SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.19 número44Uma breve revisão da reforma psiquiátrica no Brasil e sua relação com a psicanálise e a psicologiaCrise social e história social crítica: a vida e a obra histórica de Kurt Danziger índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.19 no.44 São Paulo jan./abr. 2019

 

ARTIGOS

 

Algumas repercussões do posicionamento político-ideológico na carreira profissional de Eliezer Schneider

 

Some repercussions of the political-ideological position in the professional career of Eliezer Schneider

 

Algunas repercusiones del posicionamiento político-ideológico en la carrera profesional de Eliezer Schneider

 

Quelques répercussions de la position politico-idéologique dans la carrière professionnelle d'Eliezer Schneider

 

 

Maira Allucham Goulart Naves Trevisan Vasconcellos

Pós-Doutoranda em Psicologia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); allucham@gmail.com

 

 


RESUMO

O presente artigo teve como objetivo apresentar uma análise inicial sobre a repercussão da posição político-ideológica de Eliezer Schneider na sua trajetória profissional na Psicologia. Este personagem é reconhecido pela historiografia da Psicologia principalmente por sua contribuição no campo da Psicologia Social e na criação dos primeiros cursos de Psicologia no Rio de Janeiro. Como base metodológica, utilizamos a análise do discurso baseada na proposta de Rosa, Huertas e Blanco, enfocando principalmente o nível biográfico. Quando estudou no Colégio Pedro II e também durante sua formação na Faculdade Nacional de Direito, Schneider se envolveu com o Movimento Estudantil e a Juventude Comunista. Esta militância gerou sua prisão e tortura na Era Vargas, o que lhe valeu posteriormente algumas dificuldades em sua carreira. Concluímos que, apesar da repressão e de alguns impedimentos na trajetória profissional, Schneider se empenhou para que a Psicologia se consolidasse como ciência e profissão, exercendo também um protagonismo político, mas a nível institucional.

Palavras-chave: História da Psicologia; Psicologia Social; Eliezer Schneider; Juventude Comunista; Militância.


ABSTRACT

The present article had as objective presenting an initial analysis on the repercussion of Eliezer Schneider's political-ideological position in his professional career in Psychology. This personage is recognized by the historiography of the Psychology mainly by his contribution in the field of Social Psychology and in the creation of the first courses of Psychology in Rio de Janeiro. As a methodological basis, we use discourse analysis based on the proposal of Rosa, Huertas & Blanco, focusing mainly on the biographical level. When he studied at the Pedro II College and also during his training at the National Law Faculty, Schneider became involved with the Student Movement and the Communist Youth. This militancy generated imprisonment and torture in the Era Vargas, which subsequently cost him some difficulties in his career. We conclude that, despite the repression and some impediments in the professional trajectory, Schneider was committed for the Psychology to consolidate itself as science andprofession, exerting also a political protagonism, but at an institutional level.

Keywords: History of Psychology; Social Psychology; Eliezer Schneider; Communist Youth; Militancy.


RESUMEN

El presente artículo tuvo como objetivo presentar un análisis inicial sobre la repercusión de la posición político-ideológica de Eliezer Schneider en su trayectoria profesional en la Psicología. Este personaje es reconocido por la historiografia de la Psicología principalmente por su contribución en el campo de la Psicología Social y en la creación de los primeros cursos de Psicología en Río de Janeiro. Como base metodológica utilizamos el análisis del discurso basado en la propuesta de Rosa, Huertas & Blanco, enfocando principalmente el nivel biográfico. Cuando estudió en el Colegio Pedro II y también durante su formación en la Facultad Nacional de Derecho, Schneider se involucró con el Movimiento Estudiantil y la Juventud Comunista. Esta militancia generó su prisión y tortura en la Era Vargas, lo que le valió posteriormente algunas dificultades en su carrera. Concluimos que, a pesar de la represión y de algunos impedimentos en la trayectoria profesional, Schneider se empenó para que la Psicología se consolidara como ciencia y profesión, ejerciendo también un protagonismo político, pero a nivel institucional.

Palabras clave: Historia de la Psicología; Psicología Social; Eliezer Schneider; Juventud Comunista; Militancia.


RÉSUMÉ

Le présent article avait pour objectif de présenter une première analyse de la répercussion de la position politico-idéologique d'Eliezer Schneider sur son parcours professionnel en psychologie. Ce personnage est reconnu par l'historiographie de la psychologie principalement par son apport dans le domaine de la psychologie sociale et dans la création des premiers cours de psychologie à Rio de Janeiro. Nous avons utilisé comme base méthodologique l'analyse du discours basée sur la proposition de Rosa, Huertas & Blanco, en nous concentrant principalement sur le niveau biographique. Lorsqu'il a étudié au collège Pedro II et également au cours de sa formation à la Faculté Nationale de Droit, Schneider s'est impliqué dans le Mouvement Étudiant et la Jeunesse Communiste. Ce militantisme a engendré l'emprisonnement et la torture à lépoque de Vargas, ce qui a par la suite occa-sionné des difficultés dans sa carrière. Nous concluons qu 'en dépit de la répression et de certains obstacles dans la trajectoire professionnelle, Schneider s'est engagé à ce que la psychologie se consolide en tant que science et profession, exerçant également un rôle politique, mais au niveau institutionnel.

Mots-clés: Histoire de la Psychologie; Psychologie Sociale; Eliezer Schneider; Jeunesse Communiste; Militantisme.


 

 

Introdução

Eliezer Schneider (1916-1998) é um personagem reconhecido pela historiografia da Psicologia principalmente por suas contribuições no âmbito da Psicologia Social. Dentre as instituições a que esteve vinculado, podemos destacar a atuação de Schneider no Instituto de Seleção e Orientação Profissional (ISOP), no Instituto de Psicologia e no Manicômio Judiciário. Além disso, contribuiu para a criação dos primeiros cursos de Psicologia no Rio de Janeiro na década de 1960, lecionando também em diversas universidades, dentre elas a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), a FAHUPE e a Universidade Gama Filho.

Eliezer Schneider formou-se em Direito em 1939 pela Faculdade Nacional de Direito da antiga Universidade do Brasil (atualmente UFRJ), porém nunca exerceu a profissão (Jacó-Vilela, 2001). Seu interesse pela Psicologia nasceu através do Direito Penal e da Medicina Legal, uma vez que estes envolviam assuntos de caráter psicológico (Schneider, 1997).

É importante assinalar que, neste período, a Psicologia no Brasil ainda não era uma disciplina autônoma. De acordo com Jacó-Vilela (2001, p. 13), "o que podemos detectar como "Psicologia" eram saberes e fazeres que se situavam, principalmente, nos campos médico, filosófico e educacional". Conforme Schneider (1997), após se graduar, surgiram oportunidades de estudo e trabalho em outras áreas além do Direito, e a Psicologia então passou a lhe interessar.

Entretanto, a trajetória profissional deste personagem é marcada por alguns impedimentos em virtude da sua militância na Juventude Comunista (JC) e da participação nos movimentos antifascistas. O objetivo deste texto é apresentar uma primeira análise sobre a repercussão da posição político-ideológica de Eliezer Schneider em relação ao seu percurso profissional no campo da Psicologia, expondo também algumas de suas discussões no que tange à Psicologia Social.

 

Base metodológica

Este artigo é fruto das investigações de tese de doutorado que teve como objetivo fazer um estudo comparado da História da Psicologia Jurídica no Brasil e Argentina, enfocando especialmente o trabalho de Eliezer Schneider no Brasil. Durante o desenvolvimento desta pesquisa, pudemos coletar uma série de documentos que nos permitiram fazer articulações sobre Schneider e a militância na Juventude Comunista.

Nossa base metodológica é a análise do discurso fundamentada de acordo com a proposta de Rosa, Huertas e Blanco (1996), que apontam como tarefa do historiador "interpretar a significação histórica dos produtos epistêmicos que uma determinada ciência deposita ao longo do seu desenvolvimento e os vínculos conceituais que existem entre os mesmos"1 (p. 73, tradução nossa). Diante disso, os autores propõem que a análise seja feita em três níveis que são teoricamente interligados, mas que, metodologicamente, podem gozar de certa autonomia, sendo eles: análise de textos e do discurso, a análise biográfica do autor e a análise sócioinstitucional.

A análise de textos e do discurso leva em conta não só a análise das estruturas discursivas, mas também o contexto histórico, para quem o discurso se dirige, o reconhecimento das condições de espaço, tempo e a função que o texto apresenta. A análise biográfica do autor oferece ferramentas para compreender a conjuntura da produção e as bases dos sistemas teóricos e metodológicos inseridos no discurso. Já a análise sócioinstitucional considera a referência institucional presente que vincula o discurso científico ao meio social a fim de legitimar discursos e práticas.

Para este artigo, enfocamos principalmente o nível biográfico, pois buscamos contextualizar a trajetória pessoal de Schneider, identificando a repercussão e a influência das suas atividades realizadas na juventude e o desfecho disto em sua carreira profissional. Utilizamos especialmente entrevistas concedidas à equipe do Laboratório de História e Memória Clio-Psyché e materiais do acervo dos Arquivos da Polícia Política para traçar este primeiro panorama.

 

Eliezer Schneider e a Juventude Comunista

A Juventude Comunista (JC), agremiação criada pelo Partido Comunista do Brasil (PCB), foi oficialmente2 organizada no Brasil em 1927 e tinha como objetivo a transformação social, reunindo jovens que buscavam revolucionar o país lutando pela liberdade democrática, pela igualdade social e contra o fascismo em um período marcado por um governo autoritário (União da Juventude Comunista, n.d.).

Foram diversas as formas de resistência e de lutas. Dentre as ações da JC, aqui vale destacar os esforços empreendidos para a realização de congressos a fim de discutir "os problemas que afetavam o segmento jovem da população brasileira" e difundir uma visão de mundo ancorada no comunismo (Santana, 2013, p. 2106). Mesmo em uma "conjuntura política conturbada por sólidas disputas entre setores de esquerda e de direita, bem como por disputas internas a esses campos ideológicos, os integrantes da Juventude Comunista decidiram pela realização dos eventos, independentemente dos riscos e adversidades" (Santana, 2009, p. 141).

A decisão de realizar um congresso de caráter nacional ocorreu em 1934, após o Primeiro Ativo de Concentração Nacional no Rio de Janeiro, então capital do país. A partir daí, o Comitê Central da Juventude Comunista, sediado no Rio de Janeiro, iniciou a organização do Primeiro Congresso da Juventude do Brasil e contava com o apoio das alianças estabelecidas na militância em sindicatos, grupo de jovens e Diretórios Acadêmicos, dentre eles o Diretório de Estudantes da Faculdade Nacional de Direito (Santana, 2009, 2013). O Primeiro Congresso da Juventude do Brasil estava planejado para ocorrer em 1935 e abrangia reivindicações de caráter político, econômico e cultural. Entretanto, devido à repressão do Estado durante o governo de Getúlio Vargas, houve uma série de atos e prisões que impediram a realização das atividades da JC e de todas as entidades ligadas à Aliança Nacional Libertadora (ANL).

Eliezer Schneider iniciou sua atividade política ainda quando estudante do Colégio Pedro II, participando da primeira reunião de planejamento deste congresso, realizada na residência de Ivan Pedro Martins (1914-2003)3, presidente do comitê dirigente e organizador do encontro (Santana, 2009; 2013). Sua militância na Juventude Comunista continuou também durante os anos de sua formação no curso de bacharel em Ciências Sociais e Jurídicas na Faculdade Nacional de Direito (FND).

Durante sua trajetória na FND, Schneider participou ativamente do Diretório Acadêmico. Havia uma grande repressão, mas o Diretório, além de cuidar dos interesses dos estudantes, também se mostrava vigilante dos processos suspeitos ditatoriais (Schneider, 1997). Entre suas atividades, estava a de elaborar textos antifascistas a fim de combater os integralistas na luta política. Dentre os movimentos que Schneider esteve à frente, destacamos sua atuação no movimento estudantil entre os anos de 1936 e 1937 para a criação da União Nacional dos Estudantes (UNE). Entretanto, nos encontros para a criação da UNE, Schneider atuou mais como aliado da JC do que como estudante da Faculdade Nacional de Direito (Sant'Anna, 2011).

Ainda na Faculdade Nacional de Direito, em 1935, Schneider fez parte de uma associação democrática de estudantes de esquerda, na qual derrotou Carlos Lacerda (1914-1977)4 na disputa do cargo de presidência do Comitê Estudantil de Esquerda contra a Guerra e o Fascismo (Jacó-Vilela, 1999; Schneider, 1997; Dulles, 2000). Quando Schneider, Carlos Lacerda e os outros estudantes retornavam dessa reunião que ocorreu no Sindicato Trabalhista de Niterói, foram presos pela Polícia Política ao chegarem de barca no Rio de Janeiro (Dulles, 2000). Conforme Schneider (1997),

a polícia agia de uma maneira sórdida porque não havia motivo para eles interferirem nas reuniões sindicais, pois um dos objetivos era apenas o de alertar os jovens sobre os perigos iminentes de guerra e do fascismo. Carlos Lacerda e Eliezer Schneider permanecerem uma noite na prisão e foram liberados após o interrogatório (Schneider, 1997).

Esta militância implicou em sua prisão e tortura na Era Vargas (Jacó-Vilela, 1999). Em 1939, durante o fim da sua formação em Direito, Schneider foi preso novamente quando estava no Largo do Machado com um grupo de jovens estudantes. Foi levado para uma casa de detenção na rua Frei Caneca em um complexo onde estava localizada a Delegacia de Ordem Política e Social (Schneider, 1997). De acordo com o jornal Correio da Manhã, Schneider e os outros estudantes haviam sido denunciados por atos extremistas e conspiração e foram presos em 28 de abril de 1939, acusados de "fomentarem actos atentatorios à ordem pública, de caracter francamente subversivos, sendo que em poder dos mesmos foram apprehendidos documentos que revelavam taes propósitos (sic)" (Correio da Manhã, 1939a, p. 5).

Foi torturado na prisão, onde passou quatro meses, sendo julgado em agosto de 1939 e absolvido por falta de provas (Correio da Manhã, 1939b). Sobre este tempo, Schneider (1997) conta que cerca de 50 estudantes foram detidos, mas que a maioria havia sido liberada cerca de um mês depois, restando apenas 17 suspeitos. Na sala em que estavam presos no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), dormiam todos juntos e à meia-noite acontecia o que ele chamava de "sessão espírita" para se referir à tortura que sofriam, principalmente por meio da palmatória. Os policiais também tentavam ensinar a ele e aos outros presos os ideais nazifascistas. Entretanto, era possível realizar leituras, assim aproveitou este tempo para "ler calhamaços" (Schneider, 1997).

Nos Arquivos da Polícia Política encontramos a documentação referente ao processo de Schneider, que havia sido acusado de realizar atividades de caráter subversivo (Arquivo Público Mineiro, n.d). Nos materiais arquivados estavam vários recortes de jornais, dentre eles um texto de autoria de Schneider publicado no Correio da Manhã em 1939, cujo título era Sciencia e Dogma.

Neste texto, Schneider fazia uma crítica aos pressupostos de Karl Marx (1818-1883), enfatizando que este autor não teria se utilizado do método científico para formular sua teoria, mas sim de idéias apriorísticas e de um sentimento moral. Apontava que estes estudos além de estarem inspirados na dialética hegeliana e no sentimento de justiça social, tinham como objetivo prévio "provar que a sociedade capitalista tinha que ser violentamente derrubada e que o lucro era pura exploração do trabalho". Apesar de afirmar que "a theoria marxista, de que só no socialismo é possível haver equilíbrio e ordem econômica, vem se confirmando nos aspectos geraes (sic)", considerava que a luta de classes não necessariamente teria um impacto tão grande nas transformações históricas e sociais (Schneider, 1939, p. 2).

Além disso, expunha que as previsões de Marx, por não partirem de uma sólida base científica, só poderiam fracassar ao serem dissonantes da realidade social. Sobre isso, sustentava que:

A theoria que entra em discordância com os factos é, em sciencia, ou posta immediatamente de lado ou modificada. Conservar, porém, a theoria e mudar a prática é usal-a (sic) como dogma. Assim agiram os communistas. Os sociaes-democratas, vendo que a decomposição desastrosa do capitalismo e a insurreição proletária não tinham fundamentos reaes nos processos da evolução social, recorreram á organização do proletariado como força política, syndical, cultural e econômica, ao eleito-ralismo e á educação socialista das massas. Emfim, conduziram-se com objectividade e realismo. Entretanto, perante o mesmo problema, o communismo procurou a solução no aperfeiçoamento da arte revolucionaria. Os primeiros conseguiram enorme progresso eleitoral e grande reformas sociaes, e o ultimo, apezar das condições ideaes porque dizia anciar, vem perdendo todas as perspectivas de revolução mundial (sic) (Schneider, 1939, p. 2).

E finalizava sua explanação dizendo que a ciência não admitia mais os fatores de dependência para a explicação dos fenômenos, mas sim de interdependência. Ainda colocava que aceitar a sobrevivência total do marxismo é uma atitude dogmática, questionando assim o motivo pelo qual a teoria marxista ainda deveria permanecer (Schneider, 1939, p. 2).

Quando Schneider (1997) relatou em entrevista sobre os desdobramentos deste período na prisão, mencionou que estava redigindo um trabalho sobre filosofia no Brasil e que seu advogado, um tio da família, o utilizaria para apresentar ao ministro do Tribunal de Segurança Nacional a fim de provar que seus "interesses eram pacatos e pacíficos". Porém, o juiz já havia preparado o parecer do caso "espinafrando a polícia pela perda de tempo" e Schneider também supunha que já estavam amparados pelo Tribunal porque um dos estudantes presos que seria julgado juntamente com ele tinha o mesmo sobrenome de família de um dos juízes (Schneider, 1997).

Um fato que nos chamou a atenção, que vai além da explanação de Schneider sobre a teoria marxista, é que o texto foi publicado no Correio da Manhã após sua absolvição e juntado aos autos do processo posteriormente. Em virtude disso, nos ocorreram os seguintes questionamentos, sobre os quais ainda não temos hipóteses totalmente formuladas: Schneider teria sido orientado a fazer um texto rechaçando a teoria marxista? A publicação deste texto teria sido um acordo entre Schneider e o Tribunal de Segurança em troca da sua absolvição? Ou Schneider realmente tinha críticas tão peremptórias em relação ao marxismo?

Ainda durante o governo Vargas, além dos problemas com a polícia, Schneider também teve divergências com o PCB, "ficando mal com os dois lados, o da polícia e o do PCB" (Penna, 1997). Contudo, nos são desconhecidos os motivos que levaram Schneider a entrar em desacordo com os ideais comunistas.

 

A posição ideológica de Schneider e algumas repercussões no início de sua carreira profissional

A atuação de Schneider no campo da Psicologia se iniciou um tempo depois, em 1941, quando ingressou no Instituto de Psicologia da antiga Universidade do Brasil (atual UFRJ) através de um concurso para Técnico de Assuntos Educacionais, exercendo o cargo de "psicologista" (Jacó-Vilela, 1999). Além disso, foi "um dos primeiros brasileiros com formação acadêmica em Psicologia" (Jacó-Vilela, 1999, p. 331), tendo defendido o mestrado em Psicologia em 1947 na Iowa University, nos Estados Unidos.

Pretendia continuar sua formação fazendo doutorado nesta mesma universidade. Entretanto, em tempos de macarthismo na década de 1950, foi impedido de realizar o doutorado nos Estados Unidos em função da sua ligação com os ideais comunistas na juventude. De acordo com Jacó-Vilela (1999, p. 335), "tem seu pedido aceito pela Iowa University para, logo em seguida, ser informado de que o Departamento de Estado vetava seu ingresso naquele país". Conforme Penna (2001, p. 26), "sua carreira, naquele momento, sofreu um duro golpe do qual só ao longo do tempo se recuperou".

As consequências da militância de Schneider foram além do veto para sair do país; lhe valeram "dificuldades 'burocráticas' na vida profissional durante os anos de chumbo da ditadura militar brasileira" (Jacó-Vilela, 1999, p. 335). Em razão disso, quando foi prestar concurso para a vaga de Professor Adjunto de Psicologia Social na Universidade Federal Fluminense, lhe foi exigido o atestado de ideologia do DOPS, o qual só foi fornecido após o encerramento das inscrições (Jacó-Vilela, 1999; Penna, 2001).

Nas produções de Schneider, principalmente no âmbito da Psicologia Social, também podemos encontrar componentes que parecem se relacionar com sua vivência política. Para ele, o estudo do comportamento humano só era possível por meio da compreensão da estrutura social e dos determinantes políticos e econômicos (Schneider, 1997). Aqui nos limitaremos a esboçar apenas alguns pequenos apontamentos que demonstram o relevo que a compreensão das circunstâncias políticas teve nas produções de Schneider.

No livro Psicologia Social - histórica, cultural, política (1978), sua única obra publicada, Schneider já esboça no título a importância desta tríade de conjunções para o entendimento e articulação dos processos macro e microssociais. Entende também que, neste contexto, o psicólogo é um elemento substancial para o desenvolvimento social do país. Para Schneider, sua obra tinha como pretensão "um empenho para a compreensão e explicação psicológicas de eventos e processos macrossociais, através da análise do comportamento humano em interação social no tempo e no espaço, e do desenvolvimento sócio-político-econômico do homem" (Schneider, 1978).

Schneider ainda considerava que as constâncias e mudanças históricas são reveladoras, e que, desse modo, a ciência psicológica deveria lançar mão da compreensão das tensões sociais que delineavam o comportamento político e ideológico. De igual modo, afirmava que "a história comprova que o macroambiente político-sociocultural modela o microambiente, meio comportamental ou espaço vital" (Schneider, 1978, p. 143).

Schneider também discorreu em um dos seus textos sobre a compreensão que tinha sobre o conceito de classe. Para ele, "classe não é uma entidade, uma instituição, uma consciência ou alma coletiva, um partido político; é um nome abstrato que se refere às pessoas e famílias heterogêneas, de interêsses distintos e de níveis e posições sociais diferentes (sic)" (Schneider, 1967, p. 6). Deste modo, em qualquer regime político ou circunstância histórica o que movimenta o indivíduo são suas motivações baseadas nos desejos realizadores, nos interesses pessoais ou nas vaidades narcísicas e/ou paranóicas (Schneider, 1967), e isso independe da classe pertencente ou da teoria do valor do trabalho.

Embora ainda critique o conceito de classe, não podemos evidenciar que isto esteja relacionado às suas discordâncias com a teoria marxista, como no texto publicado em 1939 no jornal Correio da Manhã. De acordo com as considerações de Schneider (1967), a identificação do indivíduo com os interesses de determinada classe é também um elemento fundamental no âmbito das práticas sociais.

Em um artigo publicado originalmente em 1980 no Jornal do Brasil, em um período em que o país ainda estava sob o regime militar e enfrentava uma grave crise econômica, Schneider discorre sobre o quanto os grupos minoritários são afetados em momentos de turbulência política. Além disso, há uma tentativa de agregar seu conhecimento no campo da Psicologia com suas perspectivas acerca das conjunturas políticas.

Para ele, nas campanhas políticas e ideológicas dos sistemas autoritários havia uma metodologia difamatória que, por meio da manipulação da massa, deixava a população apta psicologicamente a aceitar os interesses hegemônicos prevalecentes. Era possível caracterizar fenômenos psicológicos nos sistemas sociais implantados por tais ideologias dogmáticas que entorpeciam a capacidade humana de raciocinar, questionar e de duvidar (Schneider, 1980/2002). Diante disso, o papel do cientista social, do cientista político e do psicólogo seria o de "desmitificação da hipocrisia dogmatizante, imposta em nome de subterfúgios ideológicos, econômicos, religiosos ou filosóficos" (Schneider, 1980/2002, p. 154). Na perspectiva de Schneider (1980/2002), era "preciso incluir o psicólogo para desvendar a História" (p. 154), atuando como um psicohistoriador a fim de desvendar o comportamento humano e transformar os corpos inertes em pessoas capazes de operar com senso crítico e transformador na sociedade.

 

Conclusão

Mesmo com a repressão, Schneider se dedicou vigorosamente ao incremento da Psicologia como ciência e profissão. Atuou como psicologista, psicotécnico, perito e psicólogo em locais como o Instituto de Psicologia, o ISOP e o Manicômio Judiciário, contribuindo para o desenvolvimento da práxis psi. No Instituto de Psicologia, foi um dos criadores do Boletim do Instituto de Psicologia, periódico no qual também publicou artigos com temáticas diversas, especialmente sobre psicologia social, educação, testes psicológicos, personalidade e psicologia jurídica.

Além disso, não deixou de exercer protagonismo político, desta vez a nível institucional, contribuindo na estruturação e implantação dos primeiros cursos de Psicologia. Atuando no Instituto de Psicologia, em 1949, Schneider foi convidado para compor a comissão que criaria um anteprojeto para a regulamentação da profissão e dos cursos de Psicologia, para o qual elaborou uma proposta curricular (Jacó-Vilela, 1999; Cabral, 1953).

Ao longo de sua carreira ocupou cargos de relevância, dentre eles o de diretor do Instituto de Psicologia da UERJ, o de chefe do departamento de Psicologia da FAHUPE e o de diretor substituto do Instituto de Psicologia da UFRJ (Jacó-Vilela, 1999). Além disso, na década de 1970, Schneider foi convidado para participar da criação da pós-graduação em Psicologia no ISOP e compor a comissão do seu planejamento (Jacó-Vilela, 1999).

Eliezer Schneider definiu sua posição político-ideológica como uma "esquerda de sonhadores inocentes", na qual ele e seus companheiros militavam de forma fraternal e pacifista (Schneider, 1997). Como já mencionamos, devido ao ativismo político ligado aos ideais comunistas na juventude, alguns obstáculos surgiram no campo profissional, o que certamente compeliu Schneider a redesenhar sua trajetória, mas sem se deixar abater, tendo uma participação significativa na consolidação e reconhecimento formal da Psicologia no Brasil.

 

Referências

Arquivo Público Mineiro. (n.d.). Arquivos da Polícia Política: acervo do período de 1927 a 1882. (Pasta 2022 – Eliezer Schneider). Recuperado de http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/dops/brtacervo.php?cid=2022        [ Links ]

Cabral, A. C. M. (1953). Problemas da formação do psicólogo. Boletim de Psicologia, 5/6(18, 20), p. 64-68.         [ Links ]

Correio da Manhã. (1939a). Estudantes denunciados como extremistas. 15 de julho, p. 5.         [ Links ]

Correio da Manhã. (1939b). Estudantes julgados hontem pelo Tribunal de Segurança Nacional. 5 de agosto, p. 5.         [ Links ]

Dulles, J. (2000). Carlos Lacerda: a vida de um lutador. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.         [ Links ]

Jacó-Vilela, A. M. (1999). Eliezer Schneider: um esboço biográfico. Estudos de Psicologia (Natal), 4 (2), p. 331-350. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/epsic/v4n2/a09v4n2.pdf        [ Links ]

Jacó-Vilela, A. M. (Org.). (2001). Pioneiros da Psicologia Brasileira: Eliezer Schneider. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Psicologia.         [ Links ]

Penna, A. G. (1997). Entrevista não publicada concedida à Ana Maria Jacó Vilela. Rio de Janeiro: Arquivos do Laboratório de História e Memória Clio-Psyché (UERJ).         [ Links ]

Penna, A. G. (2001). Eliezer Schneider (1916-1998). In Jacó-Vilela, A. M. (Org.) Eliezer Schneider. Rio de Janeiro: Ed. Imago.         [ Links ]

Rosa, A.; Huertas, J. A. & Blanco, F. (1996). Metodologia para la Historia de la Psicologia. Madri: Alianza.         [ Links ]

Sant'Anna, I. (2011). O garoto que sonhou mudar a humanidade. Rio de Janeiro: Fundação Dinarco Reis.         [ Links ]

Santana, M. S. (2009). Projeto para as novas gerações: juventude e relações de força na política brasileira (1926-1945). Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em História Econômica, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.         [ Links ]

Santana, M. S. (2013). Imagem e política: juventude, metrópole e transformação social. Anais do IV Encontro Nacional de Estudos da Imagem, I Encontro Internacional de Estudos da Imagem (pp. 2106-2116). Londrina: Universidade Estadual de Londrina.         [ Links ]

Schneider, E. (1939). Sciencia e Dogma. Correio da Manhã, 28 dezembro, p. 2.         [ Links ]

Schneider, E. (1967). Agressão, Furto e Ciúme sob o Prisma da Psicologia Social. Boletim do Instituto de Psicologia. 17(7, 8, 9).         [ Links ]

Schneider, E. (1978). Psicologia Social: histórica, cultural, política. Rio de Janeiro: Guanabara Dois.         [ Links ]

Schneider, E. (1997). Entrevista não publicada concedida a Ana Maria Jacó Vilela. Rio de Janeiro: Arquivos do Laboratório de História e Memória Clio-Psyché (UERJ).         [ Links ]

Schneider, E. (2002). A Psicologia é uma ciência que ajuda a entender a história e o homem atuante. Estudos e Pesquisa em Psicologia, 2(1),151-155. Originalmente publicado em 1980. Recuperado de https://www.e-publicacoes.ueri.br/index.php/revispsi/article/view/7751/5600        [ Links ]

União da Juventude Comunista (n.d.). História da UJC. Recuperado de http://ujc.org.br/historia-da-uniao-da-juventude-comunista-ujc/        [ Links ]

 

 

Submetido em: 15/04/2018
Aprovado em: 26/05/2018

 

 

1 No original em espanhol: "interpretar la significación histórica de los productos epistémicos que una determinada ciencia deposita a largo de su desarrollo y los vínculos conceptuales que existen entre los mismos (Rosa, Huertas & Blanco, 1996, p. 73).
2 É importante salientar que antes da oficialização da JC já havia movimentos por parte do PCB para incluir o segmento jovem de modo organizado nas ações de militância do partido
3 Ivan Pedro Martins tornou-se membro da Juventude Comunista em 1933, quando era estudante da Faculdade de Direito do Rio de Janeiro. Em 1935 foi membro e secretário político do Comitê Central da Juventude Comunista. Neste mesmo ano, foi presidente nacional da Juventude da Aliança Nacional Libertadora.

Creative Commons License