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Revista Psicologia Política

versión On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.19 no.45 São Paulo mayo/ago. 2019

 

RESENHA

 

"Ou vai para a luta, ou morre": a elaboração coletiva da memória e da dor

 

"Fight, or die": a collective elaboration of memory and suffering

 

"O va a luchar o muere": la elaboración colectiva de la memoria y edl dolor

 

« Soit tu vas à la lutte, soit tu meurs »: l'élaboration collective de la mémoire et de la douleur

 

 

Júlia Campos Clímaco

Programa de Pós-Graduação em Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde - PGPDS - Universidade de Brasília; juliaclimaco@gmail.com

 

 

A obra da antropóloga Paula Lacerda é resultado de sua tese de doutorado, O "caso dos meninos emasculados de Altamira'" polícia, justiça e movimento social, defendida em 2012, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, UFRJ, sob a orientação da professora Adriana de Resende Barreto Vianna. O livro foi lançado em 2015 com o título Meninos de Altamira: violência "luta"política e administração pública no qual constam duas questões centrais: a luta das famílias para construir o caso e a causa dos seus meninos e como as mulheres envolvidas na luta se construíram como mães e lutadoras em movimentos sociais. O caso é a morte, mutilação e desaparecimento de aproximadamente 26 meninos (o número não é consensuado) entre os anos de 1989 e 1993 em Altamira, Pará, julgado em 2003 com a condenação de quatro dos cinco acusados.

A etnografia explora a complexidade e as polêmicas desses crimes e as múltiplas versões e significações que foram produzidas por diferentes agentes, em diferentes esferas sociais. Investiga como mortes, mutilações e desaparecimentos foram progressivamente conectados em um único caso que se transformou na causa dos familiares das vítimas em sua briga por justiça frente ao Estado, compreendido como um dos responsáveis pelas mortes por sua omissão e como possível remediador do sofrimento pela sua ação. Para trilhar esse caminho investigativo, relata a história dos movimentos sociais e populares na região e como isso foi importante para a causa se transformar em luta política.

A epígrafe do livro, um parágrafo do escritor Valter Hugo Mãe (2014), antecipa um dos caminhos argumentativos do livro de interesse para a área da Psicologia Política preocupada com a teorização da memória política e coletiva: a necessidade dos familiares, especialmente das mães, de que seus filhos não morram nem desapareçam por completo e de que suas memórias não se percam na morosidade da justiça, na inaptidão da polícia e no desinteresse do Estado. Para as famílias das vítimas, a memória opera como produtora de significados para novas possibilidades de vida, dialogando com a proposta de Ecléa Bosi (2003) da memória como trabalho sobre o tempo vivido: a dor e a perda são experiências individuais vividas coletivamente. Essa memória, elaborada coletivamente, está descrita com muita sensibilidade no seguinte trecho da epígrafe: "nunca se perde por inteiro um filho. Ele resta sempre como algo que temos a infinita possibilidade de evocar. Evocamo-lo e ele é" (Mãe, 2014, p. 104-5).

O livro está dividido em sete partes: uma introdução detalhada, cinco capítulos e perspectivas finais que apresentam novas possibilidades interpretativas para além do livro. A resenha seguirá a ordem do livro e comentará cada uma de suas partes.

Na introdução, a autora descreve o interesse de sua etnografia sobre as mortes, mutilações, sequestros e desaparecimentos de aproximadamente 26 meninos de famílias pobres de Altamira. Os crimes - ou o caso para as famílias das vítimas - estiveram envoltos em polêmicas, com destaque nacional e internacional pela brutal peculiaridade dos crimes: a emasculação de meninos com a retirada total de seus órgãos genitais, além de outras mutilações em seus corpos. Como chaves de leitura para a pesquisa, duas categorias delineadas na introdução são cruciais: como foram construídos o caso e a causa pelas famílias das vítimas, sobretudo as mães. A primeira categoria - a construção do caso - se refere à luta dos familiares para que os crimes fossem conectados em um caso único e não considerados como acontecimentos isolados tanto social quanto juridicamente. Essa se tornou a causa - a segunda categoria - dos familiares: na luta coletiva, as famílias teceram um espaço para a elaboração de suas perdas e suas demandas por reconhecimento, memória, justiça e reparação. A autora percorreu um extenso caminho etnográfico: os autos dos processos, laudos médicos, reportagens de jornais locais e internacionais, entrevistas com delegados, juízes e agentes da justiça, religiosos e militantes e, o que é priorizado na obra, relatos narrados pelas famílias.

Ainda que tenha priorizado a narrativa dos familiares, ao longo do livro percebemos como as narrativas dos múltiplos agentes envolvidos se cruzam e como as diversas versões sobre o caso se alimentam produzindo significados partilhados. Entretanto, ainda que partilhem significados, essas diversas versões estão em disputa e a própria construção da categoria "vítima" não é neutra: os familiares consideram que são vítimas dos criminosos, mas também da polícia, dos poderosos e do Estado. Os acusados, por sua vez, também se consideram vítimas de acusações indevidas e infundadas, tecidas às pressas em um processo mal-formulado que buscava dar uma solução para um caso que já se arrastava por 10 anos.

No primeiro capítulo, O caso dos meninos emasculados de Altamira, a autora compõe o que chama de sua "própria versão dos casos" costurando as verdades de todos os envolvidos para entender como cada ator - Justiça, política e movimento social - construiu sua versão do caso. Na composição de sua versão é central o papel Comitê em Defesa da Vida e da Criança Altamirense, movimento criado pelos familiares com o apoio de religiosos e liderado por uma mãe de um menino morto e emasculado, Dona Rosa. Nessa costura, compreendemos que uma das disputas entre significados produzidos por diferentes agentes é sobre o número de vítimas: o Comitê considera que são 26 vítimas, enquanto há 17 no inquérito policial e 5 no caso judicial que veio a ser julgado. O número maior do Comitê se deve a que as famílias abarcam em seu caso todas as crianças que tenham sido vítimas ou potenciais vítimas do(s) criminoso(s), sejam elas crianças que foram assassinadas (mesmo sem registro oficial, como no caso do menino Klebson), desaparecidas, mutiladas ou sequestradas, ou mesmo meninos cujos atentados não foram levados à polícia.

Depois de aclarar a discrepância entre os números, a autora nos apresenta cada um dos casos que constam no processo judicial, os que têm apenas registro policial e outros que não o têm, mas que são considerados pelos membros do Comitê como vítimas, dividindo-os em "Justiça", "Polícia" e "Movimento Social", alguns com mais detalhes que outros. A diferença no detalhamento dos casos é justificada pela desigualdade de informações por causa de sua maior proximidade com alguns familiares, principalmente os que eram membros do Comitê, mas também pelas informações disponíveis nos autos. Em relação a essa disputa pelo reconhecimento como vítima do caso, para as mães era crucial que seu filho constasse na lista das vítimas, pois ainda que seu sofrimento fosse relacionado a uma perda individual, sua experiência era também coletiva. Além do apoio formal do Comitê, fazer parte desse coletivo permitia significar a perda como parte de um caso, o que afastava das mães as acusações dos agentes administrativos de irresponsabilidade e descaso com seus filhos.

A militância e as mobilizações são o centro do segundo capítulo: "Então nós fomos para as ruas!' - Os sentidos da mobilização". No panorama traçado pela autora, a região já tinha importantes lideranças que se mobilizavam contra a precariedade do município e a situação que acreditavam ser de abandono. A configuração de Altamira como uma região de fronteiras, de migração recente, de abertura de novas frentes com a Transamazônica traz especificidades, abordadas pelas pessoas com quem a autora conversou, especialmente o Bispo do Xingu. As mulheres tinham papel central nessas mobilizações anteriores ao caso e passaram a ter ainda mais centralidade depois do caso. Para as interlocutoras da etnografia, estar na rua, estar na luta é uma condição perene, quase identitária:

'Estar na luta', portanto, não significa ser vencedor de uma causa. Muito pelo contrário, significa empreender uma batalha contra os ' mais fortes' que é, desde a partida, uma batalha ingrata porque desigual. O que faz a 'luta' valer a pena é a percepção de que 'algo está sendo feito' ou, em termos mais abstratos, é a ligação do ideal com a ação. (Lacerda, 2015, p. 111)

Para os familiares das vítimas, especialmente as mães, estar na luta não era uma opção, era uma obrigação. Elas relataram que se sentiam abandonadas pelo Estado, maltratadas pela polícia e ainda culpabilizadas pela violência cometida contra seus filhos. Da experiência de luta que algumas já tinham, e da entrada na luta de outras, surgiu o Comitê e sua atuação cotidiana no caso, na sua própria elaboração como tal e na demanda de que ele não fosse esquecido e de que seus filhos e elas próprias conseguissem justiça. Algumas mulheres relataram que a única alternativa que tinham era lutar, mesmo que isso fragilizasse suas relações amorosas ou o cuidado de outros filhos: "para os familiares, de modo geral, mas sobretudo para as mulheres mais ativas no Comitê, a mobilização não é vivida como uma escolha, mas como a única opção possível" (Lacerda, 2015, p. 141).

Assim, em estreita relação com a epígrafe do livro, para essas mulheres e alguns homens, falar sobre seus filhos, falar sobre o caso, lembrar deles constantemente e exigir justiça pode ser interpretado como uma necessidade de manter vivas suas memórias, como uma forma de que não morram completamente. Essa é, inclusive, uma maneira de manter o extraordinário em suas vidas: o crime foi tão brutal e a ausência é tão dolorida, que a luta evidencia que suas vidas nunca mais serão as mesmas. Falar sobre seus filhos - evocá-los na luta - é também um exercício de não ceder a constantes apelos de que sua dor seja superada: era comum as mulheres ouvirem que, por terem outros filhos, não deviam se apegar ao que morreu. Evocar o filho morto é afirmar que suas vidas não são descartáveis ou intercambiáveis.

No capítulo 03, Recursos, estéticas e experiências: entre a dor e a política, a autora nos apresenta a luta em sua dimensão ritual e simbólica. Os atos, as passeatas, vigílias, manifestações e audiências foram importantes para transformar o problema da mutilação e assassinatos de meninos em uma causa coletiva não restrita aos familiares das vítimas: a primeira manifestação foi, inclusive, organizada por uma liderança comunitária, não por uma mãe ou um familiar. Cada uma dessas expressões coletivas tinha uma importância e uma eficácia específica.

Até mesmo quando falar e quando calar foi constituinte da luta: "o silêncio não representa a falta de um discurso, mas, ao contrário, é seu veículo. A linguagem possui um limite que torna irreprodutível o sentimento e, deste modo, mediante a incapacidade de expressá-lo, o silêncio representa a única discursividade possível" (Lacerda, 2015, p. 156). Muito embora a autora esteja em diálogo com Veena Das (2007), há um possível e interessante diálogo com Walter Benjamin e sua obra Experiência e Pobreza (1996): quando o que se vive é muito traumático e muito dolorido, há fraturas nas narrativas que resultam, muitas vezes, na impossibilidade de se narrar o vivido. Para Benjamin, isso foi observado com a experiência e pobreza narrativa de soldados no pós-guerra: depois da guerra, não havia mais histórias a serem contadas, havia menos.

Assim, o narrado e o inenarrável eram constitutivos do caso e da ligação dos familiares com as vítimas: a emoção e a dor saem do domínio do espaço privado e ganham o espaço público na luta. Para a autora, as vítimas são "bens simbólicos" (Lacerda, 2015, p. 148) e a categoria da mãe é central nessa luta e na busca por justiça. Articulando essa luta com outros ativismos maternos contra a violência estatal, como as Madres (e Abuelas) de la Plaza de Mayo, as Mães de Acari e as Mães de Maio, a autora ressalta a figura da mãe de vítima como interlocutora política privilegiada que legitima a luta pela sua dor, por transgredir fronteiras religiosas, políticas e morais: "... a mobilização dos familiares das vítimas do 'caso dos meninos emasculados' torna ativa a conexão entre dor e política. Esta conexão é o que move os familiares a 'lutar' e o que aciona a transformação de um 'caso' em uma 'causa" (Lacerda, 2015, p. 173). Assim como essas mães de Altamira, mães cujas vozes ecoam das margens podem recorrer ao ativismo para abrir espaços para novos começos (Day, & Goddard, 2010). Mães que se tornam ativistas ao se posicionarem no mundo público como interlocutoras políticas a partir da necessidade de transitar entre o espaço privado e o público: ativistas acidentais, no termo cunhado por Melanie Panitch (2008). Nas palavras de uma das mulheres do estudo dessa pesquisadora canadense: "Uma mãe faz o que uma mãe faz" (Panitch, 2008, p. XI, tradução da autora).

O relato dos familiares sobre a ação policial e sua omissão é o objeto do capítulo 04: "A instrução Policial". Nele a autora se desloca das narrativas dos familiares e do Comitê para os relatos dos policiais e agentes da polícia. A tensão entre o que ouviu dos familiares e o que ouviu dos policiais evidencia um desencontro entre objetivos aparentemente similares. Em seus relatos, as famílias alegavam descaso e humilhação quando do contato com a Polícia Civil, pois eram tratadas como negligentes e irresponsáveis. Em alguns casos, a polícia atribuiu o sumiço dos meninos à fuga voluntária, alegando que eles estavam insatisfeitos com a vida que as famílias podiam prover a eles e se recusavam a agir nas buscas. Uma das mães relatou que a polícia duvidou do desaparecimento de seu filho, uma vez que ele não tinha certidão de nascimento. Assim, de uma posição de desigualdade e vulnerabilidade na qual essas famílias já se encontravam, elas ainda eram desacreditadas e culpabilizadas, acentuando mais sua percepção como ponto fraco da relação assimétrica com o Estado.

Os relatos da polícia, por sua vez, alegavam que o envolvimento dos familiares com os poderosos da cidade atrapalhou o andamento do processo, acobertando os criminosos. Reclamavam, também, da escassez de recursos disponíveis para seu trabalho e das ameaças recebidas por estarem atrás desses poderosos.

Ainda com esse desencontro em suas versões e por caminhos diferentes e por vezes conflitantes, os discursos tanto dos familiares quanto da polícia coincidem na consideração dos crimes como um caso e na necessidade e urgência de que ele fosse resolvido. Para a família a solução do caso seria a justiça obtida para os policiais, um desfecho não vergonhoso para sua atuação profissional. Outros agentes do aparato policial são acionados pelas famílias em busca de assistência: a Polícia Federal, o Exército e até mesmo a FUNAI. Ainda que a relação estrutural com esse aparato fosse uma relação de desigualdade, o texto ressalta que havia uma possibilidade de manipulação estratégica dessa relação quando pessoas mais poderosas, como um patrão, um advogado ou político intercediam pelos familiares.

Um dos pontos de acordo era a centralidade da extraordinária brutalidade nos casos: a emasculação. Tanto os familiares quanto a política construíram a violência do caso ao redor disso, excluindo, por vezes, outras violências tidas como mais banais, ou pelo menos mais inteligíveis. Essa era uma das dificuldades encontradas na narrativa do caso: nem os familiares nem os agentes do Estado conseguiam dar um sentido para as mortes e para as emasculações.

Em diálogo com Michel Foucault, podemos pensar sobre como a norma e os desvios são construídos, a partir do séc. XIX, pela periculosidade de cada um, não pelas ofensas cometidas contra a sociedade: o que se é capaz de fazer, não o que já foi feito (Foucault, 2005, p. 85). Busca-se produzir um sujeito do crime, com seus desejos e motivações, com sua periculosidade intrínseca, de modo que seja possível definir verdades sobre ele, mais do que sobre suas ações reais. A brutalidade dos crimes e a aparente aleatoriedade das vítimas parece dizer mais sobre o criminoso (ou os criminosos) do que sobre o crime e os meninos:

A brutalidade parecia (e parece-nos) tão desmedida que a chave da irracionalidade e da ausência de explicação foi acionada como único caminho possível para explicar os crimes. O criminoso, fosse quem fosse, não teria motivo para perpetrar as violências contra aquelas vítimas em particular (Lacerda, 2015, p. 237).

Assim, era preciso encontrar uma explicação e ela veio por meio de uma seita e de pessoas out-siders: homossexuais, perversos, estrangeiros e praticantes de religião não-normativa. O julgamento de tais acusados e a demanda dos familiares de que o julgamento ocorresse o mais rapidamente possível é o foco do capítulo 05: "A 'luta por justiça". Nesse momento as tensões ao redor dos significados de vítima e justiça são novamente acionadas: para uns, o justo era o rápido julgamento, para outros, era ter direito à ampla defesa e a presunção de inocência na ausência de provas substanciais. O julgamento e as condenações eram, para as vítimas, uma reparação por parte do Estado a todo o sofrimento que lhes foi causado: não apenas as mortes e mutilações de seus filhos, mas o descaso com que foram tratados ao longo dos anos. Além disso, consideravam que o julgamento só estava acontecendo, ainda que 10 anos depois de cessados os crimes, por conta da permanência das mães na luta cotidiana. Foram as famílias que exigiram audiências, juntaram provas e testemunhas, contrataram advogados, ou seja, que jamais saíram das ruas na demanda por justiça, não vingança pessoal.

O julgamento resultou na condenação pelo júri popular de três acusados e a absolvição de uma, Valentina, o que causou uma enorme comoção e sentimento de injustiça nos familiares das vítimas. Mesmo com o sentimento de injustiça pela absolvição, prevaleceu entre as famílias o sentimento de que essa etapa do processo penal estava encerrada e que precisavam lutar a etapa das indenizações. Em um primeiro momento, o Estado concedeu indenizações vitalícias para os meninos sobreviventes; em seguida, a indenização foi ampliada para as famílias cujos filhos haviam sido mortos e os corpos encontrados; em um terceiro momento, ampliou-se ainda mais as famílias abarcadas com a assinatura de uma Lei que concedia a indenização para as famílias que tiveram filhos vitimados pelo caso de 1989 a 1993. Longe de ser uma reparação por suas perdas, a indenização era significada como uma assunção de responsabilidade pelo Estado como violador de direitos, que se declarava culpado pelas mortes e pela sua atuação junto às famílias ao longo dos anos. A assinatura dessa Lei foi utilizada como propaganda do Estado em uma tentativa de passar de violador a garantidor de direitos, legitimando a versão das famílias para o caso e concedendo algum tipo de justiça para seus filhos.

Nas considerações finais, "A ausência de explicação, o horror e as relações: perspectivas finais", a autora descortina sua perplexidade em relação ao caso e à falta de respostas, mesmo com o julgamento e as condenações. Mais do que tentar tornar os crimes inteligíveis e apostar na inocência ou culpa dos acusados, Paula Lacerda reafirma o horror diante do caso. Ela não tenta dar um sentido a ele, mas abre uma possibilidade interpretativa ao dialogar com o caso dos feminicidios de Ciudad Juarez estudados por Rita Laura Segato (2004), em que as mortes foram interpretadas como efetivação de pactos de sangue entre os poderosos com o sangue de mulheres indígenas e pobres. O caso de Altamira pode dialogar com a demanda das famílias das vítimas de que se investigassem os poderosos locais e a crença que as vidas que estavam sendo tiradas eram consideradas vidas dispensáveis, marcadas por sua raça e classe. O que poderia estar em jogo, assim como em Juarez, era o controle dos territórios com ou sobre corpos.

Retomando a epígrafe, a autora conclui que a desigualdade sentida pelos familiares como o pólo frágil e dispensável da relação com os poderosos criminosos, pode ter sido amenizada pela elaboração coletiva do sofrimento, pelo não silenciamento da dor - ou ainda o silêncio quando necessário - e sua vivência no espaço público: "Ou luta, ou morre". Talvez essa morte não seja apenas de quem luta, mas também por quem se luta, uma vez que evocar os filhos é mantê-los vivos, é dar-lhes uma narrativa e uma história própria; é afirmar que suas vidas e suas mortes não serão esquecidas:

De fato, o esforço dos familiares é o esforço contínuo de não deixar o 'caso' ser esquecido. [...] Dito em outras palavras, a mobilização propicia o contato com o filho que não está mais perto, ou não da mesma maneira. Vários anos depois da perda do filho, não são muitos os espaços disponíveis para falar do menino, como parte de um 'caso' ou enquanto o menino esperto que era, o que gostava de fazer ou de comer. A mobilização em si mesma é um espaço para isso, além de abrir outras frentes para que o falar não seja só possível, mas valorizado. (Lacerda, 2015, p. 310-11)

 

Referências

Benjamim, W. (1933/1996) Experiência e Pobreza. Walter Benjamin - Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense.         [ Links ]

Bosi, E. (2003). O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. Ateliê editorial.         [ Links ]

Day, S., & Goddard, V. (2010). New beginnings between public and private: Arendt and Ethnographies of Activism. Cultural Dynamics, 22(2),137-154.         [ Links ]

Foucault, M. (2005) A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau editora.         [ Links ]

Mãe, V. H. (2014) A desumanização. São Paulo: Cosac Naify.         [ Links ]

Panitch, M. (2008). Disability, mothers, and organization: Accidental activists. Routledge.         [ Links ]

Segato, R. L. (2004) Territorio, soberanía y crímenes de segundo estado: la escritura en el cuerpo de las mujeres asesinadas en Ciudad Juárez (nova versão). Série Antropologia, número 362.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 04/09/2019
Aprovado em: 11/01/2019

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