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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.19 no.45 São Paulo maio/ago. 2019

 

ARTIGOS

 

A produção de uma vida coletiva: a Rede Mídia Ninja como espaço de existir e resistir

 

The production of a collective life: the Mídia Ninja Network as a space to exist and to resist

 

La producción de una vida colectiva: la Red Mídia Ninja como espacio de existir y resistir

 

La production d'une vie collective: le Réseau Mídia Ninja comme espace d'exister et de résister

 

 

Josiele Bené LahorgueI; Kátia MaheirieII

IFaculdade CESUSC - Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina; psicojosi@gmail.com
IIUniversidade Federal de Santa Catarina; maheirie@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo busca compreender as resistências a um modo de vida hegemônico presente em nossa sociedade, a partir da discussão sobre a produção de comunicação digital colaborativa aliada à produção de uma vida coletiva/em rede. Para tanto, focaremos nossos olhares em algumas experiências da Rede Mídia Ninja (Ninja). Os procedimentos utilizados para a pesquisa foram a observação participante e o diário de campo. Realizamos a análise dialógica, que compreende a relação axiológica entre sujeito e pesquisadora, sendo o primeiro considerado responsável pelo seu discurso, não se tornando um objeto do discurso do outro. Os resultados apontam que a lógica da cultura em rede diz respeito à constituição de uma tecnologia de (com)viver coletivamente, a qual se relaciona com as formas como a comunicação digital e o ativismo se constituem na atualidade e, principalmente, com o espaço-tempo que conecta as/os diversas/os atores da Ninja.

Palavras-chave: mídia ninja; vida coletiva; rede; resistência; comunicação digital.


ABSTRACT

This article seeks to understand the resistances to a hegemonic way of life present in our society, starting from the discussion about the production of collaborative digital communication, combined with the production of a collective/network life. We will focus our eyes on some experiences of the Mídia Ninja Network. The procedures used for the research were the participant observation and the field diary. We perform the dialogic analysis, which comprises the axiological relation between subject and researcher. The subject is considered responsible for his/ her discourse, not becoming the subject of the other's speech. The results indicate that the logic of networked culture refers to the constitution of a technology of living collectively, related to the way in which digital communication and current activism are constituted and especially to the space-time that connects the various Ninja's actresses/actors.

Keywords: mídia ninja; collective life; network; resistance; digital communication.


RESUMEN

Este artículo busca comprender las resistencias a un modo de vida hegemónico presente en nuestra sociedad, a partir de la discusión sobre producción de comunicación digital colaborativa, aliada a la producción de una vida colectiva / en red. Así que vamos a enfocar nuestras miradas en algunas experiencias de la Red Mídia Ninja (Ninja). Los procedimientos utilizados para la investigación fueron la observación participante y el diario de campo. Realizamos el análisis dialógico, que comprende la relación axiológica entre sujeto e investigadora. El sujeto es considerado responsable de su discurso, no convirtiéndose en un objeto del discurso del otro. Los resultados indican que la lógica de la cultura en red se refiere a la constitución de una tecnología de (con)vivir colectivamente. Esta se relaciona con las formas como la comunicación digital y el activismo se constituyen en la actualidad y, principalmente, con el espacio-tiempo que conecta a las/los diversas/ os actrices/actores de la Mídia Ninja.

Palabras-clave: mídia ninja; vida colectiva; red; resistência; comunicación digital.


RÉSUMÉ

Cet article a comme but comprendre les résistances d'un modèle de vie hégémonique présent dans notre société, à partir d'une discussion sur la production de communication digitale collaborative liée à une production de vie collective/en réseau. Dans ce sens, nous irons analyser les expériences du Réseau Mídia Ninja. Les méthodes utilisées sont l 'observation participante et le journal de bord. Nous avons réalisé une analyse dialogique qui comprend la relation axiologique entre le sujet et la chercheuse, étant donnée que le premier est considéré responsable pour son discours etpour ce fait ne devientpas l'objet du discours de l'autre. Les résultats indiquent que la logique de la culture dans des réseaux concerne les formes comme la communication digitale et l 'activisme se constituent dans l 'actualité et, principalement, comme espace-temps qui conecte les divers auters du Réseau Mídia Ninja.

Mots-clés: réseau mídia ninja; vie collective; reseau; résistance; communication digitale.


 

 

Introdução

Este artigo é parte de uma pesquisa mais ampla que investigou as relações entre comunicação e democracia buscando compreender as perspectivas que constituem os meios de comunicação e as relações dos mesmos com a estruturação de projetos de sociedade diferentes que se encontram em disputa na atualidade. Consideramos que mídias tradicionais e independentes se amparam em perspectivas de sociedade contraditórias, as quais constroem mundos antagônicos no campo da produção de comunicação.

No Brasil, no período no qual a pesquisa foi realizada (2015-2016), as mídias tradicionais ecoaram como vozes que reforçavam o pensamento socialmente hegemônico1, o qual se relaciona com uma perspectiva de sujeito e de mundo que tem como base as relações capitalistas e conservadoras do status quo vigente. Alinhadas ao sistema e a uma perspectiva neoliberal, pautadas e reféns da lógica do mercado, as mídias tradicionais avaliam o que deve ou não ser visibilizado e audibilizado para que se possa produzir pensamentos e afetos que não venham romper a configuração sensível do mundo que defendem (Castells, 2013; D'Andréa & Alcântara, 2009; Rancière, 1996).

Já as mídias independentes foram marcadas pela necessidade de romper a configuração estável proposta pelas mídias tradicionais, visibilizando e audibilizando vozes e cenas nas quais as desigualdades eram questionadas e outros sentidos acerca do social se faziam possíveis. Pautadas nas questões alinhadas ao rompimento com a lógica do mercado, resistiam à compreensão hegemônica de uma hierarquia posta como natural, configurando outro mundo possível por meio de sua forma de produzir comunicação (Castells, 2013; D'Andréa & Alcântara, 2009; Rancière, 1996). Portanto, o que diferencia essas duas perspectivas está relacionado à forma como produzem comunicação e como enunciam seus projetos de sociedade.

O cenário brasileiro desde de 2013 colocou as mídias tradicionais em cheque, pois estas, pelo modo como deram visibilidade aos movimentos acontecidos nas Jornadas de Junho2 (Maricato et al., 2013), deliberadamente serviram ao grande mercado aliando-se a todos os processos necessários a garantia de seu controle, vizibilizando cenas e audibilizando vozes que coadunavam com a ideia de que manifestantes são baderndeiras/os.

A contra voz deste processo e desta configuração midiática, desde 2013, foi a voz das mídias independentes, as quais tornaram visíveis outras cenas e vozes capazes de contar outras histórias. As mídias independentes são consideradas como massas de mídias, uma vez que qualquer pessoa pode ser um/a comunicador/a ao mostrar um acontecimento utilizando seu celular, o qual possibilita um enquadramento outro que não mais o da mídia tradicional, fazendo "o seu recorte da realidade sem tentar buscar alcançar a objetividade pretendida pelos veículos de massa" (Almeida & Evangelista, 2013, p. 09). Sendo assim, elas produzem um dissenso, um desentendimento (Rancière, 1996) que marca o antagonismo dos mundos entre as mídias tradicionais e independentes.

Tais formas de experiência se relacionavam às relações de produção destas informações e à sua distribuição, sua articulação e sua proteção - relações democráticas, mais pautadas na horizontalidade de tarefas, de poder e de organização, que marcavam a contra-hegemonia no campo da informação. Assim, a importância da mídia independente está justamente no fato de abrir a comunicação a outros possíveis, a ampliar os sentidos, a criar outras interpretações, a mostrar outro mundo possível, por meio da ampliação de pensabilidades e afetos, em horizontes reais em suas experiências e em horizontes simbólicos em seu alcance. Para nós, uma forma singular e instigante surgia como um profícuo campo de estudos no âmbito da Psicologia Social.

Este artigo tem como objetivo compreender as resistências e rupturas a formas hegemônicas de produção de informação e de projetos de sociedade, a partir da discussão sobre produção de comunicação digital colaborativa aliada à produção de uma vida coletiva/em rede. Para tanto, focamos nossos olhares na Rede Mídia Ninja (Ninja), a qual vem provocando tensões na forma como a comunicação é produzida no contemporâneo. Ancorada na perspectiva de uma outra comunicação, a Ninja apresenta uma outra proposta de viver coletivamente, a qual servirá como dispositivo para as análises refletidas neste trabalho a partir do olhar da Psicologia Social.

 

Método

As informações e análises apresentadas no artigo têm como base materiais bibliográficos sobre o tema3, bem como uma experiência com a Ninja na Casa Fora do Eixo São Paulo (Casa FdE) durante 8 dias, entre os meses de julho e agosto de 2015. Destacamos que esta experiência se deu como pesquisadora, a qual se dispôs a ver e ouvir os ditos, os presumidos e os não-ditos nas relações entre sujeitos com os quais pesquisamos. O procedimento utilizado durante a estadia na Casa foi a observação participante, na qual observar, pesquisar e viver o cotidiano de forma implicada com as atividades de cada um e de todos constituiu a práxis dos 8 dias e nos possibilitou experienciar a vida em rede e perceber as múltiplas vozes que constituem a Ninja e os enunciados por ela produzidos, focando na cadeia enunciativa que a constitui.

Outro procedimento utilizado foi a escrita de um diário de campo, que se constituiu a partir de registros sobre as experiências de pesquisa. "A utilização do diário de campo não se limita a um registro descritivo dos acontecimentos e dos encontros (...) mas, principalmente, revela-se um recurso de elaboração do vivido" (Lahorgue & Zanella, 2013, p. 183). Assim, sua escrita é a possibilidade de objetivar a experiência da pesquisa, compreender o que nos passa, possibilitando o encontro com os enunciados desse(s) outro(s) que a compõe(m).

No diário de campo foram registrados os encontros coletivos realizados com integrantes da Ninja durante a experiência na Casa FdE - encontros informais que aconteceram no cotidiano, sem hora marcada e sem formalidades, mas que constituíram espaços importantes para compreender a dinâmica da Ninja. Portanto, algumas informações contidas neste artigo serão referenciadas como Mídia Ninja, tendo em vista que não há como designar uma/um única/o autora/autor para os enunciados.

Assim como nos diz Bakhtin (1920/2010a), não há uma primeira palavra que tenha sido dita, mas existem singularidades no existir que nos constituem e que constituem, assim, nossas relações. Para o filósofo, nos constituímos a partir das relações que estabelecemos com os diversos outros, que refletem e refratam elementos que nos concluem. Esses elementos, ao serem presumidos pela nossa consciência, perdem o valor concludente e auxiliam na ampliação de nossa consciência sobre nós mesmos, superando assim esse mesmo valor e deixando para nossa consciência a última palavra, que nunca será dita. (Bakhtin, 1979/2011).

A designação de uma autoria coletiva às informações registradas no diário de campo são importantes para que se evidencie a relação axiológica com o campo de pesquisa - condição esta importante na perspectiva de Bakhtin (1963/2010b, p. 72) para que se estabeleça uma análise dialógica, pois "somente sob uma orientação dialógica interna minha palavra se encontra na mais íntima relação com a palavra do outro, mas sem se fundir com ela, sem absorvê-la nem absorver seu valor, ou seja, conserva inteiramente a sua autonomia como palavra".

Por análise dialógica, compreendemos o que Bakhtin (1963/2010b) nos apresenta sobre a obra de Dostoiéviski a respeito da relação entre autor e personagem. Para esse teórico, o autor, ao compor o romance, "não fala do herói, mas com o herói" (Bakhtin, 1963/2010b, p. 72), possibilitando que o mesmo seja responsável pelo seu discurso, não se tornando um objeto do discurso do outro. Ao invés, ele se compõe na tessitura da trama do romance, abrindo-se para sentidos outros, de forma a não se fechar nos sentidos produzidos pelo autor. Consideramos a Ninja um dispositivo que possibilitará a emergência de visibilidades e dizibilidades que enunciam modos de ser e de viver, o que implica perceber, na análise dialógica, os enunciados produzidos por ela a partir das relações engendradas pelas diversas vozes sociais em tensão que estão presentes nesta rede.

Também é a partir de Bakhtin (1929/2010c) que entendemos enunciado como um acontecimento social, único e irrepetível, composto por uma parte verbal e outra extraverbal sendo, portanto, considerado uma unidade da comunicação verbal que tem autor e destinatário. Um enunciado pode ser uma palavra, texto, filme, imagem, fotografia, escultura, frase ou qualquer outra "matéria que possa entrar numa relação de conversação ou diálogo entre sujeitos, provocando respostas, isto é, outros enunciados" (Groff, 2015, p. 82). Respondemos a um enunciado a partir de outro enunciado, formando uma cadeia enunciativa que está sempre aberta a respostas outras, a sentidos outros.

Para uma análise dialógica do discurso é preciso compreender o enunciado a partir de alguns aspectos que são importantes e que farão com que possam ser auscultadas as diversas vozes sociais que, em tensão, compõem os enunciados concretos. Assim, uma análise do discurso dialógico procura apresentar algumas facetas importantes: 1) quem enuncia, ou seja, quem são suas/seus autoras/es; 2) para quem se enuncia, quem são as/os interlocutoras/es, 3) qual o contexto de enunciação, 4) quais os presumidos desse enunciado e 5) para que possíveis eles apontam.

 

Uma Rede de Redes

A Rede Mídia Ninja - Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação é uma experiência de produção de comunicação independente, colaborativa e em rede que cresce ancorada no Fora do Eixo (FdE). Este, por sua vez, é uma rede de produção cultural que surge a partir de diversos coletivos que, no início dos anos 2000, buscavam dar visibilidade à produção cultural independente, principalmente voltada à música, visando a disputa com o modelo de produção e distribuição cultural hegemônico no Brasil.

Consideramos que, para compreender o surgimento da Ninja, é preciso olhar para duas questões importantes no FdE: o partilhar de uma vida coletiva e as possibilidades de produzir comunicação, de modo que para falar da primeira é necessário também olhar a segunda, visto que ambas as redes são tecidas pelas mesmas experiências.

 

Uma trama necessária: a produção de uma vida coletiva

Desde sua consolidação, o FdE vem debatendo duas dimensões da Rede: a primeira está relacionada ao circuito cultural que disputa espaço com a cultura fonográfica hegemônica e faz emergir experiências alternativas e novos ambientes produtivos; a segunda dimensão é a organização política, responsável por pensar a articulação dessa Rede tanto interna quanto externamente. As duas dimensões se retroalimentam e "estruturam a rede-político cultural Fora do Eixo" (Savazoni, 2014, p. 68). Os acúmulos nessas duas dimensões levaram os coletivos à percepção de que era necessário conectar artistas independentes para produzir e distribuir suas criações musicais, visando o intercâmbio solidário entre artistas, produtoras/es e espectadoras/es e o debate sobre as políticas públicas voltadas para a cultura. Mais recentemente, passou a abarcar também o debate sobre comunicação, que contribuiu para a consolidação da Ninja, no ano de 2013 (Lorenzotti, 2014).

Na época de surgimento do FdE (ano de 2005) para viver de produção musical independente no cenário de produção cultural brasileira era necessário reduzir ao mínimo os custos necessários para a sobrevivência, bem como criar laços fortificados entre as/os artistas. Neste contexto, as/os artistas do FdE decidiram alugar uma casa para que todas/os pudessem viver em coletividade. A experiência reverberou de maneira que nos anos seguintes outras Casas Coletivas do FdE foram abertas, funcionando como espaços onde as/os participantes das redes residem.

As Casas Coletivas sobrevivem do compartilhamento financeiro entre as/os residentes nas mesmas. Cada Casa possui caixas coletivos, que desde o início foram estruturando as mesmas e hoje se consolidam como uma perspectiva de compartilhamento financeiro que escapa da lógica monetária (Capilé, 2013). Assim, aquelas/es que residem nas casas do FdE constituem suas relações com base na troca dos serviços, transformando "1 em 10, na lógica de Rede, o que um da Rede faz, todo mundo recebe em conjunto, então isso vai se multiplicando o tempo inteiro" (Capilé, 2013, s. p.).

Foi a partir dessa experiência empírica que o FdE começou a pensar as tecnologias sociais para viver coletivamente, desmonetarizando as relações e formando uma outra economia com base na colaboração, nos afetos e nas parcerias. Os caixas coletivos são considerados sua tecnologia social mais importante, compondo a base do projeto de sociedade que o FdE tem estruturando nos últimos 12 anos, na busca por ressignificar a relação com o sistema capitalista (Mídia Ninja, comunicação pessoal, 2015) engendrando possibilidades de afastamento da perspectiva monetária e intensificação da lógica da coletividade.

Ao determinarem que o dinheiro não era a única maneira de viabilizar os projetos dessas Redes e a subsistência das/os artistas que as costuravam, esses coletivos estabeleceram parcerias e trocas com pessoas físicas e jurídicas, as quais foram sistematizadas e deram origem à moeda social Card, que contabilizava as horas de trabalho, o empréstimo de equipamentos e outras trocas como parte da economia que fazia girar os projetos do FdE (Mídia Ninja, comunicação pessoal, 2015). Atualmente não há mais a necessidade de contabilizar as horas trabalhadas e transformá-las em cards, pois a contabilidade acontece de forma orgânica e com base na confiança entre as partes envolvidas.

Essa moeda social já passou por vários valores e, em 2015, época da pesquisa, contabilizavam que uma hora de trabalho é igual a cinquenta cards, e um card equivale a um real na moeda corrente brasileira. Consideram que, todas/os que estão envolvidas/os nas Redes - principalmente as/os que vivem nas Casas Coletivas - estão investindo suas horas de trabalho em troca desses cards (Mídia Ninja, comunicação pessoal, 2015). Assim cada residente de uma Casa Coletiva está vivendo e trabalhando para que as Redes (FdE e Ninja) se fortaleçam, enquanto potencializa as mesmas com a dedicação de tempo e tesão para os projetos. Não há pagamento de salários e todo dinheiro que entra para as Redes é compartilhado por todas e todos, partindo da ideia de que a pessoa que investe seu trabalho deve receber casa, comida, roupa, lazer e tudo o que for necessário para sua sobrevivência. O pagamento é a confiança e o lastro que cada uma e cada um vai construindo, e é isso que vai sustentando as Redes. As parcerias que se dão com pessoas físicas e jurídicas de fora das Redes também perpassam a confiança e se estabelece a partir da troca de serviços: se uma pessoa empresta algum equipamento de som, isso será contabilizado e a Rede estabelecerá uma parceria com essa pessoa (física ou jurídica).

O financiamento dessas Casas ocorre mediante o dinheiro recebido pelas prestações de serviços das/os residentes nas mesmas e também pela participação em editais públicos de fomento, o que gera de 3 a 7% do dinheiro que circula (Capilé, 2013). A administração financeira ocorre a partir do que denominam de Banco FdE: cada Casa possui uma pessoa responsável pela administração do Banco, encarregada de efetuar a gestão transparente das movimentações originadas a partir do dinheiro que as Redes recebem. Todas as movimentações e gastos são debatidos coletivamente; no entanto, há prioridade para as despesas de manutenção de cada Casa: alimentação, saúde, luz, internet, lazer, vestimentas. A equipe do Banco é responsável também por escrever editais, organizar trabalhos de free-lancer e outras possibilidades que gerem recursos para as Redes.

Ainda sobre a manutenção das necessidades básicas daquelas/es que vivem nas Casas Coletivas é preciso registrar que, em sua maioria, existem parcerias com feirantes que trabalham próximo das Casas para que seja realizada a Xêpa4, isto é, a ação de buscar na feira alimentos que não foram vendidos e que ao final são descartados. Essa é uma atividade importante, pois faz com que a comunidade da região conheça e crie confiança no trabalho do FdE e da Ninja, além de ser uma forma de as pessoas da Casa se alimentarem e utilizarem a criatividade na produção dos alimentos, cozinhando com o que se tem e não com o que se quer. Essa é uma das tecnologias que faz parte do que elas/es chamam de precariado, cujo significado consiste em buscar e aumentar a potência de uma estrutura considerada precária, invertendo sua condição de precariedade.

A tag5 do precariado diz de um trabalho que visa explorar os recursos que se tem, transformando no que se precisa - no caso, transformando restos em refeições para as/os residentes das Casas Coletivas. Articulada com o precariado, há outra tecnologia social importante para o funcionamento das Casas: a gestão colaborativa. Essa gestão e as tecnologias empregadas podem mudar de uma Casa para outra, pois elas vão sendo experienciadas e ajustadas conforme as pessoas que residem nas mesmas em determinado momento. Destaca-se que as/os viventes acabam mudando muito de uma Casa para outra, não ficam sempre na mesma, até para experienciarem dinâmicas, processos e convívios diferentes. A proposta não é que a pessoa se fixe em alguma Casa, mas que ela faça parte de todas. Há uma frase muito compartilhada por todas/os da Rede que é: De Casa em Casa, sempre em casa.

As Casas são pensadas como uma engrenagem que engloba todos os outros processos, de modo que, para que os demais projetos consigam ser realizados, é necessário que a gestão de cada unidade esteja funcionando. Assim, as tarefas de organização da Casa são divididas semanalmente, conforme a disponibilidade de cada pessoa que está morando ali naquela semana, pois a vida coletiva precisa ser gestada também.

Para demandas como limpeza de banheiros, refeições, mercado, feira, entre outras tarefas domésticas importantes, existe o Cronograma Semanal de Tarefas ResCult (Residência Cultural). Tal cronograma é dividido em quatro grandes eixos e cada eixo é subdividido a partir do compartilhamento, entre as/os viventes de cada Casa, de uma tabela no Google Docs. Cada pessoa fica responsável por duas atividades por dia, relacionadas aos eixos de alimentação diária e limpeza diária; e uma atividade semanal, relacionada aos eixos de manutenção semanal e lavanderia. É de todas e todos a responsabilidade de lavar sua louça após as refeições. A gestão colaborativa e as tecnologias envolvidas, como é o caso do Cronograma, podem mudar de uma Casa para outra, pois são elementos experienciados e ajustados conforme a composição das residências.

Tais tecnologias permitiram ao FdE atuar de modo independente e autônomo, funcionando como uma incubadora. Neste processo, o foco de trabalho, que era a música, foi deslocado para a área da cultura digital e para a luta por direitos humanos. A Ninja, por sua vez, é considerada um resultado desta incubadora de projetos, pois surge da experiência coletiva do FdE, utilizando-se de suas estruturas físicas, dos seus recursos materiais e de suas tecnologias sociais, sendo considerada uma rede que já tem um acúmulo de dez anos de trabalho - algo que talvez tenha colaborado para seu surgimento como uma potência em 2013.

 

Das Tramas da Cultura para as Narrativas Midiáticas: uma produção "alta performance do precariado"

A partir da organização dos festivais de bandas promovidos pelo FdE, as/os artistas perceberam que a mídia tradicional não estava interessada em divulgar o cenário de produção cultural independente. Buscaram suprir essa ausência divulgando o que eram os festivais, de que forma aconteciam e quem eram as/os artistas que deles participavam. E mais tarde, começaram a filmar, fotografar e divulgar esses eventos em tempo real, utilizando as redes sociais6. Foi assim que, desde 2005, quando o FdE se consolidou, até 2011, a comunicação produzida era intensa e muito institucionalizada (Mídia Ninja, comunicação pessoal, 2015), isto é, com enfoque nas questões voltadas para o que era produzido dentro daquela Rede. Assim, ainda que realizassem uma produção alternativa de comunicação que se opunha à lógica da indústria cultural, limitavam-se a divulgar seus próprios festivais.

A partir de 2011, o FdE deu início ao processo que hoje denominam laboratório Mídia Ninja, com a criação do canal de televisão na internet conhecido como Pós-TV - uma abertura a outras possibilidades de comunicação, saindo do circuito cultural sem deixar de levar essa experiência prévia para outras áreas. O canal funcionou como espaço para que o FdE escoasse o material que vinha produzindo, sendo que atualmente é considerado um laboratório full time de tecnologias e também um meio de propor um outro modelo de TV aberta no Brasil, com outra gestão e outros conteúdos (Mídia Ninja, comunicação pessoal, 2015).

 

Tecendo redes de comunicação digital

A comunicação se constitui na relação entre sujeitos e relaciona-se diretamente com um campo simbólico em tensão (Bakhtin, 1929/2010c; Castells, 2013; Lévy, 1997/2010; Santos & Cypriano, 2014) e com a produção de sentidos antagônicos, algo que perpassa a (re)produção e a (re) transmissão de informações. A comunicação, pois, constitui-se como espaço de tensividade e se relaciona com o acontecimento, o qual rompe com a lei e a ordem de forma contingente, isto é, sem que seja fundamentado (Prado, 2016).

Para a perspectiva dialógica bakhtiniana, o ato comunicativo pode ser considerado como "um terreno das interações, conflitos e disputas sociais entremeado por pressões, determinações e balizamentos próprios de uma dada época e lugar" (Ribeiro & Sacramento, 2010, p. 15). Sendo assim, deve ser compreendido como uma luta discursiva, na qual o sentido vai sendo produzido nas relações sociais e políticas que são estabelecidas entre sujeitos e/ou coletivos e que se alteram mutuamente.

A comunicação se constitui a partir de diferentes meios, que são chamados de dispositivos comunicacionais que variam a sua estrutura conforme a tecnologia, quais sejam: dispositivos baseados na relação "um-todos", na qual um único centro transmissor envia a mensagem para um grande número de receptores; os dispositivos em que a relação é de contato ponto-a-ponto ("um-um"), ou seja, a mensagem sai de um único transmissor e é recebida por um único receptor; o dispositivo "todos-todos", nos quais há mais de um receptor e de um transmissor. (Lévy, 1997/2010).

Os dispositivos comunicacionais digitais compreendem uma relação entre diversos pontos transmissores e receptores, de modo que modificam a forma da produção de comunicação. São considerados modelos mais democráticos de comunicação (D'Andréa & Alcântara, 2009), pois quebram a lógica unidirecional e possibilitam que diversas ideias estejam presentes em um mesmo espaço, reconfigurando desta forma as práticas comunicacionais. Dentro desta perspectiva podemos compreender que a produção de comunicação é considerada uma relação existente entre sujeitos que (re) produzem e (re)transmitem informações (Bakhtin, 1963/2010b; Castells, 2013; Lévy 1997/2010;

Santos & Cypriano, 2014), sendo assim uma relação dialógica na qual a mensagem produzida, quando acessada pelas/os leitoras/es, possibilita a produção de sentidos variados: cada sujeito, quando em contato com uma dada mensagem, atribui valores, modos de ser, de ver e de viver, que são novamente (com)partilhados com outros sujeitos, que por sua vez lhes dão sentidos outros (Newcomb, 2010).

Tal produção se dá a partir das/os diferentes espectadoras/es que (re)produzem as informações lançadas nos palcos digitais. Estas informações costuram a rede que tece nossa sociedade, de forma que o espaço digital possibilita que as/aos sujeitos se relacionem uns com os outros, independente de seus lugares geográficos e da coincidência de seus tempos (Lévy, 1997/2010; Vieira, 2006), criando-se assim o que conhecemos por ciberespaço, "novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial de computadores" (Lévy, 1997/2010, p. 17) e envolve uma estrutura material/física e informacional que, contudo, não pode ser compreendida separadamente do contexto social (o offline). Porque somos atravessados pela internet (Bentes, 2013) podemos dizer que o ciberespaço é constituído por e constituinte de sujeitos.

As tecnologias digitais possibilitam que nossa sociedade se estruture em rede na qual se estabelecem relações outras com os tempos e os espaços. Podemos pensar nessa estrutura como possibilidades de conexões entre lugares e temporalidades (Castells, 1999). A rede não é considerada somente a infraestrutura, mas sim o que é produzido a partir da mesma. Portanto, a rede se estabelece não somente a partir dos diversos "nós" que a compõem, mas, principalmente dos fios que são tecidos por esses "nós", ou seja, ela é tecida a partir da capacidade de cada sujeito fazer com que outros/as produzam coisas inesperadas, criando possibilidades que emergem nas relações entre sujeitos (Lemos, 2013), que constituem por sua vez estruturas verticalizadas e horizontalizadas para sustentação das redes.

Por se estruturar tal qual uma rede, onde cada nó pode ser tanto emissor/a quanto receptor/a de conteúdo, o ciberespaço permite que se compartilhe "o mesmo contexto, o mesmo hipertexto vivo" (Lévy, 1997/2010, p. 118), através do que se denomina de interatividade (D'Andréa & Alcântara, 2009; Santos & Cypriano, 2014). Esta toma corpo com o surgimento das comunidades digitais a partir da década de 1970 "pelos libertários da contracultura" (Lorenzotti, 2014, s. p.). Comunidades que, por sua vez, possibilitaram a criação da web 2.0, caracterizada pelo aumento da velocidade da circulação de informação que deu origem às redes sociais.

A partir da lógica das conexões entre micro-nós, as/os hackers buscaram a liberação das diversas vozes sociais, fomentando a criação de listas de discussões sobre assuntos diversos, pautados nas opiniões das/os participantes que compunham essas redes (Malini & Antoun, 2013). Tal estrutura auxiliou no surgimento do ciberativismo no ano de 1984, quando inúmeras/os ativistas se reuniram no ciberespaço e modificaram sua lógica de funcionamento, trabalhando na perspectiva da colaboração, do compartilhamento de informações, das trocas virtuais de opiniões, da libertação das vozes presentes naquele espaço de "subjugação informacional aos interesses exclusivos do capital" (Malini & Antoun, 2013, p. 19).

Essa mudança na lógica de funcionamento do ciberespaço modificou o funcionamento das redes P2P (peer-to-peer, ou par-a-par). Estas se apresentam em diferentes composições: existem as redes que possuem um servidor central, tais como a que era utilizada pela comunidade Napster - "um sistema de troca de arquivos na web" (Malini & Antoun, 2013, p. 90). Neste caso, o servidor mantinha um diretório que armazenava todos os arquivos que estavam nos computadores de cada usuária/o que acessava o Napster para o compartilhamento. Assim, as/os usuárias/os se conectavam entre si para fazer o download dos arquivos. Tal conexão se caracterizava por uma estrutura mais verticalizada, tendo em vista que o servidor, portanto, tinha a função de conectar as/os usuários, ou seja, uma autoridade (servidor) conectava e organizava os nós da rede (usuários) (Malini & Antoun, 2013).

O Napster possibilitou o surgimento de outros tipos de modelos de redes P2P, como o GNUtella, que se diferenciava por possuir uma arquitetura descentralizada que possibilita o anonimato dos usuários. Trata-se uma rede P2P distribuída, na qual não há um único servidor que distribui as informações. Cada participante da rede é um servidor; portanto, a centralidade é substituída por estruturas horizontalizadas de conexão entre os diversos nós da rede - o que permitiu a criação de diversas redes de compartilhamento de dados. Outra arquitetura de rede P2P é conhecida como semicentraliza-da, que se caracteriza pela criação de redes híbridas - mistas. Essas redes se estruturam por super-nós (hubs) considerados os servidores da rede, mas ao mesmo tempo possibilitam trocas entre as/os usuárias/os sem passar por um dos servidores (hubs) (Malini & Antoun, 2013). Aqui, encontramos estruturas horizontais e verticais sustentando uma mesma rede.

Os ciberativistas, também conhecidos como hacktivistas, se apropriaram dessas e de outras ferramentas e tecnologias capazes de produzir resistências e inovações, utilizando a internet como instrumento de luta contra a capitalização do comum que ocorre em nossa sociedade (Bentes, 2013). Em outras palavras, operaram com algo produzido pelo capitalismo para o monitoramento de nossas vidas, convertendo-o em uma forma de resistência contra as regras do próprio capital. Tais hackeamentos derrubam os muros da prisão, evidenciando que na contemporaneidade não é somente o vigia do panóptico que tudo vê (Mendes Junior, 2010), mas todas/os veem e são vistas/os, todas/os estão expostas/os.

Aqui nos referimos ao panóptico de Bentham, utilizado por Foucault (1987/1999) para sua teoria sobre o nascimento das prisões. O panóptico é um sistema de prisão circular, onde o vigia se concentra no centro do espaço e consegue visualizar todos indivíduos que se encontram presas/os sem que nenhum possa lhe ver. É, portanto, um dispositivo de vigilância dos sujeitos através do jogo tempo-espaço que totaliza o tempo e busca fixar o sujeito no espaço, trabalhando com um jogo de visibilidade (de quem que é vigiada/o) e invisibilidade (aquela/e que vigia). Já as/os hacktivistas invertem os muros da prisão, pois com a criação das redes sociais não há somente um/a que vigia; todas/os vigiam e são vigiadas/os, todas/os estão expostas/os.

Nesse hackeamento, redes de colaboração são criadas de forma que as resistências tecidas nas redes digitais costuram-se com as vozes das ruas, produzindo assim outros modos de viver. Encontramos nessa disputa a luta pela produção de outras narrativas que combatam a voz hegemônica das mídias tradicionais, rompendo com o sensível instituído e apresentando outras formas de olhar, sentir, dizer, fazer.

 

"Precariado": modos de existir e resistir em rede

A utilização de tecnologias do precariado também diz de uma produção independente, pois a Ninja não possui as tecnologias que alguns canais da mídia tradicional possuem, fazendo uso dos recursos que estão disponíveis e da atuação colaborativa e em rede, de forma que a produção do precariado potencializa articulação entre diversos coletivos e pessoas que buscam fortalecer as narrativas que se contrapõem ao que está instituído.

Assim, o hackeamento de um sistema hegemônico torna-se viável quando pensado e executado por uma rede que objetive trabalhar de forma coletiva e colaborativa - algo que nos remete às discussões sobre as estruturas das redes P2P na internet. Do ponto de vista tecnológico, estas redes surgiram para que as pessoas pudessem compartilhar informações independente de servidores, muitas vezes burlando os "canais oficiais" nos quais era preciso pagar para obter o arquivo desejado (seja uma música ou um programa de computador), facilitando a distribuição de arquivos sem precisar pagar um servidor para que os mesmos ficassem disponíveis.

O conceito de rede é um conceito polissêmico que, utilizado por diversas ciências, pode denominar compreensões diferentes; para as ciências sociais é conhecido como os sistemas de relações entre os sujeitos, para a matemática e a informática é considerada como modelos de conexões, na economia é utilizado como um conceito que define novas relações e novos modelos teóricos, nas tecnologias designa as estruturas das telecnomunicações e na biologia, é utilizado para conhecermos o funcionamento do corpo humano (Musso, 2010).

Neste artigo, utilizamos o conceito de rede para pensar os modos de existir e resistir, não somente como uma metáfora, mas como uma forma de (com)vivência, de experienciar a vida em determinado dispositivo de enunciação coletiva, entrelaçando as singularidades em torno do comum. A rede aqui é considerada como um sistema aberto, que se conecta a partir de seus diversos nós - podendo se estender por todas as direções - e não é dotada de superfície. Uma rede híbrida que se conecta a partir de heterogeneidades, em conexão descentralizada, não hierárquica e nem determinista (Kastrup, 2010).

Levando em consideração que a Ninja é considerada resultado de anos de experiência do FdE, a tessitura de uma rede de resistência às narrativas hegemônicas vem acontecendo desde o início do FdE, quando este articulava a produção cultural através de diversos coletivos espalhados pelo Brasil, estruturados como uma rede de redes. As Casas Coletivas, por sua vez, reúnem pessoas dessas variadas redes para pensar atividades locais, regionais e nacionais, visando fortalecer debates que não aparecem nos canais de mídia tradicionais. São pautadas na lógica da Economia Solidária, Economia Colaborativa e Economia Criativa, onde o dinheiro não é a única forma de sustento e viabilização de projetos em função da existência de diversos outros ativos como as trocas e parcerias com outros coletivos ou pessoas físicas (Mídia Ninja, comunicação pessoal, 2015).

Ao trabalharem com a perspectiva da rede colaborativa utilizando-se da lógica do compartilhamento financeiro para gerir os diversos "nós" dessa rede, as/os ninjas buscam descentralizar ações e responsabilidades de acordo com a lógica presente nas redes de internet, sendo capazes de "criar novos arranjos sociais e políticos, novas articulações entre sujeitos em busca de práticas mais colaborativas" (Segurado, 2015, p. 1677). Assim, nas Casas Coletivas, tudo é compartilhado, constituindo uma forma de vida comunitária, onde todas/os se auxiliam mutuamente, sustentando essa rede colaborativa.

A Ninja é tecida pelas pessoas que fazem parte de diversas outras redes, que vivem ou não nas Casas Coletivas. É a potência dos sujeitos, o singular e a rede, o singular é a rede. Neste sentido, a experiência na Casa FdE possibilitou compreender que é por agir de forma colaborativa e em rede que eles conseguem realizar uma produção de comunicação alta performance do precariado.

Durante a vivência na Casa FdE São Paulo, houve o empréstimo de equipamentos de som por parte de uma pessoa física. A Rede não ficou em dívida com essa pessoa, mas possivelmente irá indicá-la para algum serviço, tendo em vista que muitas vezes o FdE é chamado para montagem de equipamentos de som em festivais ou eventos; ou poderá também auxiliar essa pessoa a fazer algum material gráfico para divulgar o seu trabalho ou outras formas de parcerias que podem ser realizadas. Tudo depende da relação que se estabelece com a Rede. Muitas pessoas fazem parcerias por reconhecerem a importância do projeto político dessas Redes.

No cotidiano dessa vida coletiva, os viventes dividem os afazeres domésticos da Casa assim como as tarefas necessárias para a realização de um projeto. Isso não quer dizer que não há singularidades: elas existem e cada pessoa se reconhece como parte de um projeto da rede e realiza as tarefas conforme suas possibilidades - algo por eles denominado Banco de estímulos, cuja função é proporcionar o reconhecimento das potências de cada sujeito - não só pelas/os demais integrantes da rede, mas principalmente o reconhecimento de si, no que se refere ao que gosta ou não de fazer.

As pessoas que ficam na Casa naquela semana, ou naquele mês, é que ditam o ritmo da mesma e desenham as tecnologias de gestão. Tudo depende de como é a rotina da própria Casa. Existem momentos em que as atividades são mais internas, as pessoas estão circulando mais pela Casa e, portanto, a maioria consegue se dedicar mais às atividades domésticas. No entanto, podem existir momentos em que algumas pessoas estarão em atividades mais externas, passando muito tempo fora da Casa, o que fará com que não consigam se dedicar o tempo necessário para as atividades da mesma. Isso tudo é gerido a partir de uma Tecnologia do Viver Coletivamente, que é baseada na motivação a partir da necessidade que a ResCult tem e da forma como cada um e cada uma conseguirá colaborar. E o/a gestor/a de cada grande área é a/o grande nó responsável por fazer com que esses fios sejam tecidos. (Mídia Ninja, comunicação pessoal, 2015).

A Rede FdE se organiza a partir de áreas de atuação, cujos gestoras/es que são responsáveis por fazer funcionar os projetos e por organizar a participação de cada uma e cada um que compõe as Redes (Ninja e FdE). Assim, cada participante pode atuar em mais de uma área e também ser gestor/a de alguma delas. O que denominamos de áreas de atuação é o que o FdE designa, em seu Regimento Interno como simulacros - frentes gestoras mediadoras: Banco FdE que é "responsável pelas ações de sustentabilidade da rede"; Partido da Cultura FdE "responsável pela articulação política, concepção e elaboração de estratégias"; Centro Multimídia "núcleo que trabalha toda a comunicação"; Universidade FdE, responsável por sistematizar conteúdo e por realizar capacitações; e a ResCult, "espaço de intercâmbio, vivências, hospedagem e/ou moradia, de artistas, gestores e produtores culturais". (Savazoni, 2014, p. 240-244). (Mídia Ninja, comunicação pessoal, 2015).

Esta rede é, portanto, uma estrutura que conecta diversos nós, os quais através de fluxos produzem novos ordenamentos e outras possibilidades de (com)viver, baseados no compartilhamento de experiências e afetos que aumentam ou diminuem a capacidade dos sujeitos e, portanto, a própria capacidade das redes que por eles são tecidas. Por este motivo compreendemos que cada sujeito compõe a rede, pois é a partir das relações que se estabelecem - tanto no convívio diário entre as/os moradoras/es da Casa FdE quanto nas atividades desenvolvidas com as parcerias de outros movimentos e pessoas físicas - que a rede é tecida, ampliando alguns nós e fortalecendo outros. Desta forma, a Ninja e o FdE, através das tecnologias de (com)viver coletivamente e de ativismo em rede, estabelecem relações dialógicas que (re)criam existências e resistências, ao mesmo tempo em que afetam e são afetadas e agenciam outras formas de ser e de viver.

 

Considerações Finais

A proposta de construir uma experiência coletiva vem da necessidade concreta de sobrevivência a partir do trabalho de produção musical independente por parte das/os integrantes do FdE. Assim, para além da necessidade concreta, podemos pensar que há nessa proposta a produção de enunciados outros que se contrapõem aos hegemônicos de nossa sociedade.

Assim como a rede P2P criada no ciberespaço para o compartilhamento de conteúdo, as/os midialivristas7 da Ninja vivem nas casas do FdE o compartilhamento de uma vida coletiva. Tal experiência não se constitui somente de experiências, vivências, afetos, mas principalmente, de uma outra possibilidade de se (com)viver baseada em uma ética, uma estética e uma política. Articulada a esta lógica de convivência está a lógica de produção de comunicação e do ativismo em rede, ambos tecidos pela Ninja a partir de parcerias, trocas de serviços, articulações e reticulações importantes para o modo de viver do precariado. Diversos são os nós que constituem essa rede híbrida composta por inúmeras vozes que se encontram enlaçadas em momentos diferentes, em espaços-tempos diferentes que, ao mesmo tempo em que constituem uma única grande rede, também pertencem a diversas outras redes, tão potentes quanto esta.

Neste sentido, considerando que o ciberespaço constitui-se por e é constituinte de sujeitos, a vida real e a virtual se assemelham. As experiências de rede que surgem com o advento da web 2.0 são transpostas para a vida cotidiana dos ativistas da Ninja e vice-versa. Sendo assim, as experiências de rede são compostas pelo que se desenvolve de tecnologias digitais e a partir do hackeamento das mesmas como forma de produção de outros possíveis, no que diz respeito às nossas existências e resistências.

Portanto, é possível compreender que a lógica da cultura em rede diz respeito a constituição de uma tecnologia de (com)viver coletivamente que relaciona-se com as formas como a comunicação e o ativismo se dão na atualidade e, principalmente, com o espaço-tempo que conecta os diversos atores da Ninja. Sendo assim, compreender como uma experiência de vida coletiva pode se constituir como resistência à um modo de vida hegemônico em nossa sociedade - sem se pautar pela lógica monetária, mas pela perspectiva de compartilhamento de experiências, afetos, desejos - pode nos levar a pensar em outros modos de vida que são possíveis em uma sociedade que requer sujeitos homogêneos.

 

Referências

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Recebido em: 29/06/2017
Aprovado em: 30/11/2018

 

 

1 Hegemonia é compreendida como "resultado de uma articulação contingente que desde o início encontra-se marcada pela ambiguidade e pela incompletude da objetividade e que, necessariamente, implica na repressão de outras alternativas também contingentes, constituindo-se portanto, como uma relação de poder" (Prado & Costa, 2009, p. 76).
2 As Jornadas de Junho foram marcadas por manifestações que aconteceram em todo o Brasil. Tiveram início a partir das ações do Movimento Passe Livre de São Paulo (MPL) contra o reajuste das tarifas do transporte urbano. O impacto dessas ações teve dimensão nacional, inspirando outras manifestações que tomaram diversos rumos.
3 Materiais que acessamos através de integrantes da própria Ninja. Em fevereiro de 2017, realizamos pesquisa nas bases de dados (Scielo, Pepsic, Revista Psicolgia & Sociedade e Revista de Psicologia Política) combinando os seguintes descritores: experiência coletiva, produção de comunicação, ativismo digital, mídia independente, política, cultura colaborativa, redes sociais, midialivrismo, ciberativismo, Mídia Ninja, cobertura colaborativa, comunicação digital. Não foram encontrados materiais que tivessem como objeto de estudo a Mídia Ninja.
4 Ressaltamos que a palavra "xepa", segundo as normas de ortografia brasileira, não possui acento. No entanto, optamos pela utilização da mesma grafia que a Ninja utiliza.
5 Tag em inglês significa etiqueta. Na internet, uma tag é uma palavra-chave, que gera metadados. Esses relacionam, classificam e organizam os arquivos, páginas e demais conteúdos online.
6 As redes sociais utilizadas inicialmente pelo FdE para divulgação de seus festivais eram o Orkut, ICQ, MSN e depois Facebook.
7 As/Os midialivristas são hackers das narrativas que geram conteúdo para se contrapor ao que está hegemonicamente instituído.

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