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Revista Psicologia Política

On-line version ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.19 no.45 São Paulo May/Aug. 2019

 

ARTIGOS

 

Militância e ativismo no Brasil depois de Junho de 2013: entre repertórios, estratégias e Instituições

 

'Ativismo' and 'militância' in Brazil after June 2013: between repertoires, strategies and institutions

 

'Ativismo' y 'Militância' en Brasil después de junio de 2013: entre repertorio, estrategias y instituciones

 

'Ativismo' et 'Militância' au Brésil après juin 2013: entre répertoires, stratégies et institutions

 

 

André Luis Leite de Figueirêdo SalesI; Flávio Fernandes FontesII; Silvio YasuiIII

IDoutorando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual Paulista, Campus Assis. Pesquisador visitante na Universidade da Cidade de Nova Iorque, Estados Unidos e na Universidade de York, em Toronto, Canadá; andreluislfs@gmail.com
IIProfessor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), campus de Santa Cruz (FACISA); flaviofontes@outlook.com
IIIProfessor Adjunto da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Campus de Assis; silvioyasui@gmail.com

 

 


RESUMO

Objetiva-se demonstrar a pertinência dos conceitos de repertório, estratégia e instituição para desmembrar os sentidos condensados nas palavras militância e ativismo e, com isso, compreender efeitos subjetivos das mudanças nas formas de ação coletiva na cena pública brasileira depois de Junho de 2013. Repertórios descrevem rotinas preferenciais dos participantes da contestação; estratégias enquadram o tema da articulação para agir em conjunto e as instituições elucidam como mudanças nos repertórios e nas estratégias são correlatos de modificações nos regimes de subjetivação. A justaposição de sentidos pôde ser analisada graças ao reconhecimento de relações expressivas entre os conceitos. A ênfase argumentativa recai sobre o conceito de instituição, posto que o mesmo explicita relações entre processos de ordem macrossocial e a produção de subjetividade daqueles que se nomeiam militantes e ativistas.

Palavras-chave:movimentos sociais, ação coletiva, ativismo, militância, subjetividade.


ABSTRACT

The paper argues that the concepts of repertoire, strategy and institutions are crucial to understanding the changes in Brazilian collective action after June of 2013 since these three ideas are the ones overlapped in the current use of the words 'militância' and 'ativismo '. Repertoires describe the usual protestors routines; strategies frame the required procedures for triggering and conducting collective action, and institutions explain the manners through which changes in repertoires and strategies modify regimes of subjetification. Analyzing theses jointed ideas is possible by pointing out the expressive relations between them. More ink is spit in the institution concept because it is convenient to explicit how macro-social changes in repertoires and strategies produce changes in the subjectivity of the ones who call themselves 'militantes ' and 'ativistas '.

Key words: SocialMovements, collective action, militancy, activism, subjectivity.


RESUMEN

Se pretende demostrar la pertinencia de los conceptos de repertorio, estrategia e institución para desmembrar los sentidos condensados en las palabras 'militância ' y 'ativismo ' y, con ello, comprender efectos subjetivos de los cambios en las formas de acción colectiva en la escena pública brasilena después de junio de 2013. Repertorios describen rutinas preferentes de los participantes de la contestación; las estrategias encuadran el tema de la articulación para actuar en conjunto e institución elucida como cambios en los repertorios y en las estrategias son correlatos de modificaciones en los regímenes de subjectivación. La yuxtaposición de sentidos pudo ser analizada gracias al reconocimiento de relaciones expresivas entre los conceptos. El énfasis argumentativo recae sobre el concepto de institución, puesto que el mismo expone relaciones entre procesos de orden macrosocial y la producción de subjetividad de aquellos que se nombran militantes y activistas.

Palabras-clave: movimientos sociales, acción colectiva, activismo, militancia, subjetividad.


RÉSUMÉ

On vise à démontrer la pertinence des concepts de répertoire, de stratégie et d'institution pour démembrer les sens condensés dans les mots 'militância ' et 'ativismo ' et, ainsi, comprendre les effets subjectifs des modifications apportées aux formes de l'action collective sur la scène publique brésilienne après juin 2013. Les répertoires décrivent les routines préférées des participants des contestations; les stratégies encadrent le thème de l'articulation pour agir ensemble et les institutions élucident comment les modifications apportées aux répertoires et aux stratégies sont corrélats des modifications apportées aux régimes de subjectivation. La juxtaposition de significations a pu être analysée grâce à la reconnaissance de relations expressives entre les concepts. L'accent de l'argumentation repose sur le concept d'institution, puisqu'il explicite les relations entre les processus d'ordre macrosocial et la production de la subjectivité de ceux qui se disent militants et activistes.

Mots-clés: mouvements sociaux, action collective, activisme, militantisme, subjectivité.


 

 

Muitos são os objetos a serem analisados no campo de estudos sobre movimentos sociais e ações coletivas. Este estudo o faz através das discussões sobre os sentidos das palavras militância e ativismo no contexto brasileiro. Parte do debate teórico insiste em tratar os dois termos como sinônimos (Bringel & Varella, 2016; Silva & Ruskowski, 2016; Dowbor, 2017). Contudo, no campo das disputas envolvendo as normas sociais, as palavras apresentam intenções daqueles que as escolhem, e não devem ter sua importância minorada. Quando os jogadores estão disputando os termos a serem empregados nas diferentes arenas, é necessário que os pesquisadores captem as nuances e adequem seu vocabulário para descrever aquilo que está acontecendo1. Charles Tilly recomenda atenção à coerência simbólica exibida pelos participantes em uma ação coletiva, fato que demanda análise sobre "como participantes, ou observadores do fenômeno atribuem a ele unidade e significado2" (Tilly, 2006, p. 46). Para explicitar a pertinência e atualidade da questão, trabalhamos com um conjunto significativo de artigos científicos da área que se ocuparam de debater as mudanças nas ações coletivas ocorridas no Brasil a partir de junho de 2013, bem como estudos internacionais, os quais lançam luz na dimensão supracional dos acontecimentos em curso no Brasil (Ancelovici, Dufour & Nez, 2016).

O estudo de Sales, Fontes e Yasui (2018a) define militância e ativismo como "metodologias para produzir ações coletivas a fim de intervir/interferir nas normas sociais vigentes" (Sales et al., 2018a, p. 567). Este artigo objetiva articular os conceitos de repertório, estratégia e instituição em um modelo teórico adequado para marcar as diferenças entre essas metodologias. Através do conceito de repertório, é possível descrever rotinas preferenciais, atos e performances trazidas à cena pública pelos participantes da contestação política. Escrutinar a ideia de estratégia permite abordar o tema da coordenação dos coletivos humanos para interferência nas normatividades e o efeito criativo decorrente das decisões tomadas por cada um dos indivíduos que participam das ações coletivas. Trabalhando com o conceito de instituição (Lourau, 2007; Rossi & Passos, 2014) pode-se acompanhar como mudanças nos repertórios e nas estratégias tendem a produzir alterações nas formas de ver, sentir e agir daqueles que participam das ações coletivas.

Para explicar como as palavras ativismo e militância condensam os sentidos de repertório, estratégia e instituição recorremos à ideia de expressão. Essa noção sublinha como um mesmo fenômeno pode se apresentar sob diversas formas. Esse enquadramento conceitual permite: a) entender o caráter produtivo das instituições expresso através de repertórios e estratégias; b) visualizar como os repertórios se apresentam através das performances; c) entender como as estratégias são recriadas pelas decisões singulares dos participantes enquanto estes decidem como agir e d) acompanhar o movimento através do qual uma instituição produz modos de subjetivação.

Esse enquadramento conceitual permite: a) entender o caráter produtivo das instituições expresso através de repertórios e estratégias; b) visualizar como os repertórios se apresentam através das performances; c) entender como as estratégias são recriadas pelas decisões singulares dos participantes enquanto estes decidem como agir e d) acompanhar o movimento através do qual uma instituição produz modos de subjetivação.

A articulação de conceitos sociológicos, psicológicos e filosóficos aqui apresentada objetiva recolocar o problema da oposição entre determinações sociais e agência singular, através da adoção de uma concepção de subjetividade que reconhece os processos sociais e políticos como inseparáveis dos processos singulares e subjetivos. Esta proposta alinha-se aos esforços de criação e aprimoramento metodológico para pesquisa dos modos contemporâneos de subjetivação (Rodrigues, 1993; Rodrigues, 2012; Rossi & Passos, 2014) e do desenvolvimento de ferramentas teóricas que acrescentem uma compreensão psicológica ao estudo das ações contestatórias, sem, com isso, "psicologizar fenômenos sociais".

 

Quando as palavras já não cabem nas coisas

O Movimento Passe Livre (MPL), um dos principais articuladores dos protestos ocorridos no Brasil em junho de 2013, utilizou como recurso para construção de sua coerência simbólica, um discurso muito crítico à militância, às organizações militantes e ao engajamento militante (Livre, 2013). O MPL optou ainda pelas palavras "ativismo" e "ativistas", para designar suas ações e seus membros, respectivamente.

No início do movimento, houve um intenso debate quanto ao termo a ser utilizado para definir a ação de seus integrantes no âmbito do MPL: de um lado, muitos defendiam o uso do termo militância, por ser este já empregado para designar a ação de uma pessoa em um movimento de cunho político e social, trazendo à mente uma noção de responsabilidade e compromisso; por outro lado, outros integrantes advogavam a utilização do termo ativismo, justamente por não ser tão usado no Brasil e, portanto, diferenciar-se dos significados costumeiramente atribuídos ao termo 'militância' que denotavam posturas e atitudes das quais se queria afastar (Saraiva, 2010, p. 3).

Algumas características importantes dos movimentos que protagonizaram o ciclo de protesto em curso desde Junho de 2013 são: sujeitos jovens, residentes em grandes centros urbanos; apelo democrático materializável na preferência por arranjos organizacionais - coletivos temáticos, redes de protesto, frentes de luta - horizontais e descentralizados; independência dos partidos políticos, igrejas e sindicatos; ligação direta com problemas concretos da realidade local; uso da tecnologia de comunicação e informação para mobilização de participantes, difusão das pautas e articulação com movimentos outros sediados em vários estados do país e em outras partes do mundo (Navarro & Brasilino, 2015). "Tais princípios revelam a influência de concepções autonomistas, anarquistas, Zapatistas e altermundistas, mesclada a uma desilusão no que toca ao funcionamento de partidos e instituições políticas em geral" (Saraiva, 2014, p. 43).

Alonso e Mische (2017) pontuam que a inspiração autonomista já vinha ganhando espaço em âmbito internacional desde o ciclo de protestos iniciado em Seattle em 1999, tendo reaparecido nos protestos ligados ao movimento de justiça global e também nos eventos decorrentes da primavera árabe. Essa vertente autonomista seria a maior novidade presente nos acontecimentos contestatórios ocorridos na esfera pública brasileira entre 2013 e 2017. O movimento de ocupação das escolas de ensino médio, iniciado em novembro de 2015 no estado de São Paulo, apresenta semelhanças com os modos de organização autonomistas do Movimento Passe Livre (MPL). Além de ter sido promovido por jovens dos centros urbanos, repetiu-se a preferência pelos arranjos organizativos descentralizados, o desligamento de sindicatos, partidos políticos e mesmo de entidades representativa estudantis, além disso, voltou a cena o emprego intenso das tecnologias de informação e comunicação.

A utilização da ocupação como performance de contestação ganhou muitos adeptos ao longo do turbulento ano de 2016 (Corti, Corrochano & Silva 2016). As ocupações ocorreram em resposta a proposta de Medida Provisória 746, que realizaria uma ampla reforma no ensino médio, e contra a Proposta de Emenda à Constituição 241, do governo federal, que limitaria por 20 anos gastos públicos. Mesmo que os atos legislativos tenham sido aprovados3, a difusão da ocupação enquanto tática, e a formas como essa tática foi empregada, sinalizam mudanças importantes nos modos de mobilização social, protagonismo juvenil e ação coletiva no cenário nacional.

A negação do modelo de organizações vanguardistas - ainda comuns em sindicatos, diretórios acadêmicos, partidos políticos e outras organizações sociais brasileiras - assim como a preferência por arranjos organizativos em rede e com forte apelo a ação direta dos participantes - têm se tomado mais frequentes no cenário brasileiro desde 2013. O termo vanguardismo aparece no estudo de Daniel Arão Reis (1990) sobre o ideário comunista no Brasil e descreve tanto um modo de organização das ações coletivas marcado por centralização de processos decisórios e concentração de poder, quanto uma forma de relação entre dirigentes e dirigidos, no qual as decisões estratégicas são feitas por seleto grupo de especialistas, cabendo aos demais integrantes da ação coletiva seguir rigorosamente aquilo que foi decidido. Marcando uma diferença relevante, Sousa (2014) sublinha que "as organizações de ativistas não se enquadram no conceito de partido, diferindo quanto à organizacidade [sic] e, em algumas, o processo decisório se faz pela horizontalidade, decisões consensualizadas (Sousa, 2014, p. 60).

Além do MPL, movimentos diversos ocorridos nos anos seguintes (Corti et al., 2016; Sales, Fontes & Yasui, 2018b) preferiram empregar o termo ativismo para nomear seus membros e suas ações. Torna-se assim imperativo investigarmos "quais são os novos sentidos e significados que vêm sendo dados hoje às noções de 'militância', 'mobilização' 'engajamento', 'ativismo' e 'movimento social'" (Bringel, 2012, p. 57).

 

Repertórios: descrever ações coletivas

A observação das formas coletivas públicas de contestação explicita a preferência pelo uso de algumas ações em detrimento de outras. Um pesquisador que toma como objeto de investigação esses atos "enfrenta, quase inevitavelmente uma sensação de déjà-vu dado que esses eventos, em um determinado lugar, e em um determinado período de tempo, podem ser agrupados em poucas categorias, e apresentam um número bem reduzido de variações" (Tilly, 2006, p. 50). Os movimentos sociais no mundo ocidental no século vinte, por exemplo, costumam se manifestar através de passeatas, abaixo assinados, petições, ocupações e bloqueios de ruas e avenidas, e não pelo uso de bombas, ataques suicidas ou sequestros de crianças. Charles Tilly, após ter analisado mais de oito mil conflitos públicos, ocorridos em um período de quase cem anos e noticiados em dez jornais britânicos, cunhou o conceito de repertório para marcar essa regularidade (Tilly, 1995).

A palavra repertório identifica um conjunto limitado de rotinas que são aprendidas, compartilhadas e postas em ação por meio de um processo relativamente deliberado de escolha. "Repertórios são criações culturais aprendidas, mas eles não são frutos de ideias abstratas ou resultado de convencimento de propaganda política; eles emergem da luta" (Tilly, 1995, p. 26). Bringel (2012) destaca a habilidade de Charles Tilly de aproximar Sociologia e a História, observando atentamente a variação nas formas de confronto político e social ao longo do tempo e construindo categorias que permitiram codificar e comparar os modos de ação popular e coletiva em vários momentos históricos. Ainda que disso também decorra parte das críticas sobre generalizações, imprecisões, e excesso de estruturalis-mo da obra tillyana (Goodwin & Jasper, 2004; Goodwin, Jasper, & Khattra 1999), a perspectiva proposta por ele permitiu organizar investigações sobre as causas das mudanças nas formas de conflito, e foi essencial para a compreensão de que o histórico anterior de contestação exerce influência nos modos como essa se manifestará no tempo presente (Tilly, 2006).

O trabalho de Alonso (2012) historiciza as mudanças do conceito, destacando a ampliação dos aspectos dinâmicos apreendidos pelo mesmo ao longo do tempo e, com isso, contrapõe as teses sobre o caráter monolítico e tautológico da noção de repertório. O conceito teria passado por variações que podem ser categorizadas assim: 1) repertórios de ação coletiva (1970-1990); 2) repertórios de conflito (1990-2000); 3) repertório enquanto performance (2000-2008). Ao longo desse percurso a autora destaca: a) o aumento gradativo da importância atribuída à agência dos sujeitos na construção do repertório; b) o caráter estratégico da avaliação das oportunidades, ou restrições, para ações existentes em um dado ambiente político e, c) as inovações que os sujeitos vão produzindo em um repertório no momento em que o utilizam. Depois dos anos 2000, ganham destaque as variações singulares feitas por aqueles que o utilizam, sendo o termo performance escolhido para indicar o modo através do qual um repertório se manifesta. Na avaliação de Alonso (2012), ao aproximar a noção de repertório da ideia de performance, Tilly "privilegia, então, o improviso, a capacidade dos atores de selecionar e modificar as performances de um repertório, para ajeitá-las a programas, circunstância e tradição locais, isto é, ao contexto de sentido daquele grupo, naquela sociedade" (Alonso, 2012, p. 32).

Analisando os processos de mobilização e formas de contestação presentes nos ciclos de protestos no Brasil entre 2013 e 2016, Alonso (2017) classifica brevemente as performances dos manifestantes como manifestações de três repertórios, a saber: socialista, autonomista e patriota. Mesmo concluindo que os indivíduos, ao longo dos protestos, faziam um uso híbrido de todos os repertórios disponíveis, no que se refere à estrutura organizacional, e aos valores organizativos, o trabalho contrasta as performances socialista e autonomista. O repertório socialista se apresenta com seus tons e cores vermelhos, organização marcadamente hierárquica, lideranças bem definidas, além de parcerias com sindicatos e partidos políticos. Já o repertório autonomista apresenta elementos estéticos da cultura punk como a cor preta, uso intenso de expressões artísticas variadas, símbolos anarquistas, estrutura organizativa descentralizada e preferência pelas formas de ação direta.

Ao escolher as palavras autonomista e socialista para nomear esses repertórios, a autora explicita sua filiação aos princípios de pesquisa propostos por Charles Tilly e aponta tradições políticas a serem estudadas para compreender aquilo que acontece na cena pública brasileira atual. As múltiplas performances, dos também múltiplos sujeitos, movimentos e organizações passíveis de serem agrupados nas categorias militante e ativista evidenciam um campo marcado pela dispersão e demandam o aprimoramento das análises que destaquem as diferenças nas formas de apresentação da ação coletiva (Sales et al., 2018a, 2018b; Sales, Fontes & Yasui, 2018c).

O caráter simultaneamente estrutural e cultural do par repertório-performance é adequado para descrever parte dos motivos que justificam a recusa do termo militância e a preferência pela expressão ativismo por parte dos jovens integrantes das ações coletivas contemporâneas no Brasil. Isso parece indicar que, no caso brasileiro, as palavras militância e ativismo descrevem repertórios distintos.

 

Estratégias: produzir ação coletiva

Descartar a premissa da espontaneidade da ação coletiva, ou mesmo da irracionalidade dos sujeitos que nela se engajam, torna imperativo reconhecer diferenças nas formas de articular pessoas, com interesses diversos e em diferentes contextos a fim de atingir um determinado objetivo. Urge compreender que "os participantes de uma ação coletiva, ou os componentes das multidões, não se engajam nelas para expressar narcisisticamente necessidades patológicas, ou mesmo para resolver suas questões edípicas; eles não são sujeitos isolados pateticamente buscando conexões ou identidades" (Jasper, 2017, p. 298). Escrutinar ações coletivas em busca de estratégias oferece uma alternativa interessante para a superação deste entendimento.

De acordo com a tradição militar, a obtenção de sucesso em uma disputa implica em maximizar os ganhos e reduzir as perdas, o que se faz processando informações sobre os recursos que estão sob o seu comando, e sobre aqueles que estão sob o comando do inimigo. É essencial conhecer ainda as condições sob as quais as contendas se darão. A ponderação constante sobre esses três elementos e a elaboração de um plano de ação é a tarefa do grupo de estrategistas, e o projeto por eles estruturado para que se vença a guerra é o que se chama estratégia. Os estrategistas criam, difundem e acompanham o desenvolvimento de um plano que será executado por uma massa de indivíduos pouco qualificada para decidir sobre o que fazer. Aos executores, não compete propor, ou mudar aquilo que foi planejado, mas sim, empregar seus melhores esforços para desenvolver as ações prescritas pela estratégia.

James Jasper (2004) integra o grupo de autores da sociologia culturalista norte-americana cujo trabalho vem apontando as dimensões morais, emocionais e cognitivas que permeiam as escolhas táticas e as decisões estratégicas, e enquanto tal, é um dos pesquisadores responsáveis pela Virada Emocional (Gould, 2009) nos estudos sobre movimentos sociais e ações coletivas. Gould (2009) nomeia assim o momento em que pesquisadores como Jasper, Francesca Polleta, Jeff Goodwin, dentre outros, se propõem a investigar a forma como emoções, afetos e aspectos morais se manifestam nas ações coletivas (Goodwin, Jasper & Polleta, 2001).

O modelo dos dilemas estratégicos (Jasper, 2006) propõe abordar o tema através da investigação dos conflitos vividos pelos sujeitos diante da necessidade concreta de agir. Ele parte da premissa de que as estratégias são sempre executadas por sujeitos concretos, dotados de múltiplos interesses, experienciando emoções e sentimentos diversos. "Nós precisamos reconhecer o amplo hall de objetivos, ideias e sentimentos que compões os jogadores4, em vez de reduzi-los a um mínimo matematicamente tratável" (Jasper, 2004, p. 04). É dessa forma que a perspectiva oferece uma alternativa à concepção de sujeitos racionais movidos pelo propósito único de aumentar seus recursos e diminuir seus gastos, de aumentar ganhos e diminuir perdas, agindo apenas quando a estrutura de oportunidade política é favorável e seguindo integralmente um plano traçado por seus líderes.

Ao preferir a palavra jogadores (players), o enquadre ressalta a capacidade de agência dos sujeitos e sublinha o fato de que cada participante do movimento é demandado constantemente a avaliar custos emocionais, materiais e simbólicos para tomar decisões. Usando o termo "arena" (arena), o enquadre reforça o apelo empírico do modelo, uma vez que estas são entendidas como um "conjunto de regras e recursos que possibilitam, ou encorajam certos tipos de interação" (Jasper & Duyvendak, 2015, p.14), sendo construídas através das interações entre os participantes da disputa. Diante do imperativo de agir, cada jogador (player) avalia singularmente: as consequências de sua decisão sobre seus próprios interesses; a utilidade da ação para o sucesso de seus aliados e as vantagens que ela dará aos seus adversários e os diversos custos, materiais, emocionais e relacionais em questão. O processo decisório considera prescrições e recomendações partilhadas com os seus aliados, regras sociais, influências econômicas e culturais, bem como outras especificidades do contexto concreto (arena) na qual a disputa ocorre (Jasper, 2006).

A ideia de dilemas estratégico ressalta o imperativo de que cada jogador (player), e não só o grupo de estrategistas da vanguarda esclarecida, busca construir uma resposta equilibrando benefícios e malefícios, perdas e ganhos, vantagens e desvantagens decorrentes de sua escolha. Todos os jogadores são estrategistas. Chamando atenção para a importância de aspectos ainda pouco frequentes nos estudos deste campo, como cultura e emoções (Jasper, 2004, 2006, 2011, 2018), e atentando para o aspecto dinâmico e relacional presente no fenômeno, este modelo ressalta que "sem examinar o ato de seleção e aplicação das táticas, nós não conseguiremos explicar adequadamente os fatores psicológicos, organizacionais, culturais e estruturais que facilitam a compreensão dessas escolhas" (Jasper, 2004, p. 2).

Destacando a dimensão relacional e contextual das estratégias, a proposta de Jasper (2004, 2006, 2017) direciona a atenção para o fato de que cada um dos sujeitos: a) coordena-se junto com os outros participantes; b) pondera sobre o que fazer diante dos dilemas concretos, e c) responde singularmente aos desafios colocados pelas situações cotidianas. Analisar o componente estratégico desse modo recoloca em cena o caráter inventivo e o potencial de inovação que cada participante de uma ação coletiva pode imprimir a ela. Cada participante da ação coletiva é também um construtor da estratégia e, enquanto tal, responsável pela sua reinvenção diante de uma situação concreta.

Pensar as ações coletivas através de sua dimensão estratégica demanda: a) investigar os distintos contextos históricos, econômicos e sociais nos quais se deu a emergência de tais estratégias; b) nomear e analisar a racionalidade de organização de recursos, elaboração de táticas e escolha de dispositivos feitas pelos jogadores nas arenas, através das quais as estratégias se manifestam; c) investigar as modificações sofridas pelas táticas em função de uso ao longo do tempo, bem como ponderar sobre os efeitos que essas alterações produzem sobre as próprias estratégias; d) compreender os sentidos atribuídos pelos sujeitos às táticas e às estratégias, assim como escrutinar a forma como essas reverberam nos modos de sentir, pensar e agir daqueles que as executam.

O estudo de Valverde (1986) oferece um exemplo da viabilidade de analisar a militância enquanto estratégia e de ponderar como esta incide sobre aqueles que dela partilham. 'Militância e Poder' (Valverde, 1986), investigou textos dos Congressos da Internacional Comunista, obras de Marx e Lênin e publicações dos movimentos sindicalistas brasileiros no início do século XX e apontou como características da estratégia militante: a) adoção de um regime de poder disciplinar, centralizado e totalitário, que tem no partido seu principal centro de comando e dispositivo; b) uso desse regime como tática para produção do engajamento militante, de modo a assegurar corpos disponíveis e dispostos a trabalhar pela Revolução; c) aposta na subjetividade obediente, reativa, comprometida e ressentida, como forma de continuidade do engajamento dos militantes nas pautas defendidas pelo movimento. Tal interpretação lança luz sobre parte dos possíveis motivos da insistência dos ativistas brasileiros contemporâneos de se afastarem das práticas dos militantes.

Sousa (2014) reforça a pertinência das conclusões de Valverde e a utilidade de compreender a militância como estratégia, ao contrastar os modos de engajamento dessas com aqueles presentes nas organizações ativistas. A autora informa que, nessas últimas, a adesão às organizações não é obrigatória, e sim voluntária, quer dizer, "a manutenção dos seus propósitos, da sua 'pauta' de objetivos políticos se faz na continuidade para um sentido de compromisso e não pela disciplina assemelhada a uma obediência burocrática e dirigida" (Sousa, 2014, p. 60).

Pensada desse modo, o estudo da perspectiva estratégica destaca a capacidade de agência singular dos sujeitos, uma vez que ela reconhece a autonomia desses, o aprendizado adquirido por eles ao longo das disputas, e a necessidade de que os mesmos se responsabilizem pelas suas escolhas. Um movimento, enquanto ente abstrato, não elabora estratégias e não toma decisões; pessoas planejam o que fazer, coordenam-se para agir seguindo os planos desenhados e, ao chegarem em uma situação concreta, precisam ponderar sobre a viabilidade de seguir o que foi planejado. Entendida assim, a estratégia ganha caráter dinâmico, uma vez que ela passa a ser um dos muitos elementos considerados pelos indivíduos ao longo do curso das ações.

Em síntese: o caráter simultaneamente prescritivo e inventivo das ações estratégicas oferece uma possibilidade conceitual adequada para investigar alguns motivos que justificam a recusa do termo militância e a preferência pela expressão ativismo por parte dos jovens integrantes das ações coletivas contemporâneas no Brasil.

 

Instituições: investigar ações coletivas através da subjetividade

Em um texto de 1955, publicado na esteira de seus estudos sobre as relações entre empirismo e subjetividade, o filósofo Gilles Deleuze afirma que o homem é um animal que não tem instintos e, por isso, faz instituições. Exploraremos consequências dessa afirmação, através dos conceitos da Análise Institucional (A.I.) proposta por de René Lourau e Georges Lapassade e da forma como essas ideias vêm sendo apropriadas pela Psicologia Social Institucionalista Brasileira (Rossi & Passos, 2014).

Mesmo sendo um conceito polissêmico, há de se reconhecer o pressuposto, presente em diversas definições, de que as instituições são criadas para resolver problemas. Uma instituição é fruto de uma demanda presente na vida cotidiana. Ela é uma forma de prover satisfação a uma necessidade, seja de organização, de segurança, de descarga pulsional, ou qualquer outra. A A. I. conceitua instituições como lógicas: "são árvores de composições lógicas que, segundo a forma e o grau de formalização que adotem, podem ser leis, podem ser normas e, quando não estão enunciadas de maneira manifesta, podem ser pautas, regularidades de comportamentos" (Baremblitt, 1992, p. 27).

A relação delas com os sujeitos é marcada por signos, sentidos e significados, que os incitam a se comportarem de determinadas formas, ou, pelo contrário, que inibem seus comportamentos. Eis a premissa que a fez ganhar espaço dentro das teorias culturalistas em psicologia social: as instituições produzem os modos de ver, sentir e agir dos humanos. A incitação-restrição opera tanto através de prescrições, organizações sociais e normas de condutas partilhadas, quanto através da produção de modelos afetivos-cognitivos-libidinais que codificam aquilo que é possível pensar, fazer, ou sentir em uma determinada situação.

A manutenção da vida humana cria instituições que se apresentam nas formas de normas, leis, organizações e estabelecimentos, quer dizer, elas se manifestam e podem ser observadas através de seus dispositivos. A consolidação de uma norma não extingue as forças em disputa. As forças "derrotadas", permanecerão a interrogar as lógicas institucionais forjadas e os dispositivos através dos quais ela se manifesta. O resultado disso é um sistema de estabilidade frágil, no qual sempre são coexistentes forças instituintes e instituídas.

Como os sujeitos modificam as instituições se eles são sobre-determinados por elas? No cenário proposto pela A. I., o sujeito não se move apenas por uma racionalidade hipotético dedutiva, instrumental e maximizadora de ganhos - a qual tenderia a equalizar sempre as ações do sujeito às institucionalidades vigentes. O caráter inacabado, processual, contínuo e mútuo da produção entre sujeitos e instituições preserva a possibilidade de que um sujeito, ou um conjunto articulado de sujeitos, elevando a tensão institucional constitutiva, dê passagem às forças instituintes e consiga provocar rupturas e mudanças na cena institucional vigente. O reconhecimento da tensão instituinte-instituído como constitutiva do próprio conceito de instituição possibilita o afastamento de uma abordagem totalizante da ação institucional sobre o comportamento humano.

As instituições passam a ser fios constitutivos do tecido social e da malha subjetiva. É através da rede de fios institucionais que as subjetividades são tecidas. A composição resultante da trama desses fios produzirá uma forma, a qual temos chamado de sujeito. Esta abordagem reconhece que "o sujeito é o efeito da enunciação. O sujeito é o efeito dos processos de subjetivação. O sujeito é o efeito de um endereçamento. O sujeito é o efeito de um posicionamento. O sujeito é efeito da história" (Corazza & Tadeu, 2003, p. 12). E a subjetividade seria, então, uma forma singularizada que cada corpo humano constrói no encontro com as determinações preexistentes no mundo. Investigar subjetividades deixa de ser entender os limites da experiência do Eu, e passa a ser identificar os contornos de um determinado mapa singular de forças, explicitando os pontos de ancoragem dessas forças e ponderando sobre o que esse arranjo produz.

A Psicologia Social Institucionalista Brasileira5 trabalha com tais premissas e almeja explicitar a dimensão coletiva, pública e partilhada da subjetividade e apontar caminhos para a superação do dualismo entre o sujeito senhor de si e de suas ações e a determinação da linguagem, da cultura, das sociedades e da história. Ela localiza a subjetivação como um fenômeno que se processa entre os corpos humanos e outros corpos - biológicos, tecnológicos, discursivos, culturais, valorativos. Modos de ser, de pensar, de sentir e de agir são constantemente produzidos, reproduzidos e consumidos, ao mesmo tempo em que normatividades institucionais a eles correlatas são forjadas, difundidas e decompostas. O que se busca ao estudar esses fenômenos é compreender o "status desses componentes de agenciamento que se encontram 'no entre', em interação, entre domínios radicalmente heterogêneos" (Guattari, 2008, p. 3) e, ainda, acompanhar os efeitos pragmáticos desses agenciamentos nas esferas sociais, libidinais, afetivas e econômicas.

Nicholas Thoburn (2010) investigou o diagrama de subjetivação militante e apontou efeitos que este acarretou tanto sobre os integrantes, quanto sobre as práticas cotidianas na organização americana de extrema esquerda Weather Underground Organization (WUO). Formada na década de setenta do século passado, por estudantes da Universidade de Michigan, maior universidade pública norte-americana, a Weather Underground, tinha como objetivo último criar e sustentar um partido político revolucionário para suplantar o imperialismo Estado Unidense. Partindo da cartografia feita por Félix Guattari sobre os efeitos do Stalinismo sobre a revolução russa de 1917 (Guattari, 1981), Thoburn, em uma leitura similar a feita por Valverde (1986), conclui que o diagrama militante é caracterizado

pela produção de um campo de inércia que restringe o aparecimento de novidades e encoraja a aceitação de slogans e doutrinas; transformação de características singulares em dogmas universais; atribuição de uma vocação messiânica ao partido e estabelecimento de uma relação de dominação e contestação - aquele 'amor e ódio do militante' - com aqueles conhecidos como 'as massas' (Thoburn, 2010, p. 126).

Quando pensa nos efeitos que tal diagrama tem produzido hoje, o autor reconhece que ele é mais visível em movimentos radicais e marcadamente fundamentalistas, mas que também se faz presente em formas de militância comuns em organizações políticas ancoradas na compreensão do marxismo difundida por Joseph Stalin.

Esse estudo ajuda a visualizar o caráter repressivo e produtivo do conceito de instituição aqui debatido, o que nos faz defender sua utilidade para investigar diferenças entre as metodologias militante e ativista. Abordar as relações entre instituição e subjetivação apresenta um caminho frutífero para ampliar ferramentas teóricas que lancem luz sobre o que tem acontecido nas ruas, praças e computadores pelos Brasil e pelo mundo.

 

Sínteses e análises

Partindo do princípio de que militância e ativismo são metodologias de produção de ação coletiva para intervir/interferir nas normas sociais vigentes, os conceitos de repertório, estratégia e instituição foram discutidos como alternativas para enquadrar dimensões distintas das diferenças. Retomaremos pontos chaves desse percurso a fim de sugerir a existência de relações expressivas entre eles.

Trabalhando com o referencial sociológico, indicamos como as diversas formulações do conceito de repertório foram atribuindo a ele um caráter de manifestação singularizada através das performances. Mesmo que carregue as marcas dos caminhos históricos que o construíram, o repertório, no momento em que se expressa em ação, põe em cena as singularidades daqueles que o executam. Quando aproxima o conceito de repertório da noção de performance, Tilly destaca a criatividade, estilização e renovação que os sujeitos imprimem ao repertório no momento em que o usam (Tilly, 2006; Tilly & Tarrow, 2007). Simultaneamente, ele enquadra tais inovações dentro de um conjunto de limites e possibilidades historicamente relacionadas aos caminhos de produção do próprio repertório. A relação do repertório com a performance é marcada por uma apresentação e repetição do mesmo, mas que não se caracterize por uma afirmação do idêntico. A imagem criada pelo autor para ilustrar a ideia é de um músico tocando jazz guiado por uma partitura. As varições feitas por ele imprimem a sua marca singular na canção, ainda que sejam limitadas pela descrição da partitura. As performances nunca serão idênticas aos repertórios que as produzem, contudo, é pouco provável que a encenação da contestação extrapole muito as cercanias delimitadas pelo repertório. Os repertórios são criados e modificados através das escolhas daqueles que os utilizam, sendo possível apreendê-los através do comportamento daqueles que os usam. Quer dizer, os repertórios se expressam nas performances. A bidirecionalidade das flechas usadas na Figura 01 demarca o caráter de produção mútua que caracteriza a relação entre repertórios e performances.

 

 

Uma estratégia funciona como um conjunto de definições doutrinárias sobre princípios, fundamentos e procedimentos que orientarão os jogadores quanto à articulação, organização, desenvolvimento e avaliação das ações. As estratégias influenciam os dilemas estratégicos enfrentados pelos sujeitos (McGarry & Jasper, 2015), os procedimentos, e também os dispositivos, que podem, ou não, ser empregados. Analisar os comportamentos dos sujeitos permite compreender as estratégias planejadas, os dilemas enfrentados e parte dos motivos para a escolha de determinados dispositivos. Estudar arquivos, documentos e registros sobre as estratégias, atentado simultaneamente para as decisões tomadas no curso das ações, permite acompanhar como essas são executadas, renovadas e reconstruídas pelas escolhas dos indivíduos. Novamente, a bidirecionalidade das flechas usadas na Figura 02 demarca tanto o caráter de produção mútua que caracteriza a relação entre estratégias e dilemas, quanto a forma como os dilemas são uma forma de expressão das estratégias.

 

 

Estudando a Psicologia Social de base institucionalista evidenciamos a dimensão dinâmica e o estatuto de inacabamento presente nesse jogo de forças que constitui a subjetividade. Naquele momento apontamos tanto a importância da agência dos sujeitos na produção, consumo e transformação da dimensão institucional da existência humana, quanto o efeito restritivo-produtivo que as instituições exercem sobre a subjetividade dos mesmos. Instituições são entes que produzem, através da modificação de si, formas nas quais expressam sua característica criadora. Ou seja, os processos de subjetivação atuais são formas de expressão das instituições, e, enquanto tais, são fundamentais ao redesenho das mesmas, conforme representado na Figura 03.

 

 

Por fim, reconhecendo que uma instituição é uma lógica organizativa, surgida em um determinado momento, e cuja finalidade é resolver problemas ligados à existência dos coletivos humanos, pensemos um pouco sobre o problema da estruturação da ação coletiva para interferência nas normas sociais. Podemos supor que ao longo do tempo foram fabricadas distintas instituições capazes de manejar esses problemas; a fabricação de distintas estratégias para desencadear essas ações pode ser pensada como um produto dessas instituições. Cada uma dessas estratégias tendeu a circunscrever, taticamente, um conjunto de procedimentos preferenciais a serem executados, os quais foram modificados sistematicamente pelos participantes durante as ações. Esses procedimentos preferenciais foram reconhecidos como formas eficientes de apresentar uma contestação e potencialmente se consolidaram em repertórios. Essa descrição apresenta uma leitura da relação entre instituição-estratégia-repertório através da ideia de expressão e encontra-se sintizada na figura 04.

 

 

A Figura 05 apresenta um conjunto de perguntas possíveis em investigações que utilizem o percurso conceitual apresentado. Ela oferece alternativas para transitar com rigor entre os campos de estudos sociológico e psicológico, pois atende às condições científicas de coerência conceitual, rigor argumentativo e sentido de utilidade para a comunidade de pesquisadores interessados em investigar as mudanças em curso nas formas de contestação das normas sociais no Brasil, em especial para aqueles que se interessarem em se ocupar dos sentidos agregados nas palavras militância e ativismo. A opção pelo fluxograma, em vez de uma tabela, foi uma tentativa de preservar graficamente o caráter processual e de produção mútua existente entre os conceitos.

 

Considerações Finais

Repertórios, estratégias e instituições são construções culturais produzidas e produtoras dos coletivos humanos. A subjetividade é tecida no entrelaçamento dos mesmos fios que constroem instituições, estratégias e repertórios. Ela se expressa nessas construções e é expressa através delas. Temos usado esse modelo de estudo em nossa pesquisa atual sobre o ciclo de protesto em curso desde 2013. Nela temos focado em como as relações entre estratégia-instituição-subjetivação podem ajudar a distinguir e caracterizar as diferenças entre as metodologias ativista e militante.

O aumento global de formas de protesto, com repertórios de ação e agendas distintas daqueles tradicionais dos movimentos sociais trabalhistas, demanda a ampliação dos conceitos e ideias usadas para analisar esses fenômenos. O crescimento mundial de ações coletivas defendendo pautas conservadoras, reacionárias e pondo os direitos humanos em risco, cria o imperativo de qualifiquemos nossas análises a cerca desse tema. Esperamos que a proposta analítica apresentada aqui possa ser usada no desenho de estudos que nos auxiliem a compreensão disso que tem se passado pelas ruas, praças e redes virtuais no Brasil e no mundo.

Neste momento em que o Brasil vive contextos políticos turbulentos, os quais nos intimam a reinventar formas de existir em meio ao desmonte de direitos constitucionais e à cruzada moral cristã conservadora, partir da Psicologia e construir uma modelo de investigação interdisciplinar para as ações coletivas é a um ato teórico com notas de ativismo através do qual reforçamos a aposta no conhecimento científico como fonte de reflexão crítica sobre as questões que nos são colocadas neste tempo histórico.

 

Agradecimentos

Uma versão preliminar desse texto foi discutida no Seminário de Sociologia Política, coordenado pela professora Angela Alonso, na Universidade de São Paulo em Novembro de 2017 e no Political Protest Workshop, coordenado pelo Professor James Jasper na Universidade da Cidade de Nova Iorque, em dezembro de 2017. As contribuições recebidas nesses debates foram cruciais ao desenvolvimento do argumento. A pesquisa foi integralmente financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), através dos processos 2015/26241-0, 2017/00664-7 e 2018/01064-6. Agradecemos o apoio da Fundação.

 

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Recebido em: 04/05/2018
Aprovado em: 21/11/2018

 

 

1 As expressões jogadores e arenas são traduções dos termos usados na abordagem de Jasper (Jasper & Duyvendak, 2015) para analisar as ações coletivas e movimentos sociais. Trataremos de outros aspectos dessa abordagem em sessão específica do texto.
2 Todas as traduções foram feitas pelos autores.
3 A Medida Provisória 746 se transformou na Lei n° 13.415 (Brasil, 2017). A Proposta de Emenda Constitucional 241 se transformou na emenda constitucional n° 95 (Brasil, 2016).
4 O emprego da palavra ator foi evitado por sua associação a teorias estruturalistas das quais a perspectiva de Jasper tenta se diferenciar (Jasper, 2010). Ainda que o termo jogador não carregue a mesma contação que da palavra player, optou-se por ele para reforçar a ênfase dada pelo modelo ao caráter ativo dos participantes no contexto das ações coletivas.
5 É necessário ressaltar que mesmo não sendo esta a forma utilizada pelos autores dessa corrente teórica para se autodenominar, a influência das premissas aqui discutidas encontra-se amplamente difundida na perspectiva da pesquisa-intervenção (Romagnoli, 2014) e nas propostas de inspiração cartográfica (Passos, Kastrup, & Tedesco, 2016).

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