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Revista Psicologia Política

Print version ISSN 1519-549XOn-line version ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.18 no.43 São Paulo Sept./Dec. 2018

 

ARTIGOS

 

Gênero e seus/suas detratores/as: "ideologia de gênero" e violações de direitos humanos

 

Gender and its detractors: "gender ideology" and human rights violations

 

Género y sus detractores: "ideología de género" y violaciones de derechos humanos

 

Le genre et ses détracteurs: "idéologie du genre" et violations des droits de l'homme

 

 

Roger Raupp RiosI; Alice Hertzog ResadoriII

IDoutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Desembargador Federal/TRF4; roger.raupp.rios@gmail.com
IIDoutoranda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), bolsista CAPES1, Mestra em Direito, com ênfase em Direitos Humanos, pelo Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter); ali.resadori@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo analisar o fenômeno da "ideologia de gênero" a partir da perspectiva jurídica, identificando as violações de direitos humanos perpetradas por este movimento. Assentado o estado da arte acerca das questões de gênero e sua relação com os direitos humanos (primeira parte), adentram-se nas violações de direitos verificadas (segunda parte). Como resultados, demonstra-se que (a) o movimento "ideologia de gênero" se pauta em uma compreensão simplista sobre gênero; (b) que os feminismos e os estudos de gênero implicam o reconhecimento de direitos a todos indivíduos e grupos, e, em especial, de direitos a mulheres e à população LGBTQI; e (c) que a "ideologia de gênero" viola inúmeros princípios, direitos humanos e fundamentais, tais como o princípio democrático, a liberdade de expressão, a liberdade de pesquisa e ensino, a igualdade como proibição de discriminação por motivo de sexo, a liberdade sexual, a dignidade humana e o direito à saúde.

Palavras-chave: gênero; ideologia de gênero; sexualidade; direitos humanos; direitos fundamentais.


ABSTRACT

This article analyzes the phenomenon of "gender ideology" from a legal perspective, identifying the human rights violations perpetrated by this movement. Based on the gender issues and their relation to human rights (first part), the violations of rights are verified (second part). As results, it is demonstrated that (a) the movement "gender ideology" is based on a simplistic understanding about gender; (b) that feminisms and gender studies imply the recognition of rights to all individuals and groups, and in particular women's rights and the LGBTQI population; and (c) that "gender ideology" violates many principles, human and fundamental rights, such as the democratic principle, freedom of expression, freedom of research and education, equality as a prohibition of discrimination based on sex, sexual freedom, human dignity and the right to health.

Keywords: gender; gender ideology; sexuality; human rights; fundamental rights.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo analizar el fenómeno de la "ideología de género" desde la perspectiva jurídica, identificando las violaciones de derechos humanos perpetradas por este movimiento. Asentándose el estado del arte sobre las cuestiones de género y su relación con los derechos humanos (primera parte), se adentran en las violaciones de derechos verificados (segunda parte). Como resultados, se demuestra que (a) el movimiento "ideología de género" se orienta en una comprensión simplista sobre género; (b) que los feminismos y los estudios de género implican el reconocimiento de derechos a todos los individuos y grupos, y, en particular, de derechos a las mujeres y la población LGBTQI; y (c) que la "ideología de género" viola numerosos principios, derechos humanos y fundamentales, como el principio democrático, la libertad de expresión, la libertad de investigación y enseñanza, la igualdad como prohibición de discriminación por motivos de sexo, libertad sexual, la dignidad humana y el derecho a la salud.

Palabras clave: género; ideología de género; sexualidad; derechos humanos; derechos fundamentales.


RÉSUMÉ

Cet article analyse le phénomène de "l'idéologie du genre" d'un point de vue juridique, en identifiant les violations des droits de l'homme perpétrées par ce mouvement. Sur la base des questions de genre et de leur relation avec les droits de l'homme (première partie), les violations des droits sont vérifiées (deuxième partie). Il en résulte que (a) le mouvement "idéologie de genre" est basé sur une compréhension simpliste du genre; (b) que les études sur le féminisme et le genre impliquent la reconnaissance des droits de tous les individus et de tous les groupes, et en particulier des droits des fem-mes et de la population LGBTQI; et c) que "l'idéologie de genre" viole de nombreux principes, tels que le principe démocratique, la liberté d'expression, la liberté de recherche et d'éducation, l'égalité, en tant qu'interdiction de la discrimination fondée sur le sexe, la liberté sexuelle, la le droit à la santé.

Mots-clés: genre; idéologie de genre; sexualité; droits de l'homme; droits fondamentaux.


 

 

Introdução

Nos últimos anos, temos visto a emergência do pânico moral (Miskolci & Campana, 2017) sobre o que se convencionou chamar de "ideologia de gênero". Setores conservadores, com inspiração marcadamente religiosa, têm denunciado políticas públicas, incrementado polêmicas, tentado revogar antigas iniciativas e impedir novas medidas que, abertas aos estudos de gênero contemporâneos, problematizem a naturalização das desigualdades entre homens e mulheres e a heteronormatividade compulsória (Butler, 2003). No Brasil, esses/as "detratores/as do gênero" tomaram lugar de destaque com os episódios envolvendo a aprovação do Plano Nacional de Educação, a partir de 2010. Este Plano estabelece diretrizes e metas para a educação até 2020, e, na sua redação original, previa o combate às desigualdades de gênero e a promoção da diversidade. Durante as discussões na Câmara dos/as Deputados/as, as bancadas conservadoras retiraram estes temas do Plano, alegando o perigo de destruição da família, dos valores morais e também o avanço das pautas LGBTQI.2

Esse contramovimento produziu efeitos nos planos educacionais estaduais e municipais, resultando na aprovação de documentos de políticas sem menção aos temas de gênero e sexualidade. Essas mobilizações, efetivamente, ganharam corpo, e fizeram da "ideologia de gênero" um alvo político persistente. Setores conservadores relacionaram essa suposta ideologia a questões da sexualidade e, partindo de concepções essencialistas, biologizantes e deterministas de sexualidade e gênero, estimularam o pânico moral de que "[...] a ação pedagógica nas escolas possa embaralhar estas certezas, fornecendo as crianças e jovens caminhos ditos como 'não naturais', fruto de influência justamente da ideologia de gênero." (Seffner, 2016, p. 8).

Para além dos planos de educação, o medo da "ideologia de gênero" relaciona-se ao movimento intitulado "escola sem partido", que afirma que a educação deve ser "um processo eminentemente técnico, que seria mais bem realizado na ausência de discussões politicas, em um ambiente de neutralidade" (Seffner, 2016, p. 9), como se a própria ausência de discussões politicas não fosse também uma decisão ideológica. Os/As defensores/as da "escola sem partido" buscam, por meio de projetos de lei padronizados, restringir as atividades educativas e pedagógicas, inclusive cerceando tudo que não seja a reprodução das convicções morais familiares.3

Estas iniciativas recentes tomaram grandes proporções, fazendo com que o ataque à "ideologia de gênero" ganhasse escala no espaço público. A origem deste movimento, contudo, é mais antiga do que os fenômenos apontados e seu alcance ultrapassa as barreiras nacionais. Junqueira (2018), na genealogia que elabora sobre a ofensiva antigênero em artigo desta coletânea lembra, corretamente, que suas origens devem ser buscadas na reação política do catolicismo aos avanços feministas e que se trata de um movimento transnacional. De fato, a primeira ofensiva antigênero eclodiu nos meados dos anos 1990, como reação do Vaticano e seus aliados do mundo intelectual e da sociedade civil aos resultados da Conferência de População e Desenvolvimento, realizada no Cairo, em 1994, (ONU, 1994) tendo se manifestado, inicialmente na última sessão preparatória para a IV Conferência Mundial das Mulheres (ONU, 1995), em março de 1995 na sede das Nações Unida em Nova Iorque (Corrêa, 2018).

O enfoque de gênero adotado no Cairo, centrado nas desigualdades entre homens e mulheres, se baseava numa concepção clássica e binária da diferença sexual que é tanto biológica quanto socialmente construída. Contudo, desde um primeiro momento, a ortodoxia católica atacou o conceito de " gênero" como uma ameaça potencial à diferença sexual natural que ameaçava a família e a ordem social natural (Girard, 2007). Após um largo processo de maturação discursiva, elaborado fora e dentro do Vaticano, o amplo e vasto campo de produção do conhecimento sobre gênero como construção sociocultural seria paulatinamente desqualificado por líderes intelectuais da igreja católica como "ideologia de gênero", uma estratégia semântica destinada a deslegitimar os estudos feministas e de gênero, como teses incompletas, parciais e enviesadas (Case, 2016; Garbagnoli, 2016; Miguel, 2016). Muito embora o sintagma "ideologia de gênero" tenha sido cunhado pela Igreja Católica, na América Latina, onde cresceram exponencialmente nas últimas décadas, as igrejas cristãs neopentecostais tem sido, em anos recentes, atores fundamentais dessa mesma empreitada.

Hoje, em vários países - e no Brasil com grande veemência — o termo "gênero" tem sido vilipendiado de forma a provocar pânicos morais e garantir avanços da pauta conservadora. Nesse contexto, as reflexões que se seguem buscam interpretar e responder às cruzadas contra "ideologia de gênero" a partir de uma perspectiva centrada nos direitos humanos e fundamentais, apontando, inclusive, para as violações de direitos que esses ataques implicam. Num primeiro bloco, é feita uma elaboração acerca da interseção entre gênero e direitos humanos e num segundo bloco são examinados os direitos que tem sido comprometido pelas investidas contra a "ideologia de gênero".

 

Gênero e Direitos humanos

Os setores conservadores que atacam "gênero" fazem uma leitura simplista e unificada dessa categoria conceitual. O resultado dessa leitura e, em especial, das lutas políticas a ela atreladas, propõe perpetuar e reinstaurar padrões de grande injustiça e graves violações aos direitos humanos de todos/as aqueles/as que se divorciam dos modelos por eles propostos. Daí a necessária explicitação da relação entre gênero e direitos humanos, que é objeto dessa seção.

Para os/as conservadores/as, invocar o termo "gênero" corresponde a questionar o curso normal da natureza e negar que os seres humanos são divididos em homens ou mulheres (Rosado-Nunes, 2015). Ocorre que os estudos de gênero fazem parte de um complexo campo de pesquisa, no qual não há uma voz uníssona e uma compreensão simplista sobre os fenômenos sociais e culturais que operam para a produção e reprodução dos papeis designados a homens e mulheres. Ao tratar de maneira unívoca todas as perspectivas teóricas sobre o tema, a visão católica menospreza seu caráter científico e faz uma releitura intencionalmente superficial, com o intuito de aviltar estes espaços acadêmicos, sociais e institucionais de reconhecido debate e de busca de respostas sobre a vida individual e social.

A Igreja Católica não ignora a existência de papeis e de representações do masculino e do feminino (Rosado-Nunes, 2015), mas os compreende a partir de uma perspectiva essencialista, determinista, que os relaciona ao sexo biológico dos indivíduos. Assim, homens e mulheres apresentam determinados atributos e se comportam de determinadas formas em razão da anatomia de seus corpos, cujas repercussões nos campos social e cultural não seriam nada mais que desdobramentos do plano divino. Todos os comportamentos que não se adequam ao sexo biológico do indivíduo são compreendidos como anormais, desviantes, devendo, portanto, serem corrigidos. Assim, mulheres que não se submetem ou até mesmo criticam padrões de dominação masculina aceitos pela instituição religiosa ou que optam por não reproduzir, gays e lésbicas que rompem com a heteronorma, ou travestis e transexuais que manifestam a riqueza e complexidade do gênero em face do dimorfismo sexual heterossexual estariam se desviando da sua própria natureza.

Desde o Século XVII o sexo é definido como um modelo binário (homem e mulher), uma definição que decorre não só da doutrina católica, mas também dos efeitos da produção científica. O temperamento, a anatomia dos órgãos genitais, a informação hormonal e a genética fundamentariam a distinção entre homens e mulheres e, consequentemente, entre machos e fêmeas (Dorlin, 2009). Tal divisão do sexo em duas categorias fixas, então cientificamente estabelecidas, foi adotada pela doutrina católica para reforçar seus dogmas e se configura como um obstáculo para compreender a amplitude e riqueza do processo complexo de sexualização e, mais ainda, de produção das identidades de gênero.

Esta visão essencialista é criticada pelas teorias feministas e dos estudos de gênero por meio de duas grandes vertentes teóricas, que comportam, por sua vez, nuanças diversas. A primeira delas é chamada de construcionismo social, que compreende o gênero e a sexualidade como dispositivos históricos, como um corpo de conhecimento, e não como um dado da natureza. Esta corrente busca romper com a ideia de que o gênero e a sexualidade são verdades naturais e afirma que devem ser compreendidos dentro de um contexto social específico, num momento histórico particular, buscando identificar quais relações de poder determinam o que vai ser definido como normal ou anormal (Foucault, 2011).

A antropologia social e a sociologia, por exemplo, demonstraram que existem diversos padrões sexuais nas diferentes culturas, colocando em cheque a "verdade" do sexo. A psicanálise freudiana, por sua vez, desestabiliza a ideia de fixidez do gênero, da necessidade sexual e da identidade, pois entende que estes elementos são moldados a partir da cultura, através do desenvolvimento psicossocial dos seres humanos. Em outra frente, a história social tem investigado a história do gênero, do corpo e da sexualidade, até muito recentemente ignorada por historiadores/as das correntes principais da disciplina. A partir destes estudos, a rigidez do que constitui o masculino e o feminino é interrogada. Nessa perspectiva, os movimentos feministas e LGBTQI têm "questionado muitas das certezas de nossas tradições sexuais, oferecendo novas concepções sobre as intrincadas formas de poder e dominação que modelam nossas vidas sexuais" (Weeks, 2010, p. 46). Estas diversas áreas do conhecimento nos dizem que não se trata de perguntar o que causa a heterossexualidade ou a homossexualidade, ou o que compõe a masculinidade e a feminilidade, mas, sim, analisar o que leva, em determinada cultura ou em um certo momento histórico, a uma hierarquia entre esses modos de ser e à maneira pela qual as identidades sexuais são conformadas (Rios, 2017).

Gênero é definido pelo construcionismo social como uma relação de poder historicamente enraizada em práticas sociais e percebida como "natural". Esta corrente sustenta que, por exemplo, os padrões da sexualidade feminina derivam do poder masculino sobre as mulheres. Da mesma forma, o comportamento sexual também deve ser pensado na ótica do poder, que produz e reproduz uma hierarquia das práticas sexuais, elencando o que é normal e o que é patológico, utilizando, para tanto, a heterossexualidade como categoria de referência. O construcionismo social compreende as identidades sexuais e de gênero dos sujeitos como efeito da história e da cultura, refutando a visão essencialista de que a identidade é um destino natural que decorre da biologia. Nesse registro, as identidades são culturalmente forjadas pelos sujeitos de acordo com o contexto social e histórico podendo inclusive sofrer alterações no decorrer de suas vidas (Beasley, 2006).

Outra vertente teórica é identificada no campo dos estudos queer que também criticam as categorias universais e fixas das identidades sexuais e do gênero, mas que partem de premissas epistemológicas diferentes daquelas que sustentam o construcionismo. A teoria queer rejeita a proposição de um estatuto ontológico que daria substrato às identidades sexuais e de gênero. Concebe essas identidades como efeitos do poder, como produzidas na sua relação com as expressões hegemônicas e consideradas legítimas de identidade sexual e de gênero, ou seja como identidades e práticas subalternas, especialmente no que diz respeito a transgressões e subversões (Salih, 2012).

A referência mais importante no campo dos estudos queer é Judith Butler, filósofa feminista que elabora uma genealogia do sujeito do gênero, retirando-o de uma condição ontológica, pré-existente e metafísica para compreender sua construção como efeito dos processos discursivos e dos atos que realiza. Butler considera que sexo e o gênero não criam instituições, discursos e práticas, mas pelo contrário, são seus efeitos (Butler, 2003). Nessa moldura, o gênero, não é uma correspondência socialmente construída do sexo-natural, como propõe o construcionismo social, mas sim um ato performativo, uma repetição de ações que se constituem com força de autoridade e que produzem os enunciados que pronunciam. Essas repetições encobrem as convenções que os constituem, acabam por naturalizar tais enunciados, fazendo com que o sexo e o gênero pareçam ter estado aqui o tempo todo. Ao pensar a identidade de gênero desse modo, Butler considera que não há um sujeito, um performer por trás destes atos, já que o sujeito é ele mesmo efeito e não a causa de tais atos. O sujeito é instituído em contexto e portanto pode ser constituído de diferentes maneiras, inclusive aquelas que não reforçam as estruturas de poder, mas sim as subvertam (Butler, 2002).

As estruturas de poder que constroem o gênero são calcadas na heteronormatividade compulsória, nos binarismos homem-mulher/ macho-fêmea e na suposta coerência entre gênero e sexo. São essas as estruturas normativas, discursivas e performativas que constituem os gêneros ditos inteligíveis. Os sujeitos que não expressam essa relação de coerência são vistos como abjetos, como inadequados. Utilizando o conceito de suplementaridade de Derrida, Butler (2003) chama a atenção para o fato de que os gêneros incoerentes só podem ser concebidos em relação a normas existentes. Ou seja, as mesmas normas que proíbem, produzem o que estão proibindo, pois articulam sexo, gênero e sexualidade com base em uma certa lógica, sustentando essa relação de coerência como verdade ou o modelo ideal. A heterossexualidade só existe como oposição à homossexualidade, ou seja o que é construído como o abjeto, como o outro, que por sua vez produz hegemônico.

Nessa moldura, não há nenhum elemento dado, fixo e imutável que defina os sujeitos ou estabeleça um padrão ideal. São as instituições, o poder e o discurso que enunciam e constituem tais modelos de sujeitos desejáveis. Butler afirma que nem mesmo o sexo biológico deve ser concebido como traço fixo do corpo do sujeito, já que "não é um simples fato ou a condição estática de um corpo, mas um processo pelo qual as normas regulatórias materializam o 'sexo' e produzem essa materialização através de uma reiteração forçada destas normas." (Butler, 2010, p. 155).

Diferente da concepção essencialista adotada pelos/as "detratores/as do gênero", as perspectivas construcionista e queer são inclusivas, pois interrogam os binarismos fechados e limitados e não definem como sendo "normais" apenas as pessoas que correspondem aos padrões rigidamente estabelecidos como pertencentes a um determinado sexo ou gênero. Estas perspectivas críticas também estão vinculadas a demandas de justiça social e de participação política individual e coletiva de pessoas e grupos subordinados por questões de sexo, gênero e sexualidade. Um dos fatores que deflagrou a reação dos conservadores foram, exatamente, as demandas políticas e legais, alguma delas vitoriosas, por reconhecimento da igualdade de gênero e de direitos sexuais, como o casamento entre casais não heterossexuais, a adoção por arranjos familiares diversos do modelo pai-mãe, processos de readequação biomédica de sexo-gênero, custeadas por sistemas públicos de saúde, a mudança de nome e sexo no registro civil, entre outras. No Brasil, assim como em outros países, essas demandas por reconhecimento de direitos humanos que, seja por meio de estratégias particularistas ou universalistas (Rios, 2015b), tem garantido a proteção dos direitos sexuais e de gênero.

 

Ataques a gênero e violações de Direitos Humanos

Essa seção, sem pretender exaurir o tema, faz um breve inventário dos princípios e direitos fundamentais que são efetivamente ou potencialmente atingidos pelas cruzadas antigênero hoje em curso, no Brasil, de modo a contribuir para uma melhor análise e resposta aos desafios que isso implica.

Princípio democrático e "ideologia de gênero"

O princípio democrático que aspira reger as sociedades contemporâneas, caracterizadas pelo pluralismo e diversidade nos mais distintos campos da vida não possibilita que uma única visão de mundo imponha dogmas e crenças sobre o conjunto da sociedade, inclusive no âmbito das relações de gênero e sexualidade.

Não raramente, instituições religiosas desafiam o convívio democrático e plural quando buscam impor suas visões abrangentes, fundamentalistas ou integristas e proselitistas (Lopes & Vilhena, 2013). Abrangentes, porque exigem que seus/suas adeptos/as sigam sua doutrina em todas as dimensões de suas vidas, sobrepondo seus deveres morais religiosos àqueles decorrentes da participação de seus seguidores na comunidade política nacional. Fundamentalistas, porque pretendem firmar conteúdos morais indiscutíveis para vincular todas as dimensões da vida de seus/suas fiéis. Proselitistas, porque tem como objetivo fundamental a ampliação de seu grupo de seguidores, o que as faz entrar em rota de colisão com o pluralismo e a diversidade, cujo pressuposto é precisamente o convívio simultâneo e não-excludente de diferentes visões de mundo, decorrentes ou não de convicções religiosas. O proselitismo religioso põe em risco o pluralismo e a diversidade.

Exatamente por isso, a laicidade presenta-se como o arranjo político-institucional e a configuração jurídico-constitucional mais apropriados à proteção da liberdade de pensamento, de opinião e de crença. Com efeito, a laicidade revela-se princípio de organização estatal que possibilita, simultaneamente, a proteção em face do perigo de intervenção e manipulação estatal no âmbito religioso e a defesa de indivíduos e de grupos diante da tentação de maiorias que almejem impor suas convicções religiosas sobre os demais por meio do processo político.

Nessa perspectiva, as postulações de doutrinas totalizantes, que se anunciam como portadoras de verdades indiscutíveis em matéria de gênero, nos debates da esfera pública, ferem o princípio da pluralidade e da laicidade, comprometendo o arranjo político-institucional e a ordem constitucional democrática (Rios, 2015a). É o que ocorre quando se instigam cidadãos/cidadãs ao seguimento incondicional de determinada visão, na esfera pública, sem possibilidade de compromisso de qualquer espécie4. Isso é flagrante, por exemplo, nas posições religiosas frente a novos arranjos jurídico e políticas públicas relativas ao reconhecimento de famílias diversas da heterossexualidade ou de direitos das mulheres, tal como expressas manifestamente pelo Vaticano (Congregazione per la Dottrina della Fede, 2002, s/p., item II.4.).

Liberdade sexual e "ideologia de gênero"

A importância e a centralidade da afirmação do direito de liberdade, no campo dos direitos humanos internacionais e dos direitos constitucionais fundamentais, não necessita explicitação. Reconhecido desde os primórdios das revoluções democráticas modernas e elemento essencial do constitucionalismo, o direito de liberdade inclui as tradicionalmente chamadas "liberdades públicas" (liberdades individuais disciplinadas por lei, cujo exercício livre de ingerência de terceiros é protegido diretamente pelo Poder Executivo). Pode-se afirmar com segurança que a liberdade sexual, tanto de orientação sexual como de expressão e identidade de gênero realizam o direito de liberdade geral, reconhecido tanto no direito internacional dos direitos humanos, como no direito constitucional vigente de vários países.

Além disso, a liberdade de orientação sexual pode ser qualificada como liberdade pública, adotando-se o conceito referido, dada a presença de inúmeros instrumentos normativos atribuindo ao Poder Público sua garantia e proteção contra a ingerência de terceiros. As liberdades de orientação sexual e de gênero, como já dito, realizam o direito de liberdade, inseridas no conjunto maior das liberdades sexuais. Elas podem ser derivadas tanto do direito geral de liberdade, como ser listadas como liberdades específicas, e, de modo ainda mais minudente, como uma das várias liberdades sexuais. Enquanto concretização do direito geral de liberdade, a liberdade sexual radica-se já na primeira geração dos direitos, ou seja, os direitos negativos, que reclamam uma esfera privada livre de intromissão do Poder Público e de terceiros na autonomia individual.

A liberdade sexual é a capacidade de atuar e de se expressar sexualmente, sem qualquer coação e segundo suas próprias escolhas, tendo como pilares a vontade e o consentimento, limitando-se naquilo que prejudicar ao próximo. Compõe-se de dois elementos indissociáveis, como qualquer outra liberdade: o direito individual de exercê-la e a obrigação dos/as demais membros/as da sociedade de abster-se em interferir. É fácil perceber como o direito de liberdade é fundamental nos âmbitos da sexualidade e no gênero, pois englobam a reivindicação da livre expressão sexual, do livre exercício de preferências sexuais, de estilos de vida e livre adoção de identidades sexuais e de gênero.

Na teoria dos direitos fundamentais, a liberdade geral sexual concretiza-se como direito à autodeterminação sexual, implicando tanto um 'status' negativo (proibitivo de intervenções estatais e de particulares nessa esfera), como um 'status' positivo, conferindo ao/à seu/sua titular o poder de exigir proteção estatal diante de intromissões de terceiros. Como um dos princípios básicos das declarações de direitos humanos e do constitucionalismo clássico, a liberdade é, ao lado da igualdade, direito que pressupõe o reconhecimento da dignidade de cada ser humano de orientar-se, de modo livre e merecedor de igual respeito, na esfera de sua sexualidade. Consequência disto é romper com o tratamento subalterno reservado não somente a homossexuais, mas a mulheres, travestis, soropositivos para o vírus HIV e transexuais, grupos percebidos, numa visão tradicional, autoritária e discriminatória, como objetos de regulação em vez de sujeitos de direito.

Proteção da dignidade humana e "ideologia de gênero"

A proteção jurídica garantida pela norma constitucional à dignidade humana significa que o sujeito será respeitado como um fim em si mesmo e não tratado como meio para a realização de fins e de valores que lhes são externos e impostos por terceiros. A proteção da dignidade implica em respeitar a autonomia individual, que possibilita conduzir-se conforme suas próprias convicções e projetos pessoais (respeitados, é claro, direitos de terceiros), livre de imposições externas e de condicionamentos decorrentes de visões de mundo alheias. Isso significa que visões de mundo heterônomas, que objetivem impor aos indivíduos homossexuais limites e restrições vinculadas a concepções de mundo metafísicas ou políticas heterônomas, com repercussão nos direitos fundamentais, estão em desacordo com os direitos fundamentais de liberdade e de proteção à dignidade humana. Nesse marco, nunca é demasiado reforçar a relação entre o direito de liberdade e a dignidade da pessoa humana, tal como elaborada por José Reinaldo de Lima Lopes:

[...] é uma razão bastante forte para defender o fim das discriminações pelo exercício da liberdade sexual, dessa parte da vida que nos liga diretamente a outro ser humano e indiretamente a todos seres humanos. A autonomia tem uma história recente entre nós. Não terá mais do que duzentos anos como ideia- força da vida social e da moral pública. Essa história recente é ainda mais recente e frágil em sociedades como a brasileira, em que não é difícil encontrar os que afirmam que a autonomia e as liberdades civis não são as primeiras questões de nossa vida pública. (...). Creio que não há nada de questão menor nesse ponto. Nesse ponto, creio que dizer algo nesse sentido, que a liberdade individual, inclusive a liberdade sexual é menor ou pode esperar, significa colocar a pessoa humana abaixo de objetivos falsamente mais altos. O argumento é típico dos que não valorizam a autonomia e acreditam que alguém está acima do próprio sujeito para determinar-lhe a vida. O argumento é encontradiço entre os que têm convicções religiosas (sejam elas religiosas no sentido vulgar, sejam elas convicções políticas com o caráter absoluto da verdade típico das convicções religiosas). A falsidade disso está em que essa espécie pressupõe muitas vezes um todo universal ('a sociedade') que existe acima e fora dos sujeitos que o compõem. Ora, a noção de autonomia que fundou o constitucionalismo moderno rejeita esta ideia normativa. Para o liberalismo, as pessoas não existem para a sociedade, para a família, para a tradição, para a religião, para uma outra coisa qualquer. Logo, não se pode, sem boas razões, submeter a autonomia dos sujeitos a fins que ele não escolheu e cuja realização não elimina a possibilidade de outros escolherem e realizarem fins diferentes. A liberdade, compreendida no limite do respeito simultâneo e compatível com igual liberdade de outrem, não é objeto de transação, pois se trata de um fim inerente à própria natureza humana, cuja proteção é a razão de um estado de direito constitucional. (Lopes, 2007, p. 48)

Liberdade de expressão e de informação e "ideologia de gênero"

O direito à liberdade encerra uma permissão para fazer ou deixar de fazer o que não for proibido pelo direito. Como visto, esta formulação clássica realiza-se tanto na liberdade sexual, como se relaciona com a proteção da dignidade humana, direitos estes que se encontram ameaçados diante da possível vitória dos/as detratores/as do gênero no debate público. A intensidade dessa ameaça ganha contornos ainda mais fortes se contrastarmos direitos de liberdade específicos (como a liberdade de expressão e de informação) e o que advogam aqueles/as que investem contra a propalada "ideologia de gênero".

Responder tais ameaças reclama não somente a dimensão protetiva, de não-intervenção na liberdade alheia em questões de gênero. As liberdades fundamentais também apresentam dimensões positivas, como ocorre com a liberdade de expressão e a liberdade de informação. A conjugação das proteções negativas, de não-intromissão, com as dimensões positivas, de garantia e promoção de condições para a democracia (Sarlet, 2016), constituem o direito de liberdade como um todo, deixando explícito o conteúdo jurídico do direito de liberdade de forma mais completa e integral.

Com efeito, a liberdade de expressão é essencial não somente como possibilidade de desenvolvimento da personalidade mediante a proibição da censura à comunicação dos pensamentos e convicções de cada um. Ela também se aplica às circunstâncias de agressão e falsidade visando à manipulação do outro. Usar esse recurso faz-se necessário frente as ações mobilizadas pelos/as detratores/as do gênero, pois eles/as deturpam os estudos de gênero, apresentando-os de modo descontextualizado, falseado, simplificado e desqualificado. Mais grave ainda: registra-se no modo de atuar dos/as detratores/as do gênero a disseminação de relatos falsos e caluniosos.5

Com efeito, a divulgação de fatos com o objetivo de falsear e distorcer informações e ideias importa em violação à liberdade de informação, ainda mais quando praticada de modo exponencial e com os impactos que tem nas sociedades contemporâneas atravessadas por fluxos de informação. A informação há de ser, na maior medida do possível, "exata, completa e objetiva", com circulação "livre, recíproca e equilibrada", como registra a literatura jurídica internacional sobre o direito à informação em sua dimensão transindividual6 (Nobre, 1988). Nessa linha, já alertava Pontes de Miranda (1993), um dos maiores clássicos do direito brasileiro, que a difusão de informações, de forma tendenciosa e sem compromisso com a exatidão e a objetividade na apresentação dos fatos, ofende o "direito à verdade", considerado como efetivo direito de personalidade, ou seja, como direito que deriva da noção de dignidade humana juridicamente protegida.

Proibição de discriminação e "ideologia de gênero"

Discriminação designa a materialização, no plano concreto das relações sociais, de atitudes arbitrárias, comissivas ou omissivas, originadas do preconceito, capazes de produzir violação de direitos contra indivíduos e grupos estigmatizados. Do ponto de vista jurídico, o conceito de discriminação aponta para a reprovação jurídica das violações ao princípio da igualdade, atentando para os prejuízos experimentados pelos destinatários de tratamentos desiguais. A discriminação aqui é visualizada através de uma perspectiva mais substantiva que formal: importa enfrentar a instituição de tratamentos desiguais prejudiciais e injustos.

Neste contexto, importa o conceito de discriminação desenvolvido no direito internacional dos direitos humanos, cujos termos podem ser encontrados na Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (Organização das Nações Unidas [ONU], 1965) e na Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (ONU, 1979). Segundo estes parâmetros normativos, discriminação é "qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência que tenha o propósito ou o efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos econômico, social, cultural ou em qualquer campo da vida pública. "

Para os/as detratores/as do gênero os indivíduos e grupos cujos gênero e sexualidade diverge dos padrões patriarcais e heteronormativos hegemônicos - ou seja que diferem do sexismo heteronormativo - devem receber tratamento diverso daquele que se aplica aos indivíduos e grupos que se adequam a tais parâmetros. Essas experiências, comumente designadas pelos termos sexismo, homofobia e transfobia, implicam discriminação, pois envolvem distinção, exclusão ou restrição prejudicial ao reconhecimento, ao gozo ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais.

O pressuposto para a qualificação jurídica de uma relação social como discriminatória é a contrariedade ao direito. Com efeito, não haverá discriminação se a diferenciação de tratamento for considerada conforme o direito, como se dá, por exemplo, diante da proteção jurídica à mulher no mercado de trabalho. Sendo assim, a fundamentação jurídica das expressões discriminatórias exige que se destaquem, ao menos, dois aspectos: a contrariedade ao direito e as modalidades de violência através das quais a discriminação se manifesta.

Quanto ao primeiro tópico, revela-se necessário salientar a injustiça dos tratamentos discriminatórios que decorrem dos ataques ao "gênero". Como visto, as investidas contra a "ideologia de gênero" visam a manutenção de posturas e normas que legitimam discriminações contra todas as pessoas e grupos que não se encaixem nos ditames do sexismo heteronormativo. Com efeito, a teoria e a jurisprudência dos direitos humanos e dos direitos fundamentais afirmam, de modo cada vez mais claro e firme, a ilicitude destas discriminações. Tantos tribunais internacionais de direitos humanos, quanto tribunais constitucionais nacionais, têm emitido decisões que reconhecem a discriminação dirigida contra identidade e práticas que divergem do sexismo heteronormativo como violações aos direitos humanos e fundamentais. Nestes casos, direitos fundamentais como como a privacidade, a liberdade individual, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade humana, a igualdade e a saúde são concretizados e juridicamente protegidos em demandas envolvendo mulheres, homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais. Ao lesionar uma gama tão ampla de bens jurídicos, as discriminações manifestam-se por meio de duas formas de violência: física e não-física.

A violência física, mais visível e brutal, atinge diretamente a integridade corporal, quando não chega às raias do homicídio. A segunda forma de violência, não-física, mas não por isso menos grave e danosa, consiste no não-reconhecimento e na injúria. O não-reconhecimento, ou o reconhecimento de modo inferiorizado, configura uma forma de ostracismo ou subjugação social, que nega ou subestima o valor de modo de ser ou de viver, favorecendo condições para que ocorra o tratamento degradante e insultuoso das pessoas que assim são ou vivem. Já a injúria, quando relacionada a este campo de exclusão dos direitos e impedimento da autonomia social e possibilidade de interação, é uma das manifestações mais difusas e cotidianas da discriminação em razão do gênero ou da sexualidade. Isso ocorre, por exemplo, quando se propaga a noção de que a condição homossexual é intrinsecamente desordenada, atitude que não só inferioriza, como alimenta caldos de cultura discriminatórios e violentos.

Direitos sociais e "ideologia de gênero"

As investidas contra a propalada "ideologia de gênero" não se limitam aos direitos de primeira geração, cujo sentido é o de criar uma esfera livre de intromissões onde indivíduos e grupos possam desenvolver suas vidas de modo livre e igual em termos de identidade e de expressão de gênero. Quando detratam ou excluem os indivíduos e grupos cujas identidades e condutas são dissonantes com a norma heterossexual e patriarcal dominante, os discursos e ações dos grupos antigênero também afetam negativamente os direitos sociais, pois comprometem gravemente o acesso ao trabalho, à saúde, ao lazer e à previdência de todos/as aqueles/as definidos/as como "objetivamente desordenados".

A investida contra os direitos sociais não é mera consequência da exclusão de direitos que resulta do tratamento dados pelos detratores do gênero as determinados indivíduos e grupos. A política defendida por esses grupos vai de encontro à própria concepção de estado social. Para retomar Junqueira (2018, p. 457):

"a restrição do sentido de família em termos moralistas se faz acompanhar do cultivo de sua concepção como unidade privada, a qual se vê incumbida de crescentes responsabilidades, à medida que os direitos sociais são precarizados e o Estado se desobriga em realizar políticas distributivas e de proteção social. Tal investida contra os direitos sociais incide especialmente em âmbitos da vida privada assumidos sobretudo pelas mulheres."

Outro aspecto, não menos importante, é que os discurso antigênero alimentam discursos e crimes de ódio, ameaçando, real e concretamente, o próprio direito à vida desses indivíduos e grupos discriminados (Rios e Dadico, 2018).

Direito à educação e "ideologia de gênero": ensino, pesquisa, organização curricular

No âmbito dos direitos sociais, um campo particularmente tensionado devido à ação dos/as detratores/as do gênero é a educação. O direito à educação é um direito humano fundamental, previsto tanto nos tratados e convenções internacionais de direitos humanos, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), quanto na ordem constitucional interna. No texto constitucional, o artigo 6o enuncia "o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho" (art. 205) e como princípios a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber e o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (art. 206, I a III). Essas finalidades e princípios expressam valores democráticos de sociedades pluralistas e respeitosas dos indivíduos e de suas diferenças. Mais ainda, tais conteúdos carregam consequências inescapáveis tanto para as abordagens, posturas e métodos de ensino, como também para a definição dos direitos e deveres correspondentes a estudantes e professoras/es. É preciso também mencionar suas repercussões na organização escolar e no que diz respeito à relação escola-comunidade, nela considerados não somente pais e responsáveis, mas também órgãos legislativos, executivos e judiciários, quando chamados a cumprir suas missões institucionais.

Da mesma forma, segundo os preceitos constitucionais, quando não há espaço para diálogo e para exercício da razão crítica e honesta no ambiente escolar, o convívio plural será prejudicado, pois estarão silenciadas as experiências e visões de mundo que não estão em consonância com as visões das maiorias ou da tradição. Com a frustração do convívio plural, compromete-se substancialmente a outra finalidade constitucional da educação, que é o preparo para o exercício da cidadania. De fato, a ausência do pluralismo no ambiente escolar desprepara os estudantes para o exercício da cidadania, privando-os de um espaço privilegiado e destinado a tal aprendizado. Mais ainda: esse prejuízo vai além da esfera do indivíduo e compromete o funcionamento democrático das instituições pois a deliberação coletiva requer a capacidade de conviver e dialogar num mundo de diferenças e de diferentes.

Contra esse pano de fundo fica evidente que a ação dos/as detratores/as do gênero viola o direito à educação. Além da grave e intencional distorção da rica, complexa e múltipla gama de debates e conhecimentos que compõe os estudos de gênero - que decorre de uma atitude intelectualmente desonesta - esta ofensiva, em lugar de educar para o convívio democrático e plural, instiga a desinformação e alimenta o preconceito entre indivíduos e grupos. Mais ainda, perpetra violações da própria dignidade das/dos estudantes, professoras/es participantes da comunidade escolar que não se encaixam nos modelos por preconizados por esses grupos, o que produz e alimenta uma espiral de ódio e violência que começa no contexto escolar (Lionço & Diniz, 2009).

Os desdobramentos destes direitos e princípios fundamentais, que não são novos nos debates sobre direito à educação, se aplicam, sem dúvida e diretamente, às investidas dos/as detratores/as do gênero. É o que demonstra, por exemplo a literatura e os precedentes em países de tradição liberal ocidental, como revela o quadro elaborado por Robert Gordon (1984), ao examinar precedentes da Suprema Corte dos Estados Unidos, bem como de outros tribunais, legislação e literatura jurídica especializada.

O estudo salienta que: (a) não há liberdade de expressão se for aniquilada a capacidade crítica dos/as envolvidos/as na comunidade escolar, mediante o artifício da censura a debates e conteúdos expostos de forma apropriada, honesta e dialógica; (b) que o direito dos pais a educarem seus filhos em casa não implica transformar a escola em extensão doméstica; (c) que a transmissão das crenças morais familiares aos filhos compete aos pais, sendo indevido converter a escola em instrumento de doutrinação da moral familiar, em prejuízo do direito à informação e da capacidade crítica dos estudantes (d) que o contexto escolar, onde existe praticamente uma audiência cativa, implica interesse público na educação para a cidadania e a para a democracia plural, evitando a manipulação e deturpação dos debates; (e) que o direito de os/as estudantes receberem informações não distorcidas deve ser sempre garantido, inclusive de buscar informações além daquelas referidas pelo sistema escolar; (f) que as escolas não podem prescrever imperativamente dogmas em matéria de política, nacionalismo, religião e outros temas de opinião; (g) que proibições curriculares sobre o estado da arte de determinadas, livre de distorções e manipulações, violam a liberdade de pensamento, de expressão e do direito à informação dos estudantes, além de afrontar os objetivos e princípios do direito à educação; (h) que medidas como a imposição de leitura bíblica, a vedação a teorias científicas como a da evolução, a introdução de conteúdos acríticos e tendenciosos laudatórios do capitalismo e maldizentes do comunismo sem possibilitar informação e debate, criam uma "obrigação de ortodoxia" e violam o direito de aprender e de ensinar e a liberdade de expressão, tudo conforme precedentes da Suprema Corte dos Estados Unidos; e que (i) temas sobre educação sexual não infringem direitos paternos ou liberdade de religião, nem proteção da família, por estarem no âmbito da legítima proteção à saúde individual e pública. Esse breve inventário da jurisprudência do direito estadunidense em matéria de educação, oferece parâmetros para compreender como e por que as investidas contra a propalada "ideologia de gênero" atingem o âmago do direito à educação

 

Considerações Finais

De todo exposto, fica patente quanto os/as detratores/as do gênero, com suas investidas contra aquilo que chamam de "ideologia de gênero", reproduzem e reforçam padrões, mentalidades e atitudes violadoras de direitos humanos e fundamentais. Disseminando uma versão deturpada e simplificadora da teoria e dos estudos de gênero, aviltam as condições de respeito à integridade física e psíquica de todos que não se conformam às normas dominantes e promovem uma cultura de ódio e violência que é profundamente atentatória à dignidade humana. Ao propagar parâmetros de conduta e mensagens que desrespeitam o pluralismo e as diferenças legítimas das sociedades democráticas, seus discursos e ações põem em risco as condições necessárias para o exercício da liberdade, da igualdade e o respeito a dignidade de todas as pessoas e grupos.

No âmbito propriamente jurídico, esse quadro desafia o aprofundamento e a consolidação de uma cultura democrática e cidadã, tanto na formação jurídica dos/as atuais e futuros/as profissionais do direito, quanto na participação dos/as operadores/as do direito na sociedade civil e na vida política nacionais. Mais especificamente, impacta, negativamente, na concretização dos direitos humanos como direitos sexuais, bem como no compromisso com políticas antidiscriminatórias em matéria de sexo, gênero e sexualidade. Resistir a essas investidas faz-se necessário para fazer avançar a democracia e o respeito aos direitos humanos e fundamentais no convívio social e, principalmente, nas políticas públicas, em especial no campo do pluralismo, dos direitos individuais e dos direitos sociais, como o exame do direito à educação revela.

 

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Recebido em: 01/06/2018
Aprovado em: 02/11/2018

 

 

1 Nos termos da Portaria n. 2016/2018 – CAPES, registre-se que o presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. "This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Finance Code 001"
2 Sigla utilizada correntemente pelos movimentos sociais brasileiros contemporâneos, que por ela designam lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, queer e intersexuais.
3 A discussão sobre a constitucionalidade da "escola sem partido" foi levada ao Supremo Tribunal Federal (STF) em maio de 2016, por meio das ADIs 5537 e 5580 – AL, em razão da Lei 7.800, que instituiu a "Escola Livre" no Estado do Ala-goas. As referidas demandas ainda não foram julgadas definitivamente pelo STF, mas, em sede liminar, foi determinada a suspensão da integralidade da Lei 7.800/2016. O parecer da Procuradoria Geral da República (PGR) no bojo dos processos merece menção, na medida em que elenca os diversos direitos violados pela Lei 7.800, como as "liberdades constitucionais de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas e a gestão democrática do ensino público." (Brasil, 2016, p. 33-34).
4 Nesse sentido, conforme nota Junqueira (2018, p. 482), no discurso de Bento XVI (Vaticano, 30 de março de 2006) aos/às participantes de um encontro do Partido Popular Europeu (de orientação católica) é enfatizada a ação política orientada pela não negociabilidade: "(...) Estes princípios não são verdades de fé mesmo se recebem ulterior luz e confirmação da fé. Eles estão inscritos na natureza humana e, portanto, são comuns a toda a humanidade. A acção da Igreja de os promover não assume, por conseguinte, um carácter confessional, mas dirige-se a todas as pessoas, prescindindo da sua filiação religiosa. Ao contrário, esta acção é tanto mais necessária quanto mais estes princípios forem negados ou mal compreendidos porque isto constitui uma ofensa contra a verdade da pessoa humana, uma grave ferida infligida à própria justiça" (Bento XVI, 2006, s/p.).
5 Junqueira (2018, p. 469) aponta: "Os repertórios costumam ser variações em torno do mesmo tema. Denuncia-se que do-centes incentivam o desrespeito à família e, desde a educação infantil, procuram erotizar as crianças. Obrigam os meninos a vestir saias e a brincar de bonecas. Há aulas práticas de masturbação, difusão de pornografia, apologia ao aborto e à homos-sexualidade (...), e defesa da pedofilia, da zoofilia e da poligamia. Estudantes desmaiam, e professores/as "dissidentes" são alvos de ameaças e processos. Pais que se opõem à doutrinação do gender nas escolas são levados à prisão, e assim por diante."
6 Esses são os termos acordados nas Conferências Gerais de Nairóbi (1976) e Paris (1978), em que discutida a chamada 'Nova Ordem Mundial da Informação'. Ao fim de muitas discussões, a Assembleia Geral das Nações Unidas, em sua XXXV Seção (1980), aprovou resolução convidando cada membro/a a colaborar para "a instauração de uma nova ordem mundial da informação e da comunicação, fundada, entre outras dados, sobre a livre circulação e uma difusão mais larga e mais equilibrada da informação, que garanta a diversidade de fontes de informação e o livre acesso." Nesse sentido, ver Pinto (1984).

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