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Revista Psicologia Política

versión On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.19 no.45 São Paulo mayo/ago. 2019

 

ARTIGOS

 

A experiência da ocupação: narrativa das incertezas

 

The experience of occupation: a narrative of uncertainties

 

La experiencia de la ocupación: narrativa de las incertidumbres

 

L'expérience de l'occupation: récit des incertitudes

 

 

Julia Paim MásI; Danichi Hausen MizoguchiII

IEstudante de graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense; juliapaim@id.uff.br
IIDoutor em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense. Professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense; danichihm@hotmail.com

 

 


RESUMO

O presente artigo presta-se a analisar a ocupação realizada na Universidade Federal Fluminense entre os meses de novembro de 2016 e janeiro de 2017. A ocupação universitária deu-se - sob a inspiração de outros movimentos, como o Ocuppy Wall Street e as ocupações secundaristas de São Paulo - com a intenção premente de realizar um enfrentamento à Proposta de Emenda à Constituição número 55/2016, a qual propunha o congelamento dos investimentos públicos - principalmente em saúde e educação - por vinte anos. Fazendo uso da experiência - de uma aluna e de um professor, com suas diferentes perspectivas e posições na ocupação -, o artigo opera uma política narrativa sob a qual alternadamente apresentam-se e problematizam-se alguns elementos e acontecimentos importantes deste movimento político - cotejando-os com discussões conceituais as quais propiciam mais tônus e complexidade à discussão.

Palavras-chave: ocupação, política, Estado, resistência, alegria.


ABSTRACT

The present article lends itself to analyzing the occupation held at the Federal Fluminense University between November 2016 and January 2017. The university occupation took place - under the inspiration of other movements, such as the Occupy Wall Street and the secondary occupations of São Paulo - with the urgent intention of facing the PEC number 55/2016, which proposed the freezing of public investments - mostly in health and education - for twenty years. Using the experience of a student and a teacher, with their different perspectives and positions in the occupation, the article operates a narrative policy under which alternately presents and problematizes some important elements and events of this political movement - with conceptual discussions that provide more tone and complexity to the discussion.

Keywords: occupation, politics, state, resistance, happyness.


RESUMEN

El artículo se presta a analizar la ocupación realizada en Universidad Federal Fluminense entre los meses de noviembre de 2016 y enero de 2017. La ocupación universitaria se dio - bajo la inspiración de otros movimientos, como el Ocuppy Wall Street y las ocupaciones secundarias de São Paulo - con la intención de realizar un enfrentamiento a la PEC 55/2016, que proponía el congelamiento de los gastos públicos - principalmente en la salud y en la educación - por veinte anos. En el artículo opera una política narrativa bajo la cual alternativamente se presenta y problematiza algunos elementos y acontecimientos importantes de este movimiento político. Cotejando la experiencia de una alumna y de un profesor, con sus diferentes perspectivas y posiciones en la ocupación, el artículo opera una política narrativa bajo la cual alternativamente se presentan y problematizan elementos y acontecimientos importantes del movimiento político y se hacen debates conceptuales que propician complejidad a la discusión

Palabras-clave: ocupación, política, estado, resistencia, alegría.


RÉSUMÉ

Le présent article se prête à l'analyse de l'occupation exercée à la Universidade Federal Fluminense entre novembre 2016 et janvier 2017. Cette occupation a eu lieu - sous l'inspiration d'autres mouvements, tels que Occupy Wall Street et les occupations secondaires de São Paulo - avec l'intention urgente de faire face au projet d'amendement à la Constitution numéro 55/2016, qui proposait le gel des investissements publics - principalement dans la santé et l'éducation - pendant vingt ans. Tirant parti de l'expérience d'un élève et d'un enseignant avec leurs différentes perspectives et positions dans la profession, l'article met en wuvre une politique narrative en vertu de laquelle différents éléments et événements importants de ce mouvement politique sont présentés et problématisés. avec des discussions conceptuelles qui donnent plus de tonus et de complexité à la discussion.

Mots clé: occupation, politique, état, résistance, joie.


 

 

Introdução

O trabalho que ora se inicia pretende tomar como problema central a experiência de ocupação na Universidade Federal Fluminense, ocorrida entre os meses de novembro de 2016 e janeiro de 2017. Para tanto, fará uso de duas modalidades distintas de presença - a de uma estudante da graduação e a de um professor, posições distintas em intensidade, em perspectiva e em ângulo - para que, com elas, nelas e a partir delas, criem-se as condições de possibilidade para que uma narrativa fragmentária e singular - jamais definitiva, jamais geral, jamais majoritária - deste acontecimento possa acontecer. É, portanto, com esses dois campos que não se fazem naturalmente em conjunto - a Psicologia e a Política - que este artigo é escrito, assim como na efetiva presença da corporeidade: da paixão, do movimento e das perguntas aos quais nossa memória dos acontecimentos ainda dá passagem - "a memória é uma ilha de edição", disse Waly Salomão (2001, p. 77) - faremos a matéria-prima para que algo seja contado e interrogado.

Uma experiência inédita, datada e forte, a qual enodoou jogos de força insólitos, os quais queremos fazer acontecer ao escrever: cenas-problema, imagens políticas, encaminhamentos decisórios, modulações de grupo os quais, todos eles, performatizam as apostas e ações políticas do presente em um campo intenso e vivo ao qual chamamos ocupação. É com eles que o presente artigo se faz: com um acontecimento que é nosso - mas não somente nosso - e com o qual intentamos seguir fazendo acontecer um devir-militante: aquele, como diz Donna Haraway (2014), que não se esquece que é preciso viver simultaneamente com horror e com alegria.

De saída, é imperativo que se faça uma declaração de posição: estamos distantes da polêmica -intencionalmente distantes, radicalmente distantes, estrategicamente distantes. Se, junto àquilo que Michel Foucault disse em entrevista dada a Paul Rabinow em maio 1984, pouco antes de falecer, entendemos que um polemista é aquele que "prossegue investido dos privilégios que detém antecipadamente, e que nunca aceita recolocar em questão" (Foucault, 2006, p. 225), que, em uma conversa ou em uma discussão só pode encontrar "um adversário, um inimigo que está enganado, que é perigoso e cuja própria existência constitui uma ameaça" (Foucault, 2006, p. 226), se "o polemista diz a verdade na forma de julgamento e de acordo com a autoridade que ele próprio se atribuiu" (Foucault, 2006, p. 226), não é desse modo - que nos parece, de fato, ser o modelo político mais poderoso na retórica atual, nas redes sociais e fora delas - que gostaríamos de pensar e escrever. A posição protegida e verdadeira a qual é exigida dos partícipes de uma polêmica não nos interessa - porque, dentre outras coisas, o que menos nos interessa é a contenda de julgamentos da ocupação: nossa textualidade é a de quem não disputa o ponto final da história, mas de quem crê que a história jamais cessa de se escrever e de produzir perguntas. E se não nos aproximamos desta modulação discursiva polemista, dentre outros motivos, é porque nela percebemos efeitos de entristecimento - porque nela imita-se o teatro da guerra, as rendições e os aniquilamentos que só podem ter como término a morte - a pior delas, a morte da possibilidade de se tornar outro: esterilização do pensamento, esterilização dos modos que se fazem e se desfazem, esterilização de uma certa estética da existência.

É por isso que - distantes da polêmica, como já dissemos - gostaríamos de nos colocar próximos à problematização. Próximos, portanto, da elaboração de um domínio de fatos, práticas e pensamentos que colocam problemas para a política (Foucault, 2006), ou seja, das interrogações que forçam uma instabilidade para os jogos de força do presente. Se nosso interesse é problematizar a ocupação, é porque nos parece pertinente "elaborar os problemas que experiências deste tipo colocam para a política" (Foucault, 2006, p. 228). Desta política que de nós é tão próxima, como as linhas de força que nos habitam e nos fazem existir, com as afetações vetoriais que não cessam de forjar o mundo, o nosso mundo, necessariamente o aqui e agora em que vivemos. Assim, o que nos interessa - se de fato trata-se de problematização e não de polêmica - é dar passagem à "transformação de um conjunto de complicações e dificuldades em problemas para os quais as diversas soluções tentarão trazer uma resposta" (Foucault, 2006, p. 233): narrar as imagens das saídas encontradas e das ações praticadas por aqueles que, das mais variadas maneiras, ocuparam - e nelas encontrar, simultaneamente, o encantamento e a dúvida que, sob a problematização, não cessam de acontecer.

Trata-se, portanto, de um texto de problematização. Mas também - e não menos fundamentalmente - de um texto de experiência. Um texto que se insere na tradição estranha a que Jorge Larrosa coloca todos "os cantos apaixonados, intensos, prementes, emocionados e emocionantes" (Larrosa, 2015, p. 10) que são as fabricações que têm a experiência como motivo principal. Nossa materialidade não é uma realidade, uma coisa ou um fato: nossa estranha empiria é "algo que (nos) acontece e que às vezes treme, ou vibra, algo que nos faz pensar, algo que nos faz sofrer ou gozar, algo que luta pela expressão, e que às vezes, algumas vezes, quando cai em mãos de alguém capaz de dar forma a esse tremor, então, somente então, se converte em canto" (Larrosa, 2015, p. 10). É, portanto, porque a ocupação nos fez tremer, vibrar, pensar, sofrer e gozar que dela queremos fazer expressão e canto de uma experiência. Se Jorge Larrosa tem razão ao dizer que há

algo no que fazemos e no que nos acontece (...) que não sabemos muito bem o que é, mas que é algo sobre o que temos vontade de falar, e de continuar falando, algo sobre o que temos vontade de pensar, e de continuar pensando, e algo a partir do que temos vontade de cantar, e de continuar cantando, porque justamente isso é o que faz com que (...) a vida esteja viva, ou seja, aberta a sua própria abertura (Larrosa, 2015 p. 13),

é esta a modulação na qual gostaríamos de estar ao escrever: na ocupação, com a ocupação, a partir da ocupação tentaremos manter a vida viva e aberta à própria abertura.

Se, junto com Larrosa, gostaríamos de defender a definição conceitual segundo a qual "a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca" (Larrosa, 2015, p. 18), defenderemos simultaneamente o fato de que, para nós, a experiência da ocupação foi, literalmente, uma experiência: ali algo nos passou, algo nos aconteceu, algo nos tocou. Ou seja, ao escrever sobre a ocupação gostaríamos de estar situados aquém e além da informação - aquilo que modula uma subjetividade que cada vez sabe mais, mas à qual cada vez menos coisas acontecem - e da opinião - a característica de quem tem um julgamento já pronto para quase tudo que se lhe apresente, mas a quem, igualmente, cada vez menos coisas acontecem. Na posição medial dirigida pelos dispositivos atuais, o sujeito normal é informado e opinativo - acumula conhecimentos e julga, sabe e se coloca a favor ou contra: saber e julgar, portanto, é o que o caracteriza: é no ponto o mais distante possível desta mediatriz subjetiva que gostaríamos de nos localizar ao escrever.

Problematização e experiência, portanto, serão os nortes metodológicos os quais incidirão como vetores no encontro textual que faremos doravante com o acontecimento específico e irrepetível que se deu na Universidade Federal Fluminense entre o final de 2016 e o começo de 2017. Se há algo que certamente é disparado na intenção pública de enfrentamento ao congelamento dos gastos defendido por um governo que não foi eleito - sob os ditames da Proposta de Emenda Constitucional 241/55 - e no desgaste de modos recorrentes de luta e militância, um pulular de pequenas e grandes ocorrências imprevisíveis e incalculáveis concretizou-se nos meses em que durou a ocupação. É com eles que seguiremos, narrando e interrogando sob o modo de quem com eles colocou-se em tremor: da ocupação, da paixão e da dúvida, portanto, partimos.

Partimos entendendo que problematizamos com os olhos rigorosos e gentis, apaixonados e questionadores - condições a partir das quais escrevemos com os corpos de pesquisadores postos em implicação transversal aos corpos que lutam. Para nos fazer entender, para que possamos nos olhar com gentileza, precisamos situar as ocupações no contexto específico que as ensejou: quais os agenciamentos macropolíticos que criaram as necessidades e as condições de possibilidade para que esta experiência - a qual, como toda e qualquer experiência, só se faz sob recortes espaços-temporais -pudesse acontecer? Que campo pleno de urgências foi esse que fez com que um grupo de estudantes decidisse, finalmente, ocupar, ao longo de alguns meses, aquele espaço ao qual cotidianamente se dirigiam para estudar?

 

Um cenário

A Proposta de Emenda à Constituição número 55, de 2016 - tramitada sob este número no Senado e, anteriormente, na Câmara dos deputados, sob o número 241 - foi uma iniciativa do governo federal - um governo ilegítimo, cujo presidente havia sido alavancado ao poder, meses antes, por meio de um golpe jurídico-parlamentar com a intenção de tirar do poder a presidente Dilma Rousseff. O golpe, então, realizou-se sob a alegação econômica pretensamente verdadeira de tentar frear a trajetória de crescimento dos gastos e equilibrar as contas públicas. Priorizando financeiramente o pagamento da dívida externa e o desenvolvimento do mercado, a proposta levada a cabo pela gestão de Michel Temer faz congelar os investimentos em Saúde e em Educação ao longo de vinte anos. Dessa maneira, a aprovação da PEC 55 colocou limites draconianos aos investimentos que deveriam crescer todos os anos - seja por conta da inflação, seja por conta da grande demanda de melhoria de tais setores, seja pela direção de uma política pública que pode e deve priorizar algumas áreas. A medida dirigida pela PEC 55 prejudica enormemente, portanto, o alcance de todos os serviços básicos ao povo brasileiro, bem como, evidentemente, diminui a qualidade desses serviços: trata-se de um retrocesso em relação ao que a história recente do país, mesmo que parcamente, fazia mover.

A conjuntura de enfrentamento a ataques do Estado ao direito constitucional à Educação e à Saúde, impondo medidas similares às da PEC 55 já vinha ganhando densidade havia algum tempo - e não só na esfera federal: mais de duzentas escolas foram ocupadas por estudantes em São Paulo no ano de 2015 a fim de impedir que fossem fechadas a partir da proposta de reorganização escolar do governo de Geraldo Alckmin - que visava dividir os estudantes por ciclos que consideram somente a idade e nível de aprendizado. Nesse bojo, a luta por direitos e a ocupação dos espaços teceram uma rede de relação na qual foi possível uma implicação dos estudantes de ensino médio e fundamental na busca por uma espécie de desejo e movimento que não fosse dado ou óbvio - que entendesse que a greve, por mais importante que seja, não é a única modalidade de luta. Nas palavras de Peter Pál Pelbart, trata-se de um gesto que "destampou a imaginação política em nosso País" (Pelbart, 2016), "em uma verdadeira aula de ética e de política" (Pelbart, 2016), em "um momento em que a imaginação política se destravou" (Pelbart, 2016). Quando "o que aconteceu torna-se uma espécie de farol, de incandescência, de marca indelével, de referência incontornável" (Pelbart, 2016), abre-se um novo campo de possíveis. As ocupações das escolas pelos alunos secundaristas, nesse sentido, funcionaram também como uma mola propulsora para uma abertura de possibilidades no campo da militância. Se é fato que o enunciado que implica militância e ocupação não foi inventado naquele momento - há outros exemplos recentes e anteriores, como a ocupação da Praça Tahrir, os Indignados, a Rebelião dos Pinguins e o Ocuppy Wall Street -, é imperioso dizer que uma modulação de luta se entortava e adquiria novos modos sob a movimentação dos alunos das escolas públicas país afora. As ocupações talvez tenham uma estranha gênese, que vem desde os zapatistas, em 1994 - inovação advinda, dentre outras coisas, pelo fato de haver um líder sem rosto, o que é um modo de performatizar a abertura da política a tudo e a todos (Nunes, 2016, p. 36): de fato, uma nova "modulação militante" (Souza, 2016).

As pesquisas ensejadas por Michel Foucault nos idos da década de 1970, as quais apresentam genealogicamente a sociedade disciplinar, mostram que a escola não foi feita para uma radicalização do pensamento: se ela - assim como o hospício, o quartel, a prisão, a fábrica e o hospital - se presta à construção calma e intencional de corpos dóceis - aqueles aptos a produzir e inaptos a problematizar -, deve-se dizer que a função da escola na era moderna é a criação de bons sujeitos do capital (Foucault, 1987). Trata-se, portanto, de um jogo institucional de reprodução de conhecimento e obediência, sob o qual, em escala crescente de série em série até a conclusão - para aqueles que têm essa sorte ou esse privilégio - um aluno se forma.

Formar-se na maquinaria escolar, portanto, deve significar alguns elementos disciplinares: a reescrita de pensamentos de professores - em uma espécie de servidão cognitiva - e o bom comportamento e a concordância com toda a política vertical do sistema educacional. Mais do que construir olhares diversos sobre o mundo, o modelo disciplinar de escola tende ao enclausuramento das singularidades. É por isso que a insurreição dos jovens secundaristas pode ser entendida como um modo de revirar o jogo disciplinar tradicional: sujeitos que ocupam, modulam lugares e criam possibilidades de gestão de uma instituição estão criando novos mundos.

Foi sob a invenção de modos de enfrentamentos à PEC 55 - sob a inspiração do movimento dos estudantes secundaristas de São Paulo - que a ocupação de prédios de universidades por todo o Brasil se deu: enquanto ferramenta de luta por direitos entendidos como básicos. As ocupações no campus do Gragoatá da Universidade Federal Fluminense, na cidade de Niterói - campo a partir do qual a narrativa que conduz o presente artigo se dá -, fizeram-se nesse contexto: o intolerável desmando de um governo federal ilegítimo e a aposta em novos modos de militar. No dia primeiro de novembro de 2016, a partir de uma assembleia geral de estudantes, foi aprovada a ocupação do Gragoatá, a qual acabou por disseminar outras, por toda a Universidade: era sob uma modulação de luta ainda por se inventar que os alunos deliberavam por ocupar. E, se assim era, fazia-se um movimento que demandava criação.

 

A ocupação

A primeira assembleia de estudantes - a que deliberou pela ocupação - foi muito intensa. Entremeados aos aproximadamente cem alunos presentes nos pilotis de um dos blocos, alguns professores acompanhavam as falas estudantis entoadas por meio de um megafone precário. Se poucas eram as vozes que indicavam contrariedade em relação ao ato de ocupar, muitas eram as divergências em relação ao tempo em que a ação deveria se dar. Alguns defendiam que o tempo de urgência demandava uma movimentação imediata, sem que o aparato repressor da Universidade tivesse tempo de montar uma defesa. Outros defendiam que talvez fosse fundamental mais tempo para que a ocupação fosse preparada - com alimentação, presença, colchões e tudo o mais que a habitação de um espaço demanda. Sob falas fortes e ásperas, decidiu-se democraticamente, ou seja, pelos votos da maioria, pela instantaneidade: era o tempo de ir até em casa, preparar roupas, alimentos e colchões ou sacos de dormir e retornar para a tomada dos blocos: aos gritos empolgados e tensos, a primeira assembleia findou:ocupa tudo!

Os estudantes queriam viver essa experiência - algo que, ao que parece, nunca foi feito dentro dos prédios da Universidade. Historicamente, na Universidade Federal Fluminense, houve muitas ocupações da Reitoria e do gramado, piquetes nos prédios e na entrada. Houve inúmeros movimentos grevistas, mas essa aposta parecia totalmente nova - o que, evidentemente, deixava todos um tanto inseguros e com sede de ação. A assembleia acabou por volta das vinte e uma horas, e os blocos fechariam às vinte e duas horas. Com pouco tempo disponível, os estudantes que viviam próximos à Universidade trouxeram colchonetes extras e cobertores para os colegas. Alguns, por variados motivos, não podiam dormir por lá, outros tantos resolveram improvisar colchões com papelão, e dormiri-am assim mesmo. Quais dos blocos seriam ocupados? Qual arranjo seria feito para que fosse garantida a ocupação da maior parte do território do instituto? Cerca de cem estudantes se viam na tarefa de espalhar-se, explorar os prédios - que, frequentados ao longo de anos, haviam tido suas funções banalizadas pelo cotidiano. A ocupação poderia tornar visível o processo de esterilização frente a um dia a dia maçante, no qual estamos presentes naquele espaço, mas dificilmente o ocupamos, inventamos cantos e quinas, enxergamos intervenções possíveis...

Correndo escadas acima e afoitos por viver a experiência de dormir ali, os estudantes instalaram -se tão bem quanto as circunstâncias permitiram. Tinham que angariar comida, agenciar água e energia elétrica, pensar na segurança. Inclusive, um dos primeiros movimentos dos estudantes foi o de cobrir as câmeras - aquelas que vigiam, gravam e armazenam em imagem e áudio o cotidiano dos que frequentam a Universidade - e representam, acompanhadas de outros dispositivos, a opressão hierárquica e vertical que compõe a estrutura acadêmica. Clandestinos e clandestinas tamparam seus rostos e saíram para uma das atividades mais emocionantes da ocupação: a de revestir com adesivos de campanha a favor da greve geral todos os olhos que vinham de cima. Sobrariam, então, as relações horizontais - que têm como premissa estar junto, rente, olho-no-olho - e que talvez sejam as mais difíceis e as mais belas de se inventar.

Quanto à alimentação, de saída cada estudante contribuiu com o dinheiro que tinha e duas ou três pessoas ficaram responsáveis por comprar pão, requeijão e suco para o jantar. O clima se fazia memorável: de alegria, excitação, mas também de apreensão - o medo de que a polícia chegasse a qualquer momento, de não conseguir apoio dos sindicatos e de professores e um certo medo da morte daquele movimento que se iniciava perturbou a noite de sono de muitos que estavam presentes. Apesar disso, entendeu-se que o feriado do dia seguinte seria uma vantagem estratégica para se conversar com calma sobre os rumos da ocupação - nos organizaríamos interna e externamente, para dialogar com o aparato institucional e possivelmente repressivo que poderia surgir.

Já no primeiro dia - o feriado do dia dois de novembro - uma segunda assembleia se fez. Foi com o campus praticamente deserto que, rapidamente, no começo da tarde, formou-se uma mesa diretora - um instrumento burocrático e tradicional da militância em assembleias e fóruns, que tem o objetivo de mediar o debate entre muitas pessoas. Apesar de tal dispositivo funcionar, ou seja, produzir algo, afinal toda ferramenta funciona para alguma coisa, o efeito engendrado foi o de tornar a discussão pouco fluida e muito controlada a partir de inscrições de fala. Termos como "esclarecimento", "proposta", "tempo de fala" e "questão de ordem" apareciam aos borbotões e eram utilizados sem que todos os entendessem. Se, de fato, a ocupação queria fazer insurgir algo novo, parecia estranho que um molde de discussão e deliberação desgastado e arcaico se fizesse presente já de início: não seria possível forjar outros modos, sem que uma centralidade aparecesse - com toda a dificuldade, todo cansaço e todo o fetiche que a ocupação da mesa diretora trazem consigo? Seria possível - se era de uma invenção militante que se tratava - que outra pactuação, menos burocrática e menos centralizadora se desse? Ou, de saída, era inevitável se inspirar e replicar modelos representativos já vigentes?

O método que seria utilizado para as conversas deliberativas, portanto, não foi debatido: de algum modo, já estava dado - herdado do movimento grevista e de todas as reuniões que conduzem, cotidiana e duramente, os encaminhamentos acadêmicos, tais quais as reuniões de conselhos, de plenárias de departamentos, de programas de pós-graduação ou de colegiados de instituto. Isto seria efeito do hábito, já que é mais fácil fazer uso de um modo antigo o qual já conhecemos e reconhecemos? Seria, por outra, um instrumento para separar as falas por coletivos partidários, muitas vezes abdicando da sensibilidade - e de uma política de singularidade - de considerar as peculiaridades e posicionamentos individuais dentro dos próprios coletivos? Fato é que foi uma longa assembleia - em que um enfrentamento retórico violento se deu, repleto de aplausos ruidosos e silenciosos, de vaias e de gritos: um campo de tensão interna, argumentativa, mediada pela pré-condição de um centro em disputa - já que era preciso construir maioria, e, a partir da maioria, uma condução que seria a de todos. Mas talvez fosse preciso perguntar: se se tratava de ocupação - e, portanto, de uma invenção - o quanto, efetivamente, o centro e a maioria eram necessários? Não seria interessante dar-se à rara tarefa de forjar um centro diminuto a partir do qual a experimentação se daria? Ou, mais uma vez, a centralidade era fundamental para que algo se organizasse e ocorresse? Seria, de fato, o centro enorme e diretivo uma condição de possibilidade para a efetivação de uma ocupação?

As perguntas se justificam porque, aos poucos, percebeu-se que, para além de uma tentativa inicial de barrar a proposta governamental que incidiria diretamente nas políticas públicas de saúde e de educação, outro jogo se anunciava na ocupação. Uma espécie de supressão da máquina de Estado, retirando do aparato institucional toda a cotidianidade reiterativa e repetitiva formal se instaurava: a função dos alunos, a função dos professores, a função dos servidores técnico-administrativos, a função dos funcionários terceirizados fazia-se alterada. Mas não só elas: a função da sala de aula, a função dos corredores, do pátio, dos murais, dos banheiros, do tempo e tudo aquilo que se fazia usualmente, de segunda a sexta-feira, naquele aparato universitário vigeria sobre outras modulações. Tratava-se, portanto, da intromissão de outros modos de existência - outros modos de habitar, de sentir, de pensar, de desejar. À primeira vista, portanto, poder-se-ia fazer a defesa de que a operação de ocupação denotava a supressão do Estado. Mas era, de fato, esse o empuxo dado pela ocupação? Ou outras linhas de força a ocupariam, desenhando não mais a supressão do Estado, mas, ao contrário, o aparecimento de outro Estado? Que jogo tenso - e, certamente, já acontecido outras vezes - se montaria naquele espaço?

Há uma avaliação recorrente em uma antropologia conservadora que indica que as sociedades primitivas são sociedades sem Estado - ou seja, são sociedades às quais falta Estado. Tratar-se-ia de ordenações sociais que estariam privadas de algo que lhes seria necessário, em um diagnóstico de falta que lhes faria incompletas. O Estado, sob tal lógica, seria o destino evolutivo de toda e qualquer sociedade - mesmo daquelas que ainda não o alcançaram. Pierre Clastres (2012), antropólogo francês estudioso dos índios Guayaki - caçadores nômades da floresta paraguaia -, em meados da década de 1970, inquire esta tese. Ao perceber que os Guayaki não produziam excedentes - e que, ao contrário, produziam apenas o mínimo necessário e se punham em ócio e diversão por longos períodos do dia -, Clastres afirma que eles funcionavam sob a lógica de "recusa de um excesso inútil" (Clastres, 2012, p. 208). Sob a leitura do antropólogo, esse modo de operação econômica fazia-se acompanhado de uma operação política fundamental: o jogo social que veta o surgimento do Estado.

Assim, há algo que nos Guayakis não aparece: é "a potência de sujeitar, é a capacidade de coer-ção, é o poder político" (Clastres, 2012, p. 209). Assim, Clastres registra o fato de que "a tribo não possui um rei, mas um chefe que não é chefe de Estado. O que significa isso? Simplesmente que o chefe não dispõe de nenhuma autoridade, de nenhum poder de coerção, de nenhum meio de dar uma ordem" (Clastres, 2012, p. 218). E, sendo assim, é imperativo concluir que o "chefe não é um comandante, as pessoas da tribo não têm nenhum dever de obediência" (Clastres, 2012, p. 218). Em outros termos, enfim, "a sociedade primitiva nunca tolerará que seu chefe se transforme em déspota" (Clastres, 2012, p. 220). Se o jogo econômico e político narrado por Clastres é importante - e fundamentalmente importante no presente artigo -, é justamente porque ele taxativamente faz anunciar que as sociedades Guayakis não são aquelas às quais falta Estado: são sociedades contra o Estado - sociedades que fazem de tudo para evitar que o jogo coercitivo de poder possa aparecer, sob a divisão social espúria segundo a qual uns mandam e outros obedecem. Sem o aparecimento do centro - de um centro de comando político -, o jogo do Estado se vê impossibilitado. É por isso que "o que os selvagens nos mostram é o esforço permanente para impedir os chefes de serem chefes, é a recusa da unificação, é o trabalho da conjuração do Um, do Estado" (Clastres, 2012, p. 231). É, pois, com essas sociedades primitivas que algumas perguntas poderiam se fazer: seria possível à ocupação funcionar assim como Clastres narra os Guayaki? Ou seja, seria possível - interessante e potente - pensar que a ocupação, tratando de subverter a máquina universitária e estatal encarquilhada, se pusesse em uma aposta contra-estatal? Ou, ao contrário, para que ela ocorresse seria fundamental que um centro de comando aparecesse, a partir do qual os acontecimentos seriam mediados, autorizados e proibidos?

É por isso que uma série de gestos pode ser interrogada - gestos que, sob uma modulação militante, monta um centro quase aos modos do politburo soviético, que por exemplo, deliberava quais assuntos estavam autorizados a serem debatidos e quais estavam vetados, bem como o número de atividades que poderiam ser realizadas por dia - ao invés de apostar na proliferação de atividades no território ocupado. Talvez seja por isso que, em vários dias, a Universidade tenha se esvaziado - porque os acontecimentos na ocupação necessitavam passar pela aprovação - sempre sob o risco de uma proibição. Forma-se, portanto, um centro diretivo que toma decisões em relação à ocupação que não suportam muito a diferença de proposições para atividades e eventos.

Com temores à própria morte - este centro que poderia também ser caracterizado como grupo-sujeito segundo Guattari (2004) - e construído aos moldes do tradicional movimento estudantil, tende a fechar-se sobre si mesmo, operando repetidamente os mesmos modos. Em algum momento, percebe-se, no coletivo, uma certa paranoia devido a esse modo de organizar-se. Não à toa, um dos momentos mais intensos da ocupação se deu quando a firmeza deste centro diretivo estava já enfraquecida pelo cansaço - permitindo, portanto, que as atividades ocorressem sem a passagem pelo crivo quase institucional que autorizava ou recusava atividades.

Simultaneamente, três ou quatro rodas de conversa - com assuntos variados -, bambolês girando nas cinturas, tecidos coloridos amarrados às árvores, sarau com poesias sendo declamadas e palco livre para manifestações musicais: neste dia talvez se pudesse dizer que uma modulação de ocupação contra o Estado - e não em nome de outro Estado, com o firme governo das existências alheias - se deu. E, com ela, o vigor dos agenciamentos criativos que fizeram com que aquele espaço conjugasse a ocupação, a resistência, a invenção e a alegria. Com o centro esvaziado, a borda agitou-se e o movimento de ocupação ganhou vida e vitalidade, permitindo que os encontros fizessem e refizessem o coletivo sob um plano comum e imanente que, talvez - como disse Guattari (2004) acerca dos grupos -sujeitos -, já não temesse a própria morte.

Problematizando o uso da centralidade na tomada de decisões e na composição da ocupação, a figura do simpatizante pode servir de ferramenta analítica: tratar-se-ia de uma pessoa que não ocupa, mas apoia? Que não ocupa, mas faz visitas? É possível ir às atividades, levar um saco de batatas e ocupar? Ou para ocupar é necessário descascar batatas? O que de fato é ocupar um território? Observa-se que a dinâmica da ocupação, logo de início, se fez em torno da figura peculiar do simpatizante, que não é necessariamente reconhecida como "ocupante", mas que agencia e opera ocupação. Se é possível e necessário que uma ocupação se fortaleça e se estruture com a ajuda de muitos elementos de fora - que são não-ocupação, como o fornecimento de quentinhas por meio de um sindicato, por exemplo -, é preciso reconhecer um estar junto que ultrapassa as normas preestabelecidas ou ideais que fabricam o militante tradicional. Esta figura esforçada a ponto de sacrificar tudo e triste por estar cansada demais para tentar outra coisa. Gostaríamos de apostar, então, que existem múltiplos modos de ocupar. Alguns dormem com mais frequência, outros dormem todos os dias e organizam as atividades. Outros, indo e vindo de atividades, eventualmente ajudando a pegar cadeiras em salas de aula para fazer atividades, buscando água. Há os que ajudam disponibilizando número telefônico de advogados, emprestando o carro e até mesmo contribuindo com dinheiro, alimento, colchonetes, produtos de limpeza e de higiene - e também os que estão em outras cidades e compartilham informações e experiências. Assim, afirmamos que há muito modos de ocupar - distintos, legítimos, singulares e importantes.

A ocupação se sustentou por tempos com um caixa de doação e com uma despensa. Doação de pessoas que compunham a ocupação - ação de compartilhar do tempo, do dinheiro, do esforço. Acreditar, querer e fazer possível - em relação de força e afeto - aquela experiência. Se ocupar é tornar um lugar potente, é também torná-lo propício e favorável para a criação do que está por vir. A experiência com as trabalhadoras terceirizadas da limpeza invoca um dos modos de ocupar. Estavam ali todos os dias pela necessidade de cumprir o horário do serviço, mas a maioria não exerceu sua função usual: auxiliaram os estudantes quanto à limpeza de banheiros, corredores e salas e quanto ao uso do material de limpeza. Foi o fazer mais próximo do que poderíam chamar de tarefa diária. Participaram de atividades, organizaram-se para debater sobre a terceirização, mas nunca dormiram no prédio ou foram às assembleias. Naquelas circunstâncias, porém, o esforço se deu na troca intensa de experiências, nos encontros diários com estudantes e na abertura de possibilidade que aqueles corpos puderam experimentar, fazendo com que as estruturas hierarquizadas da Universidade se deslocassem.

Esses elementos de fora que fazem com que a ocupação aconteça têm como característica um plano relacional de forças. Mais do que pensar o fora enquanto exterioridade, um fora espacial, é pensar um fora enquanto um plano relacional com as coisas a que temos acesso em âmbito coletivo. Se um plano de imanência é, de fato, a própria imagem do pensamento, seria possível pensar um pensamento gerado por um plano da ocupação? É possível conceber, dadas às circunstâncias, uma resistência ao primado do poder institucional no plano também do pensamento - em outra imagem do pensamento? E se nesse plano os sentidos criados para as experiências são singulares porque compostos por estas forças, seria a ocupação um espaço propício à criação de outros sentidos para a vida?

A experiência de um plano de imanência se dá num plano de forças. Onde as formas não são mais o primado e sim o fora. O fora é tudo aquilo que arrasta nosso ser à abertura do futuro. Enquanto as relações de poder se conservam, as forças estão sempre em movimento, esbarrando umas nas outras. Assim, a resistência se faz primeira, já que entra nesse plano onde "há apenas meios e entre-meios, quando as palavras e as coisas abrem-se ao meio sem nunca coincidirem, é para liberar forças que vem o lado de fora e que só existem em estado de agitação, de mistura e de recombinação, de mutação" (Deleuze, 2005, p. 94). E, talvez, um tanto disso que se coloca próximo da aposta que gostaríamos de fortalecer - contra o Estado, força do fora - se aproxime dos momentos de festa que ocuparam a ocupação.

A primeira festa foi o aniversário de estudante que fazia parte da ocupação. Com um carro emprestado por professor, algumas pessoas saíram para comprar as bebidas. Havia muita animação: seria ótimo estar juntos em outro clima, em outras circunstâncias que ainda não haviam ocorrido na ocupação. Àquela altura, já se detectava um endurecimento das práticas naquele espaço. Tudo era sentido como um peso enorme, afinal de contas, o início de um processo é sempre mais difícil - começar do zero, criar a primeira direção, trilhar o primeiro caminho... E talvez tenha sido essa a importante função da primeira festa: desfazer a dureza dos instituídos que já queriam se cristalizar.

Já a última festa foi o gesto de encerramento da ocupação. Já havia a deliberação, feita no mesmo dia, de dar fim à ocupação. No dia seguinte juntar-se-iam todas as coisas - já se tinha limpado todo o prédio - e iria-se embora. A festa veio como uma ferramenta importante neste processo des-territorializante que é a saída e a morte. Os ocupantes já estavam mais relaxados dentro do prédio, sentindo-se mais seguros para deixar as portas abertas, circular pelo campus, ir novamente à orla - um dos locais favoritos dos estudantes da UFF, um verdadeiro cartão-postal, a orla tem uma vista maravilhosa para o Rio de Janeiro. Aliás, é sintomática a não circulação, durante a ocupação, por territórios que proporcionam alegria aos corpos. É interessante pensar a mudança nisso tudo: a última festa começou com resquícios deste afastamento da alegria - preocupações com a segurança, com a dinâmica, com a sujeira - mas isso foi se dissolvendo na própria festa. Houve uma grande roda em uma das salas de aula, conversas em alto volume de voz, falas acerca da ocupação. Um momento importantíssimo foi quando uma ocupante transexual leu um texto muito sensível sobre a ocupação escrito por ela ali, para todos. Ouviu-se a descrição dos processos, mas também a narração afetiva do que tinham sido aqueles meses caóticos e intensos. Pode-se também afirmar politicamente o e - conjunção aditiva que na filosofia deleuzeana ganha tons éticos distantes dos binarismos: confuso e alegre, demandante e enriquecedor, duro e divertido. Aprendeu-se um tanto com os paradoxos imanen-tes ao processo...

Eram poucas pessoas na festa - que a princípio se dava dentro de uma sala de aula: uma pequena caixa de som, bebidas, cigarros. Em meio a danças e conversas, uma voz qualquer gritou: o que estamos fazendo aqui dentro? Vamos lá para fora! Saímos, circulamos. Ao sair, podíamos entrar e sair com mais facilidade. O campus à noite oferece uma intimidade e uma calma... A noite foi longa. O DJ e amigo embalou a noite com todos os ritmos possíveis e a festa foi até de manhã, passando por muitas conversas, coreografias, muito suor e muitos beijos. Quando o dia amanheceu, o grupo foi para o estacionamento do Gragoatá e correu, brincou de bola, gritou e extravasou. Nas políticas de enfrentamento aos desmandos de um governo ilegítimo e às verticalidades do poder da máquina institucional acadêmica, restou a certeza de que outro mundo é possível. Dali, da ocupação e da festa, ninguém sairia igual: ao fim e ao cabo, permanece a aposta na conjunção potente e desafiadora entre a militância e a alegria.

É dentro deste emaranhado que nos vemos: entre festas e bambolês, entre questões e deslumbramentos. A ocupação, então, provoca uma certa fissura intensiva nos modos cotidianos e institucionalizados da Universidade Federal Fluminense. Faz-nos pensar que a ocupação, a partir da fissura, produz uma abertura irreversível para quem a viveu: primeiro ao construir clandestinos e fugazes modos de militar; depois, por desejar a festa e a alegria como uma importante ferramenta de resistência contra o imperativo do Estado - e do triste estado de coisas que se anunciava e se anuncia com o repetitivo e insistente retorno de forças fascistas. Mais ainda, a ocupação reitera a importância da experiência: é o que nos move, o que nos faz deslocar e tremer que nos interessa.

 

Referências

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Recebido em: 20/01/2018
Aprovado em: 13/12/2018

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