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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.19 no.44 São Paulo jan./abr. 2019

 

HOMENAGEM

 

Um tributo à Fernando Gonzalez Rey: revelando uma história de parceria e amizade

 

A tribute to Fernando Gonzalez Rey: revealing a history of partnership and friendship

 

Un homenaje a Fernando González Rey: revelando una historia de asociación y amistad

 

Hommage à Fernando Gonzalez Rey: révélateur d'une histoire de partenariat et d'amitié

 

 

Raquel Souza Lobo Guzzo

Docente do Programa de Graduação e Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC Campinas)

 

 

Falar sobre o Fernando e sobre o quanto sua ausência será sentida, fará com que minha tristeza se materialize em uma história de parceria e amizade com a revelação de como ele foi alguém que deixou marcas em todas aquelas pessoas que puderam conviver com ele. Nessa história, não poderia deixar de incluir Albertina Mitjans Martinez, psicóloga e companheira muito importante em sua vida, assim como Solange Wechsler, uma amiga e colega de trabalho aqui na PUC-Campinas. Por meio de Albertina e Solange, tive a oportunidade de conhecê-lo. Em 1990, quando Solange e eu, com a ajuda de várias colegas psicólogas, decidimos fundar a Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional - ABRAPEE, e, ao mesmo tempo, a área da Psicologia Escolar no programa de pós-graduação da PUC-Campinas, iniciamos um projeto, cujo objetivo era fomentar a possibilidade da Psicologia fazer parte da equipe técnica das escolas públicas em nosso país - uma frente política importante, relacionada ao direito que crianças e jovens de escolas públicas tem de serem acompanhados em seu processo de desenvolvimento integral. Tínhamos um imenso caminho a trilhar: em primeiro lugar organizar profissionais que trabalhavam ou tinham interesse em trabalhar nas escolas, chamar um congresso de psicologia escolar para o Brasil, já que fazíamos parte da Associação Internacional de Psicologia Escolar - ISPA; e focalizarmos a produção de conhecimento na atuação e nas principais questões com as quais a Psicologia se enfrenta quando participa do cotidiano da escola. Foi pensando nas pessoas que traríamos ao I Congresso Nacional de Psicologia Escolar - CONPE, que o nome de Albertina Mitjans surgiu, como alguém que conhecia bem a área, que era cubana e que vivia em um país cuja Educação é prioridade, atuando como professora e psicóloga escolar. Albertina veio ao Brasil para o nosso congresso e a partir dessa data ( 1/11/1991) muitas outras experiência foram nos fazendo mais próximas, até que um dia, ela nos apresenta, Fernando! E não me esqueço as palavras dela "Fernando é uma pessoa brilhante e defende a Psicologia com vigor!"

Quando soubemos que o casal havia sido convidado pela UNB como professores visitantes por um período de dois anos, passamos a estreitar nossos encontros. Fernando e Albertina vieram várias vezes a Campinas dar aulas na graduação e no programa de pós em Psicologia da PUC-Campinas, conversar com estudantes de mestrado e graduação sobre Saúde Mental, Direito das Crianças e Escola - temas que foram esculpindo uma leitura crítica importante para todos nós. A perspectiva de Vigotski, discutida por alguém que tinha estudado diretamente na fonte e que a apresentava com seu caráter político e social era sem dúvidas, uma leitura necessária àqueles que, como eu, buscava descolonizar o conhecimento e a prática da Psicologia no Brasil. Certa de que eles, um dia, voltariam a Cuba quando terminasse o contrato de professores visitantes, começamos juntos a traçar outros planos para a vinda deles mais frequente à Campinas. Essa convivência era importante, em primeiro lugar, porque eles eram a evidência mais consolidada de que a Psicologia em outra perspectiva ontológica, epistemológica e metodológica, poderia responder às demandas da sociedade e também porque tínhamos o exemplo de que a Educação e a Saúde, quando prioridade na política, contavam com a Psicologia efetivamente comprometida e atuante. Contudo, os planos mudaram e eles passaram a viver no Brasil e, depois de muitas conversas buscamos consolidar a possibilidade deles se inserirem, diretamente, na formação de estudantes de mestrado e doutorado nas universidades brasileiras. Assim, tivemos a oportunidade de tê-lo conosco na PUC-Campinas por alguns anos - tempo de muitos debates, muitas conversas, muita produção conjunta, além da formação de alguns mestres até 2006. Suas aulas eram verdadeiros fóruns onde o conhecimento profundo da Psicologia circulava intensamente. Semanalmente, fazíamos reuniões dos grupos de pesquisa sobre temáticas polêmicas, como exemplo, personalidade e subjetividade. Traduzimos suas obras para a língua portuguesa, estudamos e criticamos a Psicologia dominante e assumimos o compromisso de sempre aprofundarmos na discussão sobre o papel e a importância dessa ciência para a América Latina.

O tempo passa rápido demais, especialmente quando se tem clara a trajetória que devemos percorrer para tornar a Psicologia uma ferramenta valiosa de fortalecimento da consciência política e radical nas mudanças necessárias que tornam a vida da maioria mais digna e justa. Fernando escrevia compulsivamente, pois entendia a urgência de dividir suas idéias e nos oferecer a possibilidade de conhecer outra vertente da Psicologia. Deixou para todos nós um legado importante em suas produções que precisa ser aprofundado e discutido.

Com ele participei de vários congressos da Psicologia da Libertação em países da América do Sul e Central, sempre alegre e vigoroso no debate. Em 2002, traduzi seu livro Sujeito e Subjetividade para o português, pois ele tinha planos de que sua obra pudesse ser lida não apenas em espanhol. Nesse processo, rapidamente, ele foi se introduzindo ao cenário da academia brasileira alcançando o reconhecimento de todos aqueles que tinham a oportunidade de estar com ele. No 6º. Congresso da Psicologia da Libertação que aconteceu em Campinas, em novembro de 2003 organizado pela PUC-Campinas, ele apresenta o trabalho El desarollo de la corrientecritica en la psicología latino americana ysurelación com la idea de liberación, com sala repleta de estudantes e profissionais interessados em entender a crítica à Psicologia e a Psicologia Crítica. Estudamos sua epistemologia qualitativa e sua análise construtiva e interpretativa em um modelo de pesquisa condizente com a práxis na escola. Sua contribuição abrangia temas polêmicos desde concepções sobre saúde e doença física e mental, sobre questões de aprendizagem e problemas no desenvolvimento das crianças, sobre ideologia e psicologia e sobre diferentes práticas psicológicas em contextos variados de inserção profissional. Debatíamos Vigotski, Ignácio Martín-Baró, Paulo Freire e, mais recentemente apresentei a ele as duas obras de Klaus Holzkamp, traduzidas em nosso grupo de pesquisa para o português. Ele estava sempre querendo ampliar seu campo de conhecimento.

Fernando deixa uma obra intensa de artigos em espanhol, português, inglês e alemão, livros e capítulos. Trata-se de uma obra crítica que constitui um tesouro para nós, ainda a ser conhecido e aprofundado. Fernando fará muita falta. Foi um defensor incansável da Psicologia Latino Americana e não se constrangia diante de desafios e provocações. Participar de debates com Fernando aguçava o verdadeiro sentido dos espaços da academia - provocar o conhecimento instituído. Sua grandeza como pessoa humana, como pesquisador e psicólogo, jamais deixará de fortalecer quem teve a oportunidade de conhecê-lo e de conviver com ele. A vida seguirá sem ele, infelizmente, mas sua obra nos permitirá estarmos sempre em interlocução.

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