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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.19 no.44 São Paulo jan./abr. 2019

 

ARTIGOS

 

Uma breve revisão da reforma psiquiátrica no Brasil e sua relação com a psicanálise e a psicologia

 

A brief review of the psychiatric reform in Brazil and its relation to psychoana-lysis and psychology

 

Una breve revisión de la reforma psiquiátrica en Brasil y su relación con el psi-coanálisis y la psicología

 

Une bref révision de la reforme psychiatrique au Brézil et sa rélation avec la psychanalyse et la psychologie

 

 

Ana Cristina Figueiredo

Professora Associada do Instituto de Psiquiatria IPUB/UFRJ, Coordenadora do Mestrado Profissional em Atenção Psicossocial do IPUB/UFRJ; ana.cfigueiredo@terra.com.br

 

 


RESUMO

O presente texto faz uma breve revisão do movimento da reforma psiquiátrica no Brasil a partir dos anos 70 até os dias de hoje, apresenta e discute as articulações entre a reforma e os profissionais em Psicologia e Psicanálise e propõe, a partir da orientação da psicanálise, algumas coordenadas para desenvolver o trabalho coletivo em equipe na saúde mental e suas interfaces.

Palabras-chave: reforma psiquiátrica; psiquiatria; psicologia; saúde mental; trabalho em equipe


ABSTRACT

The present paper develops a brief review of the psychiatric reform movement from de 70's to this day, presents and discusses the articulations between the reform and the professionals in Psychology and Psychoanalysis and proposes through a psychoanalytically oriented approach some coordinates to develop team work in mental health and its interfaces.

Key words: psychiatric reform, psychiatry, psychology, mental health, teamwork


RESUMEN

El presente texto hace una breve revisión del movimiento de la reforma psiquiátrica en Brasil a partir de los anos 70 hasta los días de hoy, presenta y discute las articulaciones entre la reforma y los profesionales en Psicología y Psicoanálisis y propone, a partir de la orientación del psicoanálisis, algunas coordinadas para desarrollar el trabajo colectivo en equipo en la salud mental y sus interfaces.

Palabras clave: reforma psiquiátrica; psiquiatria; psicologia; salud mental; trabajo en equipo.


RESUMÉE

Ce text présente une bref révision du mouvement de la reforme psychiatrique après les années 70 jusqu 'aujourd 'hui et discute les articulations entre la reforme et les profissionnels de la Psychologie et de la Psychanalyse en proposant à travers l 'orientation psychanalytique quelques coordonnées pour le travail collectif des équipes dans la santé mental et ses interfaces.

Mots-clés: réforme psychiatrique; psychiatrie; psychologie ; santé mentale; travail déquipe.


 

 

O presente texto se propõe a fazer uma breve revisão do movimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil, que ocorreu a partir dos anos 70 até os dias de hoje, para apresentar e discutir as articulações que se deram entre a Reforma e os profissionais 'psi' com ênfase na orientação da psicanálise e, a partir dessa orientação, apresentar algumas coordenadas para o trabalho coletivo em equipe na saúde mental e suas interfaces. Destaca-se a participação da psicanálise na transformação da clínica desde questionamentos da Psiquiatria tradicional até as novas práticas no campo que surge como consequência da reforma e se estabelece como o campo da Atenção Psicossocial. Da Psicanálise como referência geral à formação de psicanalistas a partir de sua experiência na saúde pública, observa-se a ampliação da noção de clínica, assim como a diversificação das práticas que revelam outra dimensão do trabalho na área da saúde. Essas práticas se desenvolvem inicialmente nos ambulatórios públicos até a recente constituição das 'redes' intersetoriais de serviços que se estabelecem no regime do SUS no Brasil. Abordaremos especificamente o caso do Rio de Janeiro.

 

Sobre a Reforma

A Reforma Psiquiátrica no Brasil tem início, ainda incipiente, nos anos 80 no contexto da reforma sanitária e da criação do SUS pela Constituição de 1988. A Carta de Bauru de 19871 antecipa a proposta e foi um marco do movimento que tem seu ponto alto na Lei 10.20162 promulgada em 6 de abril de 2001. Nesse período, destacamos as Conferências Nacionais de Saúde Mental em 1992 e 2001 que avançaram propostas significativas na política de formação de recursos humanos, financiamento e controle social, na perspectiva do desenvolvimento de serviços abertos de base territorial. Esses serviços visavam ser substitutivos das instituições manicomiais com uma proposta de cuidado integral através do trabalho em equipe interdisciplinar, criando um novo campo com uma proposta de ampliação e diversificação das práticas na saúde mental: o campo da Atenção Psicossocial.

Na primeira década do século XXI, novos importantes acontecimentos se produziram nesse campo. Em 2004 foi realizado em São Paulo o I Congresso Brasileiro dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) organizado pela Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde, na pessoa do professor da UFRJ Pedro Gabriel Delgado (gestão 2001-2010), celebrando os 500 CAPS no Brasil. Em 2018 são quase 2000, um número cerca de quatro vezes maior em um pouco mais de uma década (Brasil [Ministério da Saúde], 2005).

Nesse congresso, com a presença de lideranças da Reforma Psiquiátrica que trouxeram sua contribuição para reafirmar as políticas nesse campo, foi criada a Escola de Supervisores, uma proposta arrojada para instaurar uma formação permanente dos profissionais e qualificar os serviços. Esses deveriam operar também como dispositivos matriciadores na área da saúde avançando na perspectiva de formação de redes, podendo ampliar para estratégias intersetoriais com a assistência social, a educação, o jurídico e os dispositivos de controle social. A Escola de Supervisores deveria agregar e capacitar supervisores para desenvolver um trabalho tanto clínico quanto institucional, articulando essas duas dimensões junto à implantação e consolidação de cada CAPS no Brasil.

Em 2005 foi publicada uma portaria do Ministério da Saúde gerando financiamento da supervisão clínico-institucional e traçando suas coordenadas para os serviços em fase de implantação que solicitassem esse suporte. A proposta era de instaurar a prática da supervisão clínico-institucional como um dispositivo permanente dos CAPS sob a responsabilidade dos municípios no modelo do SUS. Outras leis e portarias do Ministério da Saúde se destacaram em decorrência do avanço das políticas públicas em saúde mental. Entre as principais temos a regulamentação dos Serviços Residenciais Terapêuticos em 2000, a Lei 10.708 de 2003 instaurando o benefício De Volta pra Casa para pacientes de longa internação, e a criação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) através da Portaria 3.088 de 2011 consolidando os dispositivos que devem dar sustentação ao trabalho de base territorial articulado em redes.

 

Saúde mental, Psicanálise e Psicologia

A noção de saúde mental advém de um amplo processo de reformulação das políticas psiquiátricas. O modelo preventivista da Psiquiatria comunitária nos EUA, que data dos anos 60, e se soma às propostas da OMS, tem como lema promover saúde. Muito já se discutiu sobre isso, mas a ideia central da promoção de saúde se mantém até os dias de hoje com os novos dispositivos de assistência aos doentes mentais e a consolidação de projetos da reforma psiquiátrica. Os psicanalistas e psicólogos nunca estiveram fora desse processo e, em alguns movimentos, estavam no centro das discussões, como no caso das comunidades terapêuticas de inspiração inglesa na antipsiquiatria dos anos 60 e no movimento dos trabalhadores de saúde mental no Brasil nas décadas de 70 e 80 (Figueiredo, 1997, 2001). Portanto, não é novidade para psicanalistas e psicólogos esse convívio institucional, ainda que na época a psicanálise fosse mais restrita aos psiquiatras e de difícil acesso aos demais profissionais. Hoje vem sendo sustentada pela maioria dos profissionais psicólogos.

Desde o movimento antimanicomial, passando pelo incremento do ambulatório, até os novos dispositivos de atenção psicossocial e o trabalho em redes, os profissionais 'psi' têm um longo percurso. Segundo o cabeçalho da lei federal 10.216 (Brasil, 2011), uma versão modificada do projeto de lei do deputado Paulo Delgado, que regulamenta os direitos dos pacientes psiquiátricos, se lê que a lei "dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos psíquicos e redireciona o modelo assistencial em saúde mental." (Brasil [Ministério da Saúde], 2004, grifo nosso).

Vamos considerar a palavra grifada, pois é neste ponto que devemos nos deter e insistir. Aqui temos uma indicação metodológica da maior importância que deve se destacar: redirecionar a prática para o trabalho que vai trazer novos desafios clínicos, teóricos, políticos e, mesmo, profissionais. O profissional 'psi' redireciona seu trabalho para a rede pública de saúde mental e para os novos dispositivos da atenção psicossocial, entre eles: 1. para o ambulatório que deve ser renovado com atendimentos coletivizados como a recepção e atendimentos a grupos; 2. para o trabalho com egressos de internação, incluindo o processo de desinstitucionalização de pacientes de longa permanência nos hospitais psiquiátricos; 3. para a atenção a usuários com uso abusivo de drogas; 4. para os novos dispositivos de moradia nos Serviços Residenciais Terapêuticos; 5. para a intersecção com a atenção primária em saúde com as clínicas da família.

Hoje, cada vez mais, seguimos na via da construção da rede de atenção psicossocial que se impõe articulada à atenção primária em saúde. Esse último ponto é crucial para a sustentação das ações em rede e para o compartilhamento do cuidado em suas diferentes modalidades. É preciso compartilhar esse trabalho a cada vez no cotidiano para escapar às ameaças de burocratização e estagnação das práticas.

Sendo assim, o profissional 'psi' não pode mais trabalhar sozinho e deve exercer a sua prática em conjunto com outros profissionais. As reuniões intra e inter equipes são fundamentais para redirecionar o cuidado na perspectiva de uma orientação comum para diferentes ações. Nesse sentido, o profissional deve tornar mais 'pública' sua experiência e dar maior visibilidade ao que faz, prestando contas de seus atos e compartilhando suas decisões. Consequentemente, teremos posicionamentos diferenciados e, por vezes, conflitantes. A indicação de conviver por oposição a convencer tem aqui sua mais contundente aplicação (Lacan, 1972-73; Figueiredo, 1997, 2007).

Sabemos, porém, que não basta um bom convívio com os diferentes profissionais, é preciso que se construa o trabalho em parceria nas equipes. Fala-se em 'projeto interdisciplinar' e, mesmo, em uma prática transdisciplinar como modelo para esse trabalho. Seja como for o enlaçamento entre as disciplinas e suas dinâmicas, o profissional 'psi' psicólogo ou psicanalista, deve operar a partir do que recolhe como efeito de suas intervenções, a partir das palavras e ações de cada um dos pacientes/ usuários e demais agentes profissionais ou não que estejam envolvidos em cada caso. Desse modo, pode extrair indicações que vão sustentar a direção do tratamento e construir uma referência mínima comum para a elaboração do Projeto Terapêutico Singular (PTS).

Quanto aos familiares, é necessária uma atenção particular a esses para saber como proceder, com quem contar e que tipo de apoio se pode oferecer. O trabalho com familiares de pacientes/ usuários dos serviços de saúde mental de modo geral é crucial para fazer diferença no tratamento.

Em suma, na perspectiva do "redirecionamento do modelo assistencial", todos os profissionais devem redefinir seu modo de intervir: como e quando medicar; ou como encaminhar para determinada atividade; como envolver outros profissionais no cuidado compartilhado; como acompanhar cada caso incluindo diferentes ações entre visitas domiciliares, 'acompanhamento terapêutico' e outras modalidades de continuidade do cuidado; mobilizar e acolher os familiares etc. Isto é, como de fato compartilhar as ações, sendo que o risco maior é, por um lado, criar protocolos de procedimentos enrijecidos visando à objetivação do trabalho. Por outro, tudo pode ser discutido indefinidamente nas reuniões de equipes sem que se tome a responsabilidade sobre o caso ou determinada situação que requer uma resposta rápida. A tomada de decisão é o maior desafio (Figueiredo, 2005).

 

Três momentos na reforma que 'redirecionam' o modelo assistencial

Nesse cenário, podemos localizar três momentos ou tempos de redirecionamento nos dispositivos de cuidados na saúde mental que marcam viradas importantes no processo e redimensionam todo o trabalho clínico (Figueiredo, 2010). Aqui, entendemos que a orientação da psicanálise pode deixar a sua marca e contribuir para uma experiência relevante no cenário da reforma psiquiátrica e das novas políticas que se estabelecem no campo da saúde mental e seu correlato, o da atenção psicossocial.

Reconhecemos um desdobramento histórico-político nessas estratégias situando esses três momentos como: 1. o tempo dos ambulatórios nos anos 80; 2. o tempo dos novos serviços que ampliam a concepção de ambulatório e instauram a proposta da atenção psicossocial nos anos 90; 3. mais recentemente nos anos 2000, um novo tempo com a importância crescente do trabalho em 'redes' articulado à atenção primária em saúde como condição para o avanço das conquistas anteriores e reafirmação do modelo.

Hoje, essas estratégias não se restringem à cronologia em que se deu o avanço da reforma e das políticas públicas em saúde mental, podendo ser sucessivas ou simultâneas. São tempos de trabalho, de exercício de uma prática que se desdobra ao longo de um percurso atravessado pelos constantes redirecionamentos dessas políticas públicas em curso no Brasil (Delgado, 2001).

Destacamos cada uma dessas estratégias como momentos ou tempos no processo, e abordamos aqui brevemente cada uma:

 

O trabalho no ambulatório e o dispositivo de consulta

O que se destaca inicialmente nesse equipamento é o 'dispositivo de consulta' como o exercício privilegiado das práticas clínicas, tanto na psiquiatria como nos atendimentos psicológicos ou psico-terapêuticos, incluindo aí a psicanálise, para compor o campo da saúde mental. Nos anos 80 no Rio de Janeiro alguns ambulatórios se destacaram como espaços de exercício de uma Psiquiatria mais progressista já influenciada pela Psicanálise, ampliando os atendimentos medicamentosos em direção a uma psicoterapia, incluindo experiências com grupos terapêuticos. Essa prática híbrida dos psiquiatras abre possibilidades para os psicólogos realizarem um trabalho na orientação da psicanálise, e ambos se encaminham para uma formação nas instituições existentes, tanto médicos quanto psicólogos.

As primeiras experiências pioneiras com psicanalistas praticantes ou em formação na saúde pública, se deram nos ambulatórios como os Postos de Atendimento Médico federais do antigo INAMPS (PAM) e os Centros Municipais de Saúde (CMS) que hoje alojam as clínicas da família. Nesse momento, é possível se instalar, ainda que precariamente, uma experiência com a psicanálise, dita adaptada ao serviço público, tendo o ambulatório como seu lócus por excelência.

O desafio que se impunha aos profissionais 'psi' era a mudança nos processos de trabalho, uma vez que se tratava de desprivatizar o consultório, tornar a clínica mais partilhável e, ainda, submeter-se ao assalariamento, que é a forma de remuneração própria dos profissionais da saúde pública, concursados ou não. Assim, era preciso abrir mão do controle sobre o dinheiro, sobre o pagamento das consultas ou sessões e também sobre a frequência, que não deveria exceder uma vez por semana. Nesse ponto não são poucos os psicanalistas que consideravam inviabilizado um processo de análise, uma vez que era proibido cobrar, o pagamento não era feito diretamente ao profissional através da consulta e a frequência era insuficiente para se instalar a 'verdadeira' psicanálise. O assalariamento transformava todos em funcionários públicos.

No caso específico dos psicanalistas, havia um obstáculo a mais para fazer valer seu trabalho se não se podia cobrar: corria-se o risco de se confundir com filantropia, o que Freud sempre condenara. A tarefa maior deveria ser localizar a cada caso o modo como cada um poderia pagar, sem envolver o dinheiro, para levar adiante seu tratamento. As possibilidades eram várias. Poderia ser desde uma perda concreta de tempo e dinheiro para ter acesso ao atendimento, uma vez que os ambulatórios não eram regionalizados e muitas vezes os usuários tinham que percorrer longas distâncias, até uma perda de gozo do sintoma inicial que se desestabilizaria no processo. Caberia a cada analista não recuar diante desse desafio.

 

O trabalho coletivo nos CAPS: a 'transferência de trabalho'3 e a construção do caso em equipe

Nos anos 90, com o avanço dos projetos da reforma e a criação dos Centros de Atenção Psicos-social (CAPS), se destacam os 'dispositivos de convivência' sob a forma de atendimentos coletivos ou em pequenos grupos; oficinas terapêuticas; trabalho e lazer assistidos, na 'reorientação' da inclusão social.

O novo desafio desta vez para o profissional é que não pode mais trabalhar sozinho, o trabalho deve ser partilhado em equipe. Como consequência imediata, há uma perda do controle sobre o caso, e sua gestão se dispersa entre outros técnicos do serviço. Aqui, há outra mudança considerável sobre as relações de poder e a pulverização dos saberes no trabalho coletivizado. Além disso, na formação das equipes a pregnância das disputas imaginárias se manifesta muitas vezes pelo que Freud denominou "narcisismo das pequenas diferenças" e tanto nos alertou como sendo gerador de crises, disputas acirradas e mesmo, guerras e combates mortíferos. Essas disputas se dão, entre outras, na posse sobre os pacientes e o poder-saber sobre os casos, revelando uma incapacidade de partilhar o saber e as responsabilidades. E ainda, os julgamentos e avaliações precipitadas podem predominar em nome de uma expertise em detrimento do que se pode colher dos casos a partir do sujeito em sua fala e seus atos. As palavras de ordem recorrentes que decidem o destino dos usuários podem ser exemplificadas como: "fulano não tem 'perfil' para determinado serviço", seja o ambulatório ou o CAPS, ou "fulano 'não adere' ao tratamento", ou ainda "não aceita as propostas da equipe" etc.

Para tentar ultrapassar esse embate constante e cotidiano que se apresenta como o maior obstáculo ao trabalho compartilhado, recorremos a três indicações da psicanálise para o trabalho em equipe que podem contribuir para um 'redirecionamento' do trabalho, a saber: 1. a posição subjetiva dos profissionais como 'aprendizes da clínica', uma posição estrategicamente vazia de saber a priori, colocando os diversos saberes que se mesclam sob a rubrica 'interdisciplinar' em reserva, em suspensão, para poder utilizá-los a partir do que se apreende do sujeito; 2. a organização coletiva da equipe a partir da 'transferência de trabalho' que diz respeito ao trabalho com responsabilidade partilhada, e não simplesmente transferida de um profissional a outro, fazendo circular o saber que advém do sujeito e não do profissional; e, como corolário do processo, proceder à 'construção do caso' que deve se dar 'a partir' dos elementos fornecidos pelo sujeito, e não da convergência de saberes múltiplos dos profissionais que, no máximo, produzem um saber 'sobre' o sujeito. Essa construção é parcial e recorrente, e exige que se mantenha certa atenção e cuidado para possibilitar de fato um acompanhamento do usuário e delinear a direção do tratamento e do cuidado na perspectiva de abrir espaço para novos modos de laço social. (Viganò, 1999; Figueiredo, 2004).

 

O trabalho em rede intersetorial na atenção psicossocial - a circulação do 'caso'

A partir dos anos 2000, abrindo um novo século, soma-se ao que é proposto para o trabalho compartilhado em equipe um novo desafio, a saber: a articulação dos outros serviços e dispositivos referidos à saúde em geral na chamada Atenção Primária ou Básica através do incremento dos Programas de Saúde da Família (PSF) com outros setores além da saúde, ou seja, o chamado trabalho intersetorial com a educação, a assistência social, o direito civil e jurídico, a cultura e o lazer.

A atenção psicossocial se expande para novas articulações e interseções, mas não deve perder seu fio condutor inicial ao ampliar a rede de cuidados. A clientela ou população-alvo é cada vez mais constituída de jovens e adultos com vulnerabilidade e risco social, além daqueles com graves transtornos psíquicos, como os psicóticos e neuróticos graves com longo percurso psiquiátrico. As ações profiláticas e preventivas muitas vezes tomam a cena, e é preciso mais do que nunca uma disposição para avaliar cada caso e tomar decisões partilhadas com esses outros setores. É importante notar que os usuários circulam das maneiras mais diversas e singulares entre os diferentes serviços e dispositivos da rede formal e informal. E se desconhecemos esse movimento ou ficamos alheios a isso, perdemos nosso trabalho.

A contribuição possível e importante a partir da orientação da psicanálise deve se dar na ampliação do dispositivo da 'construção do caso', agora promovendo a 'circulação do caso' como meio permanente de sua construção. Isso envolve mais atores sociais, profissionais de diferentes origens e setores e a tarefa se torna mais complexa. Para promover essa circulação do caso, é preciso acompanhar o itinerário do sujeito em sua particularidade nos diferentes serviços e dispositivos, para tecer a própria rede ao tecer o caso.

Como tecer a rede nessa variação inconstante, disseminada e profusa de atores sociais? Tomemos a imagem de uma rede como uma sucessão de buracos atados por nós, e já temos a imagem de que a própria tessitura deixa lacunas, maiores ou menores, mas é impossível que o tecido se feche completamente. Isto significa que não há como controlar e prever cada movimento do sujeito, nem garantir um bom desfecho nas ações propostas. Temos que insistir em continuar trabalhando sobre os efeitos de nossas ações para ratificar ou retificar nossas condutas e não podemos abrir mão de seguir o 'estilo' do sujeito, suas produções sintomáticas e as consequências de suas escolhas, sempre forçadas pelo que se impõe nas marcas de sua história, mas que sejam escolhas pela vida, sabendo que algo sempre se perde. Essa é a via por onde Lacan nos orienta em sua alegoria da "bolsa ou a vida" (Lacan, 1979). Se nos atemos à bolsa, o objeto que nos completaria, perdemos ambas a bolsa e a vida. Se nos atemos à vida, uma perda do objeto se impõe. E nessa perda há uma abertura ao desejo, à busca do objeto perdido, como nos diz Freud.

A perda em jogo para os profissionais nesse terceiro momento é mais do que nunca a perda do controle sobre as ações de outros 'setores' que intervêm com sua autoridade, nem sempre da melhor maneira, gerando uma competição interminável entre os encarregados da gestão ou acompanhamento dos casos. O caso clínico pode se transformar num caso jurídico ou educacional, como lidar com esse desafio? Como contornar a competição entre instituições armadas de estratégias e recursos que podem ir de encontro ao que se propõe? Até onde delegar poder-saber ao outro e ainda manter a responsabilidade partilhada? Além disso, há a perda de controle também sobre o próprio usuário enquanto sujeito, uma vez que não segue a direção dada ou não atende às demandas de determinada equipe ou profissional e toma rumos inesperados ou imprevistos. Como sujeito de suas ações, muitas vezes se encontra em tal situação que não tem como se fazer ouvir ou fazer valer suas próprias soluções. Aqui a perda é dupla, de um lado os setores se dispersam e as estratégias se confundem, de outro, o usuário circula na precária rede, envolvendo os mais variados serviços e dispositivos, e vai se perdendo em seu endereçamento.

As indicações da psicanálise para o trabalho em equipe se ampliam e se pulverizam na tessitura da rede, como em um quebra-cabeça com peças soltas. A partir daí devem ser recolhidos os elementos como pedaços, ou mesmo estilhaços, para tecer o 'caso'. O processo se complexifica e se desdobra na 'construção-circulação-construção' submetido a retificações a cada movimento das equipes ou do usuário. A partir da psicanálise, podemos pensar em um movimento ao modo de uma estrutura moebiana, ou seja, não deve haver mais um 'dentro' e um 'fora'. Todos estão concernidos e implicados no processo em um continuum. Mas é importante esclarecer que o caso não é o sujeito, é uma construção parcial, e nunca um recobrirá o outro. Em suma, o caso é sempre uma construção sobre o que se recolhe do sujeito, que anda na frente, se move, demanda, ou se esquiva, sempre surpreendente.

Se retomarmos a banda de Moebius, o sujeito fica na borda, percorre a borda sem se deixar apreender nem se reduzir ao 'caso', e a construção-circulação do caso entremeia a banda se deslocando à medida que os acontecimentos vão trazendo novos elementos para esse trabalho permanente. Entre os buracos da rede e a torção moebiana do movimento do sujeito, temos que operar a cada caso essa tessitura esburacada. Mas temos que trabalhar para não deixar essa rede esgarçada a ponto de perdermos o sujeito e não sabermos o que fazer justo onde devemos e podemos intervir: na situação, na cena em ato.

 

Para concluir

Podemos dizer hoje que as conquistas da Reforma Psiquiátrica no Brasil nessa última década são irrefutáveis. Uma rápida consulta aos dados oficiais do Ministério da Saúde pode dar um indicador, mas isso não é o mais importante. O que acontece a cada dia em cada serviço da rede que se constituiu de modo heterogêneo e complexo nesse inicio de século nos revela três tendências que derivam uma da outra e marcam um caminho sem volta, apontando a direção a seguir nas próximas décadas. São elas:

1. É cada vez maior o imperativo do trabalho partilhado em equipe que deve ser compartilhado na saúde em geral, com ênfase na articulação com a Atenção Primária. Assim, na saúde mental não se trabalha mais sozinho. E não se pode mais prescindir das interfaces com outros setores.

2. O trabalho em redes tem diferentes concepções e propostas, atravessa e é atravessado cada vez mais por outras instâncias que envolvem instituições, serviços, dispositivos de controle social, e

deve incluir setores diversos como educação, trabalho, serviço social, cultura, desportos, turismo, lazer, e outros, visando ultrapassar os limites duros da 'saúde'.

3. A mentalidade asilar não mais se sustenta, pelo simples fato de que um novo vocabulário, com uma nova concepção do pathos e seus diferentes modos de apresentação, dá suporte aos dispositivos abertos territoriais centrados no acolhimento, no acompanhamento e na inclusão social dos usuários.

A partir disso, surgem novos desafios e problemas, herdeiros de antigas questões e do inesgotável enigma do padecimento humano. Assim, trabalhar em equipe e compartilhar o cuidado, mantendo a responsabilidade partilhada pela gestão do serviço e dos casos, beira o 'impossível de suportar', entre outros fatores, por conta do que já apontamos como o 'narcisismo das pequenas diferenças', presente em qualquer agrupamento humano em convivência, e o adoecimento frequente dos profissionais que também necessitam de apoio e formação permanente para qualificar seu trabalho.

A tessitura de redes se dá no cotidiano em meio a todo tipo de embaraço, desde a escassez quase absoluta de recursos em determinadas situações, até o próprio trabalho político onde nossas estratégias esbarram com limitações nem sempre ultrapassáveis. E ainda, acolher, acompanhar e assegurar a inclusão social daqueles que, de um modo ou de outro, se apresentam em sua diferença radical, esta sim, não tem nada de 'pequena', é o desafio maior que nos exige a tomada de responsabilidade sem tutela, a evocação do direito sem garantias e a convocação do sujeito em cada caso, a cada vez, para comparecer e ocupar o seu lugar. Lugar este que precisa ser resgatado de um modo singular ou ainda não está dado, seja porque o sujeito se perdeu das referências fundamentais de sua origem e de sua história, e se apresenta fora do laço com o outro, ou porque esse lugar só vai ser conquistado ao modo de cada sujeito. Assim, do universal 'para todos', ao particular do 'um a um', culminando no singular do 'sujeito' em sua idiossincrasia que marca um 'modo de ser', um estilo próprio, devemos percorrer com ele esse caminho, sem abrir mão de nossa função diante dos obstáculos que se impõem.

O legado de todo um percurso da reforma psiquiátrica brasileira nas últimas décadas deve ser levado adiante pela via das políticas públicas na sustentação do SUS em sua potência, ampliando e articulando as redes que se entrelaçam para além do campo da saúde. Eis o maior desafio a ser enfrentado hoje.

 

Referências

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Submetido em: 15/05/2018
Aprovado em: 22/09/2018

 

 

1 II Congresso Nacional de Trabalhadores da Saúde Mental realizado em Bauru em 1987 no mesmo ano em que acontecia a 1ª Conferência Nacional de Saúde Mental
2 Originalmente como lei Paulo Delgado proposta pelo então deputado federal em 1992
3 O termo 'transferência de trabalho' foi cunhado pelo psicanalista Jaques Lacan para diferenciar da 'transferência' vertical que ocorre no tratamento psicanalítico. A 'transferência de trabalho' deve ser horizontal e se refere ao Cartel, dispositivo de pesquisa de sua Escola que deve reunir pequenos grupos para trabalhar em parceria partilhando responsabilidades

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