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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.19 no.44 São Paulo jan./abr. 2019

 

ARTIGOS

 

Psicologia, colonialismo e ideias raciais: uma breve análise

 

Psychology, colonialism and racial ideas: a brief analysis

 

Psicología, colonialismo e ideas raciales: breve análisis

 

Psychologie, colonialisme et idées raciales: une brève analyse

 

 

Hildeberto Vieira Martins

Professor da Universidade Federal Fluminense. É membro do GT de Histó-ria Social da Psicologia da ANPEPP; hvmartins@id.uff.br

 

 


RESUMO

O artigo discute a relação entre o conceito de colonialismo e a ideias raciais que circularam entre os séculos XIX e XX e o seu uso pelo saber psicológico desse mesmo período. Pretende-se, usando como recurso metodológico a revisão bibliográfica, discutir como no Brasil passou a vigorar um "credo racial" que definia quem poderia ser considerado cidadão brasileiro. A partir de uma análise histórica abordaremos os seguintes aspectos: a) a emergência de um "credo racial" brasileiro, baseado numa interpretação singular dos nossos intelectuais do modelo do racismo científico surgido na Europa; b) a utilização de um debate científico calcado no conceito de mestiçagem, usado como estratégia definidora do grau de "branqueamento" dos cidadãos brasileiros; c) como os saberes psicológicos utilizaram os modelos científicos europeus para construir um modelo médico-psicológico (normal/patológico) que serviu para definir um espaço de exclusão para aqueles que eram considerados "perigosos " à ordem social.

Palavras-chave: História da psicologia; Colonialismo; Racismo científico; Raça; Saberes psicológicos.


ABSTRACT

This article discusses the relationship between the concept of colonialism and the ideas about race spread during the nineteenth and the twentieth centuries, as well as its use by the psychology field during this same period. By using bibliographic review as its methodological resource, the article aims to discuss how a "racial creed" came into effect in Brazil that defined who was considered a Brazilian citizen. In light of a historical analysis, the following aspects will be addressed: a) the emergence of a Brazilian "racial creed", based on our thinkers' singular interpretation of the scientific racism model born in Europe; b) the use of a scientific debate based on the concept of miscegenation, adopted as a defming strategy of the "whitening" degree of Brazilian citizens; c) how the psychological knowledge made use of European scientific models in order to build a medical-psychological model (normal /pathological) that served to define a space of exclusion for those who were considered "dangerous" to the social order.

Keywords: History of psychology; Colonialism; Scientific racism; Race; Psychological knowledges


RESUMEN

El artículo discute la relación entre el concepto de colonialismo y las ideas raciales que circularon entre los siglos XIXy XXy su uso por el saber psicológico de ese mismo período. Se pretende, utilizando como recurso metodológico la revisión bibliográfica, discutir cómo en Brasil pasó a vigilar un "credo racial" que definía quién podría ser considerado ciudadano brasileno. A partir de un análisis histórico abordaremos los siguientes aspectos: a) la emergencia de un "credo racial" brasileno, basado en una interpretación singular de nuestros intelectuales del modelo del racismo científico surgido en Europa; b) la utilización de un debate científico calcado en el concepto de mestizaje, usado como estrategia definitoria del grado de "blanqueamiento" de los ciudadanos brasilenos; c) cómo los saberes psicológicos utilizaron los modelos científicos europeos para construir un modelo médico -psicológico (normal /patológico) que sirvió para definir un espacio de exclusión para aquellos que eran considerados "peligrosos " al orden social.

Palabras clave: Historia de la psicología; Colonialismo; Racismo científico; Raza; Saberes psicológicos


RÉSUMÉ

L' article discute le rapport entre le concept de colonialisme et les idées raciales qui circulèrent entre les siècles XIX etXX et son usage par le savoir psychologique de cette même période. On prétend, en utilisant comme recours méthodologique la révision bibliographique, discuter comment, au Brésil, a commencé à entrer en vigueur un "credo racial" qui définissait qui pourrait être considéré citoyen brésilien. A partir d'une analyse historique, nous aborderons les aspects suivants: a) la naissance d'un "credo racial" brésilien, fondé en une interprétation singulière , par nos intellectuels, du modèle du racismes cientifique surgi en Europe; b) L'utilisation d'un débat scientifique calqué sur un concept de métissage, utilisé comme stratégie définissante du degré de "blanchissement" des citoyens brésiliens; c) comment les savoirs psychologiques utilisèrent les modèles scientifiques européens pour construire un modèle médico-psychologique (normal/patologique) qui servit à définir un espace d'exclusionpour ceux qui étaient considérés "dangereux"pour l'ordre social.

Mots-clés: Histoire de lapsychologie; Colonialisme; Racisme scientifique; race; savoirs psychologiques.


 

 

Introdução

Os estudos realizados no campo dos saberes psicológicos (psicologia, psicanálise, psiquiatria) até recentemente estavam inevitavelmente vinculados a uma tradição historiográfica originada do paradigma moderno ocidental, de vertente europeia, que defendia que os fenômenos psicológicos tinham como origem, causa e explicação os fatores circunscritos em um modelo racional-positivista surgido no século XIX. Essa forma moderna de definir e interpretar o mundo colocava indelevelmente as ideias e práticas pensadas e produzidas fora da Europa, que não seguiam esse modelo, como um subproduto deficitário ou inferior em relação a essa matriz originária de pensamento.

A expansão de um modelo científico calcado na ideia de Razão (e seu produto moderno, a noção de "liberdade de pensamento") e no processo de reconfiguração do espaço social e a sua separação em polos opostos (Estado e a sociedade, o público e o privado etc.), proporcionou a mudança da maneira como o mundo era concebido até então (Sennet, 1988). A partir desse novo paradigma, o que se mostra consensual é a certeza que essa nova realidade passa a ser sustentada por uma lógica opositiva "eu (igualdade)/outro (diferença)", já que o "eu" passa a ser o novo objeto de culto com a ascensão da noção de individualismo (Durkheim, 1975). Essa nova lógica racionalista centrada no eu reverberou de maneira significativa na constituição da nossa sociedade ocidental moderna.

Passados alguns séculos, essa nova "visão de mundo" gerou uma perspectiva etnocêntrica que produziu uma divisão econômica, social e política que se consolidou por volta do início do século XX. Isso provocou a emergência de uma terminologia capaz de expressar essa nova divisão mundial, ou seja, o mundo passou a ser pensado a partir da noção de "centro" e "periferia", ou como formado por países "desenvolvidos" e países do "Terceiro Mundo". Esse movimento político-ideológico eu-rocêntrico foi produtor de um "imperialismo epistemológico ocidental" de longa duração, que só começou a ser descontruído a partir da expansão das críticas formuladas pelos movimentos de descolonização afro-asiáticos que eclodiram a partir do fim da Segunda Guerra (Alcoff, 2016, p. 131). Tais críticas ganharam maior impulso em decorrência da deflagração - no final dos anos 50 - de estudos acadêmicos interdisciplinares surgidos em torno da crítica às formas de "racismo epistêmico", definido por autores dos assim chamados "estudos étnicos" (Maldonado-Torres, 2016), ou os "estudos culturais" (Neves, 2009; Sovik, 2002), ou ainda, mais recentemente, de "estudos subalternos" (Ballestrin, 2013; Maia, 2015). A vasta produção acadêmica continuada desses estudos críticos foi posteriormente denominada de "estudos pós-coloniais" (Neves, 2009; Maia, 2015), cabendo ainda nessa seara o conceito tardio de "giro decolonial", de Maldonado-Torres (Ballestrin, 2013, p. 105).

Esse debate crítico sobre o lugar e o papel das culturas coloniais foi sendo desenvolvido inicialmente para denunciar as várias formas de opressão mantidas e perpetuadas pela dominação epistemológica e cultural engendrada geopoliticamente pela Europa, e que, por muitos, foi denominado de Imperialismo. Diante da diversidade de correntes e das controvérsias sobre os limites teóricos do que seriam os estudos pós-coloniais, reproduzimos a definição de Neves (2009) sobre o assunto:

Embora não possuindo uma metodologia rigorosamente unificada, os estudos pós-coloniais têm um objeto de investigação bem claro: querem estudar os confrontos entre culturas que estão numa relação de subordinação, ou seja, estudar a marginalidade colonial, considerada segundo uma perspectiva espacial, política e cultural. Deste último ponto de vista, entramos num novo conceito de cultura e em novos paradigmas da realidade. (Neves, 2009, p. 235)

A afirmação de Neves resume significativamente um dos pontos nodais desses estudos, ou seja, enfatizar o ponto de vista do colonizado ao denunciar o lugar de "marginalidade colonial" desses grupos étnicos que foram "histórica e geo-politicamente" excluídos. Mas não podemos nos esquecer de mencionar o tom quase irônico de Neves quando a autora afirma que atualmente vivemos "na era do 'pós'", o que exige que sejamos cautelosos nas apropriações que fazemos de certos conceitos (Neves, 2009, p. 235), e até mesmo a crítica contundente que Stuart Hall formula sobre a ideia de pós-colonial (Maia, 2015). Contudo, o nosso interesse não é fazer um recenseamento exaustivo do contexto histórico desencadeador do colonialismo e do pós-colonialismo, já que o que realmente gostaríamos de expor é um dos aspectos desse processo histórico, mais especificamente no âmbito da História da Psicologia no Brasil. O que pretendemos realizar nesse artigo é tomar como base referencial as críticas suscitadas pelos estudos pós-coloniais para repensar o processo colonial brasileiro e os efeitos das práticas e ideias colonialistas na formação de um saber psicológico que se debruçou sobre o "problema negro" brasileiro.

A análise de um determinado período histórico dos saberes psicológicos no Brasil será formulada a partir de um fator que marcou, e ainda marca, o seu funcionamento e constituição, e que nesse trabalho nomeamos de a questão racial brasileira. Demonstraremos o funcionamento da questão racial como chave interpretativa profícua para entender a razão de nós nos tornarmos o que somos enquanto sociedade marcada pelo funcionamento de um "credo racial" à brasileira. É esse mesmo credo que fez e faz operar em nossa sociedade brasileira uma excessiva valorização das ligações/relações pessoais, como a costumeira prática do favor que ocorria já no século XIX deixa bem evidente (Schwarz, 2000). Essas estreitas ligações acabam servindo como filtro para o acesso privilegiado aos direitos, os quais nas sociedades modernas estão vinculados inerentemente ao exercício de cidadania, mas que em nossa sociedade, fortemente marcada pela desigualdade social, acabam redundando em relações hierarquizadas (ou de privilégio ou de subalternidade). Historicamente, isso se configura de maneira tão evidente que não ter relações pode implicar em um maior risco pessoal ou social (produção de uma nulidade identitária), corroborando que o que importa, ao final, é saber "quem está falando" (DaMatta, 1997).

Discutiremos nesse trabalho, nos valendo de algumas premissas argumentativas, como os saberes psicológicos que emergiram em finais do século XIX no Brasil seguem a mesma lógica colonialista que marcou o modelo europeu de cientificidade. Nossas hipóteses para sustentar essa ideia principal são as seguintes: a) que o "credo racial" brasileiro sustenta uma interpretação singular do modelo do racismo científico surgido na Europa formulada por nossos intelectuais; b) que esse modelo científico brasileiro valeu-se do artifício da mestiçagem (a princípio, de maneira negativa), estratégia utilizada como sendo cientificamente capaz de determinar o grau de "branqueamento" dos agentes sociais marcados pelo nosso "credo racial"; c) que os saberes psicológicos utilizaram dessa mesma "tradução" dos modelos científicos europeus para construir um modelo médico-psicológico (normal/patológico) que serviu para definir limites de cidadania para aqueles que eram considerados "perigosos" à ordem social. Apresentadas as coordenadas argumentativas, passemos a uma exposição analítica que sustente as proposições mencionadas acima.

 

Colonialismo das ideias, "credo racial" brasileiro e o racismo científico

A emergência dos estudos pós-coloniais proporcionou a problematização do lugar de subalternidade que determinadas culturas e sociedades foram relegadas na história da sociedade ocidental moderna. Como mencionado anteriormente, o termo remete a compreensões variadas, já que são muitos os autores orientados por sua perspectiva crítica, e por isso a maioria de suas pesquisas tem como foco a proposição de uma desconstrução das ideias perpetradas pelo modelo imperialista, suas conotações essencialistas, além de apontar para o equívoco epistemológico da valorização das concepções eurocêntricas dominantes (Baellestrin, 2013; Maia, 2015). Os estudos pós-coloniais buscam enfatizar ainda o fator opressor que esse discurso etnocêntrico sustentou durante séculos de exploração continuada em relação aos povos colonizados. Portanto, o termo "pós-colonialismo" é uma crítica ainda recente a respeito da imposição da civilização europeia e do seu modelo racional-positivista como parâmetro universal para as outras sociedades e culturas. Segundo Ballestrin, essa corrente pós-colonial, que contou com a contribuição teórica de vários autores latino-americanos, quis colocar em cheque o capitalismo mundial colonial e destacar o quanto esse modelo político-econômico foi produtor de uma colonialidade do poder, do saber e do ser (Ballestrin, 2013, p. 101). Para alguns desses críticos, o fundamento da modernidade e, consequentemente, da colonialidade se deve principalmente a um fator: a "invenção da América". Isso possibilitou historicamente reconfigurar as relações políticas, sociais, econômicas e culturais, sustentadas na passagem de uma "diferença imperial" para uma "diferença colonial" (Ballestrin, 2013, p. 102; Maldonado-Torres, 2016). Contudo, esse é um debate antigo, pois não podemos deixar de mencionar que autores como Albert Memmi, Franz Fanon e Aimé Césaire já discutiam os problemas gerados pelo colonialismo em seus trabalhos produzidos a partir da década de 1940.

O que chamamos aqui de "formas de colonialismo" diz respeito às estratégias de controle e subalternidade engendradas em decorrência do período ocorrido a partir da expansão de um modelo capitalista e a consolidação daquilo que ficou demarcado como Modernidade. Mas o fim do período colonial como estratégia de controle militar-territorial não significou o fim das formas de colonialismo, e é isso que os estudos pós-coloniais (ou decoloniais) enfatizam. Mas como dito anteriormente, não é o nosso objetivo principal discutir especificamente o conceito de pós-colonialismo ou o de de-colonial, debate extenso demais para os limites desse artigo, gostaríamos somente de apontar a sua importância e relevância para os estudos que abordam a questão racial e todas as formas de opressão marcadas por um lógica da diferença.

Um dos aspectos que nos interessa enfatizar nesse tópico é que nos dias atuais parece ser incontestável reconhecer que a velha ideia colonialista que naturalizou o status social dos colonizadores - e que, em razão disso, eles puderam submeter uma série de imposições autoritárias aos colonizados -, não pode mais ser aceita como verdadeira. Como afirmou Kwame A. Appiah, essa concepção equivocada é mais o resultado da constituição de uma determinada classe alienada, qual seja, a dos "intelectuais coloniais e pós-coloniais". O autor deixa evidente é que para aqueles chamados de colonizados, a realidade se configurava de maneira dissonante, por isso ele coloca o seguinte:

Mas, a verdade é que a maioria dos que fomos criados durante a era colonial, e por algum tempo depois dela, temos uma aguda consciência de como os colonizadores nunca detiveram um controle tão pleno como os mais velhos de nós deixava-nos parecer que tinham. Todos vivenciamos o poder persistente de nossas próprias tradições cognitivas e morais: na religião, em eventos sociais como os funerais, em nossa experiência da música, em nossa prática da dança e, é claro, na intimidade da vida familiar. (Appiah, 1997, p. 25-26, grifo nosso)

As interpretações e usos de toda uma nomenclatura de cunho colonialista não foram feitas somente pelas sociedades europeias, elas também foram apropriadas por uma parcela dos intelectuais colonizados e foram utilizadas para fins de controle político, social e econômico das comunidades "nativas" com o intuito de determinar e adscrever suas limitações e deficiências e, assim, estabelecer seu lugar de subalternidade.

Podemos dizer que um ponto que nos aproxima dos estudos pós-coloniais e decoloniais é a problematização da ideia de raça, assunto que já analisamos em trabalhos anteriores (Martins, 2014, 2009; Santos, Schucman, & Martins, 2012). Como afirma Maldonado-Torres, o sujeito moderno será marcado por uma maneira de ver o mundo que é ao mesmo tempo "liberal, tolerante, hiper-racionalista, mas também, para dizer de maneira direta, racista" (Maldonado-Torres, 2016, p. 83). A raça foi usada como um novo tipo de classificação a partir da Modernidade, e por isso seu sentido e usos mudam como uma estratégia de controle e subalternização (Foucault, 1999; Banton, 2010;

Ballestrin, 2013; Maldonado-Torres, 2016). Essa ideia pode ser sintetizada na seguinte afirmação de Luciana Ballestrin, baseada nas ideias de Aníbal Quijano: "Se a raça é uma categoria mental da modernidade, tem-se que seu sentido moderno não tem história conhecida antes da América" (Quijano, 2005, citado por Ballestrin, 2013, grifo nosso). Essa nova ideia de raça permitiu a constituição na sociedade brasileira de uma "linha de cor" que marcou a sua maneira de pensar as relações entre os indivíduos marcados pelas categorias identitárias "branco" e "negro".

O sistema colonialista perpetrado em nosso país teve como característica fundamental um padrão de exploração dos grupos étnicos autóctones e negros por mais de 300 anos, assunto estudado por vários pesquisadores (Chalhoub, 2009; Reis, 2003; Mattos, 1998). Contudo, para que a discussão seja mais profícua, nos deteremos na análise das relações de exploração, conflito e subalternidade entre aqueles sujeitos sociais marcados aqui no Brasil pela distinção racial e fenotípica adscritos aos marcadores branco ou negro.

Retomando a discussão de como as ideias colonialistas impregnaram no imaginário construído por nossos intelectuais, tomemos como exemplo os argumentos de Sidnei Chalhoub e sua demonstração de como uma produção historiográfica nacional construiu mistificações sobre o negro escravizado que redundaram na produção da ideia de um "escravo-coisa", assim como em sua contrapartida, a noção do "escravo rebelde" (Chalhoub, 2009, p. 41). O que Chalhoub defende em seu trabalho é o questionamento dessas "mitologias" inventadas por uma historiografia clássica, que tentou com isso fazer a inversão da lógica dominante sobre a escravização da população africana e afro-brasileira ocorrida no Brasil. Para que tal revisão crítica fosse alcançada, o autor realça as falas e as experiências dos agentes sociais silenciados por essa historiografia tradicional, ou seja, faz dos escravos negros, antes descritos como personagens passivos de sua própria história, os protagonistas desse novo enredo histórico. Como o autor mesmo coloca, o que ele deseja é "procurar mostrar que esses negros agiram de acordo com lógicas e racionalidades próprias, e que seus movimentos estão firmemente vinculados a experiências e tradições particulares e originais - no sentido de que não são simples reflexos ou espelhos de representações de 'outros' sociais" (Chalhoub, 2009, p. 42, grifo nosso). Analisando uma realidade diferente da que Kwame A. Appiah relata em seu trabalho, Sidney Chalhoub segue uma lógica similar ao filósofo ganês, que visa apontar como um olhar (seja o do colonizador ou o do colonizado) desqualifica certos atores sociais como os autênticos protagonistas de sua própria história. Mas aprofundemos esse debate pensando em nossa sociedade brasileira, sua imbricação com a questão racial e os usos do modelo de racismo científico em solo nacional.

Para nos interrogarmos "sobre a ambição de poder que a pretensão de ser uma ciência traz consigo" (Foucault, 1996, p. 172) vamos nos valer da análise de alguns temas trabalhados sobre a questão racial por alguns membros da chamada "Escola Baiana" ou "Escola Nina Rodrigues" (Corrêa, 1998, 1982; Martins, 2014, 2009), já que a pretensão científica de seus idealizadores de constituir uma medicina legal ou uma "antropologia", em moldes nacionais, como campo de atuação e profissionalização, possibilitou a formulação de um modelo psicofísico e racializante de explicação sobre as "deficiências" de uma suposta raça negra, com o intuito de determinar as consequências sociais da manutenção do convívio com essa "raça". A definição das ideias e dos projetos inicialmente realizados por Raimundo Nina Rodrigues como uma "Escola" foi obra dos seus autointitulados discípulos, como Ramos (1934, 1939) e Peixoto (1938a). Para ficar um pouco mais evidente esse projeto coletivo, passemos para a descrição que Mariza Corrêa faz desse "mito de origem" e o que tornava possível definir seus participantes como uma "Escola":

O que eles tinham em comum, enquanto grupo, era o fato de que todos se definiam como membros de uma 'escola' - a chamada Escola Nina Rodrigues. A 'escola' era uma espécie de mito de origem tanto para os que se dedicaram à institucionalização da Medicina Legal, quanto para os que, vindo dela, se dedicaram a constituir uma área definida pela pertinência à Antropologia, o estudo das relações raciais, mito que, apesar de muitas versões, pode ser contado da seguinte maneira. Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), brilhante professor e pesquisador, dotado de uma personalidade carismática e cujo valor intelectual foi reconhecido pelas personalidades médicas internacionais mais importantes de sua época, reuniu em torno de si na Faculdade de Medicina da Bahia um grupo de não menos brilhantes discípulos que, depois de sua morte prematura, se espalharam por vários pontos do país, dando continuidade a sua obra e fundando tanto a Medicina Legal brasileira como uma Antropologia Nacional (Corrêa, 1982, p. 53-54, grifo nosso).

Essa citação serve para que possamos situar as ideias e projetos gestados por um grupo de intelectuais como fazendo parte de um objetivo comum, compartilhado por muitos dos que se intitularam, a posteriori, membros dessa "escola". Portanto, não nos interessa comprovar a veracidade de sua existência e sim discutir os efeitos de sua mitificação, cujo resultado principal foi permitir aos seus membros pensar a sociedade brasileira e os seus problemas sociais. Tampouco é nosso intento afirmar uma continuidade teórico-metodológica entre Nina Rodrigues e seus supostos discípulos, pois a "Escola" não tinha a unidade pretendida por alguns de seus membros, unidade, ao que nos parece, produzida retrospectivamente muito por conta de uma "vontade de origem" de alguns de seus idealizadores. Mariza Corrêa esmiuçou satisfatoriamente as redefinições e apropriações originais que cada membro da "Escola" faz da obra do "mestre" a partir das questões do seu tempo histórico, movidos por interesses e razões diversas (Corrêa, 1998, p. 205).

A elaboração de uma medicina científica voltada para a solução dos problemas nacionais propiciou a tentativa de constituição de um projeto que colocava em suspeição uma determinada parcela da população, e teve como motor principal o projeto político e social desses autoproclamados cientistas na formulação de uma nação brasileira possível, idealizada e desejada como mais embranquecida, mais aos moldes europeus, modelo por excelência, nesse momento histórico, de civilização e modernidade. A influência dos membros dessa "Escola" em vários espaços institucionais da nossa sociedade, já que muitos ocuparam postos em instituições estatais, permite que ela cumpra a função, nesse artigo, de um paradigma exemplificador do campo médico-psiquiátrico da época e de algumas questões que se tornaram objeto de estudo científico (a mestiçagem, a criminalidade, a periculosidade, a menoridade etc.), e cujo propósito era compreender e "civilizar" a nossa população.

Fica evidente que esses cientistas se valeram dos modelos teóricos do racismo científico para resolver o problema racial brasileiro a partir das discussões sobre a questão da miscigenação e do branqueamento da nossa sociedade (Ventura, 2000; Corrêa, 1998; Schwarcz, 1995). Esse discurso médico (medicina legal e psiquiatria), baseado inicialmente no conceito de degenerescência, apresentou-se como eficaz para uma parcela da medicina brasileira. O que essa "Escola" quis propor foi o exame contínuo sobre o elemento negro (signo do perigo e do contágio) e de seus efeitos em nossa sociedade.

 

A mestiçagem como artifício e o branqueamento como salvação

As teorias e projetos científicos desenvolvidos pelos membros da "Escola" se aproximavam dos debates formulados pelos modelos científicos na Europa e na América que discutiam o "problema" das misturas raciais e as suas consequências sociais. Fernando Sales, responsável pelas notas bibliográficas de Nina Rodrigues no livro Os africanos no Brasil, ao descrever essa "Escola", nomeia como discípulos do médico maranhense "os ilustres" Afrânio Peixoto, Artur Ramos, Heitor Carrilho, Diógenes Sampaio, Oscar Freire, Alcântara Machado, Flamínio Fávero, Estácio de Lima, Ulysses Pernambucano, entre outros (Sales, 1988, p. 279). E não podemos deixar de mencionar que a obra de Nina Rodrigues foi considerada por muitos autores a primeira em solo brasileiro a desenvolver estudos etnográficos sobre esse grupo racial no país (Ramos, 1934). A emergência da "Escola" é um efeito mítico desses discursos médico-psicológicos que giram em torno de problemas ou encaminhamentos suscitados sobre a questão racial, assim como a obra freyriana tornou-se uma mitificação da ideia de democracia racial brasileira.

Para alguns dos membros da Escola, o contato inter-racial representava um perigo real para o avanço da sociedade civilizada, inclusive a brasileira. Além disso, esses intelectuais contribuíram para a difusão de certas temáticas ligadas ao racismo científico (Leite, 2002; Skidmore, 1976). O que os trabalhos científicos da "Escola" evidenciavam, a partir do seu modelo médico-psiquiátrico, não era uma simples dicotomia racial representada pelo polo branco/negro, mas também possibilitaram a discussão e a criação de mecanismos jurídico-políticos que favorecessem o total desaparecimento do elemento negro da sociedade brasileira por meio do recurso do branqueamento, pois, ao dar visibilidade a esse "problema" em nossa sociedade, o que esses intelectuais almejavam era eliminar a presença do negro em pouco tempo. Ao inventá-lo como problema, esses discursos médicos criaram condições de estabelecer os controles cabíveis sobre o negro e a execução factível desse projeto de eliminação. Com o iminente desaparecimento das barreiras visíveis de separação/exclusão em nossa sociedade (escravidão), era importante criar mecanismos de controle mais sutis, invisíveis, virtuais, novas barreiras de hierarquização e subalternidade e, se necessário, de eliminação racial. O movimento histórico-social que permitiu transformar o negro em "objeto da ciência" (Romero, 1935, citado por Rodrigues, 1935, p. 11) cristalizou-se de maneira evidente em projetos de membros da "Escola", trazendo à tona um problema que de modo algum era desconhecido, mas era dissimulado pelos seus pares (Corrêa, 1998, p. 168).

Diferentemente de Romero e de outros intelectuais da época, alguns membros da "Escola", em especial Nina Rodrigues, viam a miscigenação como fator de degenerescência e condição de atraso da sociedade. Por isso a "solução" não passava somente pela ideia de branqueamento, mas, sim, por uma separação radical dos grupos raciais como caminho de recuperação do Brasil, já que o "atraso evolutivo das populações negras e a degeneração psíquica e social dos grupos mestiços trariam perigo às classes superiores" (Ventura, 2000, p. 53). O seu medo não era só em relação à presença do negro em nossa sociedade, mas também da capacidade de "contágio" que esse elemento suscitava, o que era visto como possibilidade, quando constatamos a afirmação de um pessimista Nina Rodrigues ao notar que na Bahia todas as classes poderiam vir a se "tornarem negras" (Rodrigues, 2006, p. 116; Ventura, 2000, p. 53; Corrêa, 1998, p. 169). Cabe demonstrar que o discurso racial presente nos projetos científicos desses intelectuais é o que alcança o limite mais radical na tentativa de construção de um modelo baseado na pertença racial (de origem biológica) como definidor de um padrão de normalização da sociedade. O que a "Escola" pretendeu, utilizando-se de ideias racistas mascaradas por uma nomenclatura científica, foi naturalizar e promover a manutenção das desigualdades sociais. Mais que isso, existia a pretensão de equacionar o limite entre o estabelecido "cientificamente" (diferenças raciais) e o desejado politica e socialmente (criar um critério que não impedisse a manutenção das hierarquias, mas que fosse válido para um país mestiço).

Os efeitos das ideias estabelecidas pela "Escola" sobre o elemento negro a partir da noção de degenerescência da raça negra são difíceis de definir, mas com certeza não eram ideias isoladas e de pouca repercussão, o que fica evidente na literatura sobre o assunto. Os membros da "Escola" tiveram um alcance significativo dentro dos espaços institucionais e políticos brasileiros, muitos deles sendo figuras importantes na virada do século. O que cabe ainda apontar é a constituição da questão racial como objeto privilegiado do conhecimento científico no século XIX e dos ideais colonialistas difundidos a partir da expansão do modelo racionalista moderno. E como, a partir disso, essa questão assumiu um papel crucial na determinação do sujeito moderno. A "raça" enquanto categoria descritiva não é uma temática iniciada no século XIX, mas é nesse século que ela, ao ser repensada à luz da teoria darwinista, ganha uma nova "coloração". O modelo médico-psiquiátrico de meados do século XIX inicialmente possibilitou a construção de um padrão identificatório baseado em características biológicas, resultado da divulgação da teoria evolucionista darwiniana que influenciou todos os campos científicos da época, e que redundou em projetos de seleção e exclusão social de determinados grupos considerados inferiores. Esse "imperialismo epistemológico ocidental" possibilitou a montagem de modelos científicos sobre o elemento negro e a construção histórica de um corpo perigoso, "objeto" privilegiado de uma medicina positivista, principalmente para as nascentes medicina legal e psiquiatria, já que esse mesmo corpo era a sede e o produtor de determinadas patologias, em especial a loucura (Rodrigues, 1939). O campo médico-psiquiátrico com isso elegeu os objetos passíveis de investigação científica na tentativa de demonstrar os sinais da periculosidade social e cercear a liberdade dos considerados "perigosos". Esse modelo de depuração racial foi objeto de crítica e revisão acadêmica nas últimas décadas (Bastide & Fernandes, 2008; Guimarães, 2005; Carone & Bento: 2002; Hasenbalg, 1999).

Com a aceitação cada vez maior do discurso racial, a atribuição ao elemento negro como fator de degenerescência e de perigo para a nossa sociedade tornou-se algo cada vez mais difundido. Essa visão foi o resultado do cruzamento paulatino de vários discursos, entre os quais: 1) do racismo científico que se desenvolveu na Europa e das teorias naturalistas de Buffon sobre a degeneração dos animais. Essas ideias seriam utilizadas por pensadores como Gobineau, Morel, Le Play e Gustave le Bon, que serviram de influência para as teorias racistas dos intelectuais brasileiros (Ventura, 2000, p. 56-58); 2) da difusão pelos meios impressos da época de imagens e representações sobre o elemento negro, a partir do debate potencializado pela iminência da Abolição, produzindo certos modos de dizer e pensar sobre esse grupo social e do seu papel em nossa sociedade (Schwarcz, 2001; Lima, 2003); 3) de um modelo jurídico-legislativo que tenta fundamentalmente pensar e reduzir o elemento negro ao lugar de "coisa-propriedade", limitando seus direitos quase que exclusivamente ao campo da manutenção do seu corpo (garantia de manutenção da propriedade de um outro) (Mattos, 1998; Chalhoub, 2009), ou que o define por sua inferioridade racial ou política (Rodrigues, 1894). Essa imbricação de representações permitiu colocar o negro no lugar de não-cidadão, como agente incapaz de exercer certos direitos, já que a "cor que não é enunciada será a do cidadão" (Lima, 2003, p. 125).

A continuidade de um projeto científico propiciado pela aglutinação ocorrida em torno da "Escola" favoreceu que a discussão sobre uma suposta "natureza negra", tema caro nos tempos da vigência da escravidão, se deslocasse para um tema mais importante, resultado da formação de uma nova sociedade brasileira: a constituição de uma "população negra". A massa/coletividade agora era o tema a ser tratado. O que se buscava era a definição de um padrão capaz de descrever a população, pois a população é o resultado de uma média. E não é essa lógica racializadora capaz até mesmo de ser pensada como princípio de justiça social? A partir desse princípio, as diferenças raciais produzem uma hierarquia que se define pela "superioridade" ou "inferioridade" prescrita na qualidade do "elemento original". Por essa lógica só cabe pensar o mestiço como resultado de uma mistura que produz um terceiro elemento, capaz de ser "superior" e "positivo" se houver a valorização social e cultural de certos atributos ou qualidades de uma determinada raça. Não há, portanto, equivalência, mas somente a velha hierarquização que prescreve e mantém o lugar supostamente estanque de dominador e dominado, já que não é o mestiço o elemento que se valoriza, mas as qualidades vistas como positivas que ele "herda" de um dos polos de origem. O que mudou foi o papel que essa coletividade negra teria na composição (mestiça) da sociedade brasileira. Contudo, o princípio de subal-ternidade vinculado ao gradiente negro permanece em vigor em decorrência das condições históricas. Devemos ainda mencionar que, nesse momento histórico, a mestiçagem foi pensada primordialmente pelo prisma da lógica do branqueamento da população, solução capaz de eliminar o atraso da nação.

Diante do que até agora foi dito, não seria necessário elaborar um modelo de mestiçagem menos pessimista e mais viável para o país? Se Gobineau, em meados do século XIX, considerou o Brasil inviável como país por ser uma nação de mestiços, uma releitura da mestiçagem que levasse em conta o gradativo branqueamento da população não se apresentaria como a solução mais adequada para um país com uma imensa população negra? O casamento entre um modelo científico racializador (e racista) e uma nova teoria da mestiçagem parecia inevitável.

 

Práticas colonialistas do discurso psi e a difusão de uma ideia de raça

A emergência de uma temática racial brasileira baseada no racismo científico e a constituição de modelos explicativos sobre a natureza humana calcados nos saberes psicológicos foi um fenômeno em crescente expansão em finais do século XIX. A utilização da expressão "saberes psicológicos" segue o entendimento já realizado por uma série de trabalhos em história da psicologia. Esse termo tem sido utilizado para definir o campo discursivo que abarca as práticas produzidas pela psiquiatria, psicologia e psicanálise no que tange ao entendimento e funcionamento daquilo que se convencionou chamar de "alma", comportamento, mente, "espírito", ou seja, o polo de oposição em relação a uma "corporalidade estrita" (cf. Duarte, 1997; Duarte, Russo & Venâncio, 2005; Jacó-Vilela, Jabur, & Rodrigues, 1999). Considera-se, portanto, os saberes psicológicos o conjunto de disciplinas que estudam os fatores psíquicos, à luz de uma concepção científica ou de caráter cientificizante, assim como suas relações estreitas com a descrição das categorias de normal e patológico.

O campo dos saberes psicológicos congregava uma série de ações sociais voltadas para a descrição e explicação dos fenômenos de natureza subjetiva, sendo incluídos, a partir dessa acepção, os saberes médico-psiquiátrico, psicanalítico e psicológico, mesmo que tal divisão ainda não fosse evidente ou institucionalizada em todo o século XIX (Alberti, 2003). Na atualidade, o termo raça é discutido academicamente como um constructo, ou seja, a raça não é considerada como tendo uma existência concreta, é pensado como o resultado de certos modelos e práticas vigentes em um determinado momento histórico. Segundo Guimarães (1999), raça não é um dado biológico, trata-se da formação de "construtos sociais, formas de identidade baseadas numa ideia biológica errônea, mas eficaz socialmente, para construir, manter e reproduzir diferenças e privilégios". Se a existência de raças humanas não encontra qualquer comprovação no bojo das ciências biológicas, elas são, contudo, "plenamente existentes no mundo social, produtos de formas de classificar e de identificar que orientam as ações dos seres humanos" (Guimarães, 1999, p. 153).

A proliferação e a difusão de uma ideia de raça em pleno século XIX visava determinar que soluções para o problema da miscigenação da sociedade brasileira poderiam ser criadas por nossos intelectuais. Esse movimento garantiu que estudos científicos voltados para a qualificação (positiva e/ou negativa) das manifestações sociais associadas ao elemento negro fossem realizados. A invenção da "ideia de raça" como problema social tornou-se, em produção de cunho médico-psicológico, uma ferramenta explicativa útil para a descrição de certas manifestações sociais, consideradas como do campo da patologia ou da degeneração (loucura, sexualidade etc.), e resultantes da presença e da mistura de uma determinada categoria racial em nossa constituição enquanto nação.

As considerações e ideias que o saber médico-psicológico formulou sobre o elemento negro baseadas em premissas epistemológicas e ontológicas colonialistas foram as mais diversas. E uma delas foi definir a imagem do negro como contrário à ordem civilizatória, e ainda pior, afirmar que esse elemento era capaz de comprometer o projeto de ordenação social civilizatório brasileiro devido às suas características "inatas" de degradação ("degenerados") e pelo risco virtual de "contágio" que esse elemento provocava. O sistema político-social colonialista e seus modelos de conhecimento inevitavelmente vão impregnar e dar sentido ao discurso médico-psicológico vigente entre os séculos XIX-XX. É esse campo discursivo e prático que favoreceu uma lógica hierarquizante capaz de sustentar práticas que tornaram necessário o controle ou a eliminação do elemento negro desse espaço social. Podemos encontrar certos desdobramentos dessa questão e os efeitos desse projeto higienizador nas propostas polêmicas apresentadas pela categoria médica e por outros pensadores de sua época. Longe de ser incomum ou ser somente o objetivo de alguns poucos intelectuais, esse movimento higienista era, na verdade, aquilo que se esboçava como horizonte político de toda uma nação, tornando-se com isso, mesmo que inconscientemente, um desejo de muitos. A elaboração de um discurso racializado, e as sutilezas por ele provocado, favoreceu a emergência do elemento negro como um novo "objeto científico", que com isso ganhou uma "positividade" e uma nova função instrumental, o que fez com que fosse incorporado a essa nova lógica social civilizatória em uma posição de subalternidade.

Os estudos dos membros da "Escola" (Peixoto, 1938; Ramos, 1934, 1939; Ribeiro, 1938; Rodrigues, 1894, 1935, 1939, 2006) foram fundamentais para a consolidação de um modelo psicofísico capaz de nomear e descrever as "deficiências" do elemento negro brasileiro. O efeito mais evidente e imediato de tal doutrina foi o reconhecimento por parte da sociedade brasileira das consequências sociais "perversas" que a manutenção do convívio com essa raça poderia acarretar para a nossa sociedade. Essa mesma chave interpretativa teve continuidade nas primeiras décadas do século XX, muito em decorrência da retomada de certas ideias de Nina Rodrigues, feitas por alguns dos membros da "Escola" ou por seus principais "discípulos", como Arthur Ramos (1934, 1937, 1939) e Afrânio Peixoto (1898, 1938). O elemento negro foi "capturado" nessa rede de significações como o elemento portador de certas características patologizantes e contaminadoras, e, portanto, passível de ser um "objeto da ciência". Essa captura foi o resultado da sua construção como categoria científica, o que permitiu a sua constituição como indivíduo perigoso (espelho negativo daquilo que era imaginado como ideal civilizatório) para a sociedade brasileira que naquele momento se encontrava em construção. As lutas e conflitos sociais e políticos que ocorriam em nossa sociedade ao longo de todo o século XIX demonstram o quanto a questão da pertença a uma identidade "racial" fazia parte do cenário da, ainda recente, nação brasileira. A constante construção e alternância de imagens (positivas e/ou negativas) que serviam para definir quais as "verdadeiras cores" desses personagens sociais acabavam remetendo inexoravelmente para a constatação de como essa questão era uns dos eixos, senão o eixo fundamental, para predizer o que era "ser brasileiro".

O surgimento de uma sociedade brasileira moderna nos moldes europeus seguiu a mesma fórmula já executada no Velho Mundo. Uma parcela da nossa elite apropriou-se do ideário colonialista na tentativa de elaborar soluções condizentes com a realidade nacional. E o discurso médico-psicológico foi mais uma das ferramentas utilizadas por uma parcela da sociedade brasileira na tentativa de ter êxito em tal submissão a essa lógica colonialista. Eliminar o "elemento de contágio" parecia contribuir para a constituição de uma sociedade melhor, e é isso que esses intelectuais acreditavam quando se valiam da ciência para estabelecer uma política (ideal) de controle social. Sanear para curar, esse foi o horizonte de ação de muitos desses intelectuais. E nesse mesmo horizonte a questão da cidadania se apresentava como questão capital.

As mudanças que resultaram do processo de transformação do Brasil-colônia em país independente acarretaram discussão sobre cidadania, muito em decorrência da necessária definição de um povo que nascia juntamente com esse novo país. Não podemos esquecer a antiga correlação negativa entre os papéis de liberto, escravo ou ex-escravo e os termos raciais "preto" ou "negro", que se tornavam perigosos pela sua proximidade com a experiência de não-cidadania (Mattos, 1998, p. 283-284). Segundo Hebe Mattos (1998, p. 285), o termo "cidadão" era usado pelas forças policiais como "designador de status social". Os esforços empreendidos por esses sujeitos na tentativa de desvincular o critério "racial" de um exercício político-civil é uma das principais marcas das transformações pelas quais passava a sociedade brasileira. Nesse momento o que está em jogo é uma definição do que é o brasileiro. Contudo, a falta de parâmetros mais eficazes para a definição de quem é realmente negro projeta sobre toda essa sociedade a virtualidade do mal/problema, ou seja, era necessário saber quem estava ou poderia vir a ser contaminado, física e culturalmente, pelo elemento negro, o que acarretaria o impedimento do exercício pleno da cidadania.

A história do Brasil e da constituição de seu campo científico foram marcadas por eventos que denotam como certos acontecimentos foram determinados por ideias oriundas da racionalidade colonialista, muitas delas apoiadas na ideia de raça forjada no século XIX. Esse contexto histórico e epistemológico redundou em estudos sobre a raça negra e a sua importância para o desenvolvimento e evolução de nossa sociedade. A passagem de uma sociedade escravocrata para um pretencioso projeto de uma nação civilizada não foi feita sem que algumas estratégias desumanizadoras fossem colocadas em prática. Se, nesse trabalho, tomamos como exemplo o conjunto de atores que fizeram parte da "Escola" como fomentadores e reprodutores de determinadas ideias e ações geradoras de efeitos concretos na realidade social, foi no sentido de contribuir para a discussão sobre os caminhos e descaminhos do conhecimento científico e suas ilusões de neutralidade em relação aos destinos que ele inevitavelmente vaticina.

 

Considerações finais

O nosso objetivo nesse artigo foi apontar como a questão racial esteve presente na construção histórica dos saberes psicológicos no Brasil e na gestação de uma noção de cidadania e, consequentemente, do que era ser brasileiro. Os estudos ligados à compreensão dos saberes psicológicos foram mais um campo preocupado em tentar apresentar maneiras de intervir e solucionar o "problema" negro já a partir de finais do século XIX. Discutimos tal aspecto quando nos valemos dos estudos da "Escola Nina Rodrigues" sobre a população africana e afro-brasileira como um paradigma capaz de exemplificar a dimensão dos efeitos de um credo racial tornado realidade sob os auspícios de um suposto modelo científico. Construir um pensamento voltado para a compreensão e o lugar do elemento negro na sociedade brasileira foi uma das pretensões almejadas pelos intelectuais dessa Escola. A associação do negro ao processo de degeneração da nossa sociedade consolidou a sua imagem como um elemento perigoso, favorecendo a criação de políticas de controle e assujeitamento. As várias imagens futuras sobre o negro se tornarão inalteradas, tornando-o fatalmente um "objeto científico".

A elaboração de estratégias e modelos (sociais, políticos, científicos) que permitiram a definição de um certo lugar destinado aos agentes ou grupos sociais considerados "problemáticos" e "perigosos" durante as primeiras décadas republicanas de formação da sociedade brasileira se apoiaram no racismo científico, que construiu determinadas identidades raciais e favoreceu o surgimento de privilégios simbólicos e materiais. Essas estratégicas, intencionalmente ou não, tiveram e têm um papel importante na manutenção e legitimação das desigualdades raciais. O que tentamos demonstrar aqui é o quanto o discurso da ciência foi bastante utilizado como recurso para pensar as diferenças sociais e políticas surgidas a partir da produção da divisão, comum à época, entre "civilizados" e "primitivos", lógica gestada por um pensamento colonialista. Os sujeitos estigmatizados racial e culturalmente como pertencentes ao estrato "negro" da sociedade brasileira foram com isso definidos como elementos "degenerados" e, consequentemente, vistos como fatores que colocavam em risco o processo de evolução da sociedade.

Trabalhar com as premissas dos estudos pós-coloniais e decoloniais nos auxiliou na problematização da ideia de raça e na crítica aos princípios colonialistas produtores de um "imperialismo epistemológico ocidental" presentes no período abarcado nesse trabalho. O debate suscitado por esses estudos contribui para uma maior compreensão dos efeitos deletérios engendrados pelo processo de modernização ocidental, e de como eles estão ligados ao projeto colonialista de hierarquização das diferenças que ficaram predominantemente submetidas a uma lógica racial.

Colocar em discussão qual é o papel e a importância dos saberes psicológicos para o tema da questão racial brasileira é uma tentativa de questionar o funcionamento estrutural que mantém determinadas estratégias sociais reproduzindo desigualdades sociais fundamentadas em critérios raciais.

Se hoje o campo da psicologia pode se perguntar qual é o seu lugar na manutenção de concepções subjetivas que oprimem ou reproduzem práticas de dominação, isso se deve a uma constante revisão de seus princípios e modelos teóricos. Esperamos que essa breve discussão sobre as relações entre os saberes psicológicos e a questão racial possa contribuir para a construção de uma sociedade brasileira questionadora de suas mitologias, principalmente as marcadas por um "credo racial".

 

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Submetido em: 07/07/2018
Aprovado em: 02/09/2018

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