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Revista Psicologia Política

Print version ISSN 1519-549XOn-line version ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.18 no.42 São Paulo MayAug. 2018

 

ARTIGOS

 

Reflexões sobre a identidade no estado de exceção

 

Thinking about the identity in the state of exception

 

Reflexiones sobre la identidad en el estado de excepción

 

Réflexions sur l'identité en état d'exception

 

 

Nadir Lara JuniorI; Marcus Cesar Ricci TeshainerII; Ana Caroline Silva FerreiraIII

IPsicólogo, Psicanalista, Mestre e Doutor em Psicologia Social pela PUC-SP. Pós Doutorando do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). nadirlj@hotmail.com
IIPós-doutorando do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Psicanalista, Mestre e Doutor em Sociologia pela PUC - SP, graduado em Psicologia e Direito. mteshainer@usp.br
IIAssistente Social; Mestra em Ciências sociais pela Unisinos. Trabalha na SUSEP - RS. anacaroline@susepe.rs.gov.br

 

 


RESUMO

O texto tem como objetivo principal refletir sobre a maneira como se opera a metamorfose do humano, proposta por Ciampa, quando imerso em um estado de exceção numa sociedade capitalista. Nesse sentido, partimos primeiramente da análise das concepções de Giorgio Agamben a propósito do conceito de estado de exceção, supondo que elas possam servir de paradigma para pensar sobre os diferentes aspectos da política contemporânea e seus reflexos nas relações sociais. Em seguida, passamos à discussão do conceito de identidade proposto por Antônio da Costa Ciampa com seu sintagma identidade-metamorfose-emancipação. Os conceitos de muçulmano e de vida nua, de Agamben, também são apresentados, estabelecendo relações entre os dois autores.

Palavras-chave: biopolítica; sintagma; torpor; muçulmano; capitalismo


ABSTRACT

The aim of this article is to think about the way as there takes place the metamorphosis of the human proposed by Ciampa, one when immersed in a state of exception in the capitalist society. In this sense, we leave firstly from the analysis of the conceptions of Giorgio Agamben with regard to the concept of State of Exception, supposing that they could serve of paradigm to think the different aspects of the contemporary politics and his reflexes about the social relations. Next, we pass the discussion of the concept of Identity proposed by Antonio da Costa Ciampa with his Sintagma: Identity-metamorphosis-emancipation and we relate of these concepts to the Agamben concepts like Muselmann or the Naked Life.

Keywords: biopolitics; sintagma; torpor; muselmann; capitalism.


RESUMEN

El principal objetivo de este texto es refletir sobre la forma cómo se opera la metamorfosis del humano como propuesto por Ciampa cuando imerso en un Estado de Excepción en una sociedad capitalista. En este sentido, en primer lugar se inicia el análisis de las concepciones de Giorgio Agamben sobre el concepto de Estado de Excepción, suponiendo que puedan servir de paradigma para pensar acerca de los diferentes aspectos de la política contemporánea y sus efectos en las relaciones sociales. Después pasamos a la discusión del concepto de identidad propuesto por Antonio da Costa Ciampa con su sintagma: Identidad-metamorfosis-Emancipación y vamos relacionarlo con los conceptos Agamben tales como musulmán o la vida Nua.

Palavras clave: biopolítica; sintagma; torpor; musulmán; capitalismo.


RÉSUMÉ

L'objectif principal du texte est de réfléchir à la manière dont la métamorphose de l'homme, propo-sée par Ciampa, immergée dans un état d'exception dans une société capitaliste. En ce sens, nous partons de l'analyse des conceptions de Giorgio Agamben sur le concept d'état d'exception, en supposant qu'elles peuvent servir de paradigme pour réfléchir aux différents aspects de la politique contemporaine et à ses réflexes dans les relations sociales. Nous passons ensuite à la discussion du concept d'identité proposé par Antônio da Costa Ciampa avec son syntagme identité-métamorphose-émancipation. Les concepts de la vie musulmane et nue, d'Agamben, sont également présentés, établissant des relations entre les deux auteurs.

Mots-clés: biopolitique; syntagme; torpeur; Musulman; le capitalisme


 

 

Introdução

A questão que norteia este estudo é a maneira como se opera a metamorfose do humano, proposta por Ciampa, quando esse está imerso em um estado de exceção numa sociedade capitalista. Com o propósito de refletir sobre a construção subjetiva nesse contexto, aproximaremos concepções de dois autores: Giorgio Agamben e Antônio da Costa Ciampa.

Agamben, filósofo italiano contemporâneo nos oferece o conceito estado de exceção, que desenvolveu a fim de compreender a política contemporânea e que pode ser resumidamente definido aqui como um contexto em que o sujeito é abandonado pela política, apesar de ainda se manter em relação com ela, e no qual sua vida é colocada no campo estratégico do direito. Antônio da Costa Ciampa, psicólogo social brasileiro que trabalha o sintagma identidade-metamorfose-emancipação, nos auxiliará por meio de suas contribuições ao estudo da identidade.

Conduziremos nossa discussão apresentando inicialmente a questão do estado de exceção numa sociedade capitalista, tendo como referência a afirmação de Agamben de que esse é o paradigma da política contemporânea. Em seguida, partiremos para o estudo da identidade conforme entendida por Ciampa.

Como nos identificamos em um cenário político no qual a exceção é a regra? Como é possível criar relações sociais que resultem em uma emancipação dos sujeitos diante dessas regras de sociabilidade? Qual o significado das metamorfoses identitárias em um estado de exceção? Pensando nesses questionamentos, debateremos a ideia do estado de exceção como cerne das democracias capitalistas liberais que se estabeleceram no século XX e que se fortificam no XXI com o uso da lei para ordenar as relações sociais e manter certo controle sobre a vida das pessoas; logo em seguida, refletiremos sobre o modo como a identidade se constitui nesse tipo de realidade regida pela lógica do estado de exceção.

 

Organização do Estado de Exceção

Em seu livro Estado de Exceção, Agamben (2003) promove um entrecruzamento da teologia política de Carl Schmitt e das ideias de Walter Benjamin em torno da soberania, da lei e da violência, apresentando-nos elementos de grande importância para os debates sobre a estrutura da política contemporânea, seja na ordem jurídica, seja na cultural ou na social, e também para a compreensão dos reflexos desse modelo nas relações sociais que criam identidades diversas que se enredam, se adaptam e se recriam nesse ambiente de desvio das regras.

Nessa obra, Agamben demonstra como uma normativa que é posta fora do direito - no caso, em estado de exceção - continua em relação com ele e tem como função proteger a lei como soberana e nessa lógica as transgressões contra a vida humana ganham um caráter legal. Para exemplificar melhor essa situação Agamben (2008a) irá citar o exemplo do campo de concentração de Auschwitz.

Por isso que ao tratar do conceito de estado de exceção o filósofo italiano irá colocar a vida no centro de suas preocupações, pois ela atua como elemento estratégico nas técnicas de controle sobre os sujeitos de uma determinada sociedade, fazendo emergir, como foco da biopolítica, a vida nua.

O termo biopolítica surgiu na obra: A Vontade de Saber, primeiro volume da História da Sexualidade de Michel Foucault.

"Este bio-poder, sem a menor dúvida, foi elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, só pode ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos." (Foucault, 1999, p. 122).

Com essa afirmação de Foucault, podemos entender que o termo biopolítica demonstra como que na modernidade a vida é tomada por estratégias e técnicas do poder político com a finalidade de produzir seres humanos dóceis e úteis para o desenvolvimento do capitalismo (Heron, 2011).

Por outro lado, Agamben diz que a biopolítica não nasce na modernidade, como pensou Foucault, mas surge juntamente com o nascimento da política ocidental. Nesse sentido, a biopolítica é uma maneira estratégica da política incluir a vida não somente no sistema econômico, mas principalmente de inclui-la de maneira extensiva na história da política através de um regime de exceção. Para tanto, o autor italiano nos diz que uma particularidade da vida incluída na política é que esta se torna vida nua, a vida natural desprovida de qualquer atributo humano, ou animal, ou seja, puramente biológica (Heron, 2011).

A exceção funciona como uma suspensão, uma espécie de exclusão; é um caso singular que é excluído da norma geral. Mas o que caracteriza propriamente a exceção é o fato de que aquilo que é excluído não está, por causa disso, fora da relação com a norma; ao contrário, a exceção se mantém em relação com a norma, na forma da suspensão. A norma se aplica à exceção desaplicando-se, retirando-se de cena. O estado de exceção não é, portanto, o caos que precede a ordem, mas a situação que resulta da sua suspensão (Agamben, 2010).

O poder soberano se materializa por intermédio do estado de exceção, e isso origina uma situação jurídica paradoxal na qual a lei suprime a lei. O termo "suspensão" é o mais adequado para explicar essa situação, pois uma norma interna ao ordenamento desse estado de exceção, quando em vigor, suspende todo o ordenamento do Estado Democrático Liberal capitalista e assim a exceção se sustenta, em vigor, na suspensão: a lei suprimindo a própria lei. Por um lado, deve-se levar em conta que a lei é soberana em um Estado democrático de direito; por outro lado, no estado de exceção todo esse ordenamento jurídico fica suspenso. Isso demonstra um paradoxo que revela não haver um "dentro" e um "fora" do ordenamento: há apenas a regra e sua exceção.

Nessa senda, o estado de exceção cria uma indistinção entre fato e direito e, segundo Agamben (2010), um exemplo dessa situação são os campos de concentração, inseridos em um espaço absolutamente da exceção, ou seja, um espaço criado pela ordem jurídica no qual o ordenamento está suspenso. Para clarificar, vale dizer que o campo de concentração difere completamente do cárcere pelo fato de este estar inserido na ordem legal e penal do ordenamento, enquanto aquele está fora.

É interessante lembrar que, para Agamben, assim como o estado de exceção é um paradigma da política contemporânea, o campo de concentração também é. Isso não significa dizer que estamos rodeados por cercas elétricas ou guardas fortemente armados, mas que relações de exceção presentes no campo estão atuantes até hoje - e fora dele - e que a maneira como a vida é entendida dentro de um campo é uma realidade na política contemporânea. É o que veremos mais adiante com a figura muçulmano.

Por isso Agamben (2010), baseado em Schmitt, diz que o estado de exceção está no limite entre a política e o direito. Esse autor diz que, por se estabelecer em momentos de crise política, esse estado deve ser compreendido no terreno político, e não no jurídico; contudo, diz o autor, por se constituir de instrumento jurídico constitucional, cria um desequilíbrio entre o direito público e o fato político. Como princípio político, não se apresenta explicitamente como medida extrajurídica e arbitrária de supressão dos diretos e da ordem jurídica, pois não é declarado; ao contrário do estado de sítio, por exemplo, aparece como lei inserida e integrada no corpo do direito vigente. Uma lei que tem força mas não vigora.

Por isso Agamben (2003) afirma que o soberano é aquele que decide na exceção, e isso não significa decidir o que é lícito ou ilícito - pois fazer isso seria permanecer na vigência do direito -, mas sim decidir a implicação da vida humana na esfera do direito, ou seja, qual vida será poupada ou não para o campo do direito, qual vida vale e qual não vale a pena ser vivida. Nessa perspectiva, o direito é a norma não porque normatiza, mas sim porque normaliza.

Agamben (2003) lança mão do conceito de "bando" para definir a relação do direito com a soberania, pois bando está etimologicamente relacionado com "abandonar", "banir", e ser banido não é estar fora da lei, é ser abandonado por ela. Ser abandonado pela lei é se manter em relação com ela.

É por meio da ideia de bando, portanto, que Agamben (2010) concebe o esquema da exceção soberana no qual, em suas palavras, "a lei aplica-se-lhe desaplicando-se, o mantém em seu bando abandonando-o fora de si" (Agamben, 2010, p. 55). Dessa feita, o bando traz à tona duas características da exceção soberana: a primeira, que há uma indistinção entre dentro e fora da lei; a segunda, que a lei vigora sem lei, ou seja, sem forma de lei.

Na sociedade ocidental, durante praticamente todo o século XX, a construção dos modelos de democracias deveria impor a supremacia dos direitos coletivos sobre os individuais. Porém, o estado de exceção se revela nas atuações militares e nas imposições financeiras a que são submetidos os países mais pobres economicamente, por exemplo. Atualmente, o estado de exceção é um instrumento globalizado que se utiliza dos meios de comunicação e informação para definir a vida nua na qual o soberano ganha um status ideológico sem face, mas de pensamento definido. No contexto dessas democracias ocidentais, o estado de exceção garante governabilidade para que se imponham sacrifícios (econômicos, de vidas humanas nas guerras e na miséria...) em nome da democracia liberal capitalista, e esses sacrifícios se tornam mais importantes do que os próprios valores democráticos.

Hoje, especificamente, o estado de exceção como pensado por Agamben a partir da sua leitura de Walter Benjamin lhe permite afirmar que esse se torna regra. O uso desse mecanismo não apenas tem sido mais frequente, como de fato vem progressivamente se constituindo na própria matriz das ações políticas na democracia contemporânea. Isso possibilita a existência, na modernidade, de uma política que permite e justifica fenômenos como o totalitarismo, campos de extermínio, campos de concentração de refugiados, favelas, prisões secretas, etc.

Como mencionado, Agamben (2003) entende o estado de exceção como paradigma da política contemporânea. Para o autor, o estado de exceção é uma forma legal daquilo que não pode ter forma legal - ou seja, a vida, o que é imprevisível, aquilo que é vazio de direito. O estado de exceção diz respeito, portanto, a uma maneira de o direito incluir a vida sob seus auspícios. Ao incluir a vida, o estado de exceção coloca em jogo a diferença entre o político e o jurídico, e entre o direito e o vivente; com isso, Agamben (2003, p. 10) pretende se aproximar do significado do agir politicamente.

O estado de exceção é, portanto, um espaço no qual a norma e a sua aplicação se separam, por meio de uma força de lei sem lei. Ou seja: de um lado, uma lei que não se aplica, mas resta em vigor; de outro, uma lei que vigora sem forma de lei, uma lei que não passa pelos tramites constitucionais. Essa situação revela essencialmente um espaço vazio no qual as ações humanas não se referem mais ao direito, e isso faz com que a vida e o direito se tornem indistintos.

Assim, podemos conceber o estado de exceção como um vazio de direito. Isso significa que as ações humanas - que, do ponto de vista do direito, podem ser legislativas, executivas ou transgressivas - são representadas num campo totalmente anômico, no qual todas as determinações jurídicas são desativadas e as ações humanas são remetidas para um não lugar, e o que resta é apenas intimidação.

Aqui, cabe retornar à análise que Agamben (2003) faz de Benjamin para dizer que o estado de exceção, diferentemente da revolução, provoca uma violência pura, ou seja, uma violência sem finalidade - usamos o termo "puro" aqui para nos referirmos a meios sem fins. Já a revolução, que também é uma violência, traz em si uma finalidade, que é substituir a ordem vigente.

 

Identidade do Sujeito no Estado de Exceção

Vale destacar aqui que Agamben propõe a ideia de estado exceção como um vazio de direito no qual as ações humanas são intimidadas e controladas, criando assim uma situação extrema que limita as possibilidades da vida humana e suas margens de liberdade dentro do estado. Nessa perspectiva, nos aproximamos da teoria de Antonio da Costa Ciampa que compreende a identidade e as configurações nas dinâmicas das relações sociais, mesmo em situações extremas. Para Ciampa, há uma aposta na humanidade por meio do sintagama como veremos adiante.

De acordo com Lima (2008, p. 13), essa nova concepção de identidade foi elaborada em um momento em que se buscava a criação de uma psicologia social distintivamente brasileira, contrária ao positivismo presente na psicologia social norte-americana. Surgia a proposta de um referencial teórico embasado na interdisciplinaridade, que buscava teóricos europeus críticos à vertente estadunidense para auxiliar na formulação das ciências humanas, das ciências sociais e da psicologia social da América Latina.

Nesse sentido, a proposta criada por Ciampa contém resgates da perspectiva filosófica de Heráclito; o idealismo de Hegel; em certa medida, o materialismo marxista; e forte influência de autores como Irving Goffman, Peter Berger, Thomas Luckmann e George Mead, entre outros que contribuíram para a formulação de uma proposta de análise e compreensão da identidade.

Em um segundo momento, marcado pela criação da sua obra clássica A estória do Severino e a história da Severina: um ensaio da psicologia social,ele insere o pensamento de Jürgen Habermas na discussão e trabalha com conceitos como mesmice e mesmidade compondo a ideia de metamorfose. Nesse sentido, Lima nos explica:

A mesmice decorre da reposição da identidade que pode se dar como consciente busca de estabilidade ou inconsciente compulsão à repetição; é pré-suposta como dada permanentemente e não como reposição de uma identidade que um dia foi posta. O que pode dar uma aparência de não metamorfose, comumente observado quando olhamos para uma pessoa depois de algum tempo e dizemos para nós mês mos: fulano não mudou nada, continua o mesmo! O que sustenta a mesmice é o impedimento da emancipação; e a plena concretização da mesmice é aquilo que Ciampa chama de fetichismo da personagem, que vai explicar a quase impossibilidade de um indivíduo atingir a condição de serpara-si. O mundo da mesmice (da não-mesmidade) e da má infinidade (a não superação das contradições), em que a própria atividade que serve de base para a personagem deixa de ser desempenhada: Severino "é lavrador" mas já "não lavra". (Lima, 2008, p. 16).

A teoria proposta por Ciampa sofreu transformações ao longo dos anos e, em 1999, no encontro nacional da Associação Brasileira de Psicologia Social (Abrapso), o autor propôs a ampliação da concepção identidade-metamorfose por meio do sintagma identidade-metamorfose-emancipação. Para Lima (2005), fica claro que identidade é metamorfose humana em busca de emancipação que pode ser conquistada, ou não, na medida em que está sujeita ao desenvolvimento da identidade pós-convencional como possibilidade universal.

A proposta de Ciampa pretende visualizar qual a função dos sujeitos nas construções sociais, no intuito de pensar sobre a humanidade do ser, as metamorfoses e as nomeações que resultam da condição histórica (material), na qual esse ser se configura e se desfigura e o humano se realiza e se perde. Cada indivíduo encarna as relações sociais configurando uma identidade pessoal. Uma história de vida. Um projeto de vida - que nem sempre é vivida -, no emaranhado das relações sociais. No seu conjunto, as identidades constituem a sociedade, ao mesmo tempo em que são constituídas, cada uma por ela. (Lima, 2005, p. 127).

Para Ciampa (1998), identidade é metamorfose, algo não estático que se transforma. Ele afirma que a identidade é o que confere a materialidade do ser, não por apresentar alguma substância que o caracterize por real, mas por suas manifestações possibilitarem a concretização, no ser, do que é compartilhado universalmente como humano (Ciampa, 1998 citado por Antunes, 2010).

A identidade, para esse autor, pode ser definida como a localização em certo mundo e só pode ser subjetivamente apropriada juntamente com esse mundo, ou seja, todas as formas de identificação acontecem em um mundo social especifico. Somos o que aprendemos que somos ou o que nos dizem que somos.

Assim, defende que identidade se constitui na dinâmica comportamental; longe de ser um ente transcendental que atua sobre a realidade, ela é a própria realidade. Ela consiste numa multiplicidade de papéis atualizados na dinâmica social e, ao mesmo tempo, na síntese deles, numa conformação única que garantirá as individualidades biográficas. Esse vestir e despir de papéis é a manifestação da identidade em movimento como processo de renovação nas relações sociais de modo a conformar as expectativas sociais.

Para Ciampa, a identidade como metamorfose ganha substância por meio de personagens; o sujeito é visto como personagem, e a identidade é a articulação de várias personagens que são constituídas a partir de um momento histórico. Conforme o autor, "Personagens são momentos da identidade, degraus que se sucedem; círculos que se voltam sobre si em um movimento, ao mesmo tempo, de progressão e de regressão" (Ciampa, 1998, p. 198).O sentido do processo de metamorfose está na luta pela emancipação, que pressupõe uma autonomia que possibilite ao sujeito a concretização de um projeto de vida, tendo como alicerces a sua história e a compreensão da sua identidade (quem ele é), quando o outro o reconhece e como ele gostaria de ser reconhecido total ou parcialmente. A emancipação, por vezes, envolve uma identidade coletiva e, quando isso acontece, o sujeito ganha mais autonomia ao colaborar como membro de um grupo e, ao mesmo tempo, concretiza sua singularidade dentro da rede de intersubjetividade.

A questão é: como é possível a metamorfose do humano em um estado de não direitos no qual se mascara exceção como direito, em que se estar fora da norma se justifica como uma norma possível para alguns? O que realmente é transformar a si mesmo em um cenário de controle mascarado no qual somos cada vez mais vigiados e controlados por um estado de exceção?

Para Ciampa (1998) a ideia de metamorfose não se reduz a um processo unicamente individual da pessoa. Ele concebe que o sujeito se constitui na interação com a sociedade e a sociedade somente ganha os traços peculiares em cada cultura porque justamente é formada por pessoas que a constroem e sustentam. Nesse sentido, quando se transforma a sociedade é porque também o ser humano está se "metamorfoseando"; lutando por emancipação.

Ao relacionar as propostas de Ciampa e Agamben, cabe pensar se, em um Estado que objetiva a manutenção do poder soberano, a identidade ganha molde de adaptação no sentido mais sóbrio de seu conceito, que é o de permitir ao ser vivo tornar-se mais apto a sobreviver em seu ambiente. É a politização da vida nua. As identidades podem ser personagens que se adaptam aos vários cenários construídos nas relações sociais. É a adaptação não como transformação, e sim como aceitação; esse aceite pode ser inconsciente ou criar um engodo de que as pessoas estão transformando a si próprias e a sociedade, no entanto apenas reproduzem a lógica da vida nua. Por outro lado, Ciampa nos aponta que também há pessoas, mesmo diante dessa política adversa, que não reproduzem esse engodo e reagem a ele, almejando a chance de mudar sua posição nesse contexto.

Em seu livro, Ciampa (1998) estuda o caso de Severina, que vivencia diversas transformações para compreender qual seu papel nas relações sociais. Severina observa os outros, se observa e pede para ser visualizada, para que possa perceber sua importância nessas relações e resgatar o humano que vive como bicho, mas, nessa observação que define essas várias metamorfoses, sustentamos que Severina percebe a necessidade da adaptação para manter tais relações.

Nas formas de relações sociais modernas definidas por um ordenamento jurídico - pois, sim, somos vestidos e despidos por leis, as relações sociais são dependentes de um ordenamento do Estado e, se esse Estado é um estado de exceção, nele o ideológico sobrepõe-se a uma possível compreensão do desejo e da verdade -, o que Severina e os restantes dos sujeitos percebem é que é necessário adaptar-se para não se tornar uma vida nua, uma vida matável, sujeita ao desrespeito. Aos que não se adaptam lhes resta o papel da loucura, da marginalização, do aprisionamento, da estigmatização, do preconceito e também da falta de entendimento sobre o que é o coletivo.

Temos direito a ter direitos, mas sempre existem brechas para esse direito, ele pertence somente a alguns, ou melhor, essas brechas favorecem somente um determinado grupo de pessoas que se encontram numa posição de poder, como por exemplo os alemães em relação aos judeus (Agamben, 2008a). O estado de exceção é um instrumento para uma afirmação jurídica ideológica em um Estado democrático de direito, cujo ideal de universalidade de liberdades e garantias não funciona para todos, ao contrário do que proclama. É um modelo que não pode funcionar para todos, não foi elaborado para esse fim; no entanto, trataremos aqui, especificamente, do caso de uma sociedade capitalista como nos dizem Pavón-Cuellar e Lara Junior (2016) a qual passa a assumir em muitas situações o estado de exceção quando suspende a legalidade e a ética para adquirir o lucro à custa da: pobreza, miséria, sexismo, racismo, poluição do planeta; tortura e morte de minorias etc. Portanto, o estado de exceção numa sociedade capitalista não está no fim dessas violências; ao contrário ela busca legitimar essas violências por meio de um conjunto de regras que, a fortiori, evolui para um projeto de dominação.

Por isso que a identidade nos estados modernos é garantida por direitos individuais, mas para isso é necessário adaptar-se às regras propostas por esses direitos; portanto, nessa lógica, a emancipação torna-se um jogo de estratégias que não pertencem totalmente a essa legalidade. Compreender como e por que os direitos individuais são sobpostos pelo coletivo nos permite conhecer as fronteiras do modo de fazer política do estado de exceção e construir estratégias em vista da emancipação.

Parece-nos pertinente entender a emancipação como a busca de um ideal, um desejo que movimenta e dá sentido à vida, sem fim previsto; é um devir, sem ela não enxergamos o horizonte de possibilidades em nossas vidas. Ela pode dar ao ser a percepção de suas escolhas e de seus direitos, a busca pela vida feliz, consciência das relações de opressão que o envolvem. As emancipações, em princípio, não são possíveis no estado de exceção, que é ideológico por regra e propõe ordenações estratégicas que se tornam imperativas porque tolhem do humano as possiblidades de liberdade, portanto, para que a emancipação aconteça é preciso subverter essa ordem, diante disso o sintagma proposto por Ciampa nos aponta para essa transgressão.

Ciampa (1998) define realidade como uma possibilidade já realizada, e define possibilidade como realidade potencial. Logo, consideramos as histórias dos sujeitos nas relações sociais, cada uma a seu modo e a seu tempo; submetem-se ao itinerário que a elas são prescritos, adaptando-se às realidades a seu redor. São histórias que podem conter estratégias de batalha, abrindo caminho para possibilidades de emancipação e sobrevivência à vida nua.

Ciampa (1998) se preocupa em analisar casos em que a metamorfose foi, de alguma forma, exitosa, pois, de alguma maneira, o sujeito encontrou fragmentos de emancipação. Ele não teoriza sobre identidade em um estado de exceção, de acordo com análises de Agamben (2003), e no qual a lei que vigora é a lei que não tem forma de lei e o soberano tem o poder de eliminar os direitos individuais ou coletivos com a justificativa da proteção.

Diante disso, não julgamos inviável o processo da busca por emancipação no estado de exceção; pelo contrário, acreditamos que, em última instância, os sujeitos lutam por emancipação e as artimanhas do sistema servem para dissuadi-los dessa empreitada. Por isso, dirigimos nosso olhar para as artimanhas do sistema que criam, de alguma maneira, empecilhos ao sintagma como vimos acima quando nos referimos ao uso da violência nas sociedades capitalistas; politização da vida nua e também às regulações postas no Estado de exceção. Nessa mesma lógica, somos levados a questionar e pensar como ocorreria a metamorfose de sujeitos que são atraídos por essas artimanhas e as tomam como referente identificatório em seu processo de constituição de identidade. É nesse ponto que incide nossa questão: que sujeito estamos produzindo nesse tipo de sociedade regida pelo estado de exceção?

Para responder a essas indagações, Agamben (2008a) apresenta a figura do muçulmano, indivíduo que vive em campo de concentração, ambiente completamente atravessado pela exceção. Trata-se de um morto vivo; um ser que perdeu suas características ou humanas, ou animais, e sobrevive por uma sorte, prestes a morrer, marcado pelo olhar do outro como um não homem. Ele encarna o próprio testemunho da vida nua, da vida desprovida de qualquer valor, da vida como é tomada pelo biopolítico, um elemento estratégico no jogo político.

Vale resgatar o texto de Lara Junior e Santos Lara (2013) em que, apoiados nas ideias de Agamben, buscam entender as relações de trabalho numa sociedade influenciada pelo estado de exceção. Os autores nos dizem que esse trabalhador está se tornando um muçulmano, aquele que está abandonado, despossuído do direito de viver, pois fora exposto a rituais de violência que o impedem de viver.

O conceito de muçulmano, apresentado por Agamben em seu livro O que resta de Auschwitz (2008a), faz referência aos prisioneiros dos campos de concentração, principalmente Auschwitz. O muçulmano1 está no extremo entre a vida e a morte, entre o humano e o inumano. "O muçulmano é não só, e nem tanto, um limite entre a vida e a morte; ele marca, muito mais, o limiar entre homem e o não homem" (Agamben, 2008a, p. 62). Ele era incapaz de discernir as coisas mais simples da vida, como o bem, o mal, a espiritualidade e a não espiritualidade, a nobreza e a vileza.

O muçulmano é a identidade que se inicia quando a dignidade é exterminada, por isso olhar para ele não é tarefa fácil. O muçulmano denuncia algo do humano que lhe foi extirpado; ele é aquilo que não se quer ver, aquilo em que não se quer nem pensar, pois representa a morte moral e a redução à vida nua. Quando se separa a humanidade de sua vida biológica realiza-se um duplo extermínio, porque nas condições de embrutecimento extremo o humano fica reduzido à mera sobrevivência biológica, despojada da possibilidade humana de dizer-se como sujeito histórico.

Assim nos diz Primo Levi (2004, p 71) sobre os sobreviventes dos campos de concentração: "Sobreviviam de preferência os piores, os egoístas, os violentos, os insensíveis, os colaboradores da 'zona cinzenta', os delatores. [...] Decerto me sentia inocente, mas, arrolado entre os sobreviventes, buscava permanentemente uma justificação diante de meus olhos e dos de outros. Sobreviviam os piores, isto é, os mais adaptados; os melhores, todos, morreram.".

Ao refletir sobre esse conceito, Agamben (2008b) baseado em Foucault, diz que o biopoder contemporâneo reduziu a vida humana à sobrevida. Ao contrário dos antigos modelos de governo ou soberania, que se fundamentavam na ideia de fazer morrer e deixar viver, o biopoder cria a lógica do fazer viver e deixar morrer, produzindo um exército de sobreviventes ao reduzir a vida humana a seu mínimo além do biológico, a vida nua (Cruz, 2012).

Agamben arrisca dizer que somos todos muçulmanos, porque essa figura não está presente somente nos regimes totalitários; também as sociedades democráticas ocidentais têm implementado o estado de exceção e, com isso, produzido esse tipo de ser humano em uma escala cada vez maior e sob um véu de direitos e garantias que, ao invés de promover liberdade, constrói um processo ideológico que coisifica a vida humana. Uma das decorrências dessa "coisificação", aplicada especificamente ao trabalhador contemporâneo, Lara Junior e Santos Lara denominaram de "estado de torpor".

Nessa lógica, o trabalhador sofre por meio da opressão material (mais-valia) e pela opressão psíquica, por meio desse gozo da subserviência, porque ele se abstém de seu desejo de autonomia e liberdade dos jugos do mestre. O sujeito dessa relação, para manter-se nessa posição, acaba ficando em um constante estado de torpor, no qual não sabe exatamente o que se passa consigo; qual o sentido do seu trabalho; quais as relações de poder a que está submetido. Dessa forma, ele passa a reagir dentro de estímulos básicos como comer, beber, dormir, fazer sexo e trabalhar, como na descrição de George Orwell em seu livro 1984. O poder do big brother e as formas de controle cada vez mais eficazes produzem sujeitos torpes que renunciam ao gozo e se contentam com as rações controladas de comida e com a vida submissa aos domínios de um "big other" que os domina. (Lara Junior & Santos Lara, 2013, p 23).

Seguindo o raciocínio desses autores, imerso nesse estado de torpor provocado pelo abandono político e pela apropriação do direito da vida humana, o trabalhador, muitas vezes, não consegue reagir às imposições do estado de exceção e aquilo que antes era proibido pela lei agora se torna um referencial para ele; o fetiche da mercadoria se torna sua verdade, trazendo para a etiqueta um complemento nominal adjunto à sua identidade - o que é belamente descrito por Carlos Drummond de Andrade no poema Eu, etiqueta.

Por me ostentar assim, tão orgulhoso
De ser não eu, mas artigo industrial,
Peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é Coisa.
Eu sou a Coisa, coisamente. (Andrade, 1984, p. 85-7).

O sujeito entorpecido (o muçulmano da sociedade contemporânea) recebe um novo nome: a "Coisa que vive coisamente" passa a constituir sua identidade crendo que sua emancipação está na busca por uma marca que o identifique, um cargo importante na empresa, um trânsito nas colunas sociais, pois nesse percurso supõe ter acesso a diversas formas de prazer compradas pelo dinheiro e, consequentemente, a uma felicidade quase sem limites. Para se atingir esse estágio paradisíaco, é preciso seguir uma trilha, um mapa imaginário que é oferecido pela sociedade do espetáculo e reduz as vidas apenas à aparência, regulando as formas de sociabilidade dos sujeitos.

Propomos aqui a ideia de que atualmente o estado de exceção administra relações sociais por meio da imposição de um raciocínio capaz de ser seguido pelos indivíduos subjugados e da omissão da premissa do argumento: a suspensão da lei especialmente, como afirmamos acima, que em função do lucro, as normativas de preservação da vida e do planeta são suspensas com a intenção de se obter mais-valia. Por exemplo, basta relembrarmos o acordo de Paris para a diminuição de emissão de poluentes na atmosfera, visando a proteção da vida no Planeta; O país mais poluidor do mundo os "EUA responsáveis por 17,9% das emissões no globo, ficaram de fora" (Deursen, 2017) do combinado entre os países, alegando que esse acordo iria interferir nos lucros do país. Esse raciocínio se fundamenta de maneira pragmática, assertiva e superficial (para não se chegar à premissa), como um manual para ordenar as relações sociais. É muito comum a divulgação de instruções para se vestir e se comportar em ocasiões distintas na sociedade e, atualmente, têm se popularizado simulacros para ensinar como o trabalhador deve se comportar em uma entrevista de emprego e até em suas relações sexuais. Livros de autoajuda e manuais do self made man, aqueles que se tomam como objetos, fazem sucesso.

Quanto mais o sujeito é tomado pelo estado de exceção, mais sente que está se emancipando; quanto mais submisso às regras impostas socialmente, mais se supõe pertencente ao laço social. Assim, o sintagma ganha contornos de realidade na existência desse indivíduo, mas é apenas um simulacro decorrente da ação da exceção.

Pensamos que na lógica da exceção, subjetivamente o sujeito se identifica com a impressão e a vida humana passa a ser entendida ao revés, ou seja, de fato a pessoa é cada vez mais tratada comomuçulmano. Dessa maneira, o sujeito se torna entorpecido, como já mencionamos, porém sedento pelos micropoderes das relações sociais que lhe dão a sensação momentânea de ser um soberano de si, ou seja, de ser aquele que governa na exceção, no cotidiano, por momentos, instantes de grandeza e soberba, como objeto de si, uma imagem. Sua vida não está posta em questão, apenas o parecer ser, e ele se desumaniza, já que como muçulmano desconhece as suas possibilidades de emancipação. Por outro lado, na lógica de Ciampa ao perceber a própria vida como um sintagma o indivíduo abre possibilidades para a emancipação.

Como diz Primo Levi (2004), para serem bem-sucedidos na empreitada de sobreviver nos campos de concentração, os presos reproduziam as lógicas de poder e dominação dos nazistas. Tinham a sensação de que assim estariam caminhando em direção à liberdade ou ao menos prolongando a vida, mesmo em situações degradantes.

Ainda como vimos em Primo Levi (2004), esse indivíduo entorpecido passa a administrar, vigiar e punir os corpos que insistem em não se pôr nessa lógica de funcionamento, pois é convicto de que está em um processo de metamorfose. Sendo assim, o sujeito entorpecido pelo estado de exceção na sociedade capitalista, quanto mais acredita nas regras ditadas por esse estado e for fiel a elas, maior a probabilidade de ser destituído de sua condição humana, porque ocupa uma posição de muçulmano, como citamos anteriormente. Desta feita, torna-se uma coisa, um ser sem alma, um ninguém, um despossuído que pode ser humilhado, demitido, transferido, usado, descartado e até morto. Passa a odiar todos os indivíduos que ousam questionar essa lógica ou criar um estilo de vida diferente a essa do entorpecimento (Lara Junior, 2012).

Portanto, hoje o indivíduo entorpecido se torna um gerente dessas relações de exceção. Para ser um "bom" gerente basta reproduzir sem crítica ou questionamento ao ordenamento social e assim impõe uma lógica de opressão, porque age sem limites éticos nas ações que pratica para alcançar objetivos que aprendeu a reconhecer como seus. Esse é o crente que paga com obediência e subserviência sua situação de abandono. Com isso, implanta-se uma forma de administração sem atrito, garantindo para as mais diversas organizações do sistema capitalista lucro líquido e certo ao final do processo.

Para os cínicos (Safatle, 2005, 2008; Lara Junior, 2012), O cinismo passar a ser uma forma de pensar e agir e não simplesmente uma conduta moral - se torna um ethos que evita que o indivíduo responda e se responsabilize eticamente por seus atos; por isso os cínicos usam estratégias de distorção da moralidade em imoralidade e da sinceridade em insinceridade para alcançar os seus mais variados objetivos que lhe darão algum tipo de satisfação... Por outro lado, diferentemente do cinismo, o que nos interessa demonstrar aqui é que os sujeitos entorpecidos estão seguros e convictos de que a representação definida pelos padrões do Estado de exceção se torna a "verdadeira" realidade, de que sua vida tem sentido como "Coisa que vive coisamente"; eles são os escravos modernos destituídos de sua certeza da escravidão. Isso é possível porque vivem regidos pela exceção, que dita as formas de reconhecimento desses sujeitos e inviabiliza que fragmentos de emancipação estejam disponíveis na realidade, pois esta é tomada ao revés (emancipação vira devaneio).

Dessa forma, os sujeitos que se tratam "coisamente" ficam presos à lógica de entorpecimento que reproduz sem pestanejar o modelo exploratório da soberania, sem crítica ou culpa e crente que está em um processo de sintagma. Como a culpa surge da interdição da lei, essa culpa inexiste em um contexto em que a lei é a exceção; fica apenas registrado no sujeito algo da ordem de um mal-estar.

 

Considerações Finais

Tais considerações nos levam a interrogar: como lutar pela vida e suas potencialidades em face do poder soberano constituído pelo estado de exceção? Esse texto é, antes de qualquer coisa, um questionamento de possibilidades e uma delas nos leva a crer que talvez nos pertença somente a luta pela vida feliz, sobre a qual deve se fundar a vida humana, ou seja, uma vida suficiente que atingiu a perfeição de sua própria potência e de sua própria comunicabilidade, e sobre a qual a soberania não tem mais nenhum domínio.

Em oposição a vida feliz, temos os indivíduos em um estado de torpor que se aproximam do ser da vida nua; um estado que expressa a dessubjetivação da pessoa; aqueles que buscam sacralizar a felicidade como uma sensação permanente e absoluta e para isso se submetem ao estado de exceção com a expectativa de que essa sensação seja mantida.

Mesmo diante dessa constatação, não devemos reduzir a reflexão à ideia de que todos estão amarrados à lógica do estado de exceção, pois há sempre alguém que escapa, há sempre fragmentos de emancipação que insistem em aparecer para que os sujeitos lutem por ela. Esses que lutam por reconhecimento e emancipação demonstram para os demais que outros caminhos são possíveis e, com isso, que a vida feliz é uma possibilidade.

Apostamos nos sujeitos que lutam por emancipação, denunciam, de certa maneira, essa lógica de exploração e criticam essa apostasia. Isso permite que o mal-estar sem nome seja identificado como sofrimento decorrente de um processo racional de opressão imposto pelo estado exceção

No entanto, o sujeito que investe ou é levado a investir no estado de torpor sofre com esse investimento. Essa operação poderá um dia falhar e, então, esse engodo se manifestará, supostamente, em forma de "doenças da alma": depressão, síndrome do pânico, suicídio, etc., ou males que marcam o corpo, mas que são decorrentes delas. Essa identidade formulada no estado de torpor ganha cada vez mais longevidade na atual sociedade biopolítica, porque há, como vimos até aqui, toda uma tessitura social, política e econômica para manter a exceção como regra, o simulacro como realidade. Quanto menor a oposição a esse tipo de política, maior o prolongamento nesse tipo de relação e, com isso, mantém-se a prisão da alma desses sujeitos.

Fica clara, nessa reflexão, a necessidade de nos preocuparmos com as questões sociais, políticas e econômicas para compreendermos a identidade dos sujeitos, pois ela, entendida isoladamente, se torna mais um souvenir psicológico para encerrar o sujeito em sua suposta individualidade, favorecendo a biopolítica em sua marcha para desvincular a realidade de sua imago. Nesse sentido, a interlocução entre Ciampa e Agamben nos permitiu trazer para a psicologia social um debate atual e importante para a compreensão da realidade brasileira que, por se estruturar em função do sistema capitalista, acaba implantando certas ocasiões em que o estado de exceção prevalece, mas que para Ciampa sempre há possibilidades do sintagma e que por isso, abre margens para pensarmos em processos de transformação social em que não se institua a opressão como regra.

 

Referências

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Submetido em:30/03/2017
Aceito em: 01/10/2018

 

 

1 Mulçumano era como os habitantes dos Campos de Concentração chamavam aqueles que estavam prestes a morrer, ou entregues ao destino, já não falavam, não comiam, esperavam a morte chegar, quase vivos.

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