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Revista Psicologia Política

versão impressa ISSN 1519-549Xversão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.18 no.42 São Paulo maio/ago. 2018

 

ENTREVISTA

 

Para além das fronteiras disciplinares: trajetórias acadêmica e política de Cornelis Johannes van Stralen

 

Beyond disciplinary boundaries: academic and political trajectories of Cornelis Johannes van Stralen

 

Más allá de las fronteras disciplinarias: trayectorias académicas y políticas de Cornelis Johannes van Stralen

 

Audelà des frontières disciplinaires: trajectoires académiques et politiques de Cornelis Johannes van Stralen

 

 

Frederico Alves CostaI; Frederico Viana MachadoII

IUniversidade Federal de Alagoas. fredericoalvescosta@gmail.com
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul. phredvm@gmail.com

 

 

No IX Simpósio Brasileiro de Psicologia Política, realizado na cidade de Natal em 2016, Cornelis Johannes Van Stralen foi o homenageado, em reconhecimento de sua importância para a Psicologia Política brasileira. Para nós, entrevistadores, foi uma satisfação conduzirmos essa entrevista, pois Cornelis foi uma referência importante do Núcleo de Psicologia Política da Universidade Federal de Minas Gerais, espaço fundamental para nossa formação.

Nascido em 1942, na cidade de Heerhugowaard, na Holanda, Cornelis, por volta dos 10 anos, considerou ter vocação para ser padre e, após frequentar o seminário, tornou-se Padre Crúzio1. Cursou graduação em Teologia, entre 1966 e 1968, na Universidade Católica de Nijmegen, na Holanda, e, ao invés de seguir para o doutorado, decidiu migrar para um país do "terceiro mundo", no caso, o Brasil. Decisão construída em razão do questionamento presente em sua Congregação na Holanda, nos anos 1960, sobre o significado da Igreja no mundo e de, como aponta, ter nascido em um país pequeno, no qual as pessoas buscam olhar para fora.

A mudança para o Brasil ocorreu em 1968, ano da promulgação do Ato Institucional Número 5 (AI-5) pela ditadura civil-militar brasileira. Cursou graduação em Psicologia, entre 1969 e 1973, na Universidade Federal de Minas Gerais, instituição na qual se aposentou, mas permanece como docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia..

Cursou Mestrado em Ciência Política também na UFMG, obtendo o título em 1985 com a dissertação intitulada "O Sistema Regional do Norte de Minas: um programa social como processo político", sob orientação de José Malory Pompermaier. Seu Doutorado foi em Ciências Sociais, na Utrecht University, da Holanda, orientado por Geert Banck e defendido em 1996. Sua tese de doutorado, publicada em livro (Stralen, 1996), é intitulada "The Struggle over a National Health Care System; the 'movimento sanitário' and health policy-making in Brazil".

Teve papel de destaque em diversas associações científicas, dentre elas a ABPP, da qual foi tesoureiro (2001), vice-presidente sudeste (2002-2005), presidente (2005-2008) e secretário geral (2011-2014). É sócio-fundador da ABPP e também foi filiado à International Society of Political Psychology (ISPP). Ademais, é associado da Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO), da qual foi vice-presidente regional Minas Gerais (2001-2003) e presidente (2004-2005), coordenador do Núcleo de Belo Horizonte (2005-2009) e secretário da regional Minas Gerais (2009-2011). Foi bolsista produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Na área da saúde foi atuante na Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), tendo sido coordenador da Comissão de Política, Planejamento e Gestão em Saúde (2011-2013), e no Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), desde a sua criação em 1976, e do qual foi presidente na gestão 2016-2017. É pesquisador do Núcleo de Educação em Saúde Coletiva (NESCON) da Faculdade de Medicina.

Em sua trajetória sempre foi marcante sua relação com a Saúde Coletiva. Seus principais estudos são sobre participação social, com enfoque nos conselhos e conferências de saúde, mas também sobre saúde mental e o Sistema Único de Saúde, que foi um dos panos de fundo de sua trajetória política e acadêmica. Recentemente publicou sobre o welfare state (Stralen, 2017) e organizou um livro sobre movimentos sociais (Stralen & Klandermans, 2015), que também se configura como um tema importante em suas publicações.

Nesta entrevista, discutimos a trajetória de formação intelectual e política, a passagem por associações científicas e concepções sobre as áreas de conhecimento. É possível notar, desde sua análise sobre alguns momentos importantes para sua formação até suas concepções sobre a conformação dos campos científicos no Brasil, sua forte perspectiva interdisciplinar. Em um artigo publicado em 2005 ele defendia que a riqueza da psicologia social estava justamente em sua característica de ser uma disciplina de fronteiras (Stralen, 2005) e em Mensagens escritas na Revista Psicologia Política (Stralen, 2006; 2007), como presidente da ABPP, reivindicou o caráter interdisciplinar da psicologia política, questionando sua concentração, no Brasil, na psicologia.

P: Agradecemos pela disponibilidade para esta entrevista, pensada em razão da importância da sua trajetória para a psicologia política brasileira. A ideia surgiu devido a organização de um número temático da Revista Psicologia Política (RPP) com os textos do IX Simpósio Brasileiro de Psicologia Política, realizado em 2016, em Natal/RN, no qual você foi homenageado. Consideramos importante escutar quem ajudou a construir a associação (ABPP) e a revista (RPP). Podemos começar falando da sua inserção acadêmica na Holanda, até sua vinda pro Brasil?

E: Essa entrevista poderia durar muitas horas. É uma trajetória de muitos anos. Cheguei no Brasil em 68, como membro da Ordem Regular dos Cônegos da Santa Cruz, vulgo Padres Crúzios. Eu achava que eu tinha vocação para ser padre quando tinha 10, 11 anos. Vocações eram incentivadas nas escolas primárias católicas. Recebemos lá visitas de missionários e estes nos falavam com entusiasmo sobre suas aventuras nas missões.

Em 1954, fui para o seminário menor dos Padres Crúzios, que mais tarde se transformou numa escola pública. Fiz o ginásio alfa, o ginásio clássico. Foi uma formação rica. Era uma primeira experiência de trabalhar com textos, pois não apenas traduzimos textos clássicos, mas os interpretamos também: a Ilíada de Homero, a Eneida de Virgílio além de Shakespeare, Goethe etc.

Concluído o ginásio, fui para o noviciado em 1960, uma instituição religiosa onde se passa um ano probatório da vida religiosa e no final deste ano se faz a profissão dos pequenos votos de pobreza, castidade e obediência, isto é, voto para um prazo de três anos. Em seguida, fiz um curso de filosofia de dois anos no Instituto de Filosofia dos Padres Crúzios. Além de uma introdução geral em filosofia, o curso tratava principalmente da filosofia existencialista e fenomenológica. Assim, entrei em contato com autores como Sartre, Merleau Ponty e Husserl. Em 1963 comecei estudar teologia, inicialmente no Instituto de Teologia dos Padres Crúzios. Prevalecia no curso a teologia neotomista, mas paralelamente tinham disciplinas mais avançadas, por exemplo, a disciplina de teologia moral já discutia a sexualidade, incorporando homosexualidade como algo dado e não simplesmente como questão moral.

Pelo fato de que eu e mais um colega questionávamos muito os professores, os nossos superiores acharam melhor a gente continuar o estudo de teologia na Universidade de Nijmegen (Risos). Então fiz dois anos de teologia na Universidade de Nijmegen, obtendo o grau de bacharel. Os professores que me influenciaram mais foram Edward Schillebeeckx, [Piet J. A. M.] Schoonenberg e Han Fortmann. Schillebeeckx inicialmente tentava conciliar o tomismo e a fenomenologia de Husserl, mas depois abandonou o tomismo para enfocar a experiência religiosa. Foi assessor dos bispos holandeses no Concílio Vaticano II. Não foi condenado pela Congregação da Doutrina da Fé, mas o presidente Ratzinger (o posterior Papa Bento XVI) lhe enviou uma notificação. Schoonenberg, que era meu orientador, recebeu várias reprimendas desta Congregação no Vaticano por causa da sua cristologia. Han Fortmann dava cursos sobre Psicologia da Religião. Foi um curso excelente com muitas referências de antropologia, psicanálise, filosofia da cultura e teorias da percepção. As suas aulas atraíam gente do país inteiro. Foi este curso que posteriormente me fez optar pelo curso de psicologia da UFMG. Porém, no Brasil não encontrei nada de psicologia da religião.

Eu poderia ter continuado o curso de teologia para obter o título de doutor em teologia. Vivendo no contexto em que vários colegas meus já tinham ido para as "missões˜, o meu desejo era também entrar em ação e trabalhar num país do terceiro mundo. Minha primeira opção era Indonésia. Esta opção frustrou-se, pois naquele momento o governo da Indonésia, que vivia ainda conflitos com o antigo colonizador, havia fechado mais uma vez as fronteiras para holandeses. A segunda opção que eu tinha era o então Congo Belga. Deixou de ser uma alternativa quando, após o assassinato de Lumumba2, os conflitos internos com os antigos colonizadores se agravaram. Em 1965, 23 Padres Crúzios foram assassinados no Congo Belga após terem ficado 9 meses como reféns.

Considerando os países onde os Padres Crúzios atuavam, sobrou a opção pelo Brasil. Deixem me explicar, não foi simplesmente uma questão de sobrar, o Brasil estava na crista da onda e me atraia muito. Comecei um curso de português e de cultura brasileira na Universidade de Nijmegen com o professor van den Bersselaar, doutor em línguas clássicas, que trabalhara algum tempo no Brasil, na então colônia holandesa Holambra, atual município de Holambra. Para me apropriar melhor da língua portuguesa, passei por duas vezes férias em Portugal, uma vez como hóspede do reitor do Santuário de Fátima e outra vez acampando junto com alguns colegas. Deste modo, já tinha algum domínio do português quando cheguei, em janeiro de 1968, no Brasil.

P: E por que vir para o terceiro mundo? Por que este desejo?

E: Este desejo não era simplesmente um desejo individual. Já relatei como surgiu a minha "vocação" e quase todas as congregações religiosas tinham atividades fora da Holanda. Também o ambiente das universidades reforçava este desejo. Era muito comum naquela época que recém-formados fossem trabalhar um ou dois anos como voluntário no terceiro mundo.

P: Não era apenas uma decisão política, era uma decisão da congregação?

E: Não era a congregação que determinava: "você tem que ir pro Brasil!" A década de sessenta na Holanda era marcada pelos "provos" em Amsterdam, um movimento anarquista e "provocador" que antecipava a "contracultura". Estas mudanças não deixaram as igrejas intactas. De muito tradicional, devido a toda uma história de conflitos religiosos, políticos e sociais entre católicos e protestantes, as igrejas tornaram-se "liberais", e bispos, padres e pastores perderam sua autoridade. Isto se refletia também nos conventos dos Padres Crúzios. Um fato, aparentemente isolado, serve de ilustração. No convento a gente andava de batina, mas um belo dia eu e meus colegas falamos: "isso é medieval, vamos abolir a batina". Combinamos o dia e a hora e chegamos sem batina na capela para as orações litúrgicas. Os nossos superiores não deram conta das mudanças e se calaram.

Neste contexto, não seriam os nossos superiores que iriam definir o que faríamos depois da nossa ordenação. As mudanças e a própria teologia renovada suscitaram forte discussão sobre o papel da igreja no mundo e provocaram um desejo para novas experiências. Assim, participei algumas vezes da coordenação de acampamentos de jovens durante as férias do curso de teologia e fui conhecer também o mundo do trabalho. Trabalhei um mês em uma fábrica da Philips, em Eindhoven, e por dois meses numa fábrica da Ford, em Colônia, na Alemanha. Eram experiências fortes e o estar "no mundo" iria implicar um engajamento político, ainda que colocado em termos religiosos.

P: Teve alguma influência o Brasil estar vivendo uma ditadura militar? Você não foi pra indonésia porque tinha conflito, não foi para o Congo porque tinha conflito, mas aqui tinha ditadura militar.

E: De fato não teve tanta influência. Cheguei no Brasil em janeiro de 1968, antes do recrudescimento do governo militar e o Ato número 5. A situação no Brasil foi muito diferente da Indonésia e Congo. Indonésia não me permitia entrar no país e no Congo assassinaram quase todos os Padres Crúzios belgas. No Brasil, o regime militar, em primeira instância, atuava seletivamente, procurava desmobilizar movimentos sindicais, reprimir o movimento estudantil. A Igreja apoiou inicialmente o golpe, ainda que com exceções, tais como comunidades eclesiais de base, grupos de educação popular. Desta forma, não encontrei nenhum obstáculo para chegar aqui. Solicitei um visto permanente no consulado do Brasil em Rotterdam e bastaria eu apresentar uma declaração da Congregação que iria trabalhar no Brasil como Padre Cruzio. Portanto, naquele momento, a minha opção pelo Brasil não tinha nada ou pouco a ver com a ditadura militar. O que me moveu foi o desejo de trabalhar pela emancipação do povo brasileiro numa perspectiva terceiro-mundista. Esta perspectiva foi reforçada já nos primeiros meses, quando participei de um Curso de Aculturação no CENFI - Centro de Formação Intercultural em Petrópolis. Este Centro, criado pelo Ivan Illich, teve por finalidade preparar missionários que chegaram da Europa para a realidade brasileira. Era mantido pela CNBB, mas por lá passavam também jovens voluntários que queriam trabalhar em projetos sociais. Na parte da manhã tínhamos aulas de português, baseadas num manual do exército americano da segunda guerra mundial, aulas muito cansativas, mas com resultados muito bons. A tarde tínhamos seminários, conferências e debates sobre a realidade brasileira: cultura, estrutura social, estrutura e conjuntura política, economia, etc. Fizemos visitas, por exemplo, a ainda incipiente Cidade de Deus, algumas áreas rurais no interior, terreiros, etc.

Após o término do curso, o coordenador do CENFI me convidou, e a alguns colegas holandeses, para visitar excursistas em São Paulo, Goiás e Brasília e conhecer suas experiências de trabalho. O que me impressionou muito foi o contato com Comunidades Eclesiais de Base em São Paulo. Desta forma, adquiri rapidamente uma percepção da "realidade brasileira" maior do que muitos dos meus colegas, Padres Crúzios.

P: Como foi a sua inserção no Brasil? Foi por quais caminhos?

E: Como foi minha inserção? Após minha passagem no CENFI, cheguei em agosto em Belo Horizonte. Lá minha inserção passou por dois caminhos: a Paróquia Santa Teresa e a UFMG. A paróquia Santa Teresa era administrada pelos Padres Crúzios e, assim, a casa paroquial era ao mesmo tempo um convento. Logo experimentei que a minha "aculturação" ainda era insuficiente. Na primeira semana que estava lá iria ter um passeata de estudantes contra o regime militar. Eu e outro colega recém-chegado resolvemos por curiosidade dar uma olhada. Na última hora a passeata mudou da Avenida Afonso Pena para a Avenida do Contorno, no bairro Floresta. Chegamos ainda a tempo e, mal a passeata começou, carros da polícia chegaram de vários lados. Imediatamente os estudantes correram e escaparam todos. Tranquilamente continuamos observando a cena, mesmo quando um grupo de policiais correu na nossa direção. Afinal de contas não estávamos acostumados a correr de polícia. Nos prenderam e jogaram num camburão. Na hora de fazer ocorrência descobriram que éramos padres de Santa Teresa e resolveram nos soltar após uma pequena lição.

Eu não tinha nenhuma responsabilidade direta pela paróquia, mas ajudava o padre que era o vigário, celebrando missas aos domingos, ouvindo confissões de "beatas", embora na Holanda eu nem mais conhecia esta prática. Após algum tempo, me solicitaram celebrar missas na penitenciária de mulheres e num convento de freiras no bairro Floresta, em vez da Igreja de Santa Teresa. Suponho que era pelo fato de meus sermões serem mais politizados. O contato com as mulheres presas abriu meus olhos para o horror das prisões. A falta de uma reforma do sistema prisional até hoje é um "analisador" muito significativo da atual sociedade brasileira.

Um colega me convidou para trabalhar com ele junto a um grupo de estudantes, entre os quais também ex-Jucistas (pessoas da JUC [Juventude Universitária Católica] que não passaram para a AP [Ação Popular], movimento que surgiu em 1962 a partir da uma politização da JUC e como reação contra uma intervenção da CNBB que proibiu Jucistas de ocuparem cargos no movimento estudantil.). Enquanto a AP formulava uma estratégia político-ideológica e após o golpe de 64 optava por uma estratégia de Revolução Socialista, Ex-Jucistas tentaram manter a linha da Ação Católica, realizando ação política através de trabalhos comunitários e treinamento de lideranças. Muitas vezes eram ainda confundidos com a AP e após o AI-5 a nucleação ficou difícil e sobraram grupos esparsos. A partir do grupo de jovens da Santa Teresa, entrei em contato com um grupo que se reunia no Colégio Arnaldo, com um jovem padre do Verbo Divino3. Por iniciativa deste, chegamos a criar em 1969 o CEDOC-Jovem, Centro de Documentação para Juventude e Mudança Social. O objetivo deste Centro era criar um centro de documentação e pesquisa sobre juventude e realizar um trabalho de formação política com estudantes.

Outro caminho de inserção, e talvez o mais importante, foi a universidade. Resolvi fazer um curso universitário com o objetivo de me profissionalizar. Na minha concepção, um padre e mesmo um religioso deveria estar "inserido no mundo". Isto implicaria exercer uma profissão. Já em 1968 fiz o vestibular para o Curso de Psicologia. Na inscrição estranhou-me quantos candidatos estavam discutindo ainda na hora de inscrição qual curso iriam fazer (risos). Acredito que a opção que fiz pela psicologia tinha a ver mais com meu interesse na Psicologia de Religião do que com alguma perspectiva de trabalhar como psicólogo clínico. Alias me estranhava que a psicologia era predominantemente identificada com a Psicologia Clínica. O curso não correspondia ao que o então diretor da FAFICH, Pedro Parafita Bessa, havia me assegurado: um curso da mesma qualidade dos cursos nos Estados Unidos. Nos primeiros dias do curso fiquei com a impressão de que estava voltando para a escola primária: todos os dias aula das sete ao meio-dia com - no início - muita psicologia experimental, ensinada, simplesmente, através de um livro programado do Skinner. Aguentei o curso pois tinha muita oportunidade de matar aulas, provavelmente porque tinha mais idade do que muitos professores. Também pelo fato de que me identificava muito com a psicologia social. Os professores eram mais politizados e, apesar de trabalharem com um livro texto americano, o livro de Krech/Crutchfield/Ballachey, os professores se esforçavam para pensar a temática no contexto da realidade brasileira. A minha identificação com a psicologia social não era simplesmente pelas aulas, mas pela possibilidade de participar das reuniões do setor de psicologia social. Este setor discutia temas teóricos e políticos numa perspectiva interdisciplinar. Já tendo feito outros cursos, sentia-me familiar com esta perspetiva. Foi também a partir deste setor que eu entraria na área da saúde coletiva.

P: Na psicologia social quais eram os professores que você lembra?

E: Lembro-me de todos que participavam do chamado "setor de psicologia social": Marilia da Mata Machado, Julio Miranda Mourão, José Renato Campos do Amaral, Sônia Fleury (Sônia se vangloria até hoje que fui monitor dela, pois ela era bem mais nova do que eu), Romualdo Dâmaso, etc. O setor surgiu na década de sessenta, em torno do Célio Garcia, que era formado em letras e psicologia, tornou-se mais tarde psicanalista. Do setor não participavam somente os professores, mas também estudantes de psicologia, ciências sociais e outras áreas. O grupo se reunia nas manhãs de sábado. Geralmente o Célio colocava um tema e dava início a uma reflexão e debate. Do Célio, às vezes, a gente não entendia tudo. Depois fiquei sabendo que não era o único (risos). Mas graças ao Célio, o setor era um espaço de formação de pensamento crítico, ainda que este pensamento nem sempre se traduzisse numa atuação política crítica. Célio era muito articulado, principalmente com pesquisadores da França, pois foi lá que ele fez o curso de psicologia. Ele trouxe vários pesquisadores e pensadores para o setor. No período que eu participava ativamente do setor, ele trouxe George Lapassade, Pierre Fédida e Michel Foucault. Tive um contato maior com Lapassade, pois ele, ao pedido do Célio, acabou por se hospedar no convento dos Padres Crúzios, onde eu ainda estava. Não vou revelar detalhes, mas tem a ver com o fato de que Lapassade era muito provocador não só na sua concepção e método de análise institucional, mas também em seu comportamento. Em todas as suas análises e intervenções, Lapassade distinguia uma linha preta e branca. Esta distinção atribuída também ao próprio setor, onde todos se consideravam "progressista" e radicalmente antigoverno militar. Isto criou uma certa tensão, pois entre os "brancos" havia pessoas com uma atuação política que não era de conhecimento público. Com ele visitei vários terreiros da umbanda e candomblé onde ele também distinguia uma linha branca e preta.

Vale lembrar que a experiência do setor não se restringia a encontros e debates. O setor também era um espaço onde se fazia e executava projetos na própria universidade ou em outras instituições. Foi através do setor que cheguei, em 1971, no Centro de Pesquisa René Rachou junto com minha colega Edna Santos Roland. O nosso trabalho era vinculado ao laboratório de esquistossomose de Naftale Katz. Aqui começou de fato minha trajetória na área da saúde.

Através do Programa Integrado de Controle de Esquistossomose, do Ministério do Planejamento, chegamos em Capim Branco, em 1974. Naftale foi um dos coordenadores deste programa nacional, em que testava medicamentos, e Angelina Garcia, companheira do Célio, atuava lá como educadora sanitária. No escopo deste programa tivemos um projeto próprio, "Aspectos psicossociais da Esquistossomose", que era financiado pelo CNPQ. O coordenador oficial do projeto era Célio. Ao que me parece, ele nem sequer leu o projeto, pois confiava na nossa equipe. Desta equipe participavam Júlio de Miranda Mourão, que já era professor de psicologia social, Terezinha Berenice de Sousa, cientista social recém-formada e minha futura companheira, José Francisco da Silva, estudante de psicologia, José Saraiva Felipe, mais alguns alunos bolsistas. O objetivo do projeto era estudar as representações de saúde e doença. O que nos inspirou para isto foi um livro que Célio trouxera da França: Claudine Herzlich, Santé et Maladie, Analyse d'une Représentation Sociale (1969). Entrevistamos a população para apreendermos as representações sociais de saúde e doença. Ao mesmo tempo procuramos realizar uma intervenção comunitária. Trabalhamos muito juntos com Hortênsia de Hollanda que na época era diretora da Divisão de Educação Sanitária. Com a colaboração da Angelina Garcia, ela estava realizando uma pesquisa em Capim Branco relacionada com esquistossomose.

P: E aí foi na universidade que você começou ter uma percepção mais clara sobre a ditadura? Já que você falou que na sua chegada ao Brasil parecia que nem havia ditadura.

E: Na universidade a gente chegou a ter uma percepção clara da ditadura militar, mas, ao mesmo tempo, era uma espaço de liberdade no tocante a debates e discussões políticas, mesmo que a gente desconfiasse da presença de algum dedo duro. Limites de ação evidenciaram-se mais fora da universidade. Como já falei, com alguns Ex-Jucistas do grupo de jovens da Paróquia Santa Teresa e de um grupo de Ex-Jucistas assessorado pelo padre José Afonso Moura Nunes criamos o CEDOC-Jovem. Éramos conscientes de que não teríamos muito espaço para o trabalho de formação, mas achávamos que poderíamos obter alguns canais através de vínculos com a Igreja. Conseguimos um local para a sede do CEDOC no convento dos Padres Carmelitas no Sion. Procuramos criar vínculos, tais como com a CNBB, Juventude Estudantil Católica Internacional, ULAJE - Union Latino-Americana de Juventudes Evangélicas. Com ULAJE chegamos a manter uma relação mais institucional. Participei, em 1973, como representante da ULAJE-Brasil de um seminário da ULAJE em La Falda, Argentina. Nesta oportunidade presenciei a volta do Perón em Buenos Aires. Fiquei impressionado pela enorme mobilização nas ruas. Até então não tinha visto nada igual aqui no Brasil. Conseguimos criar o centro de documentação, mas o trabalho de formação ficou mais limitado. O trabalho acabou se realizando mais como assessoria e capacitação de educadores populares do que como um trabalho direto com universitários. Isto foi favorecido pelo fato que a equipe do CEDOC chegou a incorporar algumas pessoas com experiência em educação popular. Em face desta reorientação, resolvemos criar uma nova entidade em substituição ao CEDOC: o GETEC - Grupo de Estudos e Trabalho em Educação Comunitária, e mudar a sede para a Cidade Industrial. Isto foi em 1978. O GETEC publicava alguns cadernos e boletins, além de realizar atividades com entidades e grupos populares. Um pouco antes, em 1976, fora criado na Cidade Industrial o Jornal dos Bairros. Já estávamos no período da distensão política, mas mesmo assim no primeiro de maio de 1979 as sedes do Jornal dos Bairros, do GETEC e de algumas outras entidades populares foram arrombadas. Ao longo do tempo, a minha participação no CEDOC e GETEC foi diminuindo à medida que me engajava mais na universidade e na área da saúde. Em agosto de 1973 comecei a dar aula na PUC, onde eu lecionava a disciplina Introdução à Psicologia no recém-criado Primeiro Ciclo e, em novembro de 1973, fui contratado como professor temporário pela FAFICH [Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG] em substituição ao professor José Renato, que foi fazer um doutorado em Paris. Desde então passei de professor temporário para professor voluntário, seguindo os estágios da carreira docente até janeiro de 2012, quando me aposentei. Solicitei uma licença na PUC em fevereiro de 1975, quando iria iniciar o Mestrado em Ciência Política, para nunca mais voltar lá como professor, a não ser em bancas de mestrado e doutorado. A opção por este mestrado não foi meramente pelo fato de que era, então, na UFMG, o único programa de pós-graduação na área de Ciências Humanas e Sociais. Foi pelo meu interesse em política, que foi se sobrepondo à psicologia social à medida que, a partir da minha chegada ao Brasil, fui crescentemente me engajando politicamente.

O mestrado de Ciência Política da UFMG foi criado em 1966 pelo professor Fábio Wanderley Reis com apoio da Fundação Ford. O professor Fábio Wanderley tinha feito mestrado e doutorado na Universidade de Harvard e, além de coordenador, foi o grande líder da área da Análise Política. O líder da outra área, Política Brasileira, era José Murilo de Carvalho, cientista político e historiador. Ele fez seu mestrado e doutorado em Stanford e fez um pós-doutorado em História da América Latina na University of London. José Murilo é membro da Academia de Letras e ganhou vários prêmios literários, o que atesta que, além de um excelente historiador, em seus estudos privilegia as especificidades do Brasil com foco na cidadania, ele é um ótimo autor literário.

Quando comecei cursar o mestrado chegaram alguns professores novos: Edgar Magalhães, Malori Pompermaier e Benício Schmidt. Adotavam uma linha mais marxista. Pela presença de professores com distintas formações, o Curso de Mestrado assegurou um espaço muito favorável para debates acadêmicos e permitiu uma sólida formação em Ciência Política. A associação desta formação com uma prática na área da saúde coletiva favoreceu com que tanto a minha dissertação como a tese de doutorado fossem na área de políticas de saúde, ainda que fatores pragmáticos também contribuíssem. No processo de seleção apresentei um texto sobre participação comunitária em saúde, baseado em nossos trabalhos em Capim Branco. Divulguei este texto na IV Jornada Brasileira de Estudos de Educação em Saúde, realizada em 1975, em Brasília, sob o nome: "Notas sobre a participação comunitária em programas de saúde". A partir deste evento o texto foi amplamente divulgado e utilizado, principalmente pelos assistentes sociais que trabalhavam nos programas sobre saúde, entre outros, no contexto do MOBRAL4, até que foi proibido pela direção nacional do MOBRAL, se não me engano, em 1978.

P: Quem te orientou era mais marxista?

E: Era Malory Pompermaier. Ele utilizava uma abordagem mais marxista e a área do interesse dele era a de movimentos sociais rurais. Eu tenho que confessar que não dei muita oportunidade dele orientar a minha tese de mestrado (naquela época o trabalho final de um mestrado era tese). Pelo tempo exíguo que tinha para finalizar a tese, apresentei um trabalho pronto (risos). Era comum que mestrandos, após terem concluído as disciplinas, fossem contratados, por exemplo, pela Fundação João Pinheiro, naquela época com atuação nacional e vista como uma instituição de excelência. Assim, havia um grande número de mestrandos no país que estavam atrasando ou nem nunca defenderam a tese. Para acabar com esta situação, a CAPES definiu, em 1985, que pessoas que ainda não tinham defendido a tese teriam dezembro de 1985 como deadline para a defesa. Eu já tinha um pré-projeto sobre movimentos rurais e, por este motivo, escolhera Malory como orientador. Não cheguei a coletar dados, pois estava por demais envolvido na área da saúde coletiva. Faltava tempo para isto, pois naquele momento eu estava, pela UFMG, à disposição do Centro Metropolitano de Saúde, onde estava coordenando um curso de Saúde Pública, além de coordenar a área de planeamento. Por outro lado eu tinha muitos documentos, informações e observações diretas do Projeto de Montes Claros. Resolvi, então, escrever a tese sobre este projeto, que apresentei ao Programa de Pós-Graduação com o título "Sistema Regional de Saúde do Norte de Minas: Um Programa Social como Processo Político".

P: Então a dissertação não foi da experiência de Capim Branco?

E: Não! Capim Branco foi importante como experiência de um estudo de representações sociais e de uma intervenção comunitária junto à população. Foi também importante pelo fato de que abriu portas para nos inserirmos, com vários colegas da equipe de Capim Branco, no Projeto de Montes Claros. Isto não quer dizer que o trabalho em Capim Branco não poderia ter dado uma tese. Ficamos mais de dois anos lá. Visitamos o povoado que havíamos escolhido para a pesquisa quase todos os fins de semana. Foi uma experiência muito rica de trabalho comunitário e colhemos, através de entrevistas, dados que permitiam analisar as representações de saúde e doença. Certamente, poderia ter dado uma dissertação ou tese.

P: Hoje poderia dizer que Capim Branco foi uma experiência em psicologia comunitária?

E: Depende o que se entende sobre psicologia comunitária, mas na nossa visão era. Até certo ponto era também uma experiência de psicologia política. Tal como a psicologia política, a psicologia comunitária é interdisciplinar. É uma intervenção comunitária que tem como referência a literatura sobre intervenção psicossociológica. Mas como intervenção que visa mudança social e política, pressupõe também conhecimentos da ciência política. Em Capim Branco descobrimos na prática como é importante fazer uma análise das relações políticas. Após termos realizado muitas entrevistas e conversas informais, tivemos relações informais muito boas com a população, tão boas que para não decepcionar ninguém cheguei a almoçar duas vezes em seguida. Achávamos que tínhamos condições de fazer uma assembleia sobre a percepção da população referente aos seus problemas de saúde. Convidamos, então, todos os moradores. Contra nossa expectativa, faltava muita gente e pensamos: "como é possível?" No final de semana seguinte visitamos muita gente que tínhamos convidado. Perguntamos: "por que não foram para a assembléia?" Todos tinham alguma desculpa! Doença, visita de um parente de outro município, etc. Só, então, percebemos que tinha uma linha divisória política e que esta se expressava até no futebol, pois haviam dois times distintos. Nós não tínhamos percebido isso! O nosso bom relacionamento com quase todos os moradores fez com que deixássemos de perceber que uma comunidade local, por mais que pareça homogênea e integrada, é complexa em termos de relações sociais e políticas.

Apresentei o trabalho de Capim Branco e fiz conferências sobre saúde comunitária e/ou participação comunitária em vários eventos durante a década de setenta e oitenta, principalmente na área da saúde, e acabei-me tornando uma das referências nesta área. Algumas vezes chegava um convite para um evento, outras vezes a gente se inscrevia com um trabalho ou procurava participar como ouvinte. Em 1976 ocorreu um encontro aqui em Belo Horizonte que foi decisivo para continuarmos na área de saúde e trabalhar com a questão da participação comunitária. Um colega da equipe, recém-formado, José Francisco da Silva, tinha trabalhado como estagiário na Secretaria de Saúde e manteve ainda contatos por lá. Ele ficou sabendo de um importante encontro que iria acontecer em Belo Horizonte, o Primeiro Encontro do Sistema Integrado de Prestação dos Serviços de Saúde do Norte de Minas, conhecido como o Projeto de Montes Claros, que abrangia 48 municípios. Este projeto visava a criação de uma rede de atenção primária. A rede consistia basicamente de uma UBS - Unidade Básica de Saúde no centro dos municípios, com um médico e auxiliares de saúde e UAS nos distritos e povoados dos municípios com apenas auxiliares de saúde. O projeto foi muito inovador e importante para o Norte de Minas, onde muitos municípios sequer tinham um médico, ou tinham um médico por apenas um dia na semana. José Francisco conseguiu arranjar alguns convites para nós. Lá encontra-mos a nata da ainda incipiente área da saúde coletiva, entre os quais Sérgio Arouca, que veio a ser um dos principais líderes do movimento pela Reforma Sanitária, e o Chicão, diretor do projeto. Na época, Sérgio Arouca estava trabalhando na FINEP - Financiadora de Estudos e Projetos (atualmente Financiadora de Inovação e Pesquisa). Eu e um colega da equipe fomos conversar com ele sobre um financiamento para continuar o trabalho em Capim Branco. Arouca estava bem impressionado pelo projeto de Montes Claros e, em resposta, ele nos apresentou ao Chicão e disse "vocês vão ter financiamento, mas só se vocês mudarem para o norte de Minas" (risos). Respondemos "Tudo bem, nós vamos pra lá" (risos). Logo foi feito um convênio entre a Secretaria de Saúde e a Fundep e em agosto de 1976 já começamos a trabalhar em Montes CLaros com toda a equipe que estava trabalhando em Capim Branco.

O projeto consistia da implementação de uma rede regional de atenção primária em cooperação com os 48 municípios da região. A equipe técnica do projeto era relativamente pequena e ficou combinado que alguém da nossa equipe, que terminasse seu curso, poderia ser contratado. Um membro da equipe, José Francisco da Silva, que já era psicólogo, foi logo contratado e Saraiva Felipe foi contratado em dezembro, quando terminou o curso de medicina. Nossa tarefa oficial era trabalhar com o componente de participação comunitária, criando comitês de participação em cada município. Acabamos nos envolvendo em tudo, mas não criamos os comitês. Com exceção de Montes Claros, faltava em quase todos os municípios uma infraestrutura associativa. Ficamos trabalhando na implementação do projeto de agosto de 1976 até o final de 1978.

Sem exagero, posso dizer que me tornei um sanitarista em Montes Claros. Anos mais tarde, em 1986, quando fui coordenador de um curso de especialização em saúde pública no Centro Metropolitano de Saúde, alguns docentes da ENSP procuraram Arouca, nesta época presidente da FIOCRUZ, para denunciar que em Belo Horizonte o coordenador do Curso de Especialização em Saúde Pública nem sequer tinha feito um curso de Saúde Pública. Arouca simplesmente respondeu-lhes que eu tinha feito uma formação muito melhor do que eles. Nesta época eu já havia coordenado dois cursos de especialização em Saúde Pública na Escola de Saúde de Minas, em convênio com ENSP, UFMG, SESMG, FHEMIG e FUNED. Recebi em 1979, da Secretaria Estadual de Saúde, o convite para coordenar Cursos de Saúde Pública. Este convite fora viabilizado por Chicão, naquele momento assessor na Secretaria Estadual de Saúde. A demanda era construir um curso nos moldes de um curso que demos para supervisores do PIASS - Programa de Interiorização de Ações de Saúde e Saneamento. Era um curso oferecido pela Escola de Saúde de Minas Gerais com uma semana por mês presencial na Escola e o resto à distância. Foi optado por este modelo para dar aos diretores e chefias dos Centros Regionais de Saúde oportunidade de fazerem um curso de Saúde Pública.

P: Nesta época que você atuou em Capim Branco e depois no Projeto de Montes Claros, você já tinha deixado de ser padre?

E: Sim, já tinha saído do convento dos Padres Crúzios em 1973 e em 1974 recebi dispensa do exercício do sacerdócio.

P: Você foi da AP ou nao?

E: Não, não. Na realidade nunca fui vinculado diretamente a algum grupo político, mas tinha proximidade com vários grupos. Estes contatos surgiram quando eu era ainda padre, os contatos com a AP inicialmente através do grupo de jovens da Paróquia Santa Teresa; com o PCdoB através do movimento estudantil da FAFICH e através de colegas do CEDOC; e com o PCB através de pessoas que cheguei a conhecer através de amigos.

Fui também procurado por um militante da VAR-PALMARES [Vanguarda Armada Revolucionária - Palmares], que surgiu em 1969 através de uma fusão da COLINA - Comando de Libertação Nacional e VPR - Vanguarda Popular Revolucionária. Isto foi em 1972, quando eu ainda estava lá em Santa Teresa. Nesta época a VAR-PALMARES estava tentando se reestruturar. Ele discutiu comigo um documento escrito pelo Lamarca sobre a luta armada. Infelizmente não podia levar o documento (risos). Marcaram uma reunião comigo à noite. Para minha estranheza, a reunião era em uma Kombi cheia de gente que ficava circulando à noite na cidade. O pessoal era muito novo,

mas meu contato já era um pouco mais velho. Pensei nesse momento: como um pessoal tão novo vai fazer uma revolução? Algum tempo depois ele me procurou novamente. Contou-me que após a reunião, na madrugada, a Kombi foi abordada pela polícia, prenderam todos, só ele conseguiu escapar. Propôs uma reunião no Rio. Esta reunião com meu contato e mais um militante do VAR- PALMARES ocorreu num hotelzinho muito obscuro. Não me lembro mais do local. De volta a Belo Horizonte ninguém mais me procurou. Anos mais tarde ele me procurou quando eu morava num barracão na Avenida Nossa Senhora do Carmo. Infelizmente, eu mesmo não estava naquele dia, mas ele se encontrou com a minha companheira, Terezinha. Contou que no Rio ele ficou preso logo após a reunião comigo. Confessou que ele fizera uma reunião com um padre Holandês, mas sugerindo que era um padre do Rio. Naquela época era de fato muito comum que a gente fosse procurado para algum apoio, por exemplo, para mimeografar panfletos... Também temos que lembrar que, para o pessoal dos chamados grupos clandestinos, a igreja era muitas vezes um dos poucos canais com a sociedade. Eu tentei ir um pouco mais longe, talvez fosse porque eu ainda era romântico quanto à resistência ao regime militar (risos).

P: Você se salvou duas vezes?

E: Foi, duas vezes. Os contatos com grupos daqui foram mais duradouros. Aqui, o pessoal procurava também o CEDOC e o GETEC. Eu tinha mais contatos com pessoas ligadas ao PcdoB, particularmente Idalísio Soares. Vocês devem lembrar desse nome! Participamos juntos de uma chapa do então Centro de Estudos de Psicologia. Inclusive quando ele foi para o Araguaia, ele me avisou que iria entrar na clandestinidade. Um irmão, ex-padre com larga experiência em educação popular chegou a trabalhar no CEDOC e no GETEC

P: Você acha que isso tem a ver com sua saída da igreja?

E: A minha saída dos Padres Crúzios tem a ver com a procura de engajamento político maior, mas foi um processo mais complexo e demorado. Na realidade, antes de ser ordenado na Holanda, já tinha algumas dúvidas. Acho que as dúvidas aqui aumentaram pelo contexto em que vivia: Santa Teresa, na época não era nem de longe um bairro boêmio, era muito tradicional; vários colegas Crúzios eram tradicionais em termos de teologia e concepções pastorais. Cada vez mais me sentia um peixe fora d'água. Então, gradualmente comecei me desvinculando, até que um belo dia tomei a decisão de deixar a vida religiosa e o sacerdócio. Posso imaginar que minha vida teria tomado outros rumos se eu, por exemplo, tivesse acompanhado o Pedro Casaldáliga para o Mato Grosso depois do Curso de Aculturação em Petrópolis. Não sei como seria, pois ele achava o grupo de holandeses no CENFI liberal demais.

P: Você entrou no NESCON ainda no curso de graduação ou depois?

E: Bem depois, pois o NESCON foi criado em 1983 pelo professor Benedictus Philadelpho de Siqueira, professor do Departamento de Medicina Social, com financiamento do CNPQ. O nome era na época Núcleo de Pesquisa em Saúde Coletiva e Nutrição. Ele acrescentou nutrição, pois era a especialidade dele. Atualmente, continua a sigla NESCON, mas o nome mudou para Núcleo de Educação em Saúde Coletiva. Reflete a mudança das principais atividades e na captação de recursos. Philadelpho me chamou para trabalhar com ele no NESCON. A primeira atividade do NESCON foi um curso de metodologia para pesquisadores da Faculdade de Medicina, da qual eu também fui professor. A verba do CNPq era curta e assim a atuação do NESCON foi minguando.

Continuei trabalhando na Faculdade de Medicina, pois desde 1982 eu atuava como professor de políticas de saúde na Residência de Medicina Social. Tinha sugerido ao coordenador me convidar pelo meu interesse de continuar vinculado à àrea de saúde coletiva, pois já estava prevendo que toda equipe da coordenação dos dois cursos de Saúde Pública [já citados anteriormente] seria demitida após a conclusão dos cursos por instigação do pessoal que antes administrava os tradicionais cursos de Saúde Pública. Em 1984, com o governo de Tancredo, Dario Tavares, que fora Secretário de Saúde quando estávamos atuando no projeto de Montes Claros, imediatamente recontratou a equipe para trabalhar no Centro Metropolitano de Saúde, na gerência de Saúde da Região Metropolitana de Saúde sob a nova direção de Chicão. Uma vez que neste intervalo fui incluído no regime de dedicação exclusiva, preferi que ele solicitasse ao reitor a minha disponibilidade pela UFMG.

Dario chamou Chicão para dirigir o Centro. Além de atribuir a mim o cargo de coordenador de planejamento da Região Metropolitana, me chamou para organizar um Curso de Saúde Pública em convênio com a ENSP no Centro Metropolitano de Saúde. Este curso chegou a ser realizado no período 1986 - 1987. Neste intervalo foi nomeado um novo diretor que não era do chamado grupo de Montes Claros. Este me devolveu logo após a conclusão do curso. Enquanto eu estava à disposição do Centro Metropolitano de Saúde pela UFMG aproveitei para aproximar o curso de psicologia com a saúde coletiva. Com o apoio da Comissão da Integração Docente-Assistencial, da qual eu também era membro, criei um Internato de Psicologia, que funcionou no período de 1984 até 1986 em Montes Claros, onde Saraiva Felipe era Secretário de Saúde. O internato não teve continuidade porque sua duração de seis meses não era muito compatível com o funcionamento do curso de psicologia. Em contraste com o internato da medicina, o da psicologia era optativo. Não percebi abertura de colegas para promover uma mudança, para enquadrar melhor o internato no currículo, mesmo como optativo, e nem um movimento de alunos neste sentido, ainda que sempre um grupo reduzido estava disposto a se matricular. Esta experiência do Internato permitiu que alguns alunos entrassem na área da saúde coletiva no norte de Minas. Outros começaram a namorar pessoas da área da saúde e também se fixaram em Montes Claros. Ao mesmo tempo, criei um Estágio de Psicologia Social em Centros de Saúde de Belo Horizonte, que funcionou de 1983 até 1989.

Em 1986 voltei a participar do NESCON, quando houve uma refundação. Esta foi induzida pela política de Hésio Cordeiro, então presidente do INAMPS, de estimular a criação de núcleos de apoio da reforma sanitária em universidades públicas. Foi quando a reforma sanitária tomou corpo através da VIII Conferência Nacional de Saúde. A primeira atividade era um curso nacional sobre a reforma sanitária e a proposta de um novo sistema de saúde. A partir deste momento o NESCON se dedicou muito à formação de recursos humanos tendo em vista a reforma sanitária, mas continuou também com a sua linha de investigação. Coordenei o curso nacional no norte do país. Além disso, coordenei ou participei de inúmeros outros projetos, seja de investigação, assessoria, entre outros, às Secretarias de Saúde de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, e de formação de recursos humanos. Nesta área, a minha última atuação relevante foi a participação na Coordenação Nacional do projeto de Capacitação de Conselheiros Estaduais e Municipais de Saúde. Este projeto foi executado pela ENSP, UFMG, UNB e UNICAMP através de um consórcio formado pelas suas respectivas fundações e núcleos de saúde. Participei representando o NESCON. Ao todo capacitamos mais ou menos 30 mil conselheiros no período 2002-2003.

P: Para o doutorado você voltou pra Holanda. Foi como professor da FAFICH?

E: Fui fazer doutorado na Holanda em 1991. Foi o Departamento de Psicologia que me liberou para fazer o doutorado no exterior, mas a minha bolsa era da área da Saúde Coletiva do CNPQ, por sinal foi a última bolsa do CNPq para um doutorado pleno no exterior. Resolvi fazer doutorado na Holanda, porque lá ainda existe, ao lado do modelo americano que nós aqui adotamos, a forma clássica. Você procura o aceite de um orientador e não tem obrigação de fazer disciplinas. Eu queria só me dedicar à tese, que seria sobre políticas de saúde no Brasil. Meu orientador foi o professor Geert Banck, um antropólogo, então professor da Universidade de Utrecht e pesquisador de um centro inter-universitário em Amsterdam, o CEDLA - Centro de Documentação para América Latina. Ele estava desenvolvendo pesquisas sobre políticas locais no Espírito Santo, desde que ele fez coleta de dados lá para sua tese de doutorado. A experiência de ter um orientador de outra área foi muito gratificante, pois me obrigou a transcender o discurso dominante da reforma sanitária. Participei ainda de reuniões mensais de doutorandos de várias universidade que estavam realizando pesquisas em América Latina. Evidentemente, foi também uma boa oportunidade para minha companheira, que chegou também a fazer um doutorado, e para meus filhos conhecerem a Holanda.

P: Então você entra em 1973 na UFMG, o mestrado você já faz como professor da FAFICH e o doutorado você faz na área da Saúde Coletiva?

E: O mestrado fiz como professor da FAFICH, mas o tema da dissertação já era da saúde coletiva. Como já falei, defendi a dissertação tardiamente em 1986. Nesta época continuava como professor do departamento de psicologia, mas estava bem inserido na área da saúde coletiva através do NESCON e da Residência de Medicina Social. O doutorado também fiz tardiamente. Pensei, antes tarde do que nunca, pois não dá para continuar a trabalhar na universidade sem doutorado. Fiz o doutorado atrasado não por causa de preguiça intelectual. Estava envolvido demais no movimento pela Reforma Sanitária, desde o Projeto de Montes Claros, que na década de setenta era a Meca da Saúde Pública e virou referência de outros projetos, como o PIASS - Programa de Interiorização de Saúde e Saneamento, criado em 1976. Este programa inicialmente se destinava ao Nordeste mas depois foi estendido para o país inteiro. Chicão, diretor do projeto de Montes Claros, foi convidado para coordenar este projeto. O projeto de Montes Claros virou também uma referência para um novo sistema de saúde, principalmente a partir da atuação dos militantes de saúde no PCB, cujo grande líder era Arouca. O projeto tornou-se um dos eixos de articulação do movimento sanitarista que chegou a se consolidar na década de oitenta a partir do CEBES e da ABRASCO.

P: Você já tinha, nesse momento, se inserido na ABRASCO?

E: Inserime na ABRASCO praticamente desde sua criação, em 1979. A ABRASCO surgiu a partir de encontros de programas de pós-graduação promovidos pela OPAS [Organização Pan-Americana da Saúde]. Entrei em ação principalmente na segunda diretoria, que tinha como presidente o professor Philadelpho e como Secretário Executivo Paulo Buss, da ENSP. Por longos anos Paulo Buss continuou como Secretário Executivo e foi o grande motor e organizador da ABRASCO junto com Francisco Eduardo Campos, da Residência de Medicina Social da UFMG. A base da ABRASCO eram as Residências de Medicina Social ou Medicina Preventiva e num grau menor os cursos de Saúde Pública, principalmente os vinculados à ENSP. As residências começaram a serem articuladas no início da década de oitenta através de um programa de apoio promovido pelo INAMPS e pela ENSP. Através do Francisco Campos, coordenador da Residência da Faculdade de Medicina da UFMG, acompanhei os debates. Nesta época a ENSP já havia organizado vários seminários de avaliação dos Cursos Descentralizados de Saúde Pública. Participei do seminário realizado em 1979, pois nesta época já tinha contato com a ENSP, a partir de um pedido de que eu e o Chicão assessorássemos a criação de um Curso de Sáude Pública para o Estado de Alagoas. Além disto, já estava programando os cursos de Saúde Pública que eu seria coordenador no período 1980-1982 na Escola de Saúde. O grande lançamento da ABRASCO foi em 1981, no Fórum Nacional sobre Residências de Medicina Social e/ou Preventiva. Lembro de que neste Fórum participei de um grupo de trabalho sobre o ensino de Saúde Pública, que tinha como presidente Philadelpho, no qual uma das grandes questões era qual era o projeto de Saúde Coletiva. A partir disso participei de muitos eventos da ABRASCO. Fui indicado para a Comissão de Ciências Sociais. Não me lembro a partir de que ano, mas foi em substituição à Sonia Fleury, quando ela foi para Estados Unidos, onde trabalhou algum tempo no Banco Mundial. Quando já estava de volta do doutorado, acompanhei a criação da Comissão de Política, Planejamento e Gestão em Saúde e me tornei um dos seus membros. Fui vários anos coordenador desta Comissão. Como tal fui responsável pelo III Congresso de Política, Gestão e Planejamento em Saúde, que foi realizado em Belo Horizonte em 2013.

P: Na saúde coletiva você sempre teve uma preocupação muito forte com a participação, com os conselhos, suas pesquisas foram caminhando por aí...

E: A questão da participação já era um linha de orientação quando estávamos trabalhando em Capim Branco. A partir desta experiência surgiu a proposta de criar a disciplina Psicologia Comunitária na reforma de currículo do curso de psicologia, em 1974, mas foi criada como psicologia comunitária e ecologia humana. Eu e Julio Mourão estávamos propondo disciplinas novas fora do contexto tradicional da psicologia social mineira. A maioria do setor, que aparentemente não estava tão interessado, propôs: "Vamos juntar essas disciplinas!" De fato também não tinha espaço para tantas disciplinas. Então ficou assim (risos).

Eu estava interessado em introduzir a questão da participação comunitária no campo da psicologia social. Era importante congregar mais profissionais nesta área, pois a participação política tem tido frequentemente como referência a classe média e/ou movimentos organizados, tais como sindicatos, desconsiderando grande parte da população.

A participação comunitária era a demanda principal quando fui participar da implementação do projeto Montes Claros. O projeto previa a criação de comitês ou conselhos em cada município. Desistimos disto. Não meramente pelo fato que ficamos muito envolvidos em todos os aspectos da implementação do projeto. O Diretor, Chicão, nos convocava para ajudar em tudo, reunião com prefeitos para discutir a participação das prefeituras no projeto, participação do treinamento das auxiliares de saúde, reunião com os supervisores, participação nas reuniões realizadas nas segundas feiras com todo pessoal do Centro Regional de Saúde, inclusive serventes, motoristas, etc. para avaliar o andamento do projeto etc. O motivo principal de nossa desistência foi que que não tinha um substrato para fazer esses comitês comunitários. Na região, a vida associativa era muito pobre. Por exemplo, na área sindical apenas 7, das 48 cidades, tinham sindicato de trabalhadores rurais e a maioria destes 7 havia sido fundados pelas mesmas pessoas que fundaram os sindicatos patronais. Então não tinha como fazer comitês, a não ser comitês formais com a mulher do prefeito como presidente. Optamos, então, pela estratégia de discutir com as auxiliares de saúde a questão de participação social e política durante o treinamento delas em Porteirinha. Este treinamento tinha a duração de um mês.

Um assessor peruano da OPAS, que também teve como incumbência fomentar a participação comunitária, procurou um caminho diferente, baseado na sua experiência com o SINAMOS [Sistema Nacional de Apoyo a la Movilización Social] no Peru. Para esclarecer a sua inspiração, o SINAMOS foi criado em 1971, pelo governo de Juan Velasco Alvarado, com o objetivo de criar uma democracia social plena, que permitisse aos cidadãos participarem em todos os níveis de decisão. Esta participação se daria através de entidades autônomas. Não foi um sucesso, pois na prática se reproduzia a tradicional troca de favores.

Após muitas discussões com a nossa equipe, para conseguir o nosso apoio, o diretor resolveu atribuir a ele um campo de experimentação, um povoado de Porteirinha. Lá ele colocou como objetivo promover o saneamento básico através da participação da população. Através da Igreja ele conseguiu fazer reuniões com a população, nas quais ele falava da importância da água filtrada com as mulheres e de fossas com os homens. Marcou com os homens um domingo após a missa para iniciar a escavação de fossas. No dia combinado ninguém apareceu. Com tanta dificuldade de ter acesso a água no Norte de Minas, como pensar em água filtrada? E com tanta mata, como privilegiar fossas?

P: Temos esse debate sobre a participação na saúde coletiva, que se intensifica nos anos 80, com a 8a Conferência Nacional de Saúde, na Constituição de 88, e que se institucionaliza na Lei 8.142 sobre os conselhos e as conferências de saúde... Como você avalia historicamente esses moldes institucionais? Tanto em torno dos conselhos, como em torno da construção do SUS, desde os anos 80... Como você avalia o formato participativo e institucional?

E: Atualmente o debate sobre participação comunitária se confunde com o debate sobre conselhos e conferências. Parece que tudo isto começou com a oitava Conferência5 e na realidade a história é mais complexa. Na década de 70 o discurso sobre participação já estava muito presente, pelo menos na área da saúde. Era um discurso promovido por organismos internacionais, tal como o Banco Mundial. Muitas vezes o discurso era recebido com desconfiança, pois interpretava-se a participação comunitária como uma forma de controle social. Porém, a resposta era também participação comunitária. Em projetos como o de Montes Claros e o do Vale do Ribeiro, em São Paulo, ou ainda os diversos projetos de medicina comunitária, a proposta chegava quase a ser interpretada como uma contraproposta ao regime militar.

Na década de setenta, Alberto Pellegrini, então pesquisador da ENSP, fez um projeto através do qual ele criava intercâmbios entre vários projetos. Em alguns lugares a participação parecia funcionar melhor. Não sei se funcionava melhor ou se algumas experiências chegaram a ser mais mais conhecidas. De qualquer forma, em geral, as experiências eram ideologicamente valorizadas no contexto do regime militar. Por exemplo, neste projeto, a participação no projeto de Montes Claros recebia muita atenção, não sei se foi pelas experiências em si ou pelo fato de que era um projeto muito divulgado. Como já falei, no projeto de Montes Claros não fomos nós que tentamos criar e coordenar experiências de participação comunitária. Era através das auxiliares de saúde, com as quais discutimos a proposta de participação durante o treinamento em Porteirinha, continuando a discussão quando já estavam trabalhando nos municípios. Elas nos trouxeram experiências interessantes, construídas por elas mesmas. Por exemplo, em Pirapora, a igreja tinha "terra dos santos", que eram terras doadas para a igreja, mas que não estavam sendo utilizadas. As auxiliares entraram em contato com o padre e propuseram fazer hortas comunitárias. Na região de Salinas tinha um grupo de auxiliares de saúde que começou a pensar sobre o transporte de doentes. Isto começou a ser um grande problema na década de 70. Praticamente não tinha transporte de doentes no interior do norte de Minas, pois os donos da terra começaram a se desobrigar pelo fato de que as relações de trabalho estavam mudando. As auxiliares de saúde conseguiram criar um tipo de cooperativa. Estas experiências talvez não pareçam tão significativas quando pensamos em grandes cidades.

A experiência de Capim Branco já nos ensinou que mobilizar a população não é tão simples. Temos que nos relacionar com a população e temos que, através de processos de interação, compreender quais são as demandas, os problemas e qual a expectativa de resolvê-los. Isto não é tão fácil... pelo menos da década de setenta a população rural no Norte de Minas não tinha idéia de onde a gente vinha... universidade, psicologia??? Daí a opção de trabalhar através das auxiliares de saúde.

Quando começou o internato rural da medicina em 1978, no norte de Minas haviam supervisores e alunos, alguns vinculados ao PCdoB, que passaram pelos mesmos problemas. Aparentemente, eles achavam que bastaria chamar a população. O primeiro problema já era a linguagem. Lembro de ter assistido uma cena em que uma pessoa que queria fazer uma consulta com o médico, leia-se aluno de medicina, chamava a auxiliar de saúde para fora da unidade para saber como falar com o "médico". Isso a gente aprendeu: escutar a população! Muitas vezes não era fácil, porque a população não começa tão fácil a falar com estranhos (risos).

De qualquer forma, o discurso sobre participação comunitária ganhou espaço e começou fazer parte do discurso da Reforma Sanitária. Veja a VIII Conferência Nacional de Saúde, a nova Constituição e finalmente a lei 8.142. Esta lei operacionalizou a participação através de conferências de saúde e conselhos de saúde, mas até então a questão da participação tinha merecido pouca discussão no ambiente do movimento sanitário. Parecia simplesmente um pressuposto dado.

Alguns municípios grandes e estados já tinham realizado conferências de saúde, entre outros, Belo Horizonte e o Estado de Minas Gerais. A lei fixa as composições de conferências e conselhos para o país inteiro, mas a realidade social e política é muito heterogênea. Temos municípios com 900 habitantes, até municípios de milhões. A estrutura de conferências e conselhos, na realidade um modelo de corporativismo - prestadores, trabalhadores e usuários - não foi muito discutido durante a luta pela Reforma Sanitária. Nem a forma como compor conselhos e conferências: através de entidades representativas. A pouca discussão que houve tinha como referência os grandes municípios e os estados de onde vieram os militantes da Reforma Sanitária. Como a experiência de SINAMOS, conselhos e conferências muitas vezes são atravessados pela política tradicional. Há, entretanto, conselhos atuantes, mas a participação foi largamente substituída por "controle social". Enquanto em pequenos municípios o conselho dança conforme a música, nem do Secretário da Saúde, mas do prefeito, em municípios maiores o Secretário, pelo menos parcialmente, tem que dançar conforme os conselhos.

Ao meu ver, a institucionalização teve ganhos e perdas conforme as condições políticas de cada município. Institucionalizou a participação, dado, mas ocorreu uma dinâmica não prevista: a participação mudou para controle social pelas dificuldades de conselheiros se apropriarem da gestão e o controle social tornou-se efetivo em vários municípios, estados e principalmente no Conselho Nacional. Além disso, os conselhos, bem ou mal, contribuem para construir um movimento em defesa do SUS.

Ao mesmo tempo, o poder executivo muitas vezes está mais preocupado com a cooptação de conselheiros do que com um conselho que o controle e fiscalize. Quando participei da coordenação de um projeto nacional de capacitação de conselheiros, detectamos que havia muitos conselhos apenas cartoriais. Em muitos lugares a capacitação os estimularam para assumir o papel de controle, antes não assumido por desconhecimento total do SUS e seus órgãos de participação. Há aqui lugar para a psicologia comunitária, mas para uma atuação mais efetiva é indispensável ter consciência dos limites estruturais e políticos. É um grande desafio, pois, ao que me parece, tem ocorrido um certo declínio, não apenas do discurso participativo mas também da psicologia comunitária.

P: Nessa época o Leôncio estava fazendo psicologia comunitária na Paraíba também, vocês tinham contato nessa época?

E: Não, nosso contato é posterior.

P: Porque é de 70 o programa de psicologia comunitária.

E: É! Eu tinha alguma informação através de alunos que cursaram a disciplina Psicologia Comunitária e Ecologia Humana que foram fazer o mestrado lá.

P: Outra área que você também atuou muito e também vem dessa época dos anos 70 e 80, foi a saúde mental, com a luta antimanicomial. Como foi esse processo de passar pela saúde coletiva, discutir o movimento sanitário e ir para a luta antimanicomial?

E: Comecei a me envolver também com a saúde mental quando o Chicão (diretor do projeto de Montes Claros) me chamou em 1984 para trabalhar com ele no Centro Metropolitano de Saúde. No projeto de Montes Claros não houve atenção especial para a questão da saúde mental, toda ênfase estava na integralidade da atenção primária. Agora na região metropolitana a questão da saúde já estava bem presente. Basta lembrar o impacto da visita do Basaglia ao Hospital Colônia de Barbacena, em 1979, e da série de reportagens do Hiram Firmino, no jornal Estado de Minas, "Os porões da loucura", e também o documentário de Helvécio Ratton, "Em nome da razão". Como primeira estratégia, o Centro Metropolitano propôs o acompanhamento dos egressos de hospitais psiquiátricos pelas unidades básicas de saúde para evitar o fenômeno da porta "giratória". Apesar de bons contatos com alguns psiquiatras da rede FHEMIG, esta proposta não avançou por falta de compromisso da FHEMIG que aparentemente considerava que a atenção à saúde mental era um monopólio dela e que o Centro Metropolitano não tinha competência na área da saúde mental. Procurei, então, articular-me com os psicólogos do próprio CMS. Havia na época 8 psicólogos na rede de saúde do Estado, na região. Eles tinham se inserido ocasionalmente na rede de saúde metropolitana, quer dizer, não em função de um programa, mas provavelmente por alguma indicação política. Estes psicólogos já estavam se reunindo de vez em quando para discutir a questão de saúde mental. Com o programa de Ações Integradas de Saúde começou um esforço para organizar os serviços básicos de saúde, mas não havia previsão de contratar novos profissionais. Já tinha aproveitado duas vagas de bolsistas para levar duas alunas do Curso de Psicologia para o Centro Metropolitano. Pensei: "opa, podemos ter serviços de saúde mental, podemos começar com alunos". Foi feito um convênio com a UFMG e um convênio com o serviço social da PUC [PUC-MG]. Tinha sempre um aluno do serviço social e um aluno da psicologia trabalhando juntos e, realocando os ainda poucos psicólogos e assistentes sociais, foi possível criar algumas unidades de referência. A chegada dos alunos teve impacto, os psicólogos que já estavam lá começaram a se organizar melhor, fazer reuniões regulares e discutir o problema da atenção à saúde mental. Mais tarde, estas reuniões mudaram para a Escola de Saúde onde depois deram lugar à luta antimanicomial.

P: Isso em 80 ou já em 90?

E: Não, isso foi na década de 80. Foi antes de eu fazer doutorado. Era uma época cheia de efervescência, muito boa para trabalhar em saúde (risos).

P: Nessa época tinha uma ebulição de debates sobre saúde - a construção do SUS, luta antimanicomial, reforma sanitária. Qual impacto da conjuntura atual para esses processos que foram construídos na década de 80? Como você vê o movimento sanitarista, a luta antimanicomial hoje?

E: O movimento sanitário, a luta antimanicomial enfrentam agora uma situação muito diferente. A década de 80 foi uma época de muita mobilização, mesmo antes do fim do regime militar. Já havia uma abertura, ainda que gradual, desde a segunda metade da década de setenta. Veja a criação do CEBES em 1976. Criamos logo um grupo do CEBES aqui em Belo Horizonte. Teve uma certa resistência, pois o CEBES foi identificado com o Partidão, mas na área da saúde o PCdoB era mais dominante. As pessoas estavam com muita expectativa, muita vontade de fazer mudanças. Não tinha ainda muito corporativismo, você não tinha "enfermeira versus psicólogo". Havia um engajamento coletivo para mudanças, mesmo que uma grande maioria estivesse mais acompanhando do que se mobilizando ativamente. Mas isto é um fenômeno normal. Nesta conjuntura começaram também mudanças a nível das instituições de saúde. O INAMPS, através das Ações Integradas de Saúde, iniciou entre Secretarias Estaduais, Secretarias Municipais ou Departamentos Municipais, já existentes ou criadas naquele momento, o Ministério de Saúde e o próprio INAMPS. Depois vem a VIII Conferência Nacional de Saúde, a Constituinte, a criação do SUS seguida pela extinção do INAMPS. Muitas mudanças, reformas, mas também muita continuidade. O regime político mudou, mas não a estrutura social. Na saúde, uma forte mobilização do movimento sanitário, formado principalmente por sanitaristas e jovens profissionais de saúde, resultou na criação do SUS. Mas o SUS nunca chegou a ser o grande projeto do Estado Brasileiro, era um projeto do movimento sanitário que, por mais que se propusesse universal, incorporava principalmente a grande massa dos brasileiros sem acesso a planos privados de saúde, através de um grande sistema de atenção primária. Na década de 80, você já tinha um setor privado consolidado e este setor somente apresentou uma única linha para ser introduzida no belo texto apresentado pelo movimento sanitário: "A assistência à saúde é livre à iniciativa privada".

Não se faz uma grande reforma sem a participação dos atores importantes. O setor privado, um ator fundamental, não é totalmente contra o SUS, porque certamente não tem a pretensão de incluir toda a população, mas era e continua sendo contra um sistema público único. Compare, por exemplo, a criação do SUS com a história do Serviço Nacional de Saúde da Inglaterra [NHS]. Esse serviço começou a ser implementado antes do grande desenvolvimento da tecnologia médica e dos hospitais. Foi concebido durante a segunda guerra e depois criado em 1948. Teve resistência dos médicos contra um sistema público, mas eles foram cooptados. Não seriam funcionários do Estado, mas profissionais autônomos, ganhando e aumentando sua renda através de captação de clientela. Assim, os médicos que eram inicialmente contrários, de repente viraram defensores do NHS.

Aqui, houve uma certa cooptação de hospitais filantrópicos. O movimento sanitário conseguiu cooptar, até certo ponto, governadores e prefeitos de grandes e médias cidades, não porque eram grandes defensores do SUS, por compartilhar a concepção do SUS, mas pelo fato de que o movimento sanitário, de fato, havia promovido transferência de recursos. Entretanto, quando a demanda por serviços chegou, a simpatia de prefeitos para com o SUS decresceu. Fora do âmbito do movimento sanitário havia certa descrença: circularam até comentários, tais como "o sus não vai crescer, vai desaparecer..." Mas ia crescer e crescer muito. Desta forma o SUS agora é algo dado a despeito dos seus grandes limites, não apenas impostos pelo setor privado, mas justificados também pela opinião pública. Sempre se fala: "serviços públicos não são de qualidade". Certamente não faltam serviços de baixa qualidade, até mesmo serviços privados, mas, graças aos esforços de muitos profissionais, o retrato dos serviços de saúde é mais complexo e até mesmo em condições adversas há produção de bons serviços.

Participei no ano passado de uma banca de defesa de dissertação na PUC. A candidata ao título de mestre tinha feito um trabalho com pessoas que tinham planos de saúde quando estavam trabalhando, mas depois acabaram indo para o SUS por falta de condições de continuar pagando o plano. Estavam estranhando ao entrar em contato com o SUS: "Ó, o SUS funciona assim!". Tinham uma visão muito negativa, mas sem conhecer os serviços do SUS. Sem dúvida o SUS não deixa de encontrar grandes obstáculos: temos um setor privado consolidado; temos profissionais vinculados ao mesmo tempo a serviços privados e públicos; continua a percepção estimulada pela mídia... Para avançar no SUS há de se cooptar os atores importantes na área da saúde. Há sim hospitais privados conveniados, mas há outros hospitais, também filantrópicos, que dizem: "não vamos mais fazer convênios com o SUS, o SUS nos paga mal". Paga pouco porque não têm governos que realmente querem investir... e agora temos até mesmo um congelamento de gastos. Além disto, o principal problema é que nem temos uma sociedade que aspire ter um sistema público para todos.

P: Na questão da saúde mental a gente tem um retorno dos manicômios agora...

E: A luta antimanicomial tem obtido muitos sucessos. Mas ao mesmo tempo temos ainda muitos leitos psiquiátricos. A luta antimanicomial tem sido muito ideológica, mais que toda a reforma de saúde. Isto se explica pela enorme resistência ao fechamento dos leitos psiquiátricos. Os hospitais psiquiátricos privados cresceram muito na década de 60 através de convênios com o INAMPS. Barbacena era o retrato da miséria, mas o grande problema tem sido os hospitais psiquiátricos privados. É grande a resistência, o que levou a luta antimanicomial a ser muito ideológica. Você é a favor ou contra! Na reforma sanitária havia outra situação, pois estava claro que faltava acesso e o setor privado tinha clareza que não iria dar acesso a uma população que não poderia pagar. Ficaram satisfeito com o artigo da Constituição que estipula que a assistência à saúde é livre à iniciativa privada. Então você tinha outro tipo de confronto.

P: Na luta antimanicomial, hoje, a gente tem aí de novo as comunidades terapêuticas, os manicômios...

E: Começam a criticar os CERSAM6, os CAPS7, que têm problemas devido ao subfinanciamento. Aliás, quando começa a faltar recurso para a saúde o primeiro setor que sofre com isso é o de saúde mental. Esta observação é recorrente na literatura internacional. Por outro lado, é uma questão mais complexa, que não se reduz a substituir um dispositivo. É um mundo que congrega problemas muito distintos. Há necessidade de estratégias mais amplas. Além disto, não é a toa que a OMS aponta como um dos grande problemas o preconceito.

P: Lembro que quando entrei no Núcleo de Psicologia Política da FAFICH foi no seu projeto sobre os CERSAM, sua pesquisa de avaliação da política. Como você chega na psicologia política nessa história toda?

E: Como eu chego na psicologia política? A psicologia política no Brasil é recente, ainda que haja autores clássicos aos quais se podem atribuir produções nesta área. Acho que em primeira instância eu trago uma perspectiva política para a psicologia a partir da área da saúde coletiva, onde o principio "Saúde é direito de todos e dever do Estado" não é simplesmente um pressuposto teórico. Numa sociedade extremamente desigual e hierarquizada implica uma luta constante, inclusive em nossa vida cotidiana. As questões sobre como melhorar os serviços de saúde, como criar um novo sistema de saúde universal e equitativo são evidentemente uma questão política. Envolve uma redistribuição de recursos a nível da sociedade, implica sérios conflitos políticos. Além disto, desde minha chegada no Brasil tenho trabalhado com um viés político, por mais ingênuo que posso ter sido em alguns momentos. Eu trouxe para o Programa de Pós-Graduação em Psicologia a forte orientação política da saúde coletiva. Comecei a atuar nesse Programa após minha volta do doutorado na Holanda, no início de 1996. A partir deste momento comecei a me envolver mais com as entidades do campo da psicologia. Engajeime na ABRAPSO, que até então tinha acompanhado mais no nível regional. Em 2000 fui participar da reunião da ANPEPP. Inserime no GT Comportamento Político. A psicologia política no Brasil como campo científico formalizado surgiu com a criação da Sociedade Brasileira de Psicologia Política, a atual Associação, e a criação da revista8. Através da psicologia social eu já tinha contato com o Leôncio [Camino] e com o Salvador [Sandoval]...

P: Então você se inseriu no GT Comportamento Político em 2000. Você estava junto na fundação da associação [ABPP] em 2000?

E: Eu não estava na reunião de fundação, mas eu fui considerado fundador, pois já tinha manifestado meu acordo com a criação.

P: E você já conhecia a Psicologia Política produzida fora do Brasil? Nessa época você já trabalhava com Klandermans9?

E: Não, o Klandermans eu cheguei a conhecer quando já estava no Brasil. Quando eu fiquei responsável pelo segundo simpósio de psicologia política fui investigar o que tinha de psicologia política na Holanda. Identifiquei Bert Klandermans e entrei em contato com ele. Eu o convidei para o simpósio e ele aceitou o convite. Convidei ele novamente para o IV Simpósio em Belo Horizonte10. Nesta oportunidade fizemos esforços junto com o então Núcleo de Psicologia Política da FAFICH/UFMG de internacionalizar a nossa incipiente psicologia política, no sentido de lhe dar uma base maior. Desta forma, além de Klandermans, convidamos Maritza Monteiro, então presidente da ISPP - Internacional Society of Political Psychology. O desejo dela era criar um curso de verão no Brasil, considerando a situação política difícil no país dela, Venezuela, ainda que naquela época bem menos difícil.

P: E como você vê a construção do campo da Psicologia Política no Brasil? Em relação às possibilidades de expansão nas universidades, de seus limites...

E: Houve uma certa consolidação, o fato é que a Revista contribuiu muito para isto, além dos simpósios. Também manteve-se, como eventos regulares, a organização dos simpósios. A revista conseguiu se consolidar graças ao grande esforço dos seus editores. Ao mesmo tempo, não podemos deixar de questionar até que ponto representa a psicologia política, ainda que reflita bem a interdisciplinaridade da área. Os simpósios têm um número significativo de participantes e isso é bom, pois não são apenas participantes do local do simpósio ainda que estes predominem.

Vejo muitos limites, não somente no Brasil, mas também em outros países como por exemplo a Holanda. Existe a disciplina, mas não em todas universidades; não há um campo de atuação de psicólogos políticos. A situação nos Estados Unidos é diferente, pois a psicologia política firmou-se no campo da Ciência Política. Há campo para professores, assessores, etc. Entre nós, a psicologia política não conseguiu entrar no campo da Ciência Política. Na Psicologia há sem dúvida professores e profissionais com uma perspectiva política, mas isto não se traduz num interesse na psicologia política e não cria um campo profissional. Por isto a psicologia política, mesmo tendo uma revista e organizando regularmente simpósio, ainda não se tornou uma disciplina reconhecida, nem na Psicologia e menos ainda na Ciência Política.

P: É um desafio. Eu lembro, quando você era presidente da Associação, de umas mensagens suas na Revista Psicologia Política nas quais você falava do isolamento da Psicologia Política na psicologia, da dificuldade da aproximação com outros campos... Você falou que quando estava trabalhando pelo SUS, pensando a Saúde Coletiva, estava fazendo política, como você vê essas relações?

E: A saúde coletiva é um campo interdisciplinar e lá você você vive a interdisciplinaridade. A Saúde

Coletiva é interdisciplinar! Você encontra e discute com médicos, enfermeiros, assistentes sociais... é claro, tem os conflitos, mas tem uma dinâmica de uma área interdisciplinar. Ao mesmo tempo é uma área muito importante. Então isso sustenta a Saúde Pública como campo interdisciplinar. Na psicologia política falta este fundamento. Entre nós parece somente uma questão teórica e acadêmica. Isto torna até difícil manter a disciplina de psicologia política. No nosso programa de Pós-Graduação é uma disciplina obrigatória para a linha de Política e Participação, mas a demanda por essa área parece estar diminuindo.

P: E por que você acha?

E: Tem vários fatores. Um fator é que a história da psicologia no Brasil é marcada pela psicologia clínica. Atualmente isto é reforçado pelo individualismo da sociedade de consumo. Outro fato é que a psicologia política ficou isolada no campo da psicologia, não entrou nas ciências sociais, ciências políticas. Algumas vezes esta barreira é rompida. Eu já tive até um aluno de mestrado das ciências políticas. Ele queria saber mais da Psicologia Política. Nos Estados Unidos tem um campo consolidado, aqui nós não temos. A Psicologia Política nos cursos de psicologia parece sempre um patinho feio e não é reconhecida fora da psicologia. Acho que devemos desenvolver estratégias para penetrar em outros campos. Os simpósios tentam isto através de mesas multidisciplinares, mas a plateia continua sendo de alunos de psicologia. Podemos pensar, por exemplo, em chapas pela diretoria que cooptem gente da ciência política ou ciências sociais.

P: Mas você acha que no Brasil tem resistência da Ciência Política ou é uma dificuldade nossa, na psicologia, de alcançar essas outras áreas de conhecimento?

E: Eu acho que é uma dificuldade da psicologia também, mas não só. O mestrado de Ciências Políticas da UFMG tinha psicologia política em seu início, fiquei sabendo disso depois. Mas não vingou. Parece que foi uma americana que começou a dar esta disciplina. Ela falava muito mal português e a disciplina não conseguiu se consolidar. Então, o campo de ciências políticas se fechou para isto. Por outro lado, a nossa revista também não conseguiu ser uma revista tipicamente de psicologia política. O Marco [Aurélio Máximo Prado] fez uma vez uma análise dos artigos. Seria interessante você repetir este tipo de levantamento ....

P:Tem aparecido na revista [RPP] uma boa quantidade de artigos da área da saúde coletiva. Temos tido relações com a saúde coletiva. A Rede Unida11, por exemplo, pediu espaço no Simpósio deste ano. Tivemos aquele Diálogo Rede Unida/ABPP.

E: É porque Saúde Coletiva realmente é uma área muito interdisciplinar. Não quer dizer que seja o mais importante, muita gente na medicina fica marginalizando a saúde coletiva. Mas na medida em que um Sistema de Saúde tem que ter gestão, planejamento, etc., a saúde coletiva tem um campo profissional, isso a sustenta e constrói um campo muito interdisciplinar. O intercâmbio não é suficiente para consolidar a psicologia política, ainda que seja um avanço.

P: Você acha que uma das dificuldades maiores é o fato de não ter um campo de atuação. Que outras dificuldades você acha que temos como área?

E: Não ter campo de atuação, um campo significativo, é a primeira e a maior dificuldade. Pode até ser que a pessoa trabalhe, por vezes, com psicologia política, mas não temos um campo consolidado. E, ao nível da própria organização da universidade, você tem uma forte departamentalização. A saúde coletiva sofria também com isso - eles mudaram a numeração do andar [na Faculdade de Medicina da UFMG] onde funciona o departamento da medicina social e preventiva, porque o décimo era chamado "o péssimo andar!" A criação do SUS mudou esta situação, ainda que a grande maioria dos médicos não se interesse pelo planejamento, gestão, formação de recursos humanos. Há um campo de atuação da saúde coletiva com muita visibilidade.

P: É, na Psicologia Política a gente não tem um campo de atuação assim, né?

E: Pois é, eu acho isso uma grande dificuldade.

P: Como foi sua experiência como presidente da Associação Brasileira de Psicologia Política?

E: O que faz o presidente? Escreve editoriais, porque a revista tem uma certa vida própria. Mas a gente acompanhava muito de perto o trabalho. Eu acho que organizar o simpósio é sempre um desafio. Quando faz um simpósio as pessoas ficam curiosas, interessadas... Entretanto, o desafio maior é como mantê-las interessadas. Esse ano vocês tinham quantos participantes lá [no XI Simpósio Brasileiro de Psicologia Política]?

P: Neste ano foram 600!

E: Você vê que tem interesse. Você tem na área de ciências humanas pessoas que não possuem apenas uma visão estrutural, de sistema de classes sociais. Você tem alunos de psicologia que percebem que a atuação de pessoas e coletividades não pode ser reduzida a "variáveis" psicológicas. Estão preocupadas em entender como as pessoas atuam na vida política, como as pessoas estão atuando dentro da estrutura de classes sociais. Embora, na psicologia, eu acho que a situação não tem sido tão favorável, pelo menos aqui na FAFICH. É um analisador que o número de disciplinas da área de psicologia social no curso de graduação tem diminuído drasticamente.

P: Na psicologia, talvez, a gente ainda tenha cursos muito voltados para uma perspectiva individualista, né?

E: Sim, e, por incrível que pareça, o pessoal continua entrando no curso de psicologia muito voltado para a terapia, como se a psicologia fosse tão somente psicologia clínica.

P: Por mais que a gente tenha passado o processo da ABRAPSO, da psicologia social crítica?

E. E é evidente que o mercado de trabalho é muito maior do que a psicologia clínica. Infelizmente, você tem determinadas representações que são muito fortes dentro da psicologia.

P: Existe uma divergência conceitual sobre o que é a psicologia política. Há uma definição da psicologia política como uma área que articula psicologia e política, o que leva à ideia de uma "psicologia da política", de aplicar conceitos psicológicos para entender fenômenos políticos, ou à concepção de uma politização da psicologia, que se aproxima de uma "psicologia engajada". Existe também a dificuldade, por outro lado, de separar o que é psicologia social o que é psicologia política. Tem um outro caminho que é a compreensão da psicologia política como um campo autônomo, interdisciplinar. Se você tivesse que dizer, qual definição de psicologia política você daria?

E: Uma definição não é tão fácil e talvez nem seja prudente. O campo das ciências humanas departamentalizou-se tanto que não basta mais nos apoiar numa disciplina para entender os atuais problemas. Além disso, na América Latina você tem um campo onde se encontram associadas a psicologia social, a psicologia comunitária e a psicologia política. Na época em que eu estudava psicologia social no curso de psicologia social da UFMG a percepção não era: "ah, nós temos 10 disciplinas e uma disciplina é psicologia social!". Não! A psicologia social é um campo de cientistas engajados que procuram entender fenômenos políticos e sociais e por isto necessariamente interdisciplinar. Daí, é nesse campo onde, no Brasil surge a psicologia política, a psicologia comunitária. Nesse campo! Há certas especificidades, uma está mais voltada para a questão da política, mas, ao mesmo tempo, está inserida na psicologia social ao abordar questões de relações de poder, identidade coletiva, movimento social; a outra procura intervir nas comunidades com uma perspectiva social e política. Na UFMG, a psicologia social tem uma história muito rica, mas agora, para muitos alunos é apenas uma disciplina a mais que tem que fazer. Com isso vira uma disciplina que lhes ajuda entender um pouco aspectos sociais de problemas de psicologia, mas desta forma a psicologia social deixou de ser um campo interdisciplinar que, como tal, não coincide simplesmente com a psicologia, e nem simplesmente com as ciências sociais ou políticas. É isso que torna a área um desafio12.

No simpósio [de psicologia política] você poderia fazer uma pesquisa um pouco mais aprofundada sobre quem são as pessoas que se inscrevem. Eu acho que a pessoa sabe que não está indo para um congresso de sociologia, sabe que não está indo para um congresso de psicologia. Está procurando alguma coisa diferente. Ao nível de universidade e ao nível de campo de práticas, temos uma forte departamentalização que surgiu para cada área se desenvolver e sustentar a própria universidade. Para nós agora é uma camisa de força que nos impede de compreender problemas atuais. Por exemplo, a polarização da sociedade brasileira atual é um fenômeno complexo que exija uma abordagem interdisciplinar.

P: Você tá dizendo que a psicologia política nasce nesse campo da psicologia social, comunitária. Se a gente pensar a psicologia social crítica, na América Latina, os autores estavam trabalhando questões de poder, questões de política. Mas ao mesmo tempo, a própria Maritza Montero defende, em um artigo publicado na revista (Montero, 2009), que para pensar a importância da psicologia política é preciso delimitar o campo. Como você vê esse embate no Brasil e na América Latina entre a psicologia social crítica e a psicologia política? Na constituição da ABPP, teve esse embate? Como foi isso com a ABRAPSO?

E: Na própria experiência da universidade as várias ciências estão consolidadas, atualmente, na departamentalização. Quando eu fiz mestrado de ciência política estava menos consolidado. Era vista como uma disciplina que poderia trazer contribuições para um psicólogo social, um comunicador, um filósofo, etc. Quando tive oportunidade de participar das reuniões da congregação da FAFICH eu percebia como muitos colegas olhavam tudo a partir do seu departamento. Nesta perspectiva, se você for escrever sobre a Psicologia Política primeiro você tem que definir o campo e depois os métodos. Você não começa dos problemas, tem que ter um campo. Historicamente fez sentido para o desenvolvimento de saberes, mas atualmente eu acho que não tem mais sentido. Você tem que partir da complexidade dos problemas. E ao tratar de problemas, não comporta você falar: "esse pedacinho é meu e este pedacinho é seu". É exatamente um diálogo constante! E a universidade não prepara para esse diálogo. Por isso o Simpósio de Psicologia Política é importante: para tentar reunir pessoas de várias áreas. Não sei se vocês fizeram esse levantamento, para verificar como era a composição da audiência...

P: De convidados a gente tinha psicologia, filosofia política, ciência política, saúde coletiva, sociologia, história, serviço social...

E: Mas entre os participantes?

P: Era muito psicologia.

E: Pois é... Você vê, os convidados são de várias áreas. Por que não se espera isso do público? É algo que tem que ser rompido, mas não é fácil, pois a psicologia política não se referencia a uma área que demanda isto. A saúde coletiva, por exemplo, virou uma área importante por causa do SUS, antes era desvalorizada. O SUS, querendo ou não, mesmo que não seja um sistema único, é um sistema de saúde grande e complexo. Não basta ser um bom médico para ser gestor de um sistema, tem que ter uma visão da saúde como todo. E para ter uma atenção de qualidade não basta ter apenas médicos, precisamos de equipes de saúde que trabalhem num sistema articulado.

P: Você acha, então, que seria mais interessante a gente pensar a psicologia política em torno dos problemas do que tentar defini-la como um campo específico?

E: Sim, porque como campo específico sempre você encontra alguma definição que fala: "aqui é a psicologia política, lá é a psicologia social, porque não sei o quê..." E na realidade isso é feito, se você pega manuais. Felizmente nós não temos muitos manuais.

P: Você acha que teria sentido falar de uma psicologia política latino americana, uma psicologia política europeia, uma psicologia política estadunidense, como a gente tem na psicologia social?

E: Eu acho que, até certo ponto, tem problemas que você discute aqui que não serão discutidos na Europa. Se não conseguir construir uma psicologia política europeia ou latino-americano a psicologia política não se desenvolve. Europa é um caso claro. Você encontra alguma coisa de psicologia política na França, Portugal, Espanha e na Holanda. Muitas vezes não vai além da publicação de algumas revistas... não resulta na construção da psicologia política.

P: Pensando a partir dos problemas, qual a importância da psicologia política para refletirmos sobre os problemas atuais como o enfraquecimento da esquerda, o fortalecimento da direita?

E: É importante! Temos que pensar esses problemas mais a fundo. Na realidade sempre aparece a tal análise de conjuntura, as pessoas se tornam habilitadas na análise de conjuntura, mas essas análises não satisfazem. Por exemplo, você pode fazer uma análise do governo Bolsonaro em termos políticos, mas o processo de identificação que ocorre na política também é uma coisa necessária. Como um político, de uma família política mais tradicional possível, se torna uma possibilidade para as pessoas votarem em mudança? "Ah não! Agora vamos mudar, vou votar nele". Ou é só um voto de protesto? Não! As pessoas realmente acham que estão mudando alguma coisa. Como é possível isso? O Brasil é muito complexo, a gente tem que entender muito os efeitos da estrutura hierárquica brasileira na vida cotidiana, porque é impressionante! Vai viver um ano na Holanda? Eu falo Holanda porque li um livrinho esses dias sobre a Holanda, escrito por duas moças, uma britânica e outra americana. Elas falam sobre a falta de hierarquia na Holanda (risos). Isso tem a ver com a história da Holanda. Você não tem a hierarquia que tem aqui, que se reproduz no cotidiano.

E os movimentos pela mudança? A gente fala muito de movimentos sociais, mas quem são esses movimentos? Estão onde? São ainda muito movimentos de classe média. Vai na periferia, o que tem de movimento lá? Tem os pastores lá! As pessoas procuram se identificar com alguma coisa, seja lá o pastor. Eu acho que em termos de problemas, a gente tem muitos problemas. E não é fácil estudá-los, porque falta ainda um maior volume de pesquisas.

P: Você acha que o conceito de movimentos sociais ainda é útil? Você publicou com Klandermans, recentemente, um livro sobre movimentos sociais (Klandermans & Stralen, 2015). Como você vê os estudos de movimentos sociais hoje?

E: Eu acho que continua sendo um conceito muito importante para detectar como mudanças na sociedade se processam. Transformações sociais não costumam surgir de entidades institucionalizadas. Partem de mobilizações. Mas movimentos sociais também tem seus ups e downs, pois dependem muito de conjunturas. No Brasil, quando se fala movimento social parece que é movimento que atinge a sociedade como um todo. Mas, depois vai ver na periferia, não é atingida pelos movimentos sociais. Por vários motivos. As condições de vida dizem muito sobre disto. Imaginem: a pessoa mora em Sabará, trabalha em Contagem, levanta muito cedo, vai ao trabalho e volta tarde para casa, cansado senta-se no sofá e assiste a Rede Globo. Você pode exigir que ela leia muito, que esteja bem informada? Eu acho que a gente tem dificuldade de atingir a população da periferia. Quem já a atingiu em um determinado momento? Acho que as Comunidades Eclesiais de Base, experiências de educação de base, mas não tiveram continuidade, foram interrompidas pelo regime militar. Agora encontramos nas periferias igrejas evangélicas - ainda bem que há pastores que não apoiaram a família Bolsonaro. As pessoas procuram nestas igrejas reconhecimento, proteção social, a custo de se alienar da realidade social. A igreja católica tentou imitar isso através do movimento carismático. Este movimento não atinge muito a periferia e não cria uma visão mais crítica da sociedade. Na época das Comunidades Eclesiais de Base e da Educação popular, as pessoas iam pra periferia. Agora quem vai pra periferia? Quem vai passar um final de semana lá?

P: Nesse sentido, após os anos 80, após abertura e eleições diretas, quais erros que a esquerda cometeu que nos levou a esse quadro? Por exemplo, no Brasil hoje há uma enorme rejeição ao Partido dos Trabalhadores, mesmo tendo promovido os governos que mais possibilitaram políticas públicas e combate a desigualdade. Quais erros da esquerda que nos levaram a esse quadro?

E: Eu acho que a situação não se trata de erros do PT. O PT tem mais rejeição do que o PSOL, mas o PSOL é pequeno. O PT foi visto como uma ameaça, ameaça de mudança. Claro, o PT teve muitos problemas porque quando o PT entrou no poder ele cresceu muito. Aqui o Estado é muito dominante, muito dominante. Na Holanda é exatamente o contrário, a Holanda nunca teve essa ideia de o Estado tem que resolver todos os problemas. Historicamente os esforços de dominar as águas foram feitas em nível local. Então não é o Estado que organiza a sociedade, é a população mesmo, é a sociedade. Aqui o Estado é muito dominante. Então quando um partido novo entrar no governo, muita gente se aproxima e o partido tende a se desconfigurar. Muita gente se aproximou do PT quando este estava no governo. Isso prejudica. Quem está no poder também não percebe bem o que acontece por baixo. Além disso, para governar um partido tem que construir aliança. Então há erros, mas há muitas restrições e deficiências, às vezes difíceis de serem superadas. Falar "aqui ou alí foi cometido um erro" é simplificar uma análise política, pois bastaria descobrir qual é o erro e pronto (risos).

P: Como seria possível explicar essa rejeição à esquerda hoje?

E: Eu acho um pouco difícil, porque trata-se de uma rejeição muito grande e muito odiosa. Acredito que há fatores estruturais. Numa sociedade muito hierárquica as pessoas pensam de forma hierárquica, quem é classe média baixa quer ser média superior, quem é média superior quer ser elite. As pessoas ficam olhando sempre para cima. O PT não é apenas um partido, é um símbolo de mudança na estrutura social, principalmente porque um de baixo virou presidente. Você lembra o que se falava de Lula no início? As pessoas não querem mudar a estrutura social, não querem ser iguais, querem ser desiguais. Isso, eu acho, está muito enraizado. Eu acho, é esse fator de fundo que permite a mídia fazer uma campanha tão antipetista e envolvendo tantos sentimentos.

P: Você tem uma publicação recente sobre Welfare (Stralen, 2017). Como você pensa essa temática no Brasil depois de 13 anos de governo PT? O Estado de Bem Estar Social também tem diminuído na Europa... Como você pensa essa discussão hoje?

E: Primeiro, o Estado de Bem Estar Social na Europa é resultado de um processo histórico, não nasce de um dia para outro. Cada país passou por caminhos diferentes. Por exemplo, na Holanda, o Estado de Bem Estar surgiu tardiamente, porque era sempre uma sociedade muito mais voltada para relações comerciais internacionais. Somente na década de 70, quando começou a explorar e exportar gás, virou de repente uma sociedade de bem estar. Mas, ao mesmo tempo, também tinha o substrato das pessoas se considerarem mais iguais. Não são iguais, mas se consideram iguais. Nós temos essa dificuldade. Teve avanços: o fato de começar a fazer alguma distribuição de renda teve efeitos; o aumento real do salário mínimo teve efeitos; mais gente empregada nas famílias. Mas isto não chega ao ponto de ser uma sociedade de bem estar social, porque uma sociedade de bem estar social é uma sociedade de todos. Por mais que a gente fale "Brasil, um país de todos", a população não se sente... Você pode falar povo brasileiro, povo brasileiro são os outros. Quando fala "nosso povo", não sou eu, é o povo. Isso é uma linguagem muito curiosa, eu nao sei como traduzir isso em holandês, não existe falar de povo e não estar incluído no povo. Isso significa que falta uma identidade coletiva. Uma sociedade de bem estar tem como suporte uma identidade coletiva. Políticas para todos resultam de uma sociedade marcada por uma identidade coletiva e por sua vez em políticas para fomentar esta identidade coletiva.

P: Aí entra na questão da hierarquia que você considera que no Brasil impede o reconhecimento do outro como igual?

E: É. Eu acho que isso é um grande obstáculo, na medida que as pessoas não querem mudar isso, se sentem bem com isso. Você se lembra das reações quando se deu mais direitos para as empregadas domésticas, que nem tem todos os direitos iguais? Reações públicas! Que você lia no jornal! Não foi uma madame furiosa dentro de casa.

P: Você acha que esses movimentos como, por exemplo, junho de 2013, a primavera árabe, podem ser explicados pela categoria movimento social? E você acha que eles têm alguma reverberação para pensarmos a construção de um Estado de Bem Estar Social?

E: É claro que foi uma mobilização, mas não se traduz num movimento social porque era uma coisa quase momentânea. Muita reverberação e depois onde ficou? Movimento social também tem altos e baixos mas você tem uma continuidade. Além disto, desde então é feita uma campanha sistemática de que o atual sistema previdenciário é a causa da crise e um obstáculo para o desenvolvimento. Trata-se, então, de um desenvolvimento sem povo e uma reforma que interessa a outros interesses, os do capital financeiro. Veja, as reformas na Europa eram esforços para manter um Estado de Bem-Estar. Mas, infelizmente, o capital financeiro não tem pátria e nos países europeus surgem também vozes pela reforma através de um sistema de capitalização individual.

P: Você acha que esses movimentos foram mais promotores de uma tentativa de revisão da esquerda ou mais promotores da construção desse populismo de direita?

E: Eu acho que levaram mas ao populismo de direita. O populismo de direita não foi simplesmente construído, é uma resposta a estes movimentos também. Acho que a esquerda gostaria que houvessem movimentos sociais e pudessem falar a partir disto, mas faltam-lhe muitas vezes meios, não podem contar com a grande mídia. Surge agora o apelo de volta para a educação de base. Aqui se coloca a questão, como vamos fazer este trabalho político? Fazer este trabalho exige muito esforço e temos uma sociedade de consumo que não facilita isso. Chega o final de semana e a pessoa pensa: "não, chegou meu tempo de lazer", "hoje vou fazer isso", "gosto de futebol, vou lá no estádio". Todo mundo fala "nós temos que fazer mais trabalho de base", mas quem faz trabalho de base? E como fazer? Tivemos no passado uma conjuntura e condições sociais que favoreciam educação de base. Isso você não recria por decreto. Você tem uma sociedade de consumo na qual o trabalho de base parece algo fora de contexto.

P: É, todas as esquerdas dizem isso: "temos que fazer trabalho de base".

E: É, todo mundo reconhece essa necessidade, não precisa nem defender isso (risos), é impressionante!

P: Diante dessa conversa toda, desta trajetória de décadas, como você vê sua trajetória hoje? No seu pensamento, nas suas ações produzidas hoje? Esses 50 anos sobre os quais conversamos aqui...

E: Essa é uma pergunta difícil (risos). Eu acho que a gente chega numa época da vida em que dá uma olhada para trás. Acho que tenho tido muita ação, mas mesmo assim gostaria de ter feito mais. Além disto, a gente tem dificuldade e limites para ter uma presença maior.. Parece-me que eu já fui mais ativo (risos). Mas mesmo assim, a gente continua tendo oportunidades de atuar. Estamos numa conjuntura difícil. Eu sempre acreditei muito na importância do trabalho de base, mesmo na área da saúde, não pensava só em criar Conselhos. Para ter Conselho precisa ter conselheiros, para ter conselheiro precisa de gente com uma determinada visão. Mas os canais pra isso agora não são fáceis de serem construídos. Isso é um desafio. Por exemplo, trabalho de base tem uns dois, três anos que se fala nisso. Na época que eu ia para reuniões no CEBES, na Frente Brasil Popular, as pessoas começavam cada vez a falar mais. Mas eu acho que uma dificuldade é: "o que vamos fazer?" Porque o auge do trabalho de base no Brasil era uma outra época, a pessoa não estava sentada o dia inteiro em frente à televisão, a sociedade funcionava de forma diferente, convocar as pessoas era mais fácil. Agora, apareceu mais um fator complicador: o bolsonarismo.

P: Ainda que as demandas hoje guardem semelhanças com as demandas dos anos 70: creche, saneamento básico, habitação, reforma urbana, reforma agrária...

E: Os problemas existem todos. Mas, por exemplo, reforma urbana? Aqui em Belo Horizonte tem um grupo de arquitetos... mas reforma urbana não é uma coisa que a sociedade está abraçando. É tudo fragmentado, tem gente que se envolve com esses problemas, mas não conseguem um movimento mais geral.

P: Você acha que é porque a sociedade vive uma dinâmica diferente da dos anos 70, 80?

E: É outra dinâmica. Nestes anos tivemos, na universidade e nos movimentos, um inimigo comum. Se para alguns o governo bolsonarista poderá parecer um inimigo comum, para outros não. Temos que ter a criatividade para desenvolver outras dinâmicas. O que não é fácil, você não encontra uma base pra fazer isso, não temos muitos movimentos sociais consolidados. Por exemplo, o movimento sindical, você tem lideranças, em determinado momento todo mundo vai pra rua, a rua em si não sustenta, a rua é um momento de protesto, de indignação, mas depois não leva a trabalho de base.

A igreja também mudou! Pode ter lugares ainda... o Brasil é muito grande, a gente não conhece tudo. Mas, em geral, a gente pode falar que mudou. As igrejas evangélicas cresceram muito e elas trabalham muito com as pessoas, são muito próximas das pessoas, mas não trabalham tanto em termos de emancipação social. Em geral são até igrejas numericamente pequenas e é um fenômeno que continua pipocando. Nestes dias vi na minha região surgir mais uma igrejinha, onde na semana anterior estavam mesinhas de bar (risos). Não quer dizer que a gente tem que ficar pessimista demais, também surgirão canais, possibilidades. A gente não pode ser pessimista, porque sendo pessimista a gente não vê mais as oportunidades.

P: Nesse sentido, que mensagem você deixaria para os leitores da Revista Psicología Política e para os associados da Associação Brasileira de Psicologia Política?

E: Eu acredito que a psicologia política no contexto atual tem um lugar exatamente pelo seu olhar político e interdisciplinar. Mas ainda temos que construir esse lugar. Não é porque alguém vai no simpósio de psicologia política que já tenha esse olhar. O simpósio pode ser uma oportunidade. A revista também pode dar uma contribuição, mas tem restrições, pois para manter a regularidade não se consegue publicar apenas artigos de psicologia política. Além disso a sua leitura não se traduz imediatamente na promoção de uma psicologia política engajada. Eu acredito que a revista e os simpósios contribuem e uma coisa reforça a outra. Mas não é fácil, um editor depende de artigos encaminhados, avaliados e depois tem que ter uma divulgação da revista, pois não basta que ela esteja no PEPSIC. Eu acho que a gente tem que continuar de olhos abertos, ficar otimista e aproveitar as oportunidades. Todo lugar oferece oportunidades. Por exemplo, quando a gente dá aula, muitas cabeças não mudam, mas sempre têm algumas cabeças que saem diferente do que entraram. Estas pessoas vão passar em outros lugares, a sociedade funciona assim também. Então é o conjunto: tem a revista, tem simpósio, tem onde as pessoas trabalham... E depois depende do movimento geral da sociedade. Eu acho que a história a gente não pode prever, e é bom que a gente não possa prever, porque iria levar a reproduzir ações e, neste caso, iríamos cometer erros. Temos tanta coisa para fazer em termos de psicologia política, mas tem que ter muita gente para investigar, fazer pesquisa, porque a política não é fácil de compreender e nem as mudanças na sociedade. Explicações gerais sempre são fáceis, mas não são suficientes.

O que devemos fazer também é fortalecer a própria entidade. Nossa ABPP tem uma vida intermitente, tem visibilidade quando ocorre um simpósio. Acredito que uma entidade tem que ter uma estrutura permanente: um CNPJ que permite ter uma conta no banco; sócios que contribuem, um site que mantém diálogos com os sócios, ter uma infra para publicar sua revista. Assim, a ABPP poderá ter visibilidade. Não é tarefa fácil. Não temos uma cultura de mobilizar e fazer a entidade atuar. Manter uma entidade que não seja apenas intermitente exige tarefas burocráticas, recuperar o CNPJ, registrar atas, comunicar com os sócios. Não é fácil, mas é necessário. Vamos nos mobilizar mais uma vez para refundar a ABPP!

 

Referências

Herzlich, C. (1969) Santé et Maladie: Analyse d'une Represenation Sociale. Paris: Mouton        [ Links ]

Klandermans, B.; Stralen, C. J. van (Orgs.) Movements in Times of Democratic Transition. 1. ed. Philadelphia: Temple University Press, v. 1, 381p.         [ Links ]

Montero, M. (2009). ¿Para que Psicología Política? Revista Psicologia Política, 9(18), p. 199-213.         [ Links ]

Stralen, C. J. V. (2017) O Welfare State: ontem, hoje e amanhã. In: Rodrigues, P. H. A.; Santos, I. S.. (Org.). Políticas e Riscos Sociais no Brasil e na Europa: convergências e divergências. 1ed, , v. , p. 9-23.         [ Links ]

Stralen, C. J. V. (2005) Psicologia Social: uma especialidade da Psicologia?. Psicologia e Sociedade, Porto Alegre, 17(1), p. 93-98.         [ Links ]

Stralen, C. J. V. (1996) The Struggle over a National Health Care System; the 'movimento sanitário'and health policy-making in Brazil. Utrecht: FSW/RUU, 301p.         [ Links ]

 

 

Submetido em: 06/06/2018
Aceito em: 17/12/2018

 

 

1 Ordem religiosa católica fundada no ano de 1210. Hoje os Padres Crúzios são conhecidos formalmente com o título de Cônegos Regulares da Ordem da Santa Cruz.
2 Patrice Hemery Lumumba foi um político e líder nacionalista importante para a independência da atual República Democrática do Congo.
3 Congregação do Verbo Divino é uma congregação religiosa católica fundada em 1875.
4 O Movimento Brasileiro de Alfabetização foi um órgão do governo brasileiro criado em 1968 para se contrapor ao método e às ideias de Paulo Freire.
5 A 8ª Conferência Nacional da Saúde, realizada em março de 1986, é um marco na história do sanitarismo no Brasil. Foi a primeira Conferência Nacional de Saúde aberta à sociedade e muitas de suas diretrizes definem as questões de saúde presentes na Constituição Brasileira de 5 de outubro de 1988.
6 Centro de Referência em Saúde Mental, visam o atendimento de urgências e crises, privilegiando os casos mais graves, que anteriormente seriam atendidos por hospitais psiquiátricos.
7 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são instituições que acolhem os pacientes com transtornos mentais
8 Revista Psicologia Política, criada em 2001.
9 Bert Klandermans, professor da Universidade Livre da Holanda.
10 IV Simpósio Brasileiro de Psicologia Política, organizado pelo Núcleo de Psicologia Política da UFMG, realizado em Belo Horizonte/MG, entre 11 e 14 de setembro de 2006.
11 A Associação Brasileira Rede Unida foi criada em 1985 e reúne projetos, instituições e pessoas interessadas na mudança da formação dos profissionais de saúde e na consolidação de um sistema de saúde equitativo e eficaz com forte participação social..
12 Sobre este ponto, recomendamos a leitura de Stralen (2005).

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