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Revista Psicologia Política

On-line version ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.19 no.45 São Paulo May/Aug. 2019

 

ENTREVISTA

 

Desafios contemporâneos para o estudo dos movimentos sociais: entrevista com Donatella della Porta

 

Contemporary challenges for the study of social movements. Interview with Donatella della Porta

 

Desafíos contemporáneos para el estudio de los movimientos sociales: entrevista con Donatella della Porta

 

Défis contemporains pour l'étude des mouvements sociaux: entretien avec Donatella della Porta

 

 

Eduardo Georjão Fernandes

Doutorando e Mestre em sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com período de doutorado sanduíche na Scuola Normale Superiore, Florença, Itália; eduardo.g.fernandes@gmail.com

 

 

professora italiana Donatella della Porta é cientista política e referência mundial no campo de estudo dos movimentos sociais. Laureada em Ciência Política pela Università di Catania em 1978, estudou também sob orientação de Alain Touraine na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, onde recebeu o Diplôme d'Etudes Approfondies em 1981. Doutorou-se pelo European University Institute em 1987, com a tese Underground political organizations. Leftwing terrorism in Italy, sob orientação do professor Philippe Schmitter. De 1993 a 2003 foi professora de Ciência Política na Università degli Studi di Firenze. Entre 2003 e 2015 foi professora de Sociologia do European University Institute. Desde 2015 é professora da Scuola Normale Superiore, na qual coordena o Centre on Social Movement Studies - COSMOS (http://cosmos.sns.it/).

Os principais interesses de pesquisa da professora della Porta relacionam-se às temáticas de movimentos sociais, violência política, policiamento a protestos e corrupção. Como objeto empírico dedicou-se ao estudo de movimentos radicais de esquerda na Itália e na Alemanha, do Movimento pelo Justiça Global, da construção do Fórum Social Mundial e mais recentemente de ciclos de protesto contemporâneos como a Primavera Árabe, o Occupy Wall Street e os Indignados na Espanha.

Entre os seus principais livros podemos citar obras introdutórias à teoria dos movimentos sociais (Della Porta, Diani, 2006), estudos sobre violência política (Della Porta, 1995; 2013) e policiamento a protestos (Della Porta, Reiter, 1998; Della Porta, Peterson, Reiter, 2006). Mais recentemente, della Porta tem se interessado pela dimensão econômica dos processos sociais em interação com os movimentos e a democracia, especialmente num contexto de adoção de políticas de austeridade na Europa. Nesse sentido, a preocupação central de della Porta no estudo contemporâneo dos movimentos sociais é "trazer o capitalismo de volta" (Della Porta, 2015) ao debate como elemento imprescindível para a compreensão sociológica e política dos conflitos globais.

Em seus estudos della Porta parte de uma perspectiva específica, a Teoria do Processo Político (Tilly, 1978), mais recentemente também identificada como Teoria do Confronto Político (McAdam; Tarrow; Tilly, 2001). Analisando processos sociais de nível intermediário, della Porta busca mobilizar conceitos centrais a essas teorias, como repertórios da ação coletiva, engajamento e enquadramentos interpretativos, para explicar os mecanismos causais (Gerring, 2007) que produzem transformações nas organizações de movimentos sociais, sendo estas sempre entendidas em interação com os demais atores das arenas políticas.

Nesta entrevista buscamos tratar de temas relacionados aos desafios contemporâneos do campo de estudos em movimentos sociais. Buscamos questionar della Porta sobre como as configurações atuais do ativismo global impõem desafios teóricos e metodológicos, em especial para a explicação de aspectos subjetivos e identitários da ação coletiva. Objetivamos ainda tratar de aspectos teóricos em relação a contextos específicos, como o crescimento de movimentos e partidos de extrema direita na Europa e o fim do ciclo de governos progressistas na América Latina.

Professora della Porta, gostaria de começar com uma pergunta mais geral: nos estudos contemporâneos dos movimentos sociais, quais são os principais dilemas que os teóricos têm encontrado? Em outros termos, quais os principais desafios que o contexto contemporâneo traz para o estudo dos movimentos sociais e da ação coletiva?

- Eu penso que há muitos desafios, porque o tipo de movimentos sociais e o tipo de confronto político que estão se desenvolvendo são diferentes daqueles que eram abordados pelos estudos dos movimentos sociais tradicionalmente. Então, um dos principais desafios que tentei abordar em trabalhos recentes é como incorporar transformações no capitalismo e questões de classe (Della Porta, 2015). Porque a área convencional de movimentos sociais focalizou principalmente os chamados movimentos pós-materialistas (ou "novos movimentos sociais") e tendeu a esquecer a presença de movimentos que abordam ao mesmo tempo questões distributivas e questões de reconhecimento. Não é que estes movimentos não estivessem presentes no passado. Algumas pesquisas indicaram que os conflitos materiais ainda eram relevantes, mas não eram o foco principal dos estudos dos movimentos sociais. Assim, enquanto campos cognatos, como os estudos em revolução, por exemplo, ainda se concentravam em mudanças estruturais, isso não era tão verdadeiro para os estudos dos movimentos sociais. E um problema com a reintrodução do capitalismo na análise é que ele tem sido esquecido por um longo tempo, não apenas nos estudos dos movimentos sociais, mas também em áreas como a sociologia do trabalho. Então, isso é parte de um desafio mais amplo. Ainda há pesquisas feitas, por exemplo, dentro da tradição marxista, mas acho que o desafio é levar em conta também as transformações estruturais, mas sem esquecer a agência. Assim, não se trata apenas de olhar para o tipo de base estrutural dos movimentos sociais, mas ainda é preciso entender quando e em que direção esses tipos de conflitos de classe estão se desenvolvendo. Então a política ainda é importante para mim, as agências de movimentos ainda são importantes para mim, mas isso precisa ser combinado com questões de classe. Em seguida, outro tipo de desafio é que os estudos de movimento sociais focalizaram principalmente movimentos de esquerda e progressistas, enquanto hoje em dia você sempre questiona qual é a relação entre os movimentos sociais de esquerda e o desenvolvimento de desafiantes à direita. É verdade que muitas vezes os oponentes da direita assumiram formas mais partidárias do que formas de movimento social, mas eles [os partidos] com certeza constantemente tentaram mobilizar também suas bases. Ontem por exemplo houve as eleições na Suécia, com os Democratas Suecos, que é um partido de direita, mas esse partido também tenta se mobilizar como um movimento social contra os migrantes e assim por diante. E para isso eu acho que precisamos também desenvolver conceitos e métodos. Porque sempre tivemos a sorte de trabalhar e fazer pesquisas empíricas sobre os movimentos sociais de que gostamos, povoados por "pessoas legais" que normalmente nos acolhem, mas agora é preciso pensar também em como atualizar não apenas o conjunto de ferramentas teóricas, mas também as ferramentas metodológicas.

Em que medida você pensa que esses desafios levam-nos a questionar o próprio conceito de "movimentos sociais"? Você acha que o conceito de movimentos sociais que consta no seu livro com o professor Mario Diani (Della Porta, Diani, 2006) e que define os movimentos a partir de três elementos (atores que constroem uma identidade coletiva, vinculada por densas redes informais e envolvida em relações conflitivas com oponentes claramente delimitados) é suficiente para dar conta da multiplicidade dos movimentos contemporâneos? Em uma conferência recente na Scuola Normale Superiore o professor Mario Diani inclusive sugeriu que abandonássemos o conceito de movimentos sociais...

- Bem, meu amigo Mario Diani é sempre um pouco provocativo. E eu não acho que ele realmente quisesse abandonar tudo. Eu tenho uma espécie de concepção weberiana de conceitos. Então, eu penso que os conceitos são tipos ideais que se encaixam mais ou menos bem com a realidade empírica. E nos fenômenos que são relevantes hoje em dia, penso que há um componente que podemos entender através de estudos de movimentos sociais. Então, não acho que precisamos descartar os conceitos de movimentos sociais. Mesmo que possamos discutir, como sempre fizemos, até que ponto as redes precisam ser intensas e densas para podermos chamar algo de movimento, temos que estar cientes do fato de que hoje em dia os movimentos tendem a se tornar visíveis e invisíveis muito rapidamente. E que identidades coletivas estão muito em construção. Portanto, em muitos casos não é a noção "forte" de movimentos sociais que entra em jogo, mas o fato de que existem atores que estão vagamente conectados, usam formas disruptivas de ações e desafiam as autoridades por meio de formas disruptivas de ações. Eu acho que isso ainda é muito parte do mundo que tentamos entender. O que eu acho importante é evitar restringir o foco em um campo como os movimentos sociais. Os movimentos sociais têm sido um campo muito bem sucedido, [o campo dos movimentos sociais] é uma das áreas mais importantes da Associação Americana de Sociologia, da Associação Americana de Ciência Política. Também em países como o México e no continente europeu [o campo dos movimentos sociais] é cada vez mais importante. Mas o risco é se tornar autorreferente. Enquanto eu penso que o que tem sido útil com a abordagem do confronto político é a tentativa de abri-la às interações com outros conceitos. Porque, como mencionei, os movimentos sociais são um tipo ideal. Quando olhamos para atores concretos, tomemos os sindicatos por exemplo, temos formas híbridas de atores. Estamos estudando, por exemplo, protestos de jovens e você tem clubes esportivos alternativos, você tem eventos contra culturais, você tem bandas de música. Você não pode dizer que essas são as organizações de movimento sociais típicas, mas elas fazem parte de redes nas quais elas também se mobilizam e assim por diante. Por isso, acho que sempre precisamos atualizar nossos conceitos para ver qual tipo de especificação precisamos, mas jogar fora conceitos também significa jogar fora o conhecimento que foi acumulado nesses conceitos. Isto é, eu acho que esse conhecimento [sobre movimentos sociais] ainda é importante para nós.

Especificamente, gostaria de me focar no conceito de identidade coletiva: você, que estudou sob orientação do professor Alain Touraine, entende que o conceito de identidade é uma ferramenta importante para a análise dos movimentos sociais? Como você entende "identidade coletiva" hoje?

- Eu também acho que o conceito de identidade coletiva não pode ser descartado. É claro que temos que reconhecer que existem tipos muito diferentes de significados dados ao conceito em diferentes disciplinas. Você citou Touraine. Touraine tem uma ideia de identidade coletiva que se inclinaria para a consciência de classe, enquanto outros acadêmicos, também em estudos de movimentos sociais, usaram o conceito de identidade coletiva em um tipo de perspectiva micro, observando mais as maneiras pelas quais os indivíduos vão de uma identidade individual para uma identificação com outros e como o processo é em seguida politizado e assim por diante. Assim, Bert Klandermans, por exemplo, como psicólogo, analisou esse tipo de dinâmica no nível micro, enquanto Touraine tentou entender como as grandes transformações nas identidades de classes (e dos movimentos sociais como um dos atores desafiadores da sociedade) desenvolveram-se. Eu trabalhei mais no nível intermediário, portanto olhando mais para o tipo organizacional de identidades, e a minha impressão é que existe hoje muito "trabalho de identidade", o trabalho que é feito para tentar abordar os problemas das sociedades líquidas. Então, para tentar fornecer identificações que sejam mais fáceis de serem abordadas pelos movimentos sociais progressistas. Assim, as identificações tendem, é claro, a interagir com a ideologia, as narrativas, e penso que isso [o "trabalho de identidade"] é extremamente importante hoje em dia, porque um dos desafios é desenvolver um tipo contra-hegemônico de narrativas. Então, para mim isso está relacionado com as identidades coletivas agora. Os movimentos sociais tenderam a sempre trabalhar muito na tentativa de desenvolver novas identidades emergentes: movimento de mulheres, movimento ambiental, por exemplo. Agora, penso que o desafio é passar do tipo fragmentado e específico de identidades para identidades mais amplas e globais. Então, ao mesmo tempo, a linguagem do passado precisa ser atualizada: a classe trabalhadora não poderia ser a única identidade coletiva, mas também acho que há uma tentativa de ir além da fragmentação, e o "trabalho de identificação" é importante.

A questão anterior, relativa à identidade, aponta para os aspectos mais subjetivos da ação coletiva. Você pensa que campos que atribuem ênfase maior aos processos subjetivos, como a Psicologia Política e a Psicologia Social, oferecem contribuições para as teorias dos movimentos sociais? Como conciliar aspectos mais subjetivos dos fenômenos sociais a enfoques mais estruturais, próprios da Sociologia e da Ciência Política?

- Eu tenho trabalhado com frequência com a construção social da realidade (Berger, Luckmann, 2004), o que não é o tipo de abordagem psicológica, mas acho que ela oferece um terreno no qual o micro e o meso tipo de abordagem podem se encontrar. Porque o que eu penso ser importante, o que preocupa os sociólogos é o fato de que lidamos com seres humanos que tendem a reagir não a mudanças estruturais, mas a suas percepções de mudanças estruturais. Então, o que importa é entender, digamos, por exemplo, por que, em alguns países, alguns tipos de reivindicações contra ou sobre desigualdades produzem movimentos à esquerda e em outros países, ao invés disso, transformam-se em movimentos xenofóbicos. E aí eu acho que não é minha abordagem olhar para os níveis individuais, para o nível do tipo individual de processos. Mas penso que a Psicologia Social ou a Psicologia Política podem ajudar muito na compreensão da dinâmica, dos mecanismos por meio dos quais alguns tipos de narrativas, alguns tipos de estereótipos sobre os outros, mas também alguns sentimentos mais positivos, como a solidariedade, desenvolvem-se. E eu não sou um especialista em emoções, mas em várias partes da minha pesquisa eu me deparei com emoções, porque eu penso que movimentos sociais são "política apaixonada", eles não são realmente um tipo de política rotineira. E acho que essas interações com os psicólogos poderiam ser muito úteis para os sociólogos e provavelmente também para os psicólogos, a fim de ir além de um tipo de abordagem mais individualista.

Você entende que existe uma tensão/incompatibilidade entre movimentos que se apoiam centralmente na identidade como pauta de reivindicação (como é o caso dos movimentos de gênero) e movimentos mais tradicionais de viés mais marxista, cuja pauta central é a dimensão econômica/de classes? Como você compreende a tensão que se construiu nas últimas décadas entre movimentos sociais que focalizam demandas identitárias/reconhecimento e movimentos sociais que focalizam demandas redistributivas/luta de classes? Como esta tensão contribui ou não para o estudo de movimentos sociais na atualidade?

- Bem, penso em termos de tipo sociológico de análise, algo que por exemplo Jeff Goodwin sugeriu e estou tentando fazer em um dos meus próximos livros é ver a dimensão de classe também em movimentos de reconhecimento. Não é tão clara a distinção entre movimentos de distribuição e movimentos de reconhecimento, porque o que conta é a construção social da reivindicação, da classe, das identidades coletivas. E então o que estou fazendo agora neste livro (Della Porta, 2015) é, por exemplo, tentar olhar para a base social de diferentes movimentos. Do movimento da independência catalã aos movimentos estudantis, aos movimentos operários, aos trabalhos precários e assim por diante. Mas ao mesmo tempo também reagir e voltar até certo ponto à literatura sobre classe. Eu me titulei no bacharelado escrevendo sobre classes sociais. E havia naquele momento um debate sobre quantas dimensões você tem no conceito de classe. Foi um debate entre Frank Parkin e Ralf Miliband, entre outros. E a partir desse debate, o que eu penso que ainda é relevante é ver também que classe não é apenas o interesse material. Mas também envolve questões de status e questões de reconhecimento político. Então, penso que, se juntarmos isso, veremos que não há realmente movimentos que possam ser lidos apenas como movimentos de reconhecimento ou movimentos que poderiam ser lidos apenas como movimentos de redistribuição, mas as questões são combinadas no que hoje é definido interseccionalidade, mas que eu acho que uma ideia sofisticada de classes já possuía. Então, as discriminações em termos de classe estreitamente entendida, de gênero, de raça, de idade e assim por diante eu penso que combinam-se umas com as outras.

Uma dimensão que tem sido muito estudada pelos teóricos da ação coletiva é o uso de novas tecnologias e o papel das redes sociais na configuração do ativismo contemporâneo. Como você pensa que as novas tecnologias impactam a configuração de identidades coletivas?

- Isso é muito amplo e é muito importante. Eu acabei de contribuir para um livro de Emiliano Treré e outros em que o debate foi exatamente sobre como os desenvolvimentos tecnológicos moldam, mas também são resistidos, são usados pelos atores. Então agências e tecnologias. E o que vejo é que, é claro, a comunicação é importante para os movimentos, como sempre foi. Os movimentos estão, como outros atores, usando uma ampla estratificação dos meios de comunicação. Portanto, não apenas as mídias sociais, mas também as mídias muito antigas, desde o rádio, a televisão, o encontro face a face, todas as diferentes maneiras pelas quais a esfera pública foi definida. Então eu acho que se deve considerar ambos. Existem, é claro, tecnologias que transformam a maneira como nos comunicamos. E eu penso que desde WEB 1.0 até a 2.0 você teve transformações na capacidade dos indivíduos de produzir suas próprias formas de comunicação, telefones, iPhones e assim por diante. E isso mudou ... como posso dizer? Isso transformou as estruturas dos movimentos sociais. Jeffrey Juris falou de uma mudança de uma lógica de rede para uma lógica de agregação. Assim, é verdade que algumas dessas novas tecnologias permitem movimentos de tipo instantâneo, mobilização muito rápida, mas também desmobilização rápida, porque elas [as novas tecnologias] tornam a estrutura da organização menos relevante. Mas, ao mesmo tempo, penso que os ativistas dos movimentos sociais estão cientes dos desafios. Então você tem pouquíssimas campanhas baseadas apenas em mídias sociais. E, pelo contrário, se você pensar na chamada Primavera Árabe, ou nos Indignados, ou nos movimentos no México e assim por diante, há um uso das mídias sociais, mas também há muitas preocupações sobre a reocupação física dos espaços.

Há alguns anos nós presenciamos a emergência de "novos" movimentos e ciclos de protesto considerados inovadores, como o Occupy Wall Street, o 15M na Espanha, a Primavera Árabe, Junho de 2013 no Brasil. Por outro lado, vemos recentemente a eclosão de "contramovimentos" conservadores, como aqueles que culminaram na eleição de Trump nos Estados Unidos; na Europa presenciamos a crise dos refugiados e a eleição de governos de direita e extrema direita. Você interpreta o atual momento como um período de predominância de "contramovimentos" conservadores? Que posição os movimentos progressistas ocupam nesse contexto? Quais "novidades" você tem identificado nos movimentos progressistas para enfrentar essas agendas conservadoras?

- Eu costumo ser otimista por necessidades psicológicas. Meu marido diz "otimista demais". Então tenho a impressão de que vivemos em tempos difíceis. Gramsci usou o termo "interregno", um momento em que tudo está morrendo e o novo ainda não nasceu. Então, há momentos, digamos, de rápidas transformações, e eu penso que eles são momentos de desafios, mas também momentos de oportunidades. Nós tendemos a ter este processo muito rápido de entusiasmo e desilusão. Então 2011 foi um ano de entusiasmo pela Primavera Árabe, o Occupy, os Indignados e assim por diante, 2013 foi o Brasil também se mobilizando e assim por diante. Em seguida eu penso que houve grandes momentos de decepção: Trump, houve repressão, na onda latino-americana o renascimento da esquerda foi desafiado, mas acho que sempre temos também resistência. Nos Estados Unidos, os cidadãos estão resistindo fortemente a Trump, no Brasil a esquerda está sob desafio, mas no México [a esquerda] teve mais sucesso do que o esperado. Na Espanha, por exemplo, você tem uma situação em que, na virada de duas semanas, você saiu da perspectiva pessimista de uma direita, centro-direita com o PP e uma extrema direita com Ciudadanos, tentando radicalizar, polarizar o conflito com a Catalunha, para uma coalizão de partidos em torno de uma espécie de PSOE renovado que vai na direção de um caminho mais federalista. Está sempre aberto. Portanto, não quero ser muito otimista em relação à Espanha, mas vejo que, do ponto de vista das emoções das pessoas, inclusive dos amigos, acadêmicos com os quais estou contato na Espanha, a atmosfera emocional mudou muito rapidamente. Então um amigo que ficou muito deprimido há algumas semanas me disse "sim, estamos vivendo um momento de primavera na Espanha". E eu penso que as emoções são importantes, porque elas produzem espirais positivas. Então elas [as emoções] mudam as pessoas. Essa é uma das lições em movimentos sociais: você precisa de esperança para se mobilizar, e acho que alguns desses eventos estão dando esperança. É um desafio, mas não diria que é um momento em que basta sobreviver à grande regressão. É um momento de luta, eu acho.

Um tema que me interessa especialmente quando tratamos de "contramovimentos" conservadores são as estratégias do Estado para aumentar os custos da ação coletiva. Recentemente, estudos têm tratado da sofisticação das estratégias policiais principalmente a partir dos Movimentos da Justiça Global no início dos anos 2000, com a constituição de modelos de "incapacitação estratégica" ao ativismo. Esse é um contexto que rompe com uma tendência, identificada por você entre as décadas de 1980 e 1990, de maior tolerância ao protesto social. Como explicar essa tendência mais repressiva atual? Qual o papel de novas tecnologias (como por exemplo o uso de câmeras de vigilância e o monitoramento de redes sociais) na produção das formas contemporâneas de repressão?

- Eu acho que isso segue o que eu disse sobre o momento altamente conflituoso em que vivemos, no qual também a repressão está aumentando. Algumas pesquisas sobre o policiamento de protestos mostram que o tipo de reação da polícia e dos governos tende a estar ligado às percepções que se tem dos ativistas, dos desafiantes. Enquanto no período em que houve mais um movimento no sentido de reduzir a repressão policial, isso esteve ligado à aceitação de movimentos que se tornaram mais moderados e foram percebidos como mais moderados. Agora, nesta atmosfera mais polarizada, há uma tentativa de reduzir e negar os direitos de protesto do povo. Juntamente com isso, penso que também se deve considerar que o tipo de policiamento que havia se tornado menos repressivo não significa que houve uma aceitação de todo tipo de protesto. Era mais uma adaptação recíproca em que o que se considerava valer a pena negociar era o tipo moderado de movimentos: sindicatos no período em que eram atores reconhecidos, movimentos de paz, porque [esses movimentos] eram considerados bastante apoiados também pela opinião pública. Mas as escaladas de repressão sempre aconteceram e, nos momentos em que os movimentos são percebidos como mais desafiadores, ela [a repressão] retorna. Um último ponto que gostaria de fazer sobre isso é que isso é sempre uma questão de percepção das elites sobre si mesmas. Assim, outros atores são percebidos como desafiadores quando as elites sentem que estão enfraquecendo. Eu acho que as elites percebem que há uma crise de legitimidade e que elas pensam que precisam se defender. Você pensa em formas de protestos e, além disso, é claro, existem as tecnologias que podem ser usadas, mas acho que há também diferentes atitudes das elites que se sentem legitimadas, então há formas mais tolerantes de protestos, enquanto as elites que se sentem deslegitimados tendem a reagir mais drasticamente. E, de fato, acho que é a tendência geral, em alguns regimes, de passar das formas liberais às formas não liberais de democracia. Na América Latina existem essas definições de "dictablanda" e "democradura", e você tem muitos casos também em democracias nas quais houve uma clara restrição. Os regimes democráticos seguiram em direção a regimes híbridos, como na Turquia, Hungria, Polônia...

Agora gostaria de tratar da América Latina. Estamos vivenciando na região o fim de uma era de governos progressistas e a emergência de governos conservadores. Você entende que existe uma conexão entre o contexto global de ascensão do conservadorismo e o atual momento latino-americano? Como você entende a atuação dos movimentos sociais progressistas na região?

- O que eu aprendi sobre a América Latina é especialmente por meio de acadêmicos latino-americanos. Eu orientei estudantes de doutorado, como Federico Rossi e outros, e li o trabalho de acadêmicos como Kenneth Roberts, que estou seguindo muito, mas não sou especialista em América Latina. Então, minha impressão é que é interessante desenvolver uma comparação sistemática entre o sul da Europa e a América Latina, reconhecendo também as diferenças dentro das regiões. Portanto, não desenvolver estereótipos sobre o que é típico das síndromes do sul da Europa ou do Mediterrâneo, ou síndromes latino-americanas, porque há uma ampla variedade, experiências históricas e assim por diante. Provavelmente na América Latina até mais do que no sul da Europa. E penso que para mim a América Latina ainda é bastante vibrante do ponto de vista político. Tem havido muitas ideias, inovações e assim por diante que vieram da América Latina. E mesmo que essas esperanças de ressurgimento da esquerda de alguns anos atrás estejam agora sendo desafiadas (a Venezuela está sob pressão, o Brasil, com uma história diferente, também está sob pressão), mas ainda vejo que Uruguai, Chile, México representam experiências de inovações que eu acho que ainda significam que é importante manter os canais de interação globalmente.

No meu período aqui na Scuola Normale Superiore identifiquei, entre professores e alunos, a recorrência de um discurso sobre a necessidade de combate ao eurocentrismo acadêmico a partir da produção de estudos em outras realidades para além do "Norte Global". Ao mesmo tempo, identifico que há limitações na importação de modelos teóricos construídos para entender o "Norte Global" ao "Sul Global", crítica já extensamente formulada por autores pós-coloniais e decoloniais. Na área dos movimentos sociais, como você identifica podermos produzir um diálogo teórico entre "Norte" e "Sul"?

- Eu acho que há esse tipo de duplo desafio. Por um lado, há, é claro, um conjunto de ferramentas de conceitos que foram desenvolvidos em certas áreas geopolíticas e que devem ser atualizados para serem usados em outras áreas. Mas acho que isso não deve desestimular o trabalho comparativo, porque acho que um dos riscos que se desenvolve em uma divisão do trabalho científico em torno dos estudos de área é que consideramos, por padrão, que qualquer área precisa ser tratada com conceitos muito específicos. E o que tentei fazer em alguns dos trabalhos recentes (por exemplo, este livro "Where did the revolution go?" - Della Porta, 2016) é dizer 'claro, por exemplo, a Primavera Árabe tem algumas especificidades, é claro que a Europa Centro-Oriental tem um diferente tipo de desenvolvimento histórico', mas, ao mesmo tempo, penso que é muito frutífero tentar comparar as áreas em vez de seguir as tradições da Ciência Política para se concentrar nos casos mais semelhantes. Também para comparar além, porque também acho que isso é cada vez mais importante, já que diferentes áreas estão em contato umas com as outras. Então você não tem a América Latina isolada da Europa, ou a Europa isolada da África. E isso, para mim, significa que a tentativa de desenvolver uma comparação nacional cruzada, que também é uma comparação entre áreas, pode ser útil para ir além do tipo de uso colonial dos conceitos desenvolvidos no Norte para o Sul, mas também permitindo indo além do isolamento. E se eu olhar para os estudos latino-americanos da perspectiva que eu conheço melhor, da Ciência Política, tem havido muitos acadêmicos às vezes usando conceitos muito específicos: "incorporação" (Rossi, 2017), por exemplo. Comecei a orientar Federico Rossi e não entendi o que era. E penso que a reflexão sobre esses diferentes conceitos ("populismo" é outro) é importante, de modo que este tipo de comparação de áreas transversais deve implicar também um aprendizado crítico sobre as diferentes maneiras pelas quais os fenômenos foram abordados - em alguns casos, fenômenos semelhantes, em outros casos, fenômenos diferentes. Mas acho que há muito o que se aprender aí. E, de fato, também nesse livro sobre partidos de movimento, achei muito útil olhar para além dos três casos europeus que abordamos, Podemos, SYRIZA e o Movimento 5 Estrelas, e examinar também a literatura de acadêmicos latino-americanos e especialistas em América Latina, no MAS, por exemplo, mas também no PT no passado.

Por fim, gostaria de tocar numa questão sobre a posição de pesquisadores e professores frente aos movimentos sociais. Sabemos que boa parte do campo de estudos em movimentos sociais é formada por pesquisadores e professores que têm um posicionamento ideológico convergente com os movimentos que eles próprios estudam. Por um lado, há um conjunto de acadêmicos que entende ser a pesquisa uma ação engajada e indissociável de finalidades políticas/ transformativas. Por outro, há aqueles que defendem a busca por uma "neutralidade científica" diante dos objetos estudados. Qual seu posicionamento diante desse debate? Qual você pensa ser o papel da ciência frente às lutas políticas?

- Eu penso que é legítimo ter posições diferentes em um continuum, que é, eu diria, mutável com frequência também para os indivíduos. Então, por exemplo, se eu pegar minha própria história de vida, em alguns momentos eu também fui ativista, em alguns momentos eu não fui. Em alguns momentos, eu costumava estudar momentos mais distantes do meu trabalho, região e assim por diante. Em outros casos, também trabalhei com movimentos em que estava, até certo ponto, envolvida. E eu não acho que seria eticamente correto dizer ' se você quer estudar um movimento, você não pode participar desse movimento', porque eu acho que somos seres políticos, que trabalhamos em questões políticas e que pode ser errado dizer que isso não acontece também para pessoas que trabalham em outros campos, que ' se você estuda partidos você não pode ser membro de um partido' ou outras coisas. Mas do ponto de vista metodológico, penso que é importante, quando se faz pesquisa, mesmo quando se faz uma pesquisa mais útil para os movimentos, distinguir o momento da pesquisa do momento de tomar um tipo de posição política. Então, por exemplo, tentei não trabalhar, do ponto de vista científico, em organizações a que pertenço. Porque eu pensei que isso iria me confundir e também confundir as outras pessoas nas organizações com as quais trabalhei. Ou, pelo menos, quando você faz isso, por trabalho etnográfico e outros trabalhos, tente desenvolver projetos comparativos de pesquisa nos quais você também olha para outro tipo de organização. E então o que eu vi é que muitas vezes isso tem implicações positivas também para as interações com os movimentos sociais. Quando fui convidada para apresentar meu trabalho por organizações de movimentos sociais, eles não queriam apenas ter uma ativista com um pouco mais de conhecimento, mas queriam ter algum tipo de... queriam saber 'o que é verdadeiramente a realidade'. Esse foi o caso do movimento trabalhista no passado e assim por diante. Então, uma boa pesquisa empírica (não tendenciosa politicamente) é importante para entender o que está acontecendo.

 

Referências

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Tilly, C. (1978) From mobilization to revolution. New York: Mcgraw-Hill College.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 24/09/2018
Aprovado em: 25/09/2018

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