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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.19 no.45 São Paulo maio/ago. 2019

 

ARTIGOS

 

Ocupações na cidade: políticas da multidão na produção do comum

 

City occupations: politics of multitude in production of the common

 

Ocupaciones en la ciudad: políticas de la multitud en la producción del común

 

Occupations de la cité: politique de la multitude en production du commun

 

 

Domenico Uhng HurI; Maria Luiza Bitencourt Silva CoutoII

IDocente do Programa de Pós-Graduação e de graduação em Psicologia da UFG. Secretário de Pesquisas da Asociación Ibero-latinoamericana de Psicología Política; domenicohur@hotmail.com
IIAluna de graduação em Psicologia da Universidade Federal de Goiás. Bolsista de Iniciação científica - FAPEG; maluxbtencourt@gmail.com

 

 


RESUMO

Os recentes movimentos políticos de ocupações urbanas parecem trazer algo novo no campo da mobilização política. O objetivo deste artigo é conhecer os discursos de participantes de ocupações estudantis em Goiás, para discutir quais são as configurações de forças que instauram em suas práticas políticas. Realizamos duas entrevistas em grupo com estudantes participantes das ocupações. Analisamos este fenômeno a partir de conceitos de autores contemporâneos, como Gilles Deleuze, Félix Guattari, Michael Hardt e Antonio Negri. Consideramos que houve o surgimento de um novo ator político, a multidão, e novas práticas políticas e psicossociais que produzem uma cidade em comum. Concluímos que as ocupações expressam o poder de resistência frente ao diagrama capitalista. Trazem uma nova configuração de forças expressa pela palavra de ordem "Ocupar e resistir" e não mais pelo clássico "tomar o poder ".

Palavras-chave: Estudantes; Movimento Estudantil; Capitalismo; Psicologia Política; Esquizoanálise.


ABSTRACT

The recent political movements of urban occupations seem to bring something new in the field of political mobilization. This article aims to know the discourses of school occupations participants in Goiás, to discuss the configurations of forces in their political practices. We conducted two group interviews with occupations participants. This phenomen was analyzed from the concepts of contemporary authors, such as Gilles Deleuze, Félix Guattari, Michael Hardt and Antonio Negri. We considered that a new political actor arises, the multitude, and new political practices produce a city in common. We concluded that occupations express the resistance power against the capitalist diagram. They bring a new configuration of forces expressed by the words "Occupy and resist " and no longer by the classic "Take power ".

Keywords: Students; Student Movement; Capitalism; Political Psychology; Schizoanalysis.


RESUMEN

Los recientes movimientos políticos de ocupaciones urbanas parecen traer algo nuevo en el campo de la movilización política. Este artículo tiene el objetivo de conocer los discursos de participantes de las ocupaciones estudiantiles en Goiás, para discutir cuáles son las configuraciones de fuerzas que establecen en sus prácticas políticas. Realizamos dos entrevistas grupales con estudiantes participantes de las ocupaciones. Analizamos este fenómeno desde los conceptos de autores contemporáneos, como Gilles Deleuze, Félix Guattari, Michael Hardt y Antonio Negri. Consideramos que hubo el surgimiento de un nuevo actor político, la multitud, y nuevas prácticas políticas y psicosociales que producen una ciudad en común. Concluimos que las ocupaciones expresan el poder de resistir delante al diagrama capitalista. Portan una nueva configuración de fuerzas expresa por la palabra de orden "Ocupar y resistir " y no más por la clásica "Tomar el poder".

Palabras-clave: Estudiantes; Movimiento Estudiantil; Capitalismo; Psicología Política; Esquizoanálisis.


RÉSUMÉ

Les récents mouvements politiques d'occupations urbaines semblent apporter quelque chose de nouveau dans le domaine de la mobilisation politique. Cet article vise à connaitre les discours des participants aux occupations détudiants à Goiás, afin de discuter des configurations de forces qu 'ils établissent dans leurs pratiques politiques. Nous avons mené deux entretiens de groupe avec des étudiants participant aux occupations. Ce phénomène a été analysé à partir des concepts d'auteurs contemporains, tels Gilles Deleuze, Félix Guattari, Michael Hardt et Antonio Negri. Nous considérons qu'il y avait lémergence d'un nouvel acteur politique, la multitude, et de nouvelles pratiques politiques et psychosociales qui produisent une ville en commun. Nous concluons que les occupations expriment le pouvoir de résistance contre le Capitalisme. Ils apportent une nouvelle configuration de forces exprimée par les mots "Occuper et resister" et non plus par le classique "Prendre le pouvoir ".

Mots-clés: Étudiants; Mouvement étudiant; Capitalisme; Psychologie Politique; Schizoanalyse.


 

 

Introdução

A ocupação de estabelecimentos e instituições concretas é uma tática de luta política utilizada por movimentos coletivos há séculos. Seja as ocupações de territórios, que expressam a luta pelo direito à terra, como as ocupações nas Universidades, que lutam por alterações nas relações de poder, ou por questões de assistência estudantil, são formas de mobilização utilizadas por uma pluralidade de atores sociais. Entretanto os recentes movimentos políticos de ocupações urbanas de órgãos públicos, escolas, Universidades, estabelecimentos de cultura, e até do próprio Ministério da Saúde, parecem trazer algo novo, inédito, no campo da mobilização política.

Gilles Deleuze, no famoso diálogo com Michel Foucault, intitulado Os intelectuais e o poder (Foucault & Deleuze, 1979), coloca três perguntas gerais sobre a relação entre o intelectual e os movimentos políticos: Quais são as lutas sociais emergentes? Qual é o lugar do intelectual nelas? Que formas subjetivas produzem? Neste artigo ficaremos apenas com a primeira questão. Quais são as novas lutas que as ocupações expressam? Consideramos que as rebeliões e movimentos de ocupações estudantis, bem como do Ocuppy (Harvey et al., 2012), ou mesmo o mítico maio de 68 (Matos, 1989), visibilizam a intensificação de uma outra forma de ação coletiva diferenciada das tradicionais manifestações políticas partidárias, sindicais, ou grevistas de parar as máquinas de uma fábrica. Constata-se a emergência de outra prática política que desloca os tradicionais locais de manifestação política para outros espaços. A insurgência política não ocorre mais apenas no interior da fábrica, no plenário de uma assembleia, ou com a circulação e exposição de bandeiras de luta. Há o deslocamento da fábrica a outros espaços da cidade, da saída dos muros institucionais do estabelecimento fechado ao campo aberto da metrópole. Colocamos algumas perguntas: Será que há o surgimento de um novo ator político? O que as recentes ocupações políticas podem dizer das práticas políticas contemporâneas de resistência?

Dessa forma este artigo visa conhecer os discursos de participantes de ocupações estudantis em Goiás, para discutir quais são as novas configurações de forças que instauram em suas práticas políticas. Também buscamos refletir se estas manifestações políticas produzem novas formas de se relacionar com a cidade, uma nova forma de habitá-la. Pretendemos focalizar o fenômeno das ocupações como a expressão de uma nova prática política no espaço urbano, diretamente relacionado à transmutação do diagrama de forças. Isto é, será que se pode afirmar que as ocupações são uma prática política específica de resistência ao diagrama de forças atual, em contraposição às práticas políticas tradicionais? Analisamos este fenômeno a partir do referencial teórico de autores contemporâneos, como Gilles Deleuze, Félix Guattari, Michael Hardt e Antonio Negri.

Utilizamos para a análise duas sessões de grupos realizadas com estudantes secundaristas e universitários que ocuparam as escolas de ensino médio em Goiás nos anos de 2015/2016. Realizamos um esquizodrama (Baremblitt, 2014) com cerca de vinte e cinco estudantes ocupantes na Escola José Carlos de Almeida - JCA (Goiânia/GO) no período inicial das ocupações, em dezembro de 2015, e um grupo operativo (Pichon-Rivière, 1982) com cerca de quinze estudantes, em abril de 2016, após o término das ocupações. Ambos são dispositivos de intervenção grupal que apreendem aspectos discursivos, relações de forças e afetivos. O esquizodrama fomenta processos dramáticos, performativos e as significantes, enquanto o grupo operativo opera principalmente na produção discursiva, articulada, evidentemente, às questões afetivas. O JCA foi a primeira escola a ser ocupada e a última a ser desocupada nessas mobilizações no estado de Goiás, sendo considerado um dos principais lugares de resistência. Nos dois momentos fomos convidados pelos participantes para realizar atividades grupais nas ocupações, as quais articulamos ao nosso projeto de pesquisa em andamento1. Em ambos dispositivos grupais transcrevemos todas as falas dos estudantes e na análise buscamos trazer à tona discursos e representações sobre as vivências no processo das ocupações.

Compreendemos os discursos como ação social (Íniguez, 2006), que têm efeitos pragmáticos e performativos de produção de realidades e de relações de forças. Em nossa perspectiva, os discursos são:

(...) um conjunto de práticas linguísticas que mantêm e promovem certas relações sociais. A análise consiste em estudar como estas práticas atuam no presente mantendo e promovendo estas relações: é dar visibilidade ao poder da linguagem como uma prática constituinte e regulativa2 (Íniguez & Antaki, 1994, p.63).

 

A onda das ocupações estudantis

Desde 2015 difundiram-se ocupações estudantis em diferentes cidades do Brasil. Do Norte ao Sul do país, cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Goiânia, Belém etc. assistiram uma onda de ocupações de escolas por estudantes secundaristas numa intensidade jamais vista. Todas estas ocupações estudantis foram uma forma de resistência frente às diversas práticas de reestruturação do ensino e da educação, norteada pela agenda neoliberal dos governos desses estados. Por exemplo, em São Paulo, o projeto era por uma reorganização das escolas visando a redução de gastos. Buscava-se fechar dezenas de escolas, realocando os estudantes para outras, podendo gerar, entre variadas decorrências, uma hiperlotação das salas de aula. Já no estado de Goiás lutou-se contra a concessão da administração de escolas públicas para empresas privadas, ou seja, a denominada terceirização da educação. Em ambos os casos, dezenas de escolas foram ocupadas por estudantes secundaristas. Estas ações políticas foram vitoriosas, pois conseguiram inviabilizar o projeto de reorganização escolar em São Paulo e bloquear o processo de cessão da administração das escolas à iniciativa privada em Goiás, mascarada com o nome de "organizações sociais". As ocupações se multiplicaram no país em 2016 após o Governo Federal editar uma Medida Provisória que reforma o Ensino Médio e uma Proposta de Emenda Constitucional que limita os gastos públicos, ambas posteriormente aprovadas pelo Congresso Nacional.

A magnitude das manifestações das ocupações estudantis foi bastante registrada e noticiada pelas mídias alternativas, e imensamente silenciada e enviesada pelas mídias tradicionais. Entretanto, as publicações acadêmicas de análise deste fenômeno ainda são bastante recentes. Campos, Medeiros e Ribeiro (2016) realizam registro bastante interessante e detalhado das ocupações das escolas em São Paulo, num livro que conta também com muitas e expressivas imagens fotográficas, assumindo um perfil mais jornalístico e ufanista do que analítico. Em periódicos da Educação, encontramos três dossiês temáticos: dois na Revista Educação Temática Digital, e outro na Revista Educação e Sociedade, ambos recém publicados. No campo da Psicologia, na data da elaboração desta investigação (2017), não encontramos artigos publicados sobre as ocupações estudantis secundaristas. As publicações mais recentes de psicólogos encontradas sobre as manifestações políticas contemporâneas são as de Abreu e Leite (2016) e Muylaert, Vian e Silva (2016), que versam sobre as jornadas de junho de 2013. Mas temos conhecimento que há monografias de conclusão de curso, dissertações de mestrado e teses de doutorado em psicologia sendo realizadas sobre a temática das ocupações estudantis, mas ainda não publicadas.

Em toda produção encontrada ressalta-se as novas práticas instituintes que os estudantes secundaristas vêm trazendo nas ocupações. Por instituinte compreendemos a irrupção de forças que rompem com o estabelecido, com o instituído, e que trazem novas ações e realidades. O instituinte é eminentemente criador e produtor (Baremblitt, 2002; Lourau, 2004). Portanto, nas ocupações irromperam novas práticas e características. Diferente da figura atribuída ao adolescente no senso comum, de ser alguém individualista, com perfil egoísta e acomodado, visibiliza-se um estudante aguerrido, ativo, participativo e implicado. Expressa-se esta virada, de um estudante apático que não se importa, ou que até podería depredar a escola, para outro que instaura práticas coletivas de cuidado de si, dos outros e do ambiente onde está inserido, por exemplo na organização de mutirões na escola, seja de pintura, reforma, limpeza etc. O cotidiano das ocupações operou um deslocamento do conhecido papel de submetido do estudante adolescente na Instituição educacional (Lapassade, 1980), para um papel protagonista. Os estudantes ocupantes produziram, não relações hierarquizadas, como costumeiramente se vê na sociedade, mas laços de solidariedade, autonomia, cooperação, autogestão e diretamente democráticos (Corti; Corrochano & Silva, 2016; Groppo; Trevisan; Borges & Benetti, 2017; Silva & Melo, 2017). Esta configuração de forças fez com que passassem por uma experiência emancipatória, compreendendo a escola como um espaço de invenção (Paes & Pipano, 2017), ao invés do tradicional espaço de disciplinarização. Os estudantes ocupados realizaram uma série de atividades nas ocupações, não apenas referidas à gestão do seu dia-a-dia e das lutas políticas, mas também atividades culturais e de comunicação com a comunidade em geral, como rodas de conversa e aulas abertas à população (Corsino & Zan, 2017). As ocupações configuraram-se como uma prática de resistência política (Larchert, 2017; Alvim & Rodrigues, 2017), que catalisaram processos de socialização e formação política (Catini & Mello, 2016). Seus saberes foram produzidos de "baixo para cima", pois sua prática foi "forjada através da resistência e das práticas do comum" (Hardt & Negri, 2016, p. 143). Em Goiânia, as ocupações atualizaram as mesmas práticas e relações de forças relatadas acima. Citamos uma fala expressiva de um dos participantes sobre este processo de coletivização vivido:

Essa ideia de ocupar uma escola, um lugar que era nosso, que era tratado de forma individualizante, em que a educação favorecia só ao indivíduo, depois da ocupação do JCA foi diferente. Aprendemos a ver, através do nosso contato dentro da escola, o aprendizado coletivo passou a existir ali (...). As trocas foram incríveis, as conversas, as brincadeiras, as gincanas, as aulas abertas à população. Era diferente para quem se envolvia. A importância que a gente dava ao outro, era como uma fraternidade. Se preocupar com a pessoa que estava do seu lado, entender a dor dela, e tentar suavizar tudo (Romário).

Nesta fala fica explícito o câmbio de posicionamento do estudante na escola, de entendê-la como um lugar de formação focada no indivíduo, para um lugar no qual o aprendizado tornou-se coletivo, fraterno. Houve um processo de coletivização, no qual a troca, a abertura e preocupação com o outro foram marcantes. A aprendizagem não seguia mais a mão única de professor aos alunos, tornou-se transversal e multilateral. Foram organizadas muitas atividades que não se referiam apenas aos conhecimentos pedagógicos e à organização política, mas também trocas e brincadeiras que proporcionaram aos participantes boas experiências, ou o que Espinosa chama de bons encontros (Deleuze, 2002). Nesta composição, na importância que se atribuía ao outro e ao coletivo, os participantes intensificaram seus laços afetivos e de empatia, entrando em contato, preocupando-se e entendendo o sofrimento do outro, para poder assim superá-lo. Portanto houve neste agenciamento coletivo uma potencialização que trouxe mais força e afetos positivos ao grupo, aumentando assim seu poder de ação (Hur, 2016). Constata-se que seu processo de politização se deu com a recusa das estruturas de poder hierarquizadas tradicionais da escola para a produção de um novo comum que passa pelas mais diversas instâncias. Sua socialização política se deu com o rechaço da lógica competitiva do capitalismo, para instauração de uma nova suavidade, na qual a solidariedade é fundamental. Em Hur e Couto (2017) pode ser encontrada uma análise mais pormenorizada de como se deram as ocupações na Escola José Carlos de Almeida - JCA, de Goiânia, discutindo as práticas micropolíticas que resultaram em novas formas de relação com o espaço, com as forças e os processos de subjetivação decorrentes, ou seja, na produção de uma nova Ecosofia (Guattari, 1990; 2015). A partir da revisão bibliográfica realizada, consideramos que mesmo com a heterogeneidade das diferentes ocupações estudantis secundaristas, encontram-se muitas linhas em comum que podem dizer de um processo político convergente.

 

Novos atores políticos?

A partir dos relatos dos estudantes participantes, consideramos que as ocupações estudantis secundaristas, como expressão de novas lutas sociais, trazem um novo ator político à tona, diferente do tradicional militante do movimento estudantil. Os membros do movimento estudantil clássico têm um perfil bastante característico. Geralmente é participante de algum partido político de esquerda, seja diretamente ou por possuir afinidades ideológicas, ou de entidades e associações estudantis instituídas, como o Diretório Central de Estudantes e os Centros Acadêmicos (Medina, 1989). Da década de 1980 à década de 2000 era comum que grande parte dos participantes mais politizados fossem filiados a algum partido, como o Partido dos Trabalhadores (PT), o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), ou a correntes políticas, como a União da Juventude Comunista (UJS), ligada ao PCdoB, o Kizomba, ligado ao PT e posteriormente ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) etc. Os estudantes que não eram filiados a esses agrupamentos eram denominados de "independentes". Mas, e nas ocupações, que perfil encontramos?

Diferente do movimento estudantil tradicional, a grande parte dos estudantes ocupantes se considera como independente e autonomista. Muitos não têm filiação partidária, ou participação nas entidades do movimento estudantil tradicional. Um participante realiza a distinção entre esses dois movimentos, criticando o individualismo no movimento estudantil, em detrimento do grande coletivismo produzido nas Ocupações:

Quando fui avisado de que o JCA tinha sido ocupado, a primeira coisa que pensei é que eu devia ir para lá. Quando me vinculei ao Movimento Estudantil, percebi essa diferença entre as práticas. Nele, as pessoas estavam lutando apenas por si mesmas. Há muita coisa que não compactuo com o Movimento "Individualista" Estudantil (Lucas).

O participante Lucas critica o movimento estudantil tradicional por ser um espaço considerado individualista, no qual as pessoas buscam destacar-se como indivíduo e não como coletivo, como se fosse um espaço de carreirismo político. Prossegue a crítica ao relatar que havia pessoas de movimentos políticos organizados tentando se apropriar das ocupações, mas que na medida em que as escolas foram efetivamente ocupadas pelos estudantes, isso diminuiu (Lucas). Não apenas a ele, como as falas de todos os participantes, tal como a supracitada de Romário, contrapõem o individualismo ao grande coletivismo e práticas autogestionárias vividos nas ocupações, que não se restringiam ao plano das ações políticas, mas também nas atividades de alimentação, de cuidado e cultivo do espaço, nas produções culturais e artísticas e nas relações de amizade e afetivas. O fragmento abaixo, que relata a experiência de uma ex-militante do MEPR - Movimento Estudantil Popular Revolucionário, de caráter maoísta, ao entrar na Ocupação, expressa o caráter de coletividade vivido nas escolas em contraposição ao seu antigo coletivo político:

(...) e no momento que cheguei lá, percebi a real diferença: da vida do espírito coletivo que existia no JCA. Fui muito bem recebida por lá. Conheci coisa demais e me reconheci. Minha experiência foi diferenciada ali, e enquanto estudante de licenciatura, para mim foi transformador. E entender na prática, como se faz a educação pelo coletivo foi muito valioso (Julia).

A participante Julia narra a importância da coletividade vivenciada no movimento. A ocupação como um espaço de acolhimento, aprendizado e coletivismo. Devido às práticas radicalmente autogestionárias e coletivistas ressaltou a transformação que passou, tanto no âmbito humano, profissional e político. Transformação que se deu a tal ponto, que chegou a se desfiliar do movimento político que antigamente era filiada. Esse mesmo perfil dos estudantes participantes foi encontrado em outras pesquisas, tal como a realizada no Rio Grande do Sul (Severo & Segundo, 2017). Constata -se uma crítica generalizada às práticas das tradicionais organizações políticas de esquerda: aos partidos políticos, suas tendências e ao movimento estudantil tradicional. Consideramos que os códigos instituídos da esquerda política clássica configuram-se como limitações à autonomia insurgente e criatividade nos movimentos dos estudantes ocupantes.

A participação coletiva direta e cotidiana nas Ocupações de Goiânia fez com que pouco a pouco os estudantes deixassem de utilizar um dos dispositivos mais importantes para os movimentos sociais: a assembleia. Um participante nos conta que: "As demandas do coletivo nos proporcionaram uma aproximação muito forte. Não precisávamos de assembleias. Conversávamos e resolvíamos as coisas" (Matheus, p.9). Dessa forma, a partir da integração e bom nível de comunicação, os integrantes julgaram que não era mais necessária a forma "burocratizada" do dispositivo da assembleia para conversas e decisões, pois o coletivo conseguia se entender e se autogerir diretamente sem esse instrumento. Com o passar do tempo, cada um dos ocupantes aprendeu a tomar decisões em prol do coletivo. As falas relatam a derrocada do individualismo, na qual a dinamicidade da autogestão se expressou no empoderamento e na autonomia de todo o grupo.

Compreendemos então que as ocupações estudantis secundaristas trazem não apenas novas práticas, mas eminentemente um novo ator político à cena. Não mais aquele ligado aos partidos políticos, sindicatos de trabalhadores, ou associações estudantis tradicionais. Senão um ator político, ou melhor, atores políticos que não se caracterizam por portar determinada ideologia, ou bandeiras de lutas instituídas. Não se caracteriza por uma identidade fixa e estável, seja de classe, o conhecido proletariado, ou por questões étnicas ou de gênero. Não são atores que representam determinado segmento social, senão que apresentam suas próprias demandas políticas e aspirações coletivas. Então, mesmo com a alta ênfase no coletivismo, são muito mais heterogêneos, que homogêneos, diferentes, do que iguais, fragmentários, em vez de unitários. Neste processo, a coletivização e a sensação do "nós" não reduz ou solapa as singularidades. Portanto, consideramos que sua definição corresponde, mais do que a uma classe, ao conceito de multidão de Antonio Negri e Michael Hardt.

A multidão está engajada na produção de diferenças, invenções e modos de vida. Deve, assim, ocasionar uma explosão de singularidades. Essas singularidades são conectadas e coordenadas de acordo com um processo constitutivo sempre reiterado e aberto (...). A multidão é a forma ininterrupta de relação aberta que as singularidades põem em movimento (Hardt & Negri citados por Brown & Szeman, 2006, p. 99).

O conceito de multidão foi criado por Hardt e Negri para expressar a nova forma de organização dos movimentos políticos na contemporaneidade. Para eles, da mesma forma que não há mais a primazia das relações de soberania do imperialismo na geopolítica mundial (Hardt & Negri, 2005), o proletariado também não é mais o ator político predominante de resistência na atualidade, algo corroborado por diversos outros estudos. Em tempos de intensificação da axiomática do capital (Deleuze & Guattari, 1976), tomam respectivamente seus lugares o Império (Hardt & Negri, 2005) e a multidão (Hardt & Negri, 2006). O conceito de Império é uma reformulação da noção de Capitalismo Mundial Integrado formulado por Deleuze e Guattari (1976), que se trata de uma rede transnacional e descentralizada que conecta as economias dos Estados-nação, diluindo suas fronteiras, e que constitui uma máquina que adquire determinância nos processos políticos e sociais (Hur, 2018a). Então ao invés de um imperialismo unilateral de um Estado-nação, agora há o Império, ao invés da unidade de uma classe, o proletariado, temos a hibridez e variabilidade da multidão. Consideramos que os estudantes ocupantes assumem muito mais as características da multidão, ao invés de uma classe, pois a forma organizativa "da multidão é a rede distribuída, (...) o modelo é mais ou menos o de alianças espontâneas e temporárias coordenando agendas diferentes, sem um comando central" (Hardt & Negri citados por Brown & Szeman, 2006, p. 98). Vale ressaltar que não afirmamos que a luta de classes acabou, ou que as classes sociais não mais existem. Compreendemos que, diferente do movimento estudantil tradicional, que é pautado na lógica do conflito entre classes, de uma burguesia contra o proletariado, as ocupações estudantis contemporâneas alargam esse conflito, expressando novos vetores de luta e assumindo em seu perfil, outras tonalidades e heterogeneidade que não são possíveis de se codificar em apenas uma categoria. Ou seja, não se singularizam por ser a luta do proletariado, ou das mulheres, ou dos negros; mas sim por ser a composição de inúmeros grupos sociais heterogêneos que se agenciam na luta contra a privatização de algo que é comum e público a esses coletivos: a educação.

Além de trazerem um novo ator político, a multidão, as ocupações estudantis secundaristas contemporâneas operam como uma nova forma de produzir um comum para os jovens e adolescentes participantes. Trazem novas manifestações coletivas, novas experimentações políticas e formas de ser que se insurgem contra o instituído e produzem um outro mundo. As ocupações se tornaram um dos dispositivos da multidão na produção de uma cidade em comum, pois seu projeto é "a construção de uma vida em comum, numa democracia global" (Hardt & Negri citados por Brown & Szeman, 2006, p. 97).

 

Produções de um novo comum na cidade

Para Martín-Baró (1982) as ruas, o espaço urbano, têm uma dupla caracterização, seja como espaço de passagem, de circulação, ou como espaço público de realização de atividades, estar e ocupar. O psicólogo da libertação já afirmava que de forma gradual, o espaço urbano vem perdendo seu caráter de estar e ocupar, para a sua função de trânsito e passagem. Já Deleuze e Guattari (1997) intensificam este caráter de circulação da cidade, entendendo-a como:

(...) o correlato da estrada. Ela só existe em função de uma circulação e de circuitos; ela é um ponto assinalável sobre os circuitos que a criam ou que ela cria. Ela se define por entradas e saídas, é preciso que uma coisa aí entre e daí saia. Ela impõe uma frequência. Ela opera uma polarização da matéria, inerte, vivente ou humana; ela faz com que o phylum, os fluxos passem aqui ou ali, sobre as linhas horizontais. É um fenômeno de trans-consistência, é uma rede, porque ela está fundamentalmente em relação com outras cidades. Ela representa um limiar de destemtorialização, pois é preciso que o material qualquer seja suficientemente desterritorializado para entrar na rede, submeter-se à polarização, seguir o circuito de recodificação urbana e itinerária. O máximo da destemtorialização aparece na tendência das cidades comerciais e marítimas de se separarem dos subúrbios, do campo (Atenas, Cartago, Veneza...) (p. 122).

A cidade é definida pelas suas redes de circuitos e movimentos e não somente pelos seus pontos de parada. O trânsito e o comércio a caracterizam tanto quanto a sua ocupação e sedentarização. Consideramos que com a intensificação da axiomática do capital e do neoliberalismo, essa tendência da circulação e não a da ocupação da cidade torna-se ainda mais predominante. A metrópole capitalista radicaliza a cidade das vias de circulação, da produtividade, do trânsito ensandecido e não das paradas. É o espaço em que devem correr os fluxos capitalistas, acelerar a sua velocidade e vazão. É o lugar de trabalho, produção e passagem que obstaculariza sua "dinâmica viva de práticas culturais, circuitos intelectuais, redes afetivas e instituições sociais" (Hardt & Negri, 2016, p.177). Os parques, espaços de lazer e ócio, passam a ser privatizados, ou a dar lugar a construções imobiliárias e complexos de escritórios de serviços e negócios. A cidade é o comum que vem nos sendo subtraído.

Os projetos de terceirização e reorganização escolar, que as ocupações estudantis combateram, performatizam os fluxos capitalistas na educação, atualizam seu diagrama de forças. A axiomática do capital opera por um duplo movimento, de desterritorialização dos fluxos codificados, com sua concomitante modulação para a sua lógica de funcionamento (Deleuze, 2005). Assim, desterritorializa o que está instituído, dando-lhe a fluidez dos fluxos capitalistas. Então, compreendemos o neoliberalismo na educação pública como um processo de desterritorialização dos códigos instituídos e dos espaços estabelecidos, como forma de aumentar a vazão e produtividade quantitativa de "produtos", numa minimização dos gastos e hipertrofia dos lucros. Os governos buscam reduzir os gastos e conceder a gestão dos equipamentos educativos à iniciativa privada, pois operam na lógica da axiomática do capital, a partir de seu diagrama de rendimento (Hur, 2015, 2018b). Portanto, o que até então é público, as escolas, pouco a pouco passa a ser descodificado e privatizado. Os bens da cidade passam a ser subtraídos dos seus cidadãos, a escola de seus alunos, tornando-se propriedade material, e imaterial, de corporações empresariais.

Por outro lado, as práticas das ocupações estudantis instauram um curto-circuito na lógica do aumento dos fluxos capitalistas. São uma forma de resistir à sua vazão, pois traçam linhas de fuga e constroem estratos, bloqueios temporários, curto-circuitos e barricadas que impedem o aumento de sua circulação. As ocupações são a forma paradigmática de resistência política frente à axiomática do capital. É a atualização do poder de resistir, dos agenciamentos das forças do fora e desejantes, frente a este diagrama de forças. As ocupações são a forma de luta expressiva em períodos de sociedade de controle.

Ocupações são escapes, linhas de fuga, criação de outros modos de existir. Ocupações são 'máquinas de guerra' (...) têm vida própria, criam, criam outras formas. O que os estudantes estão ocupando não são os prédios das instituições educacionais, eles estão ocupando a educação, reinventando formas de fazer, outros currículos, outras relevâncias, outros interesses, outras formas de posicionar os corpos e fazer política. Não desejam a revolução, porque são insurreição (Aspis, 2017, p.72).

As ocupações operam como a atualização de uma máquina de guerra (Deleuze & Guattari, 1997), por mais beligerante que esse termo possa parecer, pois funcionam com uma lógica distinta tanto do Estado, como do capitalismo. Não atuam pelas formas tradicionais de hierarquia e poder, referentes aos diagramas de soberania e disciplinar (Foucault, 1979). Não buscam construir um partido, e não anseiam tomar o poder, seja do Estado, ou de outra Instituição concreta. Não buscam a revolução, senão atualizam um devir-revolucionário (Deleuze, 2007), nem pretendem fundar uma Instituição, mas instalam uma situação (Fernández, 2007), pois são insurgência e insurreição. Por isso que não é mera coincidência que nos movimentos contemporâneos das ocupações haja um deslocamento da bandeira de luta, de "Tomar o poder", para o paradigmático "Ocupar e resistir". Ocupar a cidade, ocupar e se apropriar das instituições concretas, do espaço urbano, como forma de deter a velocidade da desterritorialização capitalista. Ocupar é preencher o espaço de trânsito e circulação com o corpo e os investimentos desejantes. É produzir uma nova cidade em comum, diferente da cidade capitalista de produtividade incessante. E, tal como nas ocupações da Secretaria de Educação, Cultura e Esporte de Goiás (ocorridas nos dias 26/01/2016 e 15/02/2016), é combater o silenciamento dos atores sociais ante as decisões políticas usurpadas. Então ocupar é resistir, e resistir é ocupar o espaço que a cada dia vem nos sendo desapropriado. Ocupar e resistir é atualizar as forças do fora e o poder de resistir que não se deixam capturar pelo diagrama (Deleuze, 2014) da máquina capitalista.

O preenchimento dos espaços da cidade não se faz de forma passiva e sedentária. Pululam ocupações nômades na cidade, em diversificados espaços, com temporalidades variadas e instáveis. As ocupações não tendem a constituir formações fixas e sedentárias, uma materialidade imutável, mas uma produção de um comum, com toda sua potência imaterial. Os estudantes ocupantes nos narraram sua composição de laços afetivos e de um General Intellect, uma inteligência coletiva (Virno, 2008), no estar na Ocupação. Criaram processos e formações intermediários que produzem o trânsito entre os diferentes corpos. A empatia, a abertura ao outro, os laços de afetividade, sociabilidade, cooperação, a produção artística e cultural, bem como o cuidado com o espaço e o outro, catalisam o processo de comunicação e sociabilidade, no qual se constitui um comum e uma lógica comunitária. Compõe-se um regime de potencialização que se atualiza tanto no corpo coletivo, como nas singularidades individuais. Na produção desta prática política em comum, fabricam-se redes e enlaces que resultam num movimento social em comum.

Na ocupação do colégio JCA, viu-se a produção de um comum que não se resguardara à imediaticidade do tempo, mas que se prolongou à vida de outros futuros estudantes e atores sociais, os quais nem estavam ali. Os estudantes relataram a produção de diversas atividades, como: a construção de hortas, de um sistema de reutilização e de separação dos materiais, bem como de uma composteira para produção de adubo orgânico. Estes podem ser exemplos de como o processo de coletivização não se restringiu à dimensão intersubjetiva, mas também ecosófica, de cuidado com o próprio meio, no qual se fomentou atividades de sustentabilidade e ambientalistas. Também foi realizada a produção conjunta, entre os estudantes ocupantes com alguns docentes da Faculdade de Educação da UFG, de um Projeto Político Pedagógico à escola. Foi um mecanismo de subversão da lógica de disciplinarização encontrado pelos estudantes para levar a horizontalidade das vivências na ocupação às novas e futuras possibilidades de sala de aula. São as demandas e dificuldades dos alunos sendo ditas, ouvidas e traduzidas em planos didáticos, em modos justos e melhorados de se aprender e se ensinar. Além disso, derivou-se a uma nova conformação ao movimento estudantil em Goiás, tornando-se menos partidarizado, burocratizado e verticalizado, para se tornar mais unido e horizontalizado. Consideramos que este novo agenciamento também se configura como um comum que surge dos movimentos de ocupação.

Dessa forma, o caráter festivo, alegre, relatado nas ocupações, portam afetos potencializadores e bons encontros, no sentido espinosano (Deleuze, 2002; Hur, 2016), para a construção de práticas coletivas que levam à produção de um comum. A escola que era vista como um espaço disciplinarizador e opressor é construída como um espaço de todos, estudantes ocupantes e população, uma escola em comum. Tal como a cidade, as ocupações produzem uma cidade em comum, ou comunitarista. A cidade comum é a cidade ocupada, preenchida, usufruída e festejada. É aquela na qual as pessoas circulam e repousam, movimentam-se, agenciam-se e entram em simbiose. É o espaço urbano que é alvo de cuidados pelo coletivo, bem como é o território, ou plano de imanência, desses agrupamentos. É a cidade preenchida de afetos, vivências e criações, sendo investida por forças ativas e desejantes, e não apenas o espaço de trabalho, ou trânsito para as residências de cada um. São zonas de autonomia, temporárias ou não, que não são regidas pela lógica heterônoma, mas sim pelo autogoverno e autoinstituição da multidão que as ocupa. "Na verdade, a produção do comum vem-se tornando pura e simplesmente a vida da própria cidade" (Hardt & Negri, 2016, p. 279).

Consideramos assim que vale a máxima expressa por Hardt e Negri (2016), que "a metrópole está para a multidão como a fábrica estava para a classe operária industrial" (p. 278). As mobilizações efetuadas não foram mais protagonizadas pelo antigo ator político, o operariado, mas sim por jovens com heterogêneas características, ideologias, cores e classes sociais, que performatizavam a produção de um comum multitudinário. Ocupar, mobilizar-se e preencher a cidade, a metrópole, é a prática política da multidão e lugar de produção da vida e de nova subjetivação. E ocupar é resistir aos fluxos desterritorializadores e axiomatizadores do capitalismo. Fluxos capitalistas que nos esgotam, esvaziam, trazendo não a realização da promessa da máxima produção e satisfação, mas sim o esgotamento da sociedade de cansaço (Han, 2012). Portanto, as ocupações são as manifestações políticas de insurgência que traçam linhas de fuga frente à governamentalidade contemporânea, no qual se discute e se produz outros mundos possíveis, ou um outro mundo em que caibam muitos mundos (Lazzarato, 2006). A resistência ao capitalismo é ocupar, dar vida e produzir a própria cidade em comum.

Por outro lado, não se vivia apenas afecções positivas e o otimismo da transformação. No plano macropolítico houve intensa repressão estatal e as ocupações não contaram com a simpatia e auxílio de toda população do entorno da escola. O movimento de ocupação e reapropriação da cidade não foi tarefa simples, visto que até parte significativa da população rechaçou estas manifestações. Não apenas as forças de aparato estatal, tais como a repressão policial, as perseguições jurídicas, o boicote no fornecimento de água, e as mídias tradicionais, foram utilizadas para reprimir e vigiar as ocupações. Alguns comerciantes e transeuntes da cidade se posicionavam contra, conforme narrativa de um participante sobre um confronto vivenciado numa das manifestações de rua:

(...) e logo aconteceram muitos confrontos com a Polícia. Então nós fomos fechados na rua do edifício, encurralados pela Tropa de Choque. Não deixaríamos nenhum de nós ficar para trás. Estávamos lá juntos e estávamos lutando pela liberdade dos nossos companheiros. Entramos em confronto direto - com bombas de gás lacrimogêneo - e depois um dos policiais apontou uma arma para mim. Depois disso comecei a correr para trás. Durante isso eu via os comerciantes e os transeuntes nos filmando. Eles colocavam os pés para cairmos enquanto corríamos juntos. Quando olhamos para trás, vimos o Raoni sendo preso agressivamente. E vimos quando eles intencionalmente quebraram a bike dele (Lucas).

Deste modo visibiliza-se nessa fala a grande truculência policial3 na repressão aos estudantes ocupantes, em que os agentes das forças policiais utilizavam bombas, armas de fogo e violência desmedida contra eles. Porém nos chama a atenção o fato da própria população atuar contra os estudantes, filmando-os, ou tentando dar-lhes rasteiras, para ajudar os policiais para que os prendessem. Estes comerciantes e transeuntes não compartilhavam do sonho de transformação e de defesa das escolas por parte dos estudantes. São segmentos da população que não pretendem construir o mesmo comum, mantendo-se na lógica da ordem, ou da axiomática do capital. A repressão às manifestações foi tão forte, que em mobilização posterior, na segunda ocupação da Secretaria de Educação de Goiás, a Polícia Militar prendeu cerca de trinta estudantes participantes, muitos menores de idade.

 

Considerações Finais

Neste artigo visamos conhecer os discursos de estudantes que participaram das Ocupações de escolas nos anos de 2015/2016 para discutir as novas configurações de forças que trouxeram em suas práticas políticas. Discutimos sobre o que implicam essas novas formas de atuação e organização política. Em nossa análise, fundada também a partir de revisão bibliográfica sobre as ocupações estudantis no país, consideramos que houve o surgimento de novos atores políticos, muito mais semelhantes ao que Hardt e Negri (2006) denominam de multidão, do que às tradicionais figuras de militância ligadas ao proletariado, ou às tradicionais entidades políticas, como o partido, o sindicato, ou as próprias práticas clássicas do movimento estudantil. Também ressaltamos que as práticas políticas e psicossociais dos estudantes nas ocupações produziram um novo comum. Este comum se deu a partir de regimes de composição que não abarcavam apenas as lutas políticas, mas também as relações sociais, afetivas e de cuidado dos participantes entre si. Compreendemos que nestas novas práticas políticas há uma nova configuração de forças, que abandona o modelo vertical e hierarquizado dos tradicionais agrupamentos políticos, para um modelo em rede, horizontal e autogestionário. Inclusive nos movimentos contemporâneos de ocupações há o deslocamento da palavra de ordem, antigamente calcada no "tomar o poder", para o uníssono "Ocupar e resistir". Dessa forma, a potência coletiva e insurgente das ocupações não busca tomar o poder do Estado, ou criar uma nova soberania, muito pelo contrário. As ocupações expressam o poder de resistência frente ao diagrama de forças referente aos fluxos capitalistas. Ocupar e resistir à desterritorialização e modulação capitalista. Preencher e produzir uma escola, ou uma cidade, em comum, que não seja apenas ligada à axiomática do capital, mas que acolha as diferenças, os investimentos desejantes de um outro mundo possível. Uma nova vida e uma nova sociabilidade, enfim a produção de uma nova Ecosofia.

 

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Recebido em: 18/05/2017
Aprovado em: 24/08/2017

 

 

1 Projeto de pesquisa: Psicologia de grupos, instituições e coletivos sociais: intervenções psicossociais, cadastrado na Plataforma Brasil e aprovado pelo Comitê de Ética com o número CAEE 39300714.7.0000.5083.
2 Todas as citações em língua estrangeira foram traduzidas por nós para o português.
3 A violência policial utilizada para reprimir manifestações coletivas em Goiás é historicamente intensa. Não foi apenas utilizada para reprimir violentamente os estudantes ocupantes, como é exercida em todas manifestações. Exemplo recente e que ocupou as manchetes dos jornais de todo o país, foi a violência desmedida, e gratuita, que o Capitão da Polícia Militar de Goiás Augusto Sampaio de Oliveira Neto utilizou na agressão ao estudante universitário Mateus Ferreira da Silva nas manifestações da Greve Geral de 28/04/17. O capitão da PM-GO golpeou a cabeça do estudante com o cassetete com tanta intensidade, que ocasionou grave traumatismo cranioencefálico. Mateus teve que ser internado na UTI - Unidade de Tratamento Intensivo, ficou em coma e quase morreu. Já o policial agressor, até a data de submissão deste artigo, não sofreu punição, apenas o afastamento temporário das ruas e remunerado.

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