação para um regime intensivo. O último é caracterizado pela expansão das relações de produção capitalistas para todos os setores das atividades sociais, e são por isso subordinadas a lógica de produção de lucro. Uma nova modalidade de consumo foi criada, expressando a dominância de relações de troca sobre os outros tipos de relações. Como conseqüência uma profunda transformação do estilo de vida existente vem tomando lugar. A sociedade Ocidental tem sido transformada em um grande supermercado onde todos os produtos do trabalho humano tornaram-se valores de troca, onde cada vez mais necessidades vão demandar o mercado para serem satisfeitas. Essa "mercantilização da vida social" destruiu uma série de relações sociais prévias e as substituiu por relações mercantis. Isso é o que conhecemos como sociedade de consumo.

Atualmente, não é apenas através da venda de sua força de trabalho que os indivíduos se submetem à dominação do capital, mas também através de sua participação em várias outras formas de relações sociais. São tantas as esferas da vida social que se encontram penetradas pelas relações capitalistas que é quase impossível escapá-las. Cultura, lazer, morte e sexo.Tudo isso é agora um campo para lucro do capital. A destruição do ambiente, a transformação de pessoas em meros consumidores são resultados da subordinação da vida social à acumulação de capitais. Essas novas formas de dominação, logicamente, tem sido estudadas por vários autores, mas houve uma tendência, principalmente no início dos anos sessenta, vocês se lembrarão de Marcuse em seu "One Dimensional Man", de acreditar que o poder do capital seria tão avassalador que nenhuma luta ou resistência poderia tomar lugar. No entanto, alguns anos depois tornou-se claro que essas formas de dominação não passariam sem serem desafiadas, elas deram origem a vários novos antagonismos, os quais explicariam o surgimento generalizado de todas as formas de conflitos sociais desde meados dos anos sessenta. Minha tese é que vários dos novos movimentos sociais são expressões de resistência contra a mercantilização da vida social e as novas formas de subordinação que ela criou.

Mas este é apenas um aspecto do problema, há um segundo aspecto extremamente importante. Vocês se lembram que definimos a nova formação hegemônica não apenas em termos do Fordismo mas também em termos do Estado Keynesiano de bem estar social. A nova formação hegemônica tem se caracterizado por uma crescente intervenção do Estado em todos aspectos da vida social, que é uma característica chave do Estado Keynesiano. A intervenção do Estado levou ao fenômeno da burocratização que também origina novas formas de subordinação e resistência. É preciso dizer que em vários casos a mercantilização e a burocratização estão articuladas, como quando o estado age em favor do capital. Assim, mesmo que seja difícil fazer uma distinção entre mercantilização e burocratização, penso que é extremamente importante que se as analisem como sistemas de dominação diferentes. Pode haver casos nos quais o estado age contra o interesse do capital para produzir o que Claus Offe chama de "desmercantilização". Ao mesmo tempo tais intervenções podem produzir novas formas de subordinação por causa do seu caráter burocrático. Esse é o caso, por exemplo, de estados que fornecem serviços no campo da educação, saúde, transporte e habitação.

Um terceiro aspecto do problema é que alguns dos novos tipos de lutas devem ser vistos como resistência a uma crescente uniformização da vida social, uma uniformização resultante de um tipo de cultura de massa imposta pela mídia. Esta imposição de um estilo de vida homogeneizado, de um padrão cultural uniforme está sendo desafiada por diferentes grupos que reafirmam seu direito a diferença, a sua especificidade, seja através da exaltação de sua identidade regional ou sua especificidade no campo da música, moda ou língua.

As profundas mudanças trazidas pela construção de uma nova formação hegemônica fizeram surgir resistências que são expressas nos novos movimentos sociais. Entretanto, como eu disse anteriormente, não se pode culpar as novas formas de desigualdades por todos os antagonismos surgidos nos anos sessenta. Alguns movimentos, como o feminista, tem a ver com opressões que existiam desde sempre. Mas tais opressões não haviam ainda se tornado antagonismos por se darem no interior de uma sociedade hierárquica que aceitava certas desigualdades como "naturais".

Independentemente do antagonismo ser um produto da mercantilização de todas as necessidades sociais, ou da intervenção do estado burocrático, ou pela homogeneização cultural e a destruição de valores tradicionais (independente deles serem opressivos ou não); o que todos estes antagonismos têm em comum é que o problema não é causado pela posição definida do indivíduo no sistema de produção, eles não são portanto antagonismos de classe. Obviamente isso não significa que o antagonismo de classe foi eliminado. Na realidade, quanto mais áreas da vida social se convertem em serviços supridos pelo capitalismo, aumenta o número de indivíduos subordinados ao sistema capitalista de produção. Se tomarmos o termo "proletário" num sentido estrito, como um trabalhador que vende sua força de trabalho, é legítimo falar em um processo de proletarização. O fato de que um crescente número de indivíduos vem sofrendo da dominação capitalista como uma classe não significa uma nova forma de subordinação mas a extensão de uma forma já existente. O que há de novo é a proliferação dos conflitos sociais em outras áreas e a politização de todas essas relações. Quando reconhecemos que estamos lidando com resistências à formas de opressão desenvolvidas pela formação hegemônica do Pós-guerra, começamos a entender a importância dessas formas de luta para o programa socialista.

É incorreto, portanto, afirmar, como alguns, que estes movimentos emergiram por causa da crise do Estado de bem estar social. Sem dúvida, crises exacerbam antagonismos, mas não é causa deles, eles são a expressão de um sistema hegemônico triunfante. Do contrário, é mais razoável supor que a crise é, em parte, provocada pela crescente resistência à sociedade de capital e ao estado. Por isso os teóricos neo-conservadores não estão errados em insistir no problema da ingovernabilidade dos países ocidentais, um problema que eles resolveriam desacelerando o processo que eles chamam de "assalto democrático". Além do mais, supor que a crise é a origem dos novos movimentos sociais é politicamente perigoso: eles podem ser tomados como manifestações irracionais, fenômenos de uma patologia social. Desse modo, ficariam obscurecidas as importantes lições que essas lutas podem ensinar para a reformulação do socialismo.

 

Novos Antagonismos e Luta Democrática

Tenho limitado minha análise às transformações que se deram nas sociedades ocidentais depois da Segunda Guerra e para o que delas resultou, as novas formas de subordinação e desigualdade, que por seu turno produziram os novos movimentos sociais. Mas existe um aspecto inteiramente distinto da questão que precisa ser desenvolvido agora. Apontar a existência de desigualdades não é suficiente para explicar a inquietação social. Se rejeitarmos, como eu obviamente faço, o pressuposto que a essência da humanidade é lutar pela igualdade e democracia, então temos um importante problema a resolver: é preciso determinar que condições são necessárias para que formas específicas de subordinação possam produzir lutas visando sua abolição. Como eu disse, a subordinação da mulher é um fenômeno muito antigo, que só se tornou alvo da luta feminista quando o modelo baseado na hierarquia entrou em colapso. É aqui que a minha referência de abertura a Tocqueville é pertinente, ele foi o primeiro a intuir a importância da revolução democrática num nível simbólico. Enquanto a igualdade não havia ainda adquirido (com a revolução democrática) seu lugar central e significativo no imaginário das sociedades ocidentais, as lutas por igualdade não puderam existir. Tão logo o princípio de igualdade seja admitido em um domínio, o eventual questionamento de todas as formas de desigualdade é uma consequência inelutável. Uma vez iniciada, a revolução democrática vem, necessariamente, erodindo todas as formas de poder e dominação, quaisquer que sejam elas.

Gostaria de fazer uma elaboração sobre a relação entre antagonismo e luta começando com a seguinte tese: Um antagonismo pode emergir quando um sujeito coletivo - claro que estou aqui interessada no antagonismo político ao nível do sujeito coletivo -, que foi construído de modo específico em relação a discursos existentes, encontra sua subjetividade negada por outros discursos ou práticas. Tal negação pode ocorrer basicamente de duas maneiras: a primeira, quando sujeitos construídos com base em certos direitos encontra em uma posição na qual esses direitos são negados por certas práticas ou discursos. Nesse ponto há uma negação da subjetividade ou identidade que pode ser base para antagonismos. Não digo que isso necessariamente leva ao antagonismo, é uma condição necessária, mas não suficiente. A segunda forma que os antagonismos emergem corresponde aquelas expressas pelo feminismo e o movimento negro. É uma situação na qual sujeitos construídos em sub-ordinação por um conjunto de discursos são,simultaneamente, interpelados como iguais por outros discursos. Temos aqui uma interpelação contraditória. Assim como a primeira forma, é a negação de uma posição de sujeito particular, mas diferentemente dela, é a subjetividade em subordinação que é negada, o que abre espaço para sua desconstrução e sua contestação.

Por exemplo consideremos o caso do movimento sufragista, ou de modo mais geral, o porquê, apesar da subordinação da mulher existir desde muito tempo, apenas no fim do século 19 tal subordinação fez surgir o movimento feminista. Isso levou algumas feministas marxistas a dizer que não havia uma real subordinação da mulher antes, ela é uma conseqüência do capitalismo por isso o feminismo emergiu no capitalismo. Acho isso incorreto. Imaginem como a mulher era construída como mulher na idade média. Todos os discursos possíveis, a igreja, a família, construíam a mulher como sujeitos subordinados. Não existia, absolutamente, a possibilidade, de dentro dessa posição de sujeito,que a subordinação pudesse ser colocada em questão. Mas com a revolução democrática do século 19 a afirmação "Todos os homens são iguais" apareceu pela primeira vez. Obviamente, "homens" é um termo ambíguo pois se refere simultaneamente para homens e mulheres, logo as mulheres se encontraram contraditoriamente interpeladas. Como cidadãs as mulheres são iguais, ou pelo menos interpelada como iguais, mas tal igualdade é negada pelo fato de serem mulheres. (Não coincidentemente Mary Wollstonecraft, uma importante feminista inglesa, vivia com Willian Godwin, um importante radical, isso demonstra a influência do radicalismo na emergência do movimento pelo sufrágio). Então, é isso que entendo por uma interpelação contraditória: a emergência de um segmento de igualdade no ponto da nova subjetividade que contradiz a subordinação em todas as outras posições de sujeito. Isso permitiu às mulheres estender a revolução democrática e questionar todas as suas posições de sujeito de subordinação. A mesma análise pode ser feita no caso do movimento pela liberação negra.

Devo enfatizar aqui a importância dos discursos existentes de fato na emergência e construção dos antagonismos. Antagonismos são sempre construídos discursivamente, as formas que eles assumem depende dos discursos existentes e seu papel hegemônico num dado momento. Dessa forma, diferentes posições na relação sexual não necessariamente constrói o conceito de mulher ou feminilidade de modos diferentes. Depende do modo como antagonismos são construídos e o adversário é definido pelos discursos existentes. Devemos levar em conta o papel do discurso democrático que se tornou predominante no ocidente com a "revolução democrática". Eu me refiro a transformação, no nível simbólico, que desconstruiu a visão teológica política e cosmológica da idade média, uma visão cuja as pessoas nasciam num local específico, numa sociedade hierárquica e estruturada na qual a idéia de igualdade não existia.

As pessoas lutam por igualdade não por causa de algum postulado ontológico, mas porque elas estão sendo construídas como sujeitos em uma tradição democrática que coloca esse valor no centro da vida social. Podemos ver a ampliação dos conflitos sociais como uma extensão da revolução democrática em mais e mais esferas da vida social, em mais relações sociais. Todas as posições que têm sido construídas como relações de dominação e subordinação serão desconstruídas pelo caráter subversivo do discurso democrático. Ele estende seu campo de influência de seu ponto de partida, a igualdade de todos os cidadão na democracia política, para o socialismo, que estende a igualdade para o nível da economia e para outras relações sociais, tal como as que envolvem sexo, raça, geração e região. O discurso democrático questiona todas as formas de desigualdade e subordinação.

Agora quero fazer uma distinção entre antagonismo democrático e luta democrática. Antagonismo democrático não necessariamente leva a luta democrática. Antagonismo democrático se refere a uma resistência à subordinação e desigualdade, luta democrática é direcionada a uma ampliação da democratização da vida social. Estou aqui acenando a possibilidade que antagonismo democrático esteja articulado a diferentes tipos de discursos, mesmo os da direita, pois o antagonismo é polissêmico. Não há uma forma paradigmática para se expressar resistência contra dominação, sua articulação depende dos discursos e relações de forças na presente luta pela hegemonia.

A análise de Stuart Hall sobre o Tatcherismo nos permite entender o modo como a consciência popular pode ser articulada com a direita. Na verdade, todo antagonismo democrático pode ser articulado dos modos mais diversos. Consideremos o caso do desemprego. Um(a) trabalhador(a) que perde seu emprego em uma situação como a descrita anteriormente, na qual vem sendo definida com base no direito de ter um trabalho e agora encontra seu direito negado. Isso pode se tornar o locus de antagonismo, apesar de haver maneiras de reagir ao desemprego que não conduzem a nenhum tipo de luta. O trabalhador pode cometer suicídio, beber excessivamente ou bater em seu cônjuge; existem varias maneiras pelas quais as pessoas reagem a negação de suas subjetividades. Mas vamos agora considerar as formas mais políticas que essa reação pode assumir: não há razão para acreditar que uma pessoa desempregada irá construir um antagonismo no qual o Tatcherismo ou o capitalismo são o inimigo. Na Inglaterra, por exemplo, o discurso do Tatcherismo diz: "Vocês perderam o emprego porque as mulheres estão tomando o trabalho dos homens". Construindo um antagonismo onde as mulheres são os inimigos. Ou pode dizer: "vocês perderam o emprego porque todos esses imigrantes estão tomando o trabalho dos bons trabalhadores ingleses". Ou pode dizer ainda: "Vocês perderam o emprego porque seu sindicato mantém salários tão altos que não há trabalho suficiente para a classe trabalhadora." Em todos esses casos, o antagonismo democrático está articulado com a direita ao invés de dar surgimento a luta democrática.

Somente quando a luta dos desempregados está articulada com a luta dos negros, das mulheres, de todos os oprimidos, podemos falar da criação de uma luta democrática. Como eu disse, o solo para novas lutas tem sido a produção de novas desigualdade atribuídas a formação hegemônica do pós guerra, e que o objetivo dessas lutas é autonomia, e não poder, tem sido freqüentemente lembrado. Seria de fato errado opor radicalmente a luta dos trabalhadores a luta dos novos movimentos sociais; ambos são esforços para obter novos direitos e defender os que estão ameaçados. O elemento comum entre eles é, assim, fundamentalmente um.

Uma vez que abandonamos a idéia de uma forma paradigmática pela qual a luta dos trabalhadores seria obrigada a se expressar, não podemos afirmar que a meta essencial dessas lutas é a conquista de poder. O que se faz necessário é um exame das diferentes formas que as lutas democráticas por igualdade podem assumir, de acordo com o tipo de adversário e a estratégia por ele implicada. No caso de resistências que buscam defender direitos existentes contra a crescente intervenção estatal, é obvio que a questão da autonomia será mais importante do que aquelas resistências que demandam ação estatal para compensar desigualdades originadas na sociedade civil. Isso não altera o fato de que essas resistências sejam da mesma natureza em virtude da sua meta comum: redução das desigualdades e das várias formas de subordinação. A vasta extensão do conflito social que estamos vivendo é melhor compreendida pela nova direita do que pela esquerda. É por isso que a direita se esforça para interromper o progresso da igualdade. Partindo de um pontosde vista diferente, teóricos neoliberais da economia de mercado e aqueles chamados nos Estados Unidos de neo- conservadores, estão buscando, de várias formas, transformar os parâmetros da ideologia dominante a fim de reduzir o papel central da idéia de democracia neles, ou ainda, redefinir a democracia de modo restritivo para reduzir seu poder subversivo.

Para neoliberais como Hayek, a idéia de democracia está subordinada à idéia de liberdade individual, consequentemente a defesa da liberdade econômica e da propriedade privada substitui a defesa da igualdade como valor privilegiado na sociedade liberal. Naturalmente, Hayek não ataca frontalmente os valores democráticos, mas faz deles um braço para a defesa da liberdade individual. Fica claro em seu pensamento que no caso um conflito entre liberdade individual e democracia, a última deverá ser sacrificada.

Outra forma de parar a revolução democrática é oferecida pelos neo-conservadores, cujo o objetivo é redefinir a noção de democracia em si mesma para que não mais implique, de forma central, a busca da igualdade e a importância da participação política. A democracia, dessa forma, é esvaziada de toda sua substância, com o pretexto de estar sendo defendida contra seus próprios excessos que a levaram ao extremo do abismo igualitário.

Com esse propósito, Brzezinski, quando foi diretor da Comissão Trilateral, propôs um plano de "operar uma progressiva separação entre o sistema político e a sociedade e começar a concebê-las como entidades separadas". A idéia é remover o máximo de decisões possíveis do controle político e passar a sua responsabilidade exclusivamente para "experts". Tal medida visa despolitizar as decisões mais fundamentais, não apenas na esfera econômica, mas na política e na social, a fim de alcançar, nas palavras de Huntington: "Um grau maior de moderação na democracia".

A tentativa é transformar os significados predominantemente compartilhados nas sociedades contemporâneas de democracia liberal a fim de os rearticular numa direção conservadora, justificando a desigualdade. Se tiverem êxito, se o projeto da "nova direita" conseguir prevalecer, um grande passo para trás será dado no movimento de uma revolução democrática. Testemunharemos o estabelecimento de uma sociedade dualística, profundamente dividida entre um setor privilegiado, daqueles com uma posição favorável para defender seus direitos, e o setor dos excluídos do sistema dominante, cujas demandas não poderão ser reconhecidas como legítimas pois serão inadmissíveis por definição.

É extremamente importante reconhecer que em sua "cruzada anti-igualitária", as várias formações da nova direita estão tentando tirar vantagem dos novos antagonismos nascidos da mercantilização, burocratização e uniformização da sociedade. O sucesso de Tatcher na Inglaterra e de Reagan nos EUA são sinais inequívocos: O populismo de direita tem sido capaz de articular todo um conjunto de resistências contra o aumento da intervenção estatal e a destruição de valores tradicionais e articulá-las na linguagem do neoliberalismo. Assim, é possível para direita explorar as lutas que expressam resistência às novas formas de subordinação em sua escalada para a formação hegemônica do estado keynesiano de bem estar social.

Por isso que é perigoso e equivocado ver um "sujeito revolucionário privilegiado" constituído nos novos movimentos sociais, um sujeito que tomaria o lugar formalmente ocupado pela agora decadente classe operária. Eu acho que esse é um pensamento corrente representado por Alain Tourraine na França e por algumas pessoas ligadas ao movimento pacifista na Alemanha. Eles tendem a ver os novos movimentos sociais de uma maneira muito simplista. Essas lutas não são necessariamente socialistas ou progressistas. A sua articulação depende dos discursos existentes em um dado momento e o tipo de sujeito que a resistência constrói. Eles podem, dessa forma, serem facilmente assimilados pelos discursos anti status quo da direita assim como pelos da esquerda, ou serem simplesmente absorvidos pelo sistema dominante que por sua vez os neutraliza ou os utiliza em função de sua própria modernização.

De fato é evidente que nós devemos desistir de toda a problemática de um sujeito revolucionário privilegiado, que graças a essa ou aquela característica garantiu a priori - em virtude de sua posição nas relações sociais - um presumido status de uma missão histórica e universal de libertar a sociedade. Do contrário, se cada antagonismo é necessariamente específico e limitado e não há uma única fonte de todo o antagonismo social, então a transição para o socialismo terá lugar somente numa construção política de articulação de todas as lutas contra diferentes formas de desigualdade. Se, em alguns casos um grupo particular desempenha um papel central nessas transições a razão disso tem a ver com a capacidade política de efetuar certas articulações em condições históricas específicas e não por razões ontológicas a priori. Devemos ir além da estéril dicotomia que opõe classe trabalhadora aos movimentos sociais, tal dicotomia não corresponde em nenhum caso a uma separação sociológica, pois os trabalhadores não podem ser reduzidos à sua posição de classe, eles estão inseridos em outras formas de relação social que formam outras posições de sujeito. É preciso reconhecer que o desenvolvimento do capitalismo e o crescimento das intervenções estatais alargaram o escopo das lutas políticas e estenderam os seus efeitos de revolução democrática por todas as relações sociais. Isso abre a possibilidade de uma disputa de posições em todos os níveis da sociedade que podem, por isso, abrir espaço para uma transformação radical.

 

O novo antagonismo e o socialismo

Essa guerra por posições já está a caminho e até agora ela tem sido efetivamente melhor travada pela direita do que pela esquerda. Entretanto, o sucesso da corrente ofensiva da nova direita não é definitivo. Tudo depende na habilidade da Esquerda de configurar uma verdadeira contra ofensiva para integrar diversas lutas correntes em uma transformação socialista mais ampla e geral. É necessário criar o que Gramsci chamou de "hegemonia expansiva", a corrente de equivalências entre todas as demandas democráticas, para produzir o desejo coletivo em todas as pessoas de lutar contra a subordinação. É necessário criar uma "ideologia orgânica" que consiga articular todos esses movimentos. É claro que este projeto não pode se limitar a questionar relações estruturais do capitalismo de produção, é preciso também questionar o modo de desenvolvimento de todas essas forças endêmicas à racionalidade do capitalismo de produção. O capitalismo como estilo de vida, é de fato responsável por um grande número de formas de subordinação e desigualdade atacadas pelos novos movimentos sociais.

O tradicional modelo socialista, enquanto aceita uma produtividade de linha de produção como o fordista, não pode prover uma alternativa à corrente crise social e necessita ser profundamente modificada. Necessitamos de uma alternativa à lógica que promove o máximo de produção de bens materiais e sua consequente criação incessante de novas necessidades materiais levando em troca a progressiva destruição dos recursos naturais e do meio ambiente. Um programa socialista que não inclua os movimentos ecológicos e antinucleares não podem esperar resolver os problemas correntes. As mesmas objeções se aplicam aos programas socialistas tolerantes ao papel desproporcional dado ao estado. De fato, a intervenção do estado tem sido proposta como um remédio para a anarquia capitalista. Mas com o triunfo do Estado Keynesiano a burguesia tem realizado seu objetivo em grande parte. Ainda que apenas com o aumento da intervenção do estado foi possível o surgimento de novas lutas contra a burocratização. Um programa que deseje utilizar esse potencial não pode, portanto, propor um Estado mais intervencionista, mas deve encorajar o aumento da auto determinação e auto gestão de indivíduos e cidadãos. Isso não significa aceitar os argumentos da nova direita, ou cair na armadilha de uma "privatização renovada". O Estado tem que estar em cargo dos setores chave da economia, incluindo o controle dos serviços de bem estar social. Mas todos estes domínios devem ser organizados por trabalhadores e consumidores ao invés de um aparato burocrático. Do contrário, o potencial de resistência anti-estado será simplesmente usado pela direita para seus próprios fins.

Como para o movimento da mulher, é aparente que necessita de uma transformação ainda mais plena. Tal transformação não é utópica. Começamos a ver como uma sociedade na qual, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia é mais direcionada a liberação individual do que para sua servidão, pode acarretar uma real equivalência entre os sexos. As conseqüências da automação: redução da jornada de trabalho, e a mudança na noção mesma de trabalho, tornou possível uma transformação de longo alcance da vida cotidiana e da divisão sexual do trabalho, que desempenha um importante papel na subordinação da mulher. Mas para que isso ocorra, a esquerda teria que abandonar sua atitude conservadora em relação ao desenvolvimento tecnológico e fazer esforços para trazer estas importantes mudanças para suas mãos.

Escutamos freqüentemente, em uma reação aos apologistas da sociedade pós industrial, que estamos ainda na sociedade capitalista e que nada mudou. Apesar de ser bem verdade que o capitalismo ainda prevalece, muitas coisas mudaram desde Marx. Estamos hoje em meio a uma importante restruturação. Se o resultado final fortalecerá o capitalismo ou nos moverá adiante na construção de uma sociedade mais democrática dependerá da habilidade das forças existentes para articular as lutas que estão em cena para a criação de uma nova formação hegemônica.

O que é específico da situação presente é a proliferação de lutas democráticas. A luta por igualdade não está mais limitada às arenas políticas e econômicas. Vários novos direitos estão sendo definidos e demandados, dos homossexuais, das mulheres, de várias minorias étnicas e regionais. Todas as desigualdades existentes em nossa sociedade estão agora em questão. Para compreender essa profunda mudança no campo político precisamos repensar e reformular a noção mesma de democracia, pois a visão por nós herdada não nos permite vislumbrar a amplitude da revolução democrática. Para tanto, não é suficiente melhorar a concepção parlamentar liberal de democracia criando um número de formas democráticas básicas pelas quais o cidadão possa participar da administração de assuntos públicos, ou os trabalhadores na administração das indústrias. Somados aos sujeitos sociais tradicionais devemos reconhecer a existência de outros e de seu caráter político: a mulher e outras várias minorias também têm direito à igualdade e auto determinação. Se queremos articular todas as lutas democráticas, devemos respeitar sua especificidade e autonomia, o que seria dizer que devemos institucionalizar um verdadeiro pluralismo, um pluralismo de sujeitos.

Uma nova concepção de democracia requer transcender certas concepções individualista de direito e a elaboração de uma noção central de solidariedade. Isso só pode acontecer se o direito de certos sujeitos não forem defendidos em detrimento ao direito de outros. É obvio que em muitos casos os direitos de uns requer a subordinação do direito de outros. A defesa de direito adquiridos é, por isso, um sério obstáculo para o estabelecimento de uma verdadeira igualdade para todos. É precisamente aqui que se pode ver a linha que demarca a separação da articulação das resistências dos novos movimentos sociais pela Esquerda, da utilização das mesmas pela Nova Direita. Enquanto o programa da esquerda busca instalar um sistema de equivalências entre o maior número possível de demandas democráticas, e assim lutar contra todas desigualdades, a solução da Direita, como uma forma de populismo, satisfaz a necessidade de certos grupos criando novas desigualdades. Por isso que a política da Direita, ao invés de estender a democracia, alarga o profundo abismo social entre privilegiados e não privilegiados.

O caráter progressista de uma luta não depende do seu lugar de origem, dissemos que nem todas as lutas dos trabalhadores são, por si só, progressistas, mas o são à medida que se vinculam a outras lutas. Quanto mais longa a cadeia de equivalências instalada entre a defesa dos direitos de um grupo e da defesa dos direitos de outros grupos, mais profundo será o processo de democratização e mais difícil será a neutralização de certas lutas ou o seu uso para os fins da direita. A noção de solidariedade pode ser usada para formar essa cadeia de equivalências. É urgente que estabeleçamos essa nova teoria democrática, com o conceito de solidariedade desempenhando nela um papel central, para fazer frente à ofensiva da Nova Direita no campo da filosofia política.

Confrontados com um esforço como o de Hayek, para redefinir a liberdade em termos individualistas, o que a Esquerda precisa é de um conceito de liberdade pós individual. Portanto, ainda é sobre questões como liberdade e igualdade que batalhas ideológicas decisivas estão sendo travadas. O que é da ordem do dia é a redefinição dessas noções fundamentais; e a natureza destas relações que vão determinar o tipo de sujeito político que emergirá e o novo bloco hegemônico com os contornos que ele tomará.

Para combinar liberdade e igualdade, com êxito, numa nova visão de democracia, que reconheça a multiplicidade das relações sociais e suas posições subjetivas correspondentes, requer que alcancemos uma tarefa concebida no início da revolução democrática, aquela que define o tipo de política requerida pela modernidade. Se falar de Socialismo ainda significa algo, seria para designar a extensão da revolução democrática para o todo das relações sociais e o alcance de uma democracia radical, libertária e plural. Nosso objetivo, em outras palavras não é outro senão a meta que Tocqueville percebeu como a do povo democrático, o ponto último onde liberdade e igualdade se encontram e se fundem, onde as pessoas "serão perfeitamente livres por serem inteiramente iguais porque serão perfeitamente iguais por serem inteiramente livres".

 

 

Submetido e aceito em: 15/08/2018

 

 

1 A referência do original deste artigo é Mouffe, C. (1988) Hegemony and New Political Subjects: toward a new concept of democracy. In Nelson, C. & Grossberg, L. Marxism and the Interpretation of Culture. Chicago: University Illinois Press. Esta tradução foi autorizada pela autora e pela Editora University Illinois Press. A obra original está disponível para venda no site da editora, no seguinte endereço: https://www.press.uillinois.edu/books/catalog/27mnn6nz9780252014017.html         [ Links ]
2 No sentido de que uma relação necessariamente causal, como categoria de oposição ao contingente.

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