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Revista Psicologia Política

On-line version ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.19 no.46 São Paulo Sept./Dec. 2019

 

ARTIGOS

 

Fascismo de gênero: controle, opressão e exclusão de mulheres

 

Gender fascism: control, pressure and exclusion of women

 

Fascismo de género: control, opresión y exclusión de mujeres

 

Fascisme de genre: contrôle, pression et exclusion des femmes

 

 

 

Roger Flores CecconI; Stela Nazareth MeneghelII

IDoutorado em Enfermagem, Pós-doutorado em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS; E-mail: roger.ceccon@hotmail.com
IIDoutorada em Medicina (UFRGS). Professora do Programa de Pós- graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS; stelameneghel@gmail.com

 

 


RESUMO

Este ensaio discorre sobre o conceito de fascismo social e busca sua aplicação aos estudos de gênero, principalmente na análise das violências, iniquidades, feminização da aids e violações de direitos sociais de mulheres que vivem em cenários de capitalismo racista e patriarcal, em sociedades que utilizam a exploração, a exclusão, o abandono e a morte como mecanismos de controle. Propomos um deslocamento do conceito original, ampliando seu escopo para as desigualdades entre homens e mulheres, ao qual denominamos de fascismo de gênero, caracterizado como um regime de relações sociais cimentadas por assimetrias no exercício de poder que produzem exclusão, subjugação e exploração feminina. Opera por meio-da exclusão de direitos feminos e a violência como mecanismo de controle. O conceito contribui para analisar as vulnerabilidades femininas e subsidiar políticas públicas que dialoguem com as reais necessidades das mulheres na sociedade brasileira.

Palavras-chave: Mulheres; Gênero; Fascismo; Violência de Gênero; Direitos Humanos.


ABSTRACT

This essay discusses the concept of social fascism and seeks its application to gender studies, especially in the analysis of violence, inequities, feminization of AIDS and violations of social rights of women living in scenarios of racist and patriarchal capitalism, in societies that use exploitation, exclusion, abandonment and death as mechanisms of control. We propose a displacement of the original concept, expanding its scope to the inequalities between men and women, which we call gender fascism, characterized as a regime of social relations cemented by asymmetries in the exercise ofpower that produce exclusion, subjugation and female exploitation. It operates through the exclusion of feminine rights and violence as a mechanism of control. The concept contributes to analyze women 's vulnerabilities and to subsidize public policies that dialogue with the real needs of women in Brazilian society.

Keywords: Women; Gender; Fascism; GenderViolence; Humanrights.


RESUMEN

Este ensayo discurre sobre el concepto de fascismo social y busca su aplicación a los estudios de género, principalmente en el análisis de las violencias, iniquidades, feminización del sida y violaciones de derechos sociales de mujeres que viven en escenarios de capitalismo racista ypatriarcal, en sociedades que utilizan la explotación, la exclusión, el abandono y la muerte como mecanismos de control. Proponemos un desplazamiento del concepto original, ampliando su alcance hacia las desigualdades entre hombres y mujeres, al que denominamos el fascismo de género, caracterizado como un régimen de relaciones sociales cementadas por asimetrías en el ejercicio de poder que producen exclusión, subyugación y explotación femenina. Opera por medio de la exclusión de derechos femeninos y la violencia como mecanismo de control. El concepto contribuye a analizarlas vulnerabilidades femeninas y subsidiar políticas públicas que dialoguen con la reales necesidades de las mujeres en la sociedad brasilena.

Palabras clave: Mujeres; Género; Fascismo; Violencia de Género; Derechos humanos.


RÉSUMÉ

Cet essai discute le concept de fascisme social et cherche son application aux études sur le genre, en particulier dans l'analyse de la violence, des inégalités, de la féminisation du sida et des violations des droits sociaux des femmes vivant dans des scénarios de capitalisme raciste et patriarcal, dans des sociétés qui utilisent exploitation, exclusion, abandon et mort en tant que mécanismes de contrôle. Nous proposons un déplacement du concept initial, en élargissant son champ d'application aux inégalités entre hommes et femmes, que nous appelons le fascisme de genre, caractérisé comme un régime de relations sociales cimenté par des asymétries dans l'exercice du pouvoir qui produisent l'exclusion, l'assujettissement et l'exploitation. Il opère en excluant les droits des femmes et la violence en tant que mécanisme de contrôle. Le concept contribue à analyser les vulnérabilités des femmes et à subventionner des politiques publiques qui dialoguent avec les besoins réels des femmes dans la société brésilienne.

Mots-clés: femmes. Genre. Le fascisme. Violence de genre. Droits de l'homme.


 

 

Introdução

Este ensaio teórico discorre sobre o conceito de fascismo social e busca sua aplicação aos estudos de gênero, principalmente na análise das violências, iniquidades, feminização da aids e violações de direitos sociais de mulheres que vivem em cenários de capitalismo racista e patriarcal, em sociedades que utilizam a exploração, a exclusão, o abandono e a morte como mecanismos de controle. Propomos, a partir de estudos acerca das condições das mulheres na sociedade atual (Ceccon, 2012, 2016; Ceccon & Meneghel, 2015; Ceccon, Meneghel, & Hirakata, 2014; Meneghel & Marguerites, 2017) um deslocamento do conceito original, ampliando seu escopo para as desigualdades de gênero, ao qual denominamos de fascismo de gênero. Portanto, buscamos neste ensaio reflexivo cunhar essa expressão a partir de conceitos consolidados no meio acadêmico e intelectual.

Em uma passagem do livro O corpo que não aguenta mais, David Lapoujade (2002), na esteira de Deleuze e Beckett, questiona o que pode o corpo, buscando analisar sua potência. Aponta que o corpo é aquele que não aguenta mais, para o qual já é difícil caminhar, andar de bicicleta, simplesmente se arrastar, e depois ainda, torna-se difícil até permanecer sentado. Mesmo nas situações que exigem cada vez menos esforço, o corpo não aguenta mais. Ele não resiste ao civilizatório adestramento, a tudo que o coage, externa e internamente.

O corpo não aguenta precisamente a opressão, adestramento e disciplina, a culpabilização, desprezo, a vida desprovida de prazer, criatividade e potência (Foucault, 1996; Pelbart, 2011). O corpo não aguenta tanta violência, principalmente mulheres e corpos feminizados em uma sociedade generificada, cujas vidas são formatadas e subjetivadas para a submissão, subordinação e trabalho. Corpos que se assemelham "àqueles que não têm lugar", considerados "outro", quer seja o migrante, o pobre, o sem-emprego, sem-teto, sem-terra, sem-cidadania, sem-nada. Trajetórias destituídas de autonomia, em que o Estado falhou em assegurar direitos básicos de educação, saúde, trabalho, renda, habitação, segurança e proteção. Incluem-se na concepção de "vidas sem valor", que ocupam o lugar da margem, fora das normas ditadas por sociedades politicamente democráticas e socialmente fascistas (Veiga-Neto, 2011).

A sociedade contemporânea ocidental caracteriza-se por um sistema de distinções estabelecidas por linhas radicais que dividem a população em dois grupos: "os deste lado da linha" e "os do outro lado da linha", denominado por Boaventura de Souza Santos como pensamento abissal. O "outro lado" desaparece como realidade, tornando-se inexistente, irrelevante e incompreensível (Santos, 2002, 2006, 2007).

A característica fundamental do pensamento abissal é a impossibilidade da presença simultânea nos dois lados, sendo o outro lado um universo onde não há legalidade e humanidade, produzindo a sub-humanidade moderna, onde vivem os excluídos. A exclusão, por meio de práticas fascistas, se torna radical, uma vez que algumas pessoas não são consideradas sequer candidatas à inclusão social, já que a sociedade moderna separa os grupos por apartheid. Há uma sub-humanidade destinada ao sacrifício, condição que faz com que a humanidade composta pelos incluídos se afirme como universal (Santos, 2002, 2006, 2007).

Atualmente, a prisão de Guantánamo constitui uma das manifestações mais representativas do pensamento jurídico abissal, da criação do outro lado como um não-território em termos jurídicos e políticos, um espaço impensável para o primado da lei, dos direitos humanos e da democracia (Amann, 2004). Contudo, práticas semelhantes às de Guantánamo ocorrem cotidianamente nas discriminações sexuais, classistas e raciais na esfera pública e privada em todos os países do mundo: nas zonas selvagens das megacidades, nas periferias, nas prisões, nas novas formas de escravidão, no trabalho infantil, na exploração sexual em todos os níveis e na descartabilidade e violência de gênero perpetrada contra mulheres (Santos, 2006, 2007; Organização Mundial da Saúde [WHO], 2013).

Violência de gênero compreende atos relacionados às desigualdades de poder entre os sexos, caracterizando-se como "qualquer ato violento sofrido por mulheres e cometido por homens que resulte ou tenha possibilidade de resultar em dano físico, sexual, psicológico ou sofrimento, incluindo ameaças, coerção ou privação arbitrária da liberdade em ambiente público ou privado" (WHO, 2013). Ainda, inclui situações como estupro, abuso sexual de crianças, assédio sexual no trabalho, tráfico de mulheres, abuso sexual comercial, mutilação genital, violências ligadas ao dote e estupro em guerras e conflitos armados (Grossi, 1995; Organização dos Estados Americanos [OEA], 1996). É concebida como braço armado do patriarcado, utilizada para "corrigir" as que infringiram as normas e não cumprem os papeis estereotipados que lhes são impostos.

Estes cenários se tornam mais frequentes e graves em regimes fascistas, caracterizados por uma forma de radicalismo político autoritário e xenófobo que utiliza a violência política e a imposição de atos pela força como meios para impor sua cartilha doutrinária. Utiliza uma teoria eugênica e darwinista para justificar a violência, afirmando que as nações e raças consideradas superiores devem obter espaço eliminando aquelas consideradas fracas ou inferiores (Jackson, 2010).

Embora atualmente não haja regimes políticos declaradamente fascistas, parte da sociedade brasileira e dos partidos políticos utilizam discursos e práticas semelhantes, com novas formas de dominação e exploração, principalmente da elite branca heterossexual e masculina sobre mulheres negras e pobres, caracterizada por Boaventura de Sousa Santos como fascismo social. Neste contexto, os direitos humanos que propugnam igualdade, justiça, solidariedade e universalidade deixam de ter valor, e rompe-se o pacto social, havendo predomínio de interesses de indivíduos e grupos em persecução de seus privilégios (Santos, 2006).

 

Fascismo Social

Nesta seção, serão apresentadas as bases epistemológicas do conceito de "fascismo social" e a importância do mesmo para as sociedades atuais. Além do mais, discorre seus arranjos, suas formas e estratégias de poder, cujo cerne é excluir grandes contingentes populacionais.

Durante a Idade Moderna, a vida passou a ser monitorada pelos mecanismos do poder estatal, e a política se transformou em biopolítica. Ocorre, neste período, a passagem do "Estado territorial" ao "Estado de população", preocupado com a vida biológica e a saúde das pessoas, consideradas assuntos do poder soberano, que se transforma em governo dos homens (Foucault, 1988, 1996). Essa transformação resultou na biologização do indivíduo, posta em prática através de técnicas políticas sofisticadas, cujo processo leva a vida biológica a ocupar o centro da cena política moderna, dando início a um conjunto de práticas conservadoras que vão se tornando fascistas (Arendt, 1958).

A aparição do fascismo como força dominante é um fenômeno que iniciou em 1922, com a emergência do Partido Nacional Fascista italiano e terminou em 1945 com a derrota e morte de Mussolini e Hitler. Além da Itália e Alemanha, registraram-se movimentos fascistas de destaque na Áustria, Bélgica, Grã-Bretanha, Finlândia, Hungria, Romênia, Espanha, África do Sul e Brasil (Neuhâuser, 2004).

Nos últimos anos, embora o fascismo político não tenha ganhado relevância, o capitalismo se expandiu globalmente e tem violado princípios éticos da proteção e manutenção da vida. Direitos humanos foram violados, a democracia enfraquecida e a vida eliminada em nome da sua preservação. A sociedade foi dividida por linhas abissais, que demarcam fronteiras e campos de morte, dividem cidades em zonas civilizadas e selvagens, consideram as prisões como locais à margem da lei (Atkinson & Blandy, 2005; Glon, 2005; Lugard, 1929; Santos, 2007).

Essa situação é resultante do fascismo social, um regime de relações de poder que concede à parte mais forte a prerrogativa de veto sobre a vida e decide o modo de existência dos mais fracos. O fascismo social não é um regime político, mas um sistema social e civilizacional, que não sacrifica a democracia às exigências do capitalismo, mas a trivializa a ponto de torná-la desnecessária. É um tipo de ordem pluralista, produzida pela sociedade e não pelo Estado, sendo que este é apenas testemunha complacente, em um momento em que os Estados democráticos coexistem com sociedades fascizantes (Santos, 2002).

As crises econômicas, que ocorrem periodicamente no capitalismo, como já havia vaticinado Karl Marx, fragilizam as instituições do Estado e a garantia de direitos, fazem emergir discursos e práticas utilitaristas, privilegiando a rentabilidade, a mercadorização dos bens e relações sociais que favorecem a lógica subjacentes do fascismo social, excluindo os mais vulneráveis. O fascismo social está presente no espaço público e privado, opondo-se à reivindicação de direitos e da reposição do contrato social universal que possibilite cidadania, autonomia e participação (Santos, 2002).

O fascismo social caracteriza-se por processos de subordinação e exclusão a partir da diferenciação social entre grupos, resultante da desproteção político-jurídica, determinada pelo absentismo do Estado e pela atuação predatória de agentes não estatais. Apresenta quatro formas, que incluem (a) o fascismo do apartheid social, que significa a segregação dos excluídos mediante a divisão das cidades em zonas selvagens e civilizadas; (b) o fascismo para-estatal, que se refere à usurpação das prerrogativas estatais; (c) o fascismo da insegurança, que consiste na manipulação discricionária do sentimento de insegurança das pessoas e dos grupos sociais vulnerabilizados; e (d) o fascismo financeiro, que controla os mercados financeiros e a economia (Santos, 2006, 2007).

O fascismo social é um fenômeno plurifacetado, que se manifesta em várias dimensões e esferas. Implica na dominação explícita de um grupo por outro e, contrariamente aos regimes políticos, se assenta nas dinâmicas e nas estruturas sociais. O paradoxo é que podem existir Estados democráticos perpassados por lógicas de fascismo social. Está presente nos espaços segregados dos condomínios fechados, na precariedade das relações e contratos de trabalho, na apropriação dos bens públicos por grupos privados, no sentimento fabricado e induzido midiaticamente de insegurança pessoal e coletiva, na dominação baseada nas transações financeiras e na precarização do trabalho em favor do capital e de privilégios classistas (Santos, 2002).

 

Fascismo de Gênero

Boaventura, ao apresentar o conceito de fascismo social, não explicita claramente as desigualdades de gênero e de poder entre homens e mulheres que permanecem na sociedade contemporânea. Este fato, embora não reduza a potência do conceito, limita sua aplicabilidade aos estudos sobre as condições de gênero, violências, iniquidades, feminização da aids e violações de direitos sociais contra mulheres. Acreditamos que acrescentar ao conceito de fascismo social a dimensão de gênero é oportuno para a compreensão da sociedade atual e das hierarquias entre homens e mulheres que subsistem no sistema patriarcal contemporâneo. Nesse sentido, propomos a ampliação deste conceito para incluir as desigualdades entre os sexos que inferiorizam as mulheres e que denominamos de "fascismo de gênero".

"Fascismo de gênero" é um conceito que se origina do deslocamento e da ampliação do escopo do que Boaventura de Souza Santos propõe como fascismo social. Caracteriza-se como um regime de relações sociais cimentadas por desigualdades de poder entre homens e mulheres, que produzem formas extremas de opressão, controle e exclusão feminina, podendo ser severas e irreversíveis, como no caso da morte de mulheres por feminicídios. O fascismo de gênero atua sobre a vida das mulheres a partir da ideologia capitalista, racista e patriarcal para legitimar sua existência. Divide e separa, exclui e limita o acesso a direitos, incidindo principalmente sobre as mulheres mais vulneráveis econômica e racialmente. Instala-se em sociedades politicamente democráticas, ao menos em seus mecanismos formais, porém em processos crescentes de autoritarismo, conservadorismo e uso da força para a manutenção do sistema.

O fascismo de gênero é um regime social que opera no campo ideológico, na imposição de ideias conservadoras, racistas, misóginas e sexistas, exercido tanto pelo Estado quanto pela sociedade por meio de dois mecanismos: (a) a exclusão de mulheres negras e pobres de seus direitos fundamentais; e (b) a violência como mecanismo de controle. Mantém a linha abissal entre as mulheres que serão protegidas e cuidadas e aquelas cujas vidas são elimináveis, invisíveis e descartáveis. Vidas precárias, como a de negras, pobres, em situação de rua, de prisão, portadoras de doenças estigamatizantes e/ou moralmente "impuras", todas expostas a práticas de exclusão ao longo da vida.

O fascismo de gênero opera por meio de práticas sutis, naturalizadas e invisibilizadas, principalmente por meio da não garantia de direitos e desproteção jurídico-política feminina. Transforma-as, ao invés de cidadãs, em dependentes do universo social masculino, cuja autonomia sobre o corpo é solapada em todas as etapas da vida, na forma de submissão, exploração e controle, agravado pelo fato de possuírem um corpo apto a ser sancionado sempre que romper com as normas sociais.

As mulheres, principalmente negras e pobres, em virtude do fascismo de gênero, são destituídas de direitos básicos e fundamentais, principalmente à saúde e à segurança, que garantem e asseguram a vida e a dignidade humana, embora também sejam afetadas pela falta de acesso à educação, habitação, renda e emprego.

O direito à saúde é cotidianamente negado, principalmente quando as mulheres não tem acesso a serviços ou quando as práticas centram-se apenas no aspecto clínico e biológico das doenças e ignoram as condições de vida, produzindo, enquanto Estado, um cuidado fragmentado, excludente, ofertando ações que objetivam apenas não deixá-las morrer, e que não as atendem na sua integralidade. A feminização da aids no Brasil, por exemplo, é indício de que permanece a hierarquia entre os sexos, que há um grande contingente de jovens que não possuem autonomia para proteger-se, para usar preservativos, para refutar o sexo indesejado (Foucault, 2008; Lugard, 1929; Meneghel & Hirakata, 2011; Meneghel et al., 2013).

A atenção integral à saúde das mulheres é um direito inalienável, devendo o Estado criar condições para sua plena efetivação. Entretanto, a produção do cuidado privilegia a racionalidade biomédica, através de intervenções clínicas, laboratoriais e medicamentosas. Além do mais, essas ações não são ofertadas e realizadas da mesma maneira para todas as mulheres, havendo as que, pela condição de raça, etnia, classe, identidade sexual e inserção laboral receberão tratamento diferenciado, sofrerão discriminação e encontrarão barreiras de acesso. As iniquidades, muitas vezes, estão ocultas na neutralidade do modelo clínico e biomédico, que não dialoga com as necessidades sociais, psicológicas, afetivas e singulares dessas mulheres (Reihling, 2010).

Com relação ao direito à segurança, as políticas de prevenção e proteção às violências de gênero perpetradas contra as mulheres ainda são pouco efetivas. Apesar da formulação recente de legislações específicas, como a Lei Maria da Penha, ainda pouco se faz para enfrentar as violências, proteger vítimas e testemunhas e condenar os agressores. Os sistemas policial e judiciário, muitas vezes, limitam-se a inquirir acerca da materialidade da violência e vitimizam as mulheres. A atuação das instituições que constituem a rede de enfrentamento tem sido pouco resolutiva, e esse é um ponto crítico na rota das mulheres que buscam romper com a violência de gênero (Ceccon et al., 2014).

A prevalência de violência contra mulheres tem aumentado na sociedade brasileira, fato evidenciado pelas taxas ascendentes de mortes femininas por agressão. A manutenção deste cenário deve-se, sobretudo, à socialização de gênero, aos mecanismos ideológicos que mantêm as hierarquias de poder entre os sexos, ao mito do amor romântico, à divisão sexual do trabalho e ao conservadorismo da sociedade (Foucault, 2008; Meneghel & Hirakata, 2011; Meneghel & Margarites, 2017), impulsionado pelo fascismo de gênero.

O controle e a sujeição feminina que se dá por meio da violência, muitas vezes, inicia na infância e perdura ao longo da vida, em que múltiplas agressões são perpetradas por homens e mulheres que cumpriam o dever de cuidado. A socialização de gênero opera no sentido de banalizar a violência e inculcar os papeis sexuais, podendo acontecer por meio de violações e estupros. Nas sociedades patriarcais, meninas e jovens não são protegidas adequadamente pelas famílias e pelo Estado, havendo acesso por desconhecidos às suas vidas e a seus corpos (Meneghel et al., 2013).

As agressões físicas são práticas frequentes nas famílias, lugar onde a violência é utilizada para "corrigir", tanto crianças quanto mulheres (Douglas, 1996; Garbin, Queiroz, & Rovida, 2012). Além do mais, é frequente a violência sexual infantil, que deixa as crianças impotentes, culpadas e obrigadas a manter segredo. Em famílias marcadas por relações de violência, a hierarquia e a obediência do grupo familiar à figura masculina, característicos do sistema patriarcal, são naturalizadas e legitimam abusos masculinos, inclusive sexuais (Narvaz & Koller, 2004).

As manifestações de violências na vida adulta incluem abusos psicológicos, físicos e sexuais, exercidas por homens (maridos, companheiros, patrões ou exploradores) contra mulheres, independente do contexto ou fases de suas vidas. As violências, parte fundamental do fascismo de gênero, são mecanismos que reproduzem relações desiguais de gênero, com posições marcadas pelo distanciamento hierárquico. Isto significa que a violência desempenha um papel necessário na reprodução da economia simbólica de poder entre os sexos (Narvaz & Koller, 2004).

Os diferentes tipos de violências possuem propósitos semelhantes, baseados nas desigualdades de poder em sociedades patriarcais. Assim, as agressões psicológicas, físicas e sexuais funcionam como castigo ou vingança contra a mulher que saiu do seu lugar, da posição subordinada e tutelada em um sistema de status. A sociabilidade e sexualidade feminina são governadas pelas necessidades e interesses dos homens, e práticas de resistência das mulheres colocam em questionamento a posição masculina na estrutura social, baseada no status como valor no sistema de relações. As violências são utilizadas para disciplinar e controlar, e o ato de castigar e retirar a vitalidade da mulher também é um gesto moralizador. Este mandato social é voltado para qualquer mulher, já que sua sujeição resulta necessária para a economia simbólica do violador e para o equilíbrio da ordem de gênero manter-se intacta (Segato, 2003).

O controle e o descarte das mulheres, que se dá por meio de todos os tipos de violências, faz parte da atual fase do capitalismo, chamada de "apocalíptica" por Rita Segato (2003). As vidas destas mulheres são organizadas a partir de uma "política da violência", cujas prevalências são elevadas e, na maioria dos países e regiões, variam entre 10% e 52% 33. As agressões perpetradas contra mulheres representam o mandato social patriarcal instaurado e agravado pelo fascismo de gênero. Além do mais, como observado em inúmeros estudos, o fato de ser mulher no Brasil significa estar na escala inferior da hierarquia social. Ao longo da vida, elas desempenham papeis tradicionais de gênero casam e engravidam cedo, muitas para fugir de contextos familiares de abusos e violências, acreditando no mito do amor romântico. Apresentam dificuldade em negociar sexo seguro e exercer uma sexualidade prazerosa, além de conviverem com companheiros violentos.

Conforme apresentado sinteticamente na Figura 1, o fascismo de gênero, assim como a biopolítica, são estratégias de manutenção do capitalismo racista e patriarcal, que impede a garantia de direitos, destitui a cidadania e reduz as mulheres a vidas precárias e desprotegidas. À vida nua, conceito proposto por Giorgio Agamben quando se refere aos sujeitos excluídos socialmente, destituídos de desejos ou possibilidades, já que não existem mecanismos previstos para mantê-los protegidos. Entretanto, essas vidas não são eliminadas claramente, são "sacrificadas", em um processo no qual a sua sobrevivência é tornada insustentável. O Estado e a sociedade, em seus mecanismos de governabilidade são os entes que a deixa morrer (Agamben, 2004; Reihling, 2010).

 

 

As vidas das mulheres se tornam objetos da biopolítica e do fascismo de gênero, que atua para manter as hierarquias, assegurar o exercício de poder aos homens, regular a sociedade capitalista-patriarcal-racista e usurpar direitos e cuidados. Assim, a biopolítica e o fascismo de gênero tornam-se duas instâncias capazes de determinar o limite entre a vida protegida e a vida nua, politizando o fenômeno da vida ao incluí-la ou excluí-la da esfera jurídica.

O soberano, compreendido como Estado ou governo está simultaneamente dentro e fora do ordenamento legal, pois possui o poder de declarar o estado de exceção, no qual a lei é suprimida e se instaura a indiferenciação entre fato e direito, permite a construção da figura destituída de poder, o protótipo da vida nua, supérflua, desprotegida e exposta à morte social e violenta, neste caso as mulheres em sociedades fascistas, racistas e patriarcais. Essas mulheres são consideradas cidadãs, ao mesmo tempo em que se encontram desprotegidas na sociedade em relação a seus direitos: são pessoas que podem ser mortas pelos homens sem que constitua um delito, como na ocorrência de inúmeros casos de feminicídios no Brasil, a maioria nem considerado como tal, crimes em que não há acusados ou condenados. Isso ocorre semelhantemente às situações vivenciadas por mulheres que vivem com HlV/aids, apenadas ou em situação de rua, que muitas vezes são deixadas morrer sem assistência sem que isso se caracterize como crime (Agamben, 2004; Meneghel & Hirakata, 2011; Meneghel et al., 2013).

Embora deixar morrer as mulheres com HIV, aprisionadas, pobres, negras ou em situação de rua não seja um ato deliberado de poder, o fascismo de gênero opera através de mecanismos de coerção e controle ligados a práticas sutis que requerem a participação das próprias mulheres 20,24. Mesmo que suas vidas se reduzam à "vida nua", não é necessariamente mediante intervenções diretas que acontecem as formas de exclusão, mas através da inexistência de formas eficientes de prevenção, cuidado e atenção (Reihling, 2010).

 

Considerações finais

O conceito de fascismo de gênero apresentado neste ensaio contribui para a compreensão das iniquidades, feminização da aids, violências e violações de direitos sociais que sofrem muitas mulheres no Brasil. Operando por meio da destituição de direitos, principalmente à saúde e à segurança, e pelo uso de múltiplas formas de violência, o fascismo de gênero torna-se um conceito potente para a análise das relações sociais que produzem exclusões e vidas precárias, descartáveis, sem valor, destituídas de desejos ou possibilidades.

A divisão social entre os que possuem vidas protegidas e os que têm as vidas matáveis em sociedades capitalistas, racistas e patriarcais é mantida pelo fascismo de gênero e pela biopolítica, o qual incide sobre a possibilidade de viver e de morrer destas mulheres, já que muitas constituem vidas supérfluas, descartáveis, nuas. Este conceito não esgota a análise da problemática das desigualdades de gênero, sendo necessárias outras perspectivas para produzir conhecimento e propor estratégias de enfrentamento, tanto das violências quanto da não garantia de direitos femininos, fenômenos frequentes no país.

 

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Recebido em: 16/11/2018
Aprovado em: 02/04/2019

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