SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.18 número43A tentativa reacionária de censura nos currículos escolares: compreendendo a subversão mútua entre as lógicas de socialização e subjetivaçãoA educação e o presente instável¹: repercussões da categoria "ideologia de gênero" na construção do respeito às diferenças índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista Psicologia Política

versão impressa ISSN 1519-549Xversão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.18 no.43 São Paulo set./dez. 2018

 

ARTIGOS

 

Discursos ultraconservadores e o truque da "ideologia de gênero": gênero e sexualidades em disputa na educação

 

Ultraconservative discourses and the trick of "gender ideology": gender and sexuality in dispute in schooling

 

Discursos ultraconservadores y el truco de la "ideología de género": género y sexualidades en disputa em la educación

 

Les discours ultraconservateurs et l'astuce de "l'idéologie du genre": le genre et la sexualité en conflit à l'école

 

 

Amana Rocha Mattos

Professora Adjunta do Instituto de Psicologia/UERJ; Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social/UERJ; Coordenadora do DEGENERA - Núcleo de Pesquisa e Desconstrução de Gêneros; amanamattos@gmail.com

 

 


RESUMO

O artigo analisa o argumento dos movimentos ultraconservadores de que a abordagem de temáticas de gênero e sexualidades promoveria a "ideologia de gênero" nas escolas, impondo valores a estudantes contra a vontade de suas famílias. É feita uma breve revisão de como o termo "ideologia de gênero" e a ideia de "doutrinação ideológica" têm sido utilizados para rotular práticas educativas que problematizem opressões e desigualdades sociais. Em seguida, são abordadas a naturalização das normas de gênero e a invisibilização das práticas que as (re)produzem nas escolas. Para tanto, são analisados os diários de bordo elaborados por estudantes de psicologia na disciplina "A produção do gênero nas escolas", trazendo suas experiências e trajetórias escolares à luz de referenciais dos estudos feministas, de gênero e sexualidades. Discute-se a heterogeneidade das vivências escolares, reafirmando a importância de abordagens críticas, bem como de argumentos que questionem a validade do termo "ideologia de gênero" na educação.

Palavras-chave: gênero; sexualidades; escola; família; educação.


ABSTRACT

This paper discusses the ultraconservative's statement, which affirms that discussing gender and sexuality issues at schools would promote "gender ideology", imposing values to students against their families' values. It brings a brief review on how the term "gender ideology" and the idea of "ideological indoctrination" have been used to label educational practises that discuss oppressions and social inequalities. Then, the naturalization of gender norms and the invisible practises that (re)produce them at schools are addressed. In order to doing so, the paper analyses the logbooks written by Psychology students during the course named "The production of gender at schools", bringing their experiences and school paths in light of feminist theory, and gender and sexuality studies. The heterogeneity of school experiences is discussed, reaffirming the importance of critical perspectives, as well as arguments that question the validity of the term "gender ideology" in Education.

Key words: gender; sexualities; school; family; education.


RESUMEN

El artículo discute el argumento de los movimientos ultraconservadores de que el abordaje de temáticas de género y sexualidad promovería la "ideología de género" en las escuelas, imponiendo valores a estudiantes contra la voluntad de sus familias. Se hace una breve revisión de cómo el término "ideología de género" y la idea de "adoctrinamiento ideológico" han sido utilizados para etiquetar prácticas educativas que problematizen opresiones y desigualdades sociales. A continuación, se abordan la naturalización de las normas de género y la invisibilización de las prácticas que las (re)producen en las escuelas. Para ello, se analizan los diarios de a bordo elaborados por estudiantes de psicología en la asignatura "La producción del género en las escuelas", trayendo sus experiencias y trayectorias escolares a la luz de referenciales de los estudios feministas, de género y sexualidades. Se discute la heterogeneidad de las vivencias escolares, reafirmando la importancia de enfoques críticos, así como de argumentos que cuestionen la validez del término "ideología de género" en la educación.

Palabras clave: género; sexualidades; escuela; familia; educación.


RÉSUMÉ

L'article traite de l'argument des mouvements ultraconservateurs selon lequel une approche des problèmes liés au genre et à la sexualité favoriserait "l'idéologie du genre" dans les écoles, imposant des valeurs aux étudiants contre la volonté de leur famille. Une brève retour sur la manière dont les termes "idéologie de genre" et "endoctrinement idéologique" ont été utilisés pourétiqueter les pratiques éducatives qui problématisent l'oppression sociale et les inégalités. Ensuite, la naturalisation des normes de genre et l'invisibilité des pratiques qui les (re) produisent dans les écoles seront abordées. Pour ce faire, nous analysons les journaux de bord développés par les étudiants en psychologie dans la discipline ". La production du genre à l'école", en soulignant leurs expériences et leurs trajectoires scolaires à la lumière d'études féministes, de genre et de sexualité. Il aborde l'hétérogénéité des expériences scolaires en réaffirmant l'importance des approches critiques ainsi que des arguments qui remettent en question la validité du terme "idéologie du genre" dans l'éducation.

Mots-clés: Genre; sexualité; école; famille; education.


 

 

Para quem pesquisa, trabalha na educação básica ou nos movimentos sociais localizando-se no vasto campo dos estudos de gênero e sexualidades, os retrocessos políticos no Brasil têm sido sentidos com muita nitidez, especialmente nos últimos anos. Em pouco tempo, uma série de temas e mesmo palavras-chave passou a despertar suspeita, rejeição, descrédito. O gênero está sob ataque.

O avanço recente de movimentos e grupos ultraconservadores, que têm atacado sistematicamente a abordagem de temáticas relacionadas a gênero e sexualidades nas escolas, dá-se sob a alegação de que a discussão de tais temas promoveria a "ideologia de gênero", impondo ideias e valores a estudantes contra a vontade de suas famílias. Os argumentos usados pelos grupos anti-"ideologia de gênero" distorcem pesquisas no campo dos estudos de gênero e sexualidades (Lionço, 2016), como também defendem perspectivas tecnicistas e não-dialógicas de educação (Penna, 2018). Para a discussão aqui proposta, entretanto, parto do entendimento do conceito de ideologia que vai na direção oposta da que tem sido utilizada pelo discurso ultraconservador, especialmente na expressão "ideologia de gênero". Como discute Chauí (2016), a ideologia caracteriza-se por ser o manto que recobre as relações de poder, as opressões, as desigualdades sociais, as regras e normas arbitrárias, fazendo-as parecerem naturais. A autora adverte que a força das ideologias hegemônicas reside justamente em não precisar mostrar-se como tal, fluindo como verdade aceita por todos.

Proponho, neste artigo, uma discussão em dois tempos sobre o trabalho com questões de gênero e sexualidades nas escolas, no atual contexto brasileiro. Em um primeiro momento, faço uma breve revisão sobre como grupos ultraconservadores, em especial o movimento Escola Sem Partido (designado a partir de agora pela sigla ESP), têm se utilizado do termo "ideologia de gênero" e da ideia de "doutrinação ideológica" para rotular práticas educativas que problematizam relações de opressão e desigualdades sociais. Esse uso tem sido feito, majoritariamente, por atores sociais que não atuam diretamente na Educação Básica, como políticos e religiosos, e amplamente repercutido nas redes sociais, sem diálogo com questões complexas que são vividas nas escolas por docentes, estudantes e funcionárias/os.

Para articular esse cenário político com os cotidianos escolares e pensar as dificuldades que têm se colocado ao trabalho de questões de gênero e sexualidades nesses contextos, no segundo momento deste artigo analiso o material produzido por estudantes de graduação em psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), inscritas/os em uma disciplina eletiva dedicada à análise da produção do gênero nas escolas. Nesse material, produzido em forma de diários de bordo, as e os estudantes escrevem sobre suas experiências e trajetórias escolares, refletindo sobre suas vivências e sobre a heteronormatividade1 (Butler, 2003; Louro, 1997) presente nas escolas, bem como sobre as condições de transgressão e resistência para os sujeitos nesses espaços. Como veremos, a análise das narrativas produzidas por essas e esses estudantes coloca em questão argumentos que têm sido amplamente utilizados pelos movimentos ultraconservadores para coibir o debate sobre gênero e sexualidades nas escolas. Concluo destacando a necessidade de desenvolvermos e divulgarmos abordagens educativas críticas, que tensionem a naturalização das desigualdades sociais presentes nas escolas brasileiras, sejam elas de gênero, sexualidade, raça ou classe.

 

O truque da "ideologia de gênero" e o avanço ultraconservador na educação brasileira

A oposição à abordagem de gênero e sexualidades em perspectivas diversas e críticas nas escolas constitui-se, atualmente, como uma das principais bandeiras de grupos e movimentos ultraconservadores2 no país. Esse cenário, entretanto, não se desenhou da noite para o dia. Como discute Junqueira (2017; 2018), desde a década de 1990 tem havido um grande investimento do alto escalão da Igreja Católica na produção do interdito a toda discussão que pretenda desnaturalizar hierarquias sexuais e de gênero. Já na primeira década dos anos 2000, esses esforços concentraram-se no combate ao que tem sido nomeado como "ideologia de gênero", termo que, como afirma Junqueira, tem funcionado como um poderoso mote na mobilização da sociedade civil em torno da defesa da moral, dos bons costumes, da família heterossexual e nuclear.

No cenário político brasileiro da segunda década dos anos 2000, o combate à "ideologia de gênero" foi encampado por grupos ultraconservadores, muitos deles de base religiosa cristã, que têm promovido ataques aos direitos sexuais e reprodutivos de mulheres, da população LGBT, e às políticas públicas voltadas para esses grupos. No campo da educação, esses ataques concretizaram-se em projetos de lei apresentados pelo ESP nos âmbitos federal, estaduais e municipais. Como destaca Lionço (2016), essas iniciativas utilizam-se estrategicamente da auto atribuição de superioridade moral, colocando-se "acima" do debate sobre a matéria que pretendem legislar. O uso do termo "ideologia de gênero", inclusive, é um forte indicador dessa estratégia. Ao empregarem uma expressão que absolutamente não é utilizada no diverso e heterogêneo campo dos estudos de gênero e sexualidades, tais movimentos agrupam, de maneira simplista e pejorativa, distintas abordagens, reflexões e propostas metodológicas, promovendo um epistemicídio de ideias e conceitos que vêm sendo debatidos e construídos há décadas por feministas e teóricas/os LGBT. A simplificação do amplo debate sobre gênero e sexualidades sob o rótulo "ideologia de gênero" contribui, ainda, para promover o descrédito pela discussão crítica junto à sociedade. Além disso, o fato de esses atores estarem presentes em diferentes níveis institucionais, tanto as políticas públicas quanto as decisões no campo jurídico relacionadas a essas temáticas tendem a sofrer os efeitos moralizantes de tal desqualificação.

Dentre as diferentes análises que têm sido feitas sobre a produção e os alcances do termo "ideologia de gênero", e sobre a articulação e impactos dos projetos de lei que buscam combatê-la nas escolas, considero de especial interesse a discussão sobre as perspectivas individualizantes e neoliberais acionadas por esse movimento. Como destaca Macedo, ao analisar os atravessamentos neoliberais na construção da atual Base Nacional Curricular Comum e as interferências do ESP nesse processo, o "ESP veio explicitar, pelo viés da intolerância ao outro, a inadequação do político na escola, o que leva a crer que ele encontra aí um amplo espaço possível de articulação." (Macedo, 2017, p. 519-520). A disputa narrativa pela dimensão política presente nas escolas tem sido central nesse contexto, e a valorização do viés tecnicista e individualizante, o principal mote ultraconservador. Não é à toa que o uso da ideia de "liberdade" paute essa discussão. Como destacamos previamente, (Mattos e col., 2017), o Projeto de Lei que propõe a criação do Programa Escola sem Partido no Estado do Rio de Janeiro, menciona treze vezes a palavra "liberdade", associando-a à "liberdade de consciência" de estudantes e familiares, enquanto professoras/es são advertidas/os para que não incorram, como está descrito no Projeto de Lei, no "abuso da liberdade de ensinar em prejuízo da liberdade de consciência do educando e do direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções" (Rio de Janeiro, 2014, Artigo 6º).

Em um primeiro momento, salta aos olhos que a liberdade a ser assegurada pelo Projeto de Lei é, indiscutivelmente, a "liberdade da família" - uma família abstrata, mas que evoca a heteronormatividade, a branquitude e a religiosidade cristã. Professoras/es não estariam autorizadas/os a levantar questões e a estimular o pensamento crítico de estudantes em suas aulas (Ramos, 2017; Penna, 2018). Estudantes, por sua vez, são tomadas/os como vítimas de um processo de doutrinação, receptáculos daquilo que docentes lhes imporiam. Como têm ressaltado diferentes críticas ao ESP, essa imagem do que se passa nas salas de aula e do que está implicado nos processos de ensino-aprendizagem não poderia estar mais distante do que se vive no chão da escola (ver, a esse respeito, Frigotto, 2017). Quando trabalhamos especificamente com temas relacionados a gênero e sexualidades, essa distância é ainda maior. Voltaremos a esse ponto mais adiante.

Ao analisarmos mais detidamente a ideia de "ideologia de gênero" que mobiliza tais movimentos, vemos como o pânico moral é construído ao redor da ideia de que, para os estudos de gênero e sexualidades, o gênero seria algo individual, tomado ora como objeto de uma escolha consciente e deliberada do indivíduo, ora como um resultado causal de impressões do ambiente, no qual o indivíduo seria uma mera tela em branco. Essa abordagem duplamente equivocada manipula resultados e conceitualizações dos estudos do campo, que justamente complexificam, desnaturalizam e põem sob análise as intrincadas relações de poder, as desigualdades e assimetrias produzidas e reiteradas pelo sistema sexo/gênero (Rubin, 2017; Dorlin, 2009), criando um espantalho - ou um sintagma, como afirma Junqueira (2017) - a ser combatido pela "sociedade de bem".

Em relação ao foco na liberdade individual de escolha do gênero, vemos que os partidários do ESP associam a chamada "ideologia de gênero" à ideia de que a produção do gênero seria um processo consciente e individual. Para eles, o uso do termo gênero teria como objetivo maior a "destruição" da diferença sexual3 e, no limite, da família tradicional (leia-se, heterossexual, cisgênera, nuclear), ao pressupor que o indivíduo pode escolher, arbitrariamente, seu gênero. Esta simplificação das discussões dos estudos de gênero e sexualidades e das teorias feministas não é feita por acaso, ou por descuido metodológico. Ao ignorarem os debates sobre a complexidade dos processos de produção, reiteração e construção social do gênero, reduzem a questão à ideia de que o gênero seria uma escolha abstrata e deliberada do indivíduo. Castro e Ferrari (2017), ao analisarem materiais religiosos que atacam a "ideologia de gênero", identificam que a mobilização discursiva é feita pela afirmação do binário natural masculino/feminino, acusando-se os defensores da "ideologia de gênero" de estimularem e promoverem escolhas "não-naturais". O mesmo vale para a noção de "família tradicional" acionada pelo discurso ultraconservador: esta é tomada como um fato, em uma perspectiva a-histórica e não localizada culturalmente. Práticas que questionem a naturalidade dos gêneros, das sexualidades e dos arranjos familiares, que discutam a historicidade das relações de poder - abordando, assim, os processos de construção das opressões -, têm sido apontadas como promotoras da "ideologia de gênero" por esses movimentos ultraconservadores. Além disso, o processo de "escolha" de gênero é abordado nesse discurso como algo que, ao se limitar a uma ação individual pontual, é desvinculado de uma reflexão necessária sobre sexismo, silenciamentos e violência de gênero, e desconsidera que processos subjetivos não são redutíveis a elaborações conscientes. O extenso debate crítico que contextualiza sócio-historicamente a variedade das expressões de gênero e as ambivalências presentes mesmo nas experiências e identidades consideradas as mais "normais" é deixado intencionalmente de fora (Junqueira, 2017; 2018).

Outra acusação que tem sido feita pelos ultraconservadores, e que se alterna com a do gênero como escolha individual, é a de que os "ideólogos do gênero" defenderiam a construção do gênero como um processo vertical, "de fora para dentro" dos sujeitos, guiado intencionalmente por "professores doutrinadores" que pretenderiam corromper as inclinações naturais de crianças e jovens.4 É digno de nota que essa construção discursiva a respeito da "ideologia de gênero" reúna perspectivas contraditórias: de um lado, critica a suposta defesa de que os indivíduos devem escolher seus gêneros por si sós, conscientemente; de outro, afirma que crianças e jovens são sujeitos doutrinados e treinados por educadores mal intencionados para desenvolverem gêneros "não naturais". Em relação a este último ponto, ao recorrer à ideia de que estudantes seriam influenciadas/os (ou, "doutrinadas/os") por suas e seus docentes, vemos ressurgir um referencial de aprendizagem comportamental - inclusive de gênero - das décadas de 1950 e 60, proposto não pelos estudos críticos e feministas de gênero e sexualidades, mas pela psicologia do desenvolvimento hegemônica da época (Mattos, Cidade, 2016). Segundo esta perspectiva desenvolvimentista, a aprendizagem dos papéis de gênero (no âmbito da socialização de gênero) inicia-se bem cedo na infância, com base na observação e imitação dos papéis de gênero de figuras modelo para a criança. Pensada segundo esse referencial, a teoria da socialização de gênero reforça o binarismo e as hierarquias das relações de poder - pois afirma que a normalidade equivale à reprodução de papéis dados socialmente - e patologiza processos de socialização que não estejam adaptados aos padrões sociais (para uma revisão crítica dessas teorias, cf. Burman, 2017).

Em resumo, os movimentos ultraconservadores têm se colocado tanto contra o gênero como "escolha individual" quanto contra "professores doutrinadores" que assujeitariam estudantes a desenvolver gêneros "não naturais". A combinação dessa dupla e contraditória acusação contra os estudos de gênero e sexualidades, condensada no truque da "ideologia de gênero", resulta em um emaranhado de afirmações que tem assombrado mães e pais, eleitoras/es, e promovido discursos de ódio contra qualquer debate que questione narrativas moralizantes. Ao analisar diferentes projetos de lei relacionados a esses movimentos, Lionço (2016, p. 154) identifica que, nesses textos, "[a]rgumenta-se que a escola não poderia doutrinar crianças e adolescentes sobretudo na medida contrária à do 'comportamento habitual e majoritário da sociedade', sob o risco de infringir dano psicológico e sexual.". Assim, questões concernentes a gênero e sexualidades são silenciadas e negadas, colocando-se qualquer sujeito que fale sobre elas na escola, ou na política institucional, como infrator/a - seja da lei jurídica, da lei natural, ou da lei divina.

Outro ponto que deve ser mencionado é que, ao promoverem o apagamento de tais temáticas nas escolas, essas iniciativas também deixam de lado discussões cruciais sobre as intersecções de outros marcadores sociais da diferença nas análises sobre gênero e sexualidades, tais como raça, classe, geração, regionalidade, religião. A diversidade nos espaços escolares cada vez mais precisa ser visibilizada e pensada a partir de referenciais não sexistas, mas também antirracistas e não elitistas.

 

Gênero e sexualidades na escola sim! Mas... como?

Na sessão anterior discutimos o ataque a práticas educacionais que estimulam o pensamento crítico, processo que tem se intensificado no Brasil nos últimos anos (para um mapeamento dos projetos vinculados ao ESP em tramitação nos níveis federal, estaduais e municipais, ver Moura, 2016). Especificamente no caso dos conteúdos e debates sobre gênero e sexualidades nas escolas, estes têm sido atacados pelo chamado combate à "ideologia de gênero", justamente em um momento político de significativas perdas de direitos de mulheres, pessoas LGBTI e minorias raciais (Corrêa, 2017). Vale ressaltar, ainda, que a alegação ultraconservadora de que tais temáticas estariam sendo "impostas" nas escolas aponta para uma direção diametralmente oposta ao que pesquisas nesse campo vêm indicando em relação às três últimas décadas: as escolas contemporâneas brasileiras são bastante conservadoras, e discutem muito pouco questões relacionadas a gênero e sexualidades (Vianna & Unbehaum, 2016; César, 2009; Carvalho, 2001).

Considerando este cenário, nesta segunda sessão analiso narrativas de estudantes universitárias/os sobre como as questões de gênero e sexualidades se fizeram presentes em suas trajetórias escolares. Nessa análise, surgem importantes contraposições às afirmações dos discursos ultraconservadores, especialmente no que se refere à passividade de estudantes diante de tais temáticas.

O material analisado foi produzido no âmbito da disciplina eletiva "A produção do gênero na escola", oferecida no Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro no segundo semestre de 2016. A ementa desta disciplina foi um dos resultados dos projetos de pesquisa e extensão que coordeno na instituição, e tem como objetivo principal discutir, a partir de referencial teórico acadêmico e não acadêmico (como textos literários, de blogs, audiovisuais, material publicitário), os processos de subjetivação e de normatização nas escolas, assim como pensar as resistências e dissidências de gênero e sexualidades nesses espaços. Trabalhando em uma perspectiva interseccional5 e pensando a importância do exercício de pedagogias transgressoras (Xavier, 2016; Hooks, 2013), a disciplina contou com uma série de atividades que tinham como principal objetivo deslocar lógicas de poder naturalizadas, propondo novos olhares para vivências, memórias e registros das/os estudantes. O trabalho final da disciplina consistiu na elaboração de um diário de bordo individual, material que tomo para análise neste artigo.6

A construção dos diários de bordo mobilizou intensamente as e os estudantes. Convocada a pensar sobre suas experiências escolares, a turma surpreendeu-se com vivências e estranhamentos compartilhados, e com novas perspectivas que foram produzidas ao longo do curso sobre situações vividas no passado. Os diários de bordo foram elaborados durante todo o semestre, a partir das atividades propostas. Das dez atividades realizadas, metade demandava a produção de narrativas sobre vivências pessoais no período de infância e adolescência, refletindo sobre situações que envolveram relações de gênero e sexualidades na escola, na família, no bairro. A outra metade das atividades propunha análises, a partir dos textos lidos, de notícias de jornal, textos de blog, artigos acadêmicos. Neste artigo, analiso o material referente ao primeiro grupo de atividades. A partir dele, discuto a produção da heteronormatividade nas escolas, constituindo a "naturalidade" do binarismo de gênero nas relações e, em seguida, a escassez de atividades e conteúdos que abordem gênero e sexualidades em perspectivas críticas em sala de aula. Discuto, ainda, como os escritos explicitam a agência da/o estudante, que pensa criticamente aquilo que acontece em seu cotidiano - aspecto este que tem sido apagado nos discursos ultraconservadores que se organizam contra a "ideologia de gênero" nas escolas, justamente por introduzir a dimensão política nesse contexto tão hierarquizado.

As narrativas em primeira pessoa produzidas nos diários evidenciam, assim, algo que tem sido apontado por pesquisas sobre a participação discente nas escolas (Castro e cols., 2012; Marafon, 2017): as e os estudantes não são passivas/os, ingênuas/os ou "tábulas rasas". Pensam e percebem ativa e criticamente o que acontece ao seu redor. Essa dimensão, que constitui o processo de ensino-aprendizagem, fica evidente em relatos como esses:

Era aula de biologia e eu estava mexendo no meu celular, trocando mensagens com a menina que eu então namorava. O professor da matéria aparece ao meu lado subitamente, lê uma das mensagens (não recordo o que eu havia escrito) e dispara, antes de eu sequer perceber sua presença: "Essa M. é sua amiga?". Muito consternada, neguei. Ele perguntou, então, se era minha irmã. Eu neguei novamente, sem acreditar na invasão a que estava sendo sujeita. Ele se afastou, com uma expressão estranha no rosto. Algum tempo depois, o mesmo diria para a turma que não aceitava "opção sexual" como algo natural. Percebi o olhar rápido direcionado a mim. (Graduanda de psicologia, 2016)

Por mais de uma vez durante a época da escola foram organizadas festas e aulas "especiais" onde era solicitado que as meninas levassem um prato de doce ou salgado e os meninos refrigerante. Em uma dessas vezes, me recordo que uma menina perguntou à professora por que as meninas tinham que levar comida, já que bebidas eram muito mais fáceis [de se levar], e, dessa forma, ela achava que os meninos sempre ficavam com o "mais fácil" e as meninas com o "mais complicado". A professora respondeu que aquela divisão era a "tradição", o "costume" e que sempre faziam daquela forma. (Graduanda de psicologia, 2016)

Nesses fragmentos, as estudantes trazem tensões envolvendo gênero e sexualidades presentes no cotidiano escolar. Vale destacar o lugar de poder (e de silenciamento) ocupado pelas figuras docentes ao defenderem que a função do professor deve ser a defesa e reafirmação de lógicas hegemônicas e heteronormativas - função esta que também é atribuída pelo ESP a professores/as, em oposição à indesejável ação "doutrinadora". Além disso, chama a atenção no segundo relato que o questionamento sobre a injustiça presente em uma regra arbitrária e desigual para garotos e garotas tenha partido de uma aluna, e que a professora tenha evitado qualquer reflexão a partir do que foi trazido pela estudante. Quando analisamos os Projetos de Lei propostos pelo ESP, vemos que a possibilidade de que estudantes pensem criticamente, duvidem, questionem o que lhes é transmitido na escola não é mencionada. A passividade aparece como única característica possível para o lugar de "aluno" (Penna, 2018; Marafon, 2017). Entretanto, crianças e jovens leem os contextos em que se inserem, dialogam e negociam com eles, encontrando estratégias de resistência:

Sempre gostei mais de brincadeiras e desenhos que eram caracterizados como próprios para meninos. Um dia, durante a aula, eu e meu amigo estávamos brincando com alguns bonecos. De repente vi que a professora estava olhando e imaginei que ela fosse brigar conosco [por estarem brincando] e então ela disse: "T., isso não é brincadeira para uma menina". Naquele momento fiquei com muita vergonha, e sempre evitava brincar quando ela estava por perto, pois imaginava que novamente ela iria brigar apenas comigo. (Graduanda de psicologia, grifos meus, 2016)

Esse relato revela o avesso de situações em que mães, pais e mestres supõem estar "no controle" ao imporem aos mais jovens suas regras e avaliações sobre o que seria inapropriado em determinados contextos. Ao sinalizar que evitava brincar quando a professora estava por perto, a estudante explicita que a repressão de falas e comportamentos tidos como inadequados pode resultar em diversos aprendizados por parte das e dos estudantes - sobre quando é possível ou não realizá-los, por exemplo -, mas isso não significa que estes simplesmente "desapareçam". Expectativas de controle e vigilância atravessam os discursos ultraconservadores (Foucault, 2013), e colaboram para que as relações na escola evitem tratar justamente das discordâncias, dos dissensos, das diferentes percepções e vivências que ali se dão. Uma vez que percebemos essa limitação dos discursos que apostam exclusivamente na hierarquia e na verticalidade da transmissão, encontramos outras posições possíveis e necessárias para trabalharmos gênero e sexualidades nas escolas: a escuta de diferentes perspectivas, e a reflexão necessária sobre naturalizações que todas/os nós trazemos, em alguma medida, quando abordamos essas temáticas (Mattos, 2017). Sem discutirmos e dialogarmos com o que chega às escolas e com os preconceitos que ali se acirram, o mais provável é que duas posições sejam reiteradas: que se ignorem situações de violência e discriminação, e que se responsabilize aquelas/es que estão sendo alvo dessa violência.

Havia um aluno do Ensino Médio que tinha o estereótipo de gay (voz, forma de se vestir e andar), era "afeminado". Eu não tinha intimidade com ele, então não sabia de sua orientação sexual. A questão é que todas as vezes que esse menino precisava passar na rampa, entre os meninos, era chamado de "menininha", "moça", "donzela", "gazela", pra escola inteira ouvir. [...] Todo mundo ria, até o inspetor que controlava o acesso ao portão. Ninguém fazia nada, ninguém pedia para parar. (Graduanda de psicologia, 2016)

[durante brincadeira de "salada mista" na escola] Uma colega de classe se recusou a beijar um menino e foi apelidada de Maria Sapatão. Todos a chamavam assim quando ela passava. A diretora, para apaziguar a situação, colocou a menina para fazer atividades em sala de aula durante os recreios. Nessa situação, a escola decidiu por culpabilizar a menina e a excluiu do grupo. (Graduanda de psicologia, 2016)

Em uma das atividades, solicitei que tentassem se lembrar de pelo menos uma aula, ação ou debate sobre gênero e/ou sexualidade proposta por algum/a docente na escola. Foram pouquíssimas as situações recordadas e descritas - dado que se alinha ao levantamento feito por Vianna e Unbehaum (2016), que aponta a escassez de práticas educativas e abordagens disciplinares relacionadas a gênero e sexualidades na Educação Básica no país. No debate em sala, aquelas/es que se lembravam de alguma atividade só conseguiram se recordar de um único episódio, em tantos anos de trajetória escolar. Outra questão recorrente foi que, quando alguma atividade voltada para a temática era proposta, esta ocorria geralmente nas aulas de Ciências ou Biologia7, e - na maioria dos relatos trazidos - tinha sido conduzida de maneira vertical, não dialógica, reforçando conteúdos sexistas.

Consigo me lembrar de uma cena específica na aula de Ciências, quando o professor falava de reprodução. Não era um debate, mas uma aula expositiva. Ele dizia sobre como os homens são superiores às mulheres: o homem produz inúmeros espermatozoides, para poder fecundar inúmeras mulheres. As mulheres só produzem um óvulo, o que implica que, fecundadas, passem a ser propriedade daquele homem. Além disso, ficam grávidas, não devendo mais fazer sexo, enquanto o homem pode fecundar várias mulheres. Me lembro dos seus movimentos corporais, nesse momento quase uma caricatura de uma masculinidade orgulhosa. Traçava movimentos agressivos. Sua voz era também um tanto agressiva, mas principalmente debochada. Ria com os garotos. Ria das garotas. Não houve discussão. (Graduando de psicologia, 2016)

[relata uma palestra sobre transformações do corpo na adolescência, voltada para turmas de 4ª série do Ensino Fundamental, que foram divididas por gênero para a atividade] No grupo das meninas foi falado do crescimento dos seios e a necessidade de se usar sutiã, do aumento das coxas e do bumbum e da necessidade de se usar calça ou saia mais comprida com short por baixo. No final da palestra, perguntaram que meninas já tinham ficado "mocinha" [menstruadas] e se alguém queria falar da sua experiência. Todas as meninas ficaram caladas, envergonhadas. Uma menina mais velha, repetente duas séries, foi questionada mais vezes. A professora dizia "Fulana, você já ficou né? Já tem peito...". [...] Quando a atividade acabou e nos sentimos aliviadas, ficamos curiosas de como teria sido a palestra dos meninos e o que foi perguntado. Isso nunca saberemos, virou segredo na escola, menos o fato da escola inteira comentar sobre a menina "mais experiente" que as outras. Ficamos torcendo para não ter mais nenhuma palestra daquela. (Graduanda de psicologia, 2016)

Quando adultos assumem a tarefa de falar sobre gênero e sexualidades para estudantes nas escolas, curiosidade, constrangimento, excitação, deboche, dentre outras reações, são comuns entre as e os mais jovens. Ver professoras/es falarem sobre temáticas que no dia a dia não fazem parte das discussões em sala de aula costuma gerar muitos desses efeitos. Entretanto, é frequente que, para ocupar essa posição, os adultos reforcem posturas autoritárias, moralizantes, e silenciem possíveis questionamentos e reações que possam "poluir" o ambiente escolar: ao serem tratados de maneira acrítica, como matéria disciplinar, sexo e gênero acabam entrando na escola como assuntos que reproduzem o sexismo, as hierarquias e as opressões que existem em nossa sociedade. Nos relatos acima, há várias nuances dessas violências discursivas. Em nome de uma discussão "necessária", o machismo é articulado com a matéria de Biologia, a confissão (e exposição) de uma estudante é exigida para satisfazer adultos curiosos.

Quando afirmamos a importância de discussões sobre gênero e sexualidades nas escolas, prática que vem sendo reiteradamente atacada pelos movimentos ultraconservadores, afirmamos também a necessidade de que sejam feitas a partir de perspectivas críticas, reflexivas, propondo a escuta e o diálogo com os saberes escolares de estudantes, docentes e funcionárias/os. Do contrário, serão apenas mais um conteúdo maçante e retórico, como as incontáveis disciplinas e tarefas que se acumulam nas rotinas escolares (Chauí, 2016). Esse é um aprofundamento do debate que precisa ser feito quando confrontamos os discursos anti-"ideologia de gênero", para não cairmos na armadilha de afirmar que professoras/es e adultos, de maneira geral, precisam "levar informação" para jovens, como se elas e eles não possuíssem suas próprias reflexões e teorizações sobre a temática (Mattos, 2017).

Considerando-se a necessidade de reflexão crítica que também atravessa o trabalho docente, um dos relatos trazidos nos diários de bordo chama a atenção. Nele, a estudante narra uma atividade proposta pela professora que articulou discussões de sexualidade, relações de gênero, preconceitos e privilégios presentes na sociedade. A atividade exigiu que as e os estudantes se deslocassem de suas posições, interagissem e construíssem conhecimentos coletivamente em sala de aula:

No Ensino Médio, uma professora de biologia propôs uma atividade sobre mitos, crenças e tabus sexuais. [...] Minha turma ficou com o tema gravidez na adolescência. [...] A atividade consistira em dividir a turma em grupos: um dos grupos seriam adolescentes que acabavam de engravidar. O outro, seriam os pais destes filhos (grupos separados por meninos e meninas). Cada grupo recebia uma folha e escrevia como um filho afetaria a vida, o que mudaria, o que teria que abrir mão. Em seguida, ela comparou [a resposta] das meninas com a dos meninos. A diferença era grande. Os meninos se preocupavam mais em "ter que sustentar a criança" e "parar de estudar para trabalhar". As meninas estavam preocupadas com o que os pais diriam, como os familiares reagiriam e como acabaria a vida social. A atividade mostrou como a sociedade ainda vê a questão dos filhos e família, com o pai responsável pelo lado financeiro e a mãe por cuidar do filho. Fora o fato de que a menina adolescente sente mais preconceito e julgamentos como se fosse a única responsável por estar grávida. (Graduanda de psicologia, 2016)

Esse relato põe em cena uma atividade que, para chegar a ser realizada, certamente foi planejada tendo como objetivo principal a produção de indagações, questionamentos - e não a transmissão de conteúdos em si. Para isso, é preciso mais do que boas intenções. É necessário que professoras/es possam se aprofundar nas temáticas de gênero e sexualidades, realizar formações, participar de eventos e discussões coletivas. É necessário que dialoguem com questões que surgem todos os dias nas salas de aula, nos corredores, nos pátios, que chegam pelas redes sociais, pelos jornais e telenovelas e, nessa interlocução, recusem fórmulas prontas ou respostas autoritárias, desenvolvendo práticas reflexivas que estão muito distantes de qualquer sentido que se possa dar ao termo "doutrinação ideológica". Como afirma Chauí, sobre a importância de indagarmos os silêncios das naturalizações que operam nos contextos educacionais: "Quando fazemos falar o silêncio que sustenta a ideologia, produzimos um outro discurso, o contradiscurso da ideologia, pois o silêncio, ao ser falado, destrói o discurso que o silenciava." (Chauí, 2016, p.247). Nesse sentido, é possível endereçar os discursos hegemônicos, tomados como universais e inquestionáveis, ao lugar de ideologia, e indagalos, em práticas educacionais críticas e transgressoras.

 

Considerações Finais

Neste artigo, discuti os esforços que têm sido empregados por grupos e movimentos ultraconservadores para combater, e mesmo criminalizar, iniciativas pedagógicas para o trabalho com questões de gênero e sexualidades nas escolas brasileiras. Em um primeiro momento, identifico como tais posições têm se utilizado do truque da "ideologia de gênero" para, no mesmo movimento, apagar e manipular discussões complexas e heterogêneas dos estudos de gênero e sexualidades e das teorias feministas, estimulando o pânico moral na sociedade em relação a quaisquer discussões sobre a temática promovidas em contextos escolares. Em seguida, analiso o material produzido por estudantes de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em uma disciplina voltada para a discussão sobre suas próprias trajetórias escolares. Nesta análise, surgem importantes contrapontos à ideia de que estudantes são passivas/os e não possuem perspectivas críticas quando chegam às escolas, problematizando narrativas simplistas sobre a "ingenuidade" estudantil presentes nos atuais discursos ultraconservadores.

Em práticas como a disciplina relatada neste artigo, é necessário nos prepararmos permanentemente para os desafios do exercício crítico, fazendo o duplo trabalho de evidenciar os processos de produção daquilo que é tomado por "normal" e pensar estratégias para ressignificar determinadas ideias e categorias. Não é tarefa simples. O exercício de pensar os discursos analisando o que é por eles produzido e, consequentemente, ocultado, é trabalhoso, mas nos prepara para a prática docente e de pesquisa de maneira a podermos identificar e desarmar armadilhas conceituais (inclusive em nosso próprio pensamento), como é o caso do engodo pressuposto no termo "ideologia de gênero", uma vez que este pretende rotular práticas e discussões que, justamente, indagam sobre o que está dado, sobre o que é natural.

Os desafios para o debate sobre gênero e sexualidades nas escolas são muitos. Como abordei neste artigo, vão desde uma afirmação da "liberdade individual" acrítica, que pode, inclusive, respaldar falas e atitudes extremamente preconceituosas e violentas, até o dogmatismo próprio das práticas pedagogizantes que pretendem "levar informação" às e aos jovens, sem dialogar com seus saberes e vivências. Em tempos de tantos ataques aos direitos conquistados e à educação pública em todos os níveis, é preciso discutir, sempre e intensamente, os pressupostos e estratégias metodológicas para esse trabalho, e rejeitar truques discursivos como a "ideologia de gênero", que espalham medo, desconhecimento e intolerância.

 

Referências

Alves, L. L. (2015). Discursos sobre gêneros e sexualidades inscritos em corpos de livros didáticos de Ciências (1970-1999). Dissertação (mestrado). Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro.         [ Links ]

Alves, L. L. (2014). Sobre verdades e óvulos. Texto de blog. Acesso em: 12/04/2018, de https://pecep.wordpress.com/2014/04/21/sobre-verdades-e-ovulos/.         [ Links ]

Beauvoir, S. (2016). O Segundo Sexo - Volumes I e II. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.         [ Links ]

Bobbio, N. (1995). Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista.         [ Links ]

Burman, E. (2017). Deconstructing Developmental Psychology. Londres: Routledge.         [ Links ]

Butler, J. (2003). Problemas de gênero: Feminismo e subversão de identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.         [ Links ]

Carvalho. M. P. de. (2001). Mau aluno, boa aluna? Como as professoras avaliam meninos e meninas. Revista de Estudos Feministas, 9(2). Acesso em: 12/04/2018, de http://www.scielo.br/pdf/ref/v9n2/8640.pdf.         [ Links ]

Castro, L. R. e cols. (2012). Falatório: democracia e participação na escola. Rio de Janeiro: Contra Capa.         [ Links ]

Castro, R. P. de & Ferrari, A. (2017). A "ideologia de gênero" e processos educativos nos discursos religiosos: efeitos de saber-poder-verdade. Em Ferrari, A. & Castro, R. P. de (Orgs.). Diversidades sexuais e de gêneros: desafios e potencialidades de um campo de pesquisa e conhecimento. Campinas: Pontes Editores.         [ Links ]

César, M. R. de A. (2009). Gênero, sexualidade e educação: notas para uma "epistemologia". Educar. Curitiba, 35, p. 37-51. Acesso em: 15/10/2017, de http://www.scielo.br/pdf/er/n35/n35a04.         [ Links ]

Chauí, M. (2016). Ideologia e Educação. Educação e Pesquisa, São Paulo, 42(1), p. 245-257, jan./mar. Acesso em: 11/04/2018, de http://www.scielo.br/pdf/ep/v42n1/1517-9702-ep-42-1-0245.pdf.         [ Links ]

Corrêa, S. (2017). 'Theologies' and Contexts in a Latin American perspective. Religion and Gender. 6(2), pp. 256-263. Acesso em: 11/04/2018, de https://www.religionandgender.org/articles/abstract/10.18352/rg.10175/        [ Links ]

Crenshaw, K. (1991). Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Agains Women of Color. Standford Law Review, 43(6), p. 1241-1299. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/1229039        [ Links ]

Dorlin, E. (2009). Sexo, género y sexualidades: Introducón a la teoría feminista. Buenos Aires: Nueva Visión.         [ Links ]

Foucault, M. (2013). Vigiar e punir: História da vigilância nas prisões. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Frigotto, G. (Org.). (2017). Escola "sem" Partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira. Rio de Janeiro: UERJ, LPP. Acesso em: 15/10/2017, de http://bit.ly/2vzqPn6.         [ Links ]

Hooks, B. (2013). Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Junqueira, R. D. (2017). "Ideologia de gênero": a gênese de uma categoria política reacionária - ou: a promoção dos direitos humanos se tornou uma "ameaça à família natural"? Em Ribeiro, P. R. C. & Magalhães, J. C. (Orgs.). Debates contemporâneos sobre Educação para a sexualidade. Rio Grande: Ed. da FURG.         [ Links ]

Junqueira, R. D. (2018). A invenção da "ideologia de gênero": a emergência de um cenário político-discursivo e a elaboração de uma retórica reacionária antigênero. Revista Psicologia Política, 18(43), p.449-502.         [ Links ]

Lionço, T. (2016). Criminalização do assédio ideológico nas escolas: ideologia de gênero como argumento central na disputa fundamentalista da política de educação. Em Rodrigues, A., Monzeti, G. A. & Ferreira, S. R da S. (Orgs.). A política no corpo: gênero e sexualidades em disputa. Vitória: EDUFES.         [ Links ]

Louro, G. L. (1997). Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis, RJ: Vozes.         [ Links ]

Macedo, E. (2017). As demandas conservadoras do Movimento Escola Sem Partido e a Base Nacional Curricular Comum. Educação e Sociedade, Campinas, 38(139), p.507-524, abr.-jun. Acesso em: 11/04/2018, de http://www.scielo.br/pdf/es/v38n139/1678-4626-es-38-139-00507.pdf.         [ Links ]

Marafon, G. (2017). Recusa à judicialização e ao Projeto de Lei "Escola sem Partido": análise a partir das ocupações estudantis. Sisyphus Journal of Education. 1(5), p. 9-30. DOI: https://doi.org/10.25749/sis.10478        [ Links ]

Mattos, A. R. (2017). Gênero, sexualidade e relações raciais: intersecções no chão da escola. Em Ferrari, A. & Castro, R. P. de (Orgs.). Diversidades sexuais e de gêneros: desafios e potencialidades de um campo de pesquisa e conhecimento. Campinas: Pontes Editores.         [ Links ]

Mattos, A. R., Magaldi, A. M. B. de M., Costa, C. M., Silva, C. F. S. S., Penna, F. de A., Velloso, L., Leonardi, P. & Alberti, V. (2017). Educação e liberdade: apontamentos para um bom combate ao Projeto de Lei Escola sem Partido. Em Frigotto, G. (Org.) Escola "sem" Partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira. Rio de Janeiro: UERJ, LPP. Acesso em: 15/10/2017, de https://portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/article/view/17181/11338        [ Links ]

Mattos, A. R. & Cidade, M. L. R. (2016). Para pensar a cisheteronormatividade na psicologia: lições tomadas do transfeminismo. Periódicus, Salvador, 1(5), pp. 23-31, Jun. 2016. Acesso em: 11/04/2018, de https://portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/article/view/17181/11338        [ Links ]

Moura, F. P. (2016). "Escola Sem Partido": Relações entre Estado, educação e religião e os impactos no ensino de História. Dissertação (mestrado). Programa de Pós-Graduação em Ensino de História, Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.         [ Links ]

Penna, F. A. (2018). O discurso reacionário de defesa do projeto "Escola sem Partido": analisando o caráter antipolítico e antidemocrático. Quaestio, Sorocaba, SP, v. 20, n. 3, p. 567-581, dez. 2018. Acesso em: 01/04/2018, de: http://periodicos.uniso.br/ojs/index.php/quaestio/article/download/3240/3058/        [ Links ]

Ramos, M. N. (2017). Escola sem Partido: a criminalização do trabalho pedagógico. Em Frigotto, G. (Org.) Escola "sem" Partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira. Rio de Janeiro: UERJ, LPP. Acesso em: 10/04/2018, de http://bit.ly/2vzqPn6.         [ Links ]

Rio de Janeiro. Assembleia Legislativa (2014). Projeto de Lei 2.974/2014, de 13 de maio de 2014. Acesso em: 18/04/2018, de http://www3.alerj.rj.gov.br/lotus_notes/default.asp?id=144.         [ Links ]

Rubin, G. (2017). O tráfico de mulheres: notas sobre a "economia política" do sexo. Em: Políticas do sexo. São Paulo: Ubu Editora.         [ Links ]

Vianna, C. & Unbehaum, S. (2016). Contribuições da produção acadêmica sobre gênero nas políticas educacionais: elementos para repensar a agenda. Em C. Vianna e cols. (Orgs.) Gênero e educação: fortalecendo uma agenda para as políticas educacionais. São Paulo: Ação Educativa, Cladem, Ecos, Geledés, Fundação Carlos Chagas.         [ Links ]

Xavier, G. (Org.) (2016). Histórias da escravidão e do pós-abolição para as escolas. Cruz das Almas: EDUFRB; Belo Horizonte: Fino Traço.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 01/04/2018
Aprovado em: 01/10/2018

 

 

1 O conceito de heteronormatividade aqui utilizado referencia-se na discussão proposta por Butler (2003). A autora afirma que, nas sociedades ocidentais modernas e contemporâneas, os gêneros são categorias produzidas em uma matriz discursiva heteronormativa, isto é, pensadas e produzidas a partir do binarismo de gênero (masculino ou feminino, que se excluem mutuamente), da hierarquização entre os gêneros (valorização do masculino em detrimento do feminino), e da suposta relação necessária e causal entre o órgão genital, o sexo, o gênero e a orientação sexual dos sujeitos. Segundo Louro (1997), um dos principais espaços de (re)produção da heteronormatividade em nossa sociedade é a escola, por meio do currículo, da formação docente, e da separação dos espaços, atividades e habilidades escolares por gênero.
2 Utilizo o termo "ultraconservador" aqui para referenciar grupos e movimentos políticos que têm se organizado e ganhado espaço na política institucional brasileira, especialmente na última década. O crescimento do ultraconservadorismo – em número de representantes e em força política – tem promovido um ataque permanente aos direitos de minorias de gênero, sexuais e raciais no país e na América Latina como um todo (Corrêa, 2017), resultando em um retrocesso significativo de conquistas realizadas no campo dos direitos humanos em décadas recentes. Os grupos e movimentos nomeados neste trabalho como ultraconservadores caracterizam-se por se posicionarem abertamente contra a garantia de direitos constitucionais a minorias, em uma expressão específica e bastante extremada do conservadorismo político tal como definido por Bobbio (1995). Para o autor, o conservadorismo político seria próprio de posições de direita, que defendem a ideia de "tradição" (em oposição às posições mais progressistas e pró-mudanças sociais, características de posições de esquerda). A defesa das "tradições" tem sido usada para respaldar o discurso ultraconservador no atual contexto brasileiro ao conclamar a sociedade para a defesa da família, da propriedade e dos valores cristãos (Mattos e cols., 2017).
3 Ao contrário do que tal perspectiva afirma, há diversas discussões sobre a produção da diferença sexual nos estudos de gênero e sexualidades. Em O Segundo Sexo, publicado originalmente em 1949, Simone de Beauvoir (2016) afirma que "não se nasce mulher, torna-se". A discussão sobre a não naturalidade do gênero – e, como muitas teóricas contemporâneas têm argumentado, também do sexo (Rubin, 2017; Butler, 2003; Dorlin, 2009) – lança perspectivas distintas sobre como a diferença sexual se produz, e como se naturaliza a desigualdade de gêneros, perspectivas estas que têm sido sistematicamente apagadas nos discursos ultraconservadores contra a "ideologia de gênero".
4 A página do Movimento Escola Sem Partido traz orientações sobre como identificar um "professor doutrinador" ("Flagrando o Doutrinador", disponível em: http://escolasempartido.org/flagrando-o-doutrinador) e como realizar denúncias contra os mesmos ("Planeje sua Denúncia", disponível em: http://escolasempartido.org/planeje-sua-denuncia). Acesso em 19/04/2018.
5 A interseccionalidade tem se consolidado nos estudos feministas como um campo de intensa produção teórica e metodológica. O termo, cunhado pela teórica negra estadunidense Kimberle Crenshaw (1991), indica a necessária intersecção do gênero com outras categorias, como raça, geração, regionalidade, religião. Estudos que partem desta perspectiva têm como desafio pensar essas articulações sem entende-las como uma adição, ou sem essencializar tais marcadores sociais, considerando-os como construções discursivas de efeitos materiais bastante complexos nos sujeitos.
6 Ao final da disciplina, compartilhei com a turma meu interesseem analisar o material produzido, e solicitei que quem estivesse de acordo em ceder o diário para essa análise escrevesse uma autorização de uso do mesmo para fins de estudo e pesquisa a serem realizados pela professora. Dos 35 cadernos entregues ao final da disciplina, 29 trouxeram a autorização. São estes diários que utilizei para a análise, entregues pelas/os estudantes em dezembro de 2016.
7 A abordagem de tais temáticas em disciplinas que enfocam o corpo em perspectivas fisiológicas e reprodutivas é recorrente. Em seu estudo, Alves (2015) analisa, a partir do referencial de Michel Foucault, livros didáticos utilizados na Educação Básica brasileira, de 1970 a 1999. A autora identifica uma série de rupturas discursivas, que permitem a inclusão de temas relacionados a gênero e sexualidades no âmbito das disciplinas de Ciências, assim como regularidades discursivas, que inscrevem o debate no campo da cisheteronormatividade, reproduzindo narrativas binárias e sexistas a respeito da reprodução e corpos humanos. É da mesma autora o texto de divulgação científica intitulado "Sobre verdades e óvulos" (Alves, 2014), em que a pesquisadora e professora da Educação Básica discute as narrativas heteronormativas presentes na produção científica sobre reprodução.

Creative Commons License