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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.19 no.46 São Paulo set./dez. 2019

 

ARTIGOS

 

Criminalização, extermínio e encarceramento: expressões necropolíticas no Ceará

 

Criminalization, extermination and incarceration: necropolitics expressions in Ceará

 

Criminalización, exterminio y encarcelamiento: expresiones necropolíticas em Ceará

 

Criminalisation, extermination et incarcération: expressions nécropolitiques à Ceará

 

 

João Paulo Pereira BarrosI; Larissa Ferreira NunesII; Ingrid Sampaio de SousaIII; Clara Oliveira Barreto Cavalcante

IProfessor do departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Coordenador do VIESES: Grupo de Pesquisas e Intervenções sobre Violência, Exclusão Social e Subjetivação; joaopaulobarros07@gmail.com
IIGraduada em Psicologia. Estudante de Mestrado do Programa de Pós graduação em Psicologia da UFC. Especialista em Saúde mental pela Universidade Estadual do Ceará. Integrante do VIESES; larissafnpsico@gmail.com
IIIPsicóloga e mestranda em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Integrante do VIESES/UFC; ingrid.sampsousa@gmail.com
IVPsicóloga. Estudante de Mestrado do Programa de Pós graduação em Psicologia da UFC. Integrante do VIESES/ UFC; clara.oliveira0305@gmail.com

 

 

 


RESUMO

Pretende-se discutir expressões da necropolítica no Brasil e suas implicações no cotidiano de juventudes periféricas no Ceará, a partir de uma pesquisa sobre juventude, violência urbana e processos de subjetivação. São destacadas três faces dessa política cotidiana de produção e gestão da morte de existências indesejáveis: (a) crimi-nalização e homicídio de adolescentes e jovens; (b) encarceramento em massa; (c) aumento de assassinatos de mulheres nas dinâmicas da violência urbana, sobretudo adolescentes. O texto sustenta que a necropolítica intersecciona marcadores de raça, gênero e classe, produzindo adolescências e juventudes desiguais, algumas dignas de vida e outras não. Finaliza-se o artigo destacando a importância da psicologia na problematização da produção de desejos de aniquilação e na potencialização de novos modos de subjetivação.

Palavras-chave: Violência; Juventude; Racismo; Necropolítica; Psicologia Social.


RESUMEN

Este artículo se propone discutir expresiones de la necropolítica en Brasil y sus implicaciones en el cotidiano de juventudes periféricas en Ceará, desde una investigación sobre la juventud, la violencia urbana y los procesos de subjetivación. Tres lados de esa política cotidiana de producción y gestión de la muerte de existencias indeseables se destacan: 1) La criminalización y el homicidio de adolescentes y jóvenes; 2) El encarcelamiento masivo; 3) El aumento de asesinatos de mujeres en las dinámicas de la violencia urbana, sobre todo adolescentes. El texto defiende que la necropolítica intersecciona los marcadores de raza, género y clase, produciendo adolescencias y juventudes desiguales, algunas dignas de vida y otras, no. Se concluye el artículo destacando la importancia de la psicología para la problematización de la producción de deseos de aniquilación y para la potenciación de nuevos modos de subjetivación.

Palabras clave: Violencia; Juventud; Racismo; Necropolítica; Psicología Social.


ABSTRACT

It is intended to discuss modes of incidence of necropolitics in Brazil and its implications in the daily life of peripheral youths in Ceará, based on a research on youth, urban violence and subjectivation processes in the state capital. Three daily expressions of this policy of production and management of the death are highlighted: 1) criminalization and homicide of adolescents and young people 2) mass incarceration; 3) increase of murders of women in the dynamics of urban violence, especially adolescents. The text argues that the necropolitics intersects identity markers of race, gender and class, producing unequal adolescents and youths, some worthy of life and others not. The text ends by emphasizing the importance of psychology in the problematization of the production of annihilation desires and in the potentiation of new modes of subjectivation.

Keywords: Violence: Youth; Racism; Necropolitics; Social Psychology.


RÉSUMÉ

Il est prévu de discuter des expressions de nécropole au Brésil et de leurs implications dans la vie quotidienne des jeunes de la périphérie du Ceará, sur la base d’une recherche sur les jeunes, la violence urbaine et les processus de subjectivation. Trois aspects de cette politique quotidienne de production et de gestion de la mort de stocks indésirables sont mis en évidence: 1) la criminalisation et l’homicide d’adolescents et de jeunes; 2) incarcération de masse; 3) augmentation du nombre de meurtres de femmes dans la dynamique de la violence urbaine, en particulier chez les adolescents. Le texte soutient que la nécropole se confond avec des marqueurs de race, de sexe et de classe, produisant des adolescents et des jeunes inégalitaires, certains dignes de la vie et d’autres non. L’article termine en soulignant l’importance de la psychologie dans la problématisation de la production des désirs d’annihilation et dans la potentialisation de nouveaux modes de subjectivation.

Mots-clés: Violence; Lajeunesse; Leracismenécropole; Psychologiesociale.


 

 

Introdução

Este artigo se propõe a discutir expressões da necropolítica no Brasil, destacando suas implicações no Ceará especificamente, um dos estados brasileiros em que mais são assassinados adolescentes e jovens (Cerqueira et al., 2018, Melo & Cano, 2017). Trata-se de um desdobramento de uma pesquisa financiada pelo CNPq sobre violência urbana e modos de subjetivação juvenis, desenvolvida pelo VIESES: Grupo de Pesquisa e Intervenções sobre Violência, Exclusão Social e Subjetivação, da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Articulando o debate foucaultiano acerca do biopoder às reflexões de Agamben e Arendt sobre estado de exceção e estado de sítio, bem como às problematizações de Fanon sobre violência colonial, Achille Mbembe (2016) propõe a noção de necropolítica para designar uma tecnologia de poder que produz e gerencia a morte, a partir da instrumentalização e destruição material de corpos individuais e populacionais. Para o autor camaronês, o contexto de ocupação colonial em vigor nas periferias do capitalismo se caracteriza por conectar disciplina, biopolítica e necropolítica.

Ao combinar política de morte e racialização dos corpos, a necropolítica opera por ações diretas e indiretas de fazer morrer, exercidas não só pelo Estado (Mbembe, 2016), baseando-se em estado de exceção e relações de inimizade. Nas próximas seções, discutiremos três faces da necropolítica em funcionamento no contexto cearense: (a) a criminalização e extermínio de adolescentes e jovens; (b) o encarceramento em massa, destacando a expansão do aprisionamento feminino e (c) o aumento do número de assassinatos de mulheres nas tramas da violência urbana.

As três faces da necropolítica abordadas neste artigo se amalgamam pelo racismo, considerado o motor do princípio necropolítico (Mbembe, 2017). Retornando à Foucault (2008), Mbembe (2017) corrobora que a raça é uma sombra para o pensamento ocidental e que a função do racismo é regular a distribuição da morte e viabilizar as funções assassinas do Estado, fragmentando a população pela divisão de raças e estabelecendo uma relação positiva com a morte do outro, isto é, tornando-a necessária à vida dos viventes. Ao passo que Foucault (2008) aponta o nazismo como o grande exemplo de como o Estado lançou mão do direito de matar, articuladamente à gestão, proteção e cultivo da vida, Mbembe (2017, p. 117) argumenta que "as premissas materiais de exterminação nazi devem ser encontradas no imperialismo colonial".

A partir da noção de Mbembe (2018) de "devir-negro do mundo", Almeida (2018, p. 96), em seu debate sobre racismo e necropolítica, ressalta que o neoliberalismo espraia "a condição de viver para a morte, de conviver com o medo, com a expectativa ou com a efetividade da vida pobre e miserável". Doravante, ilustraremos alguns modos a partir do qual se exprime essa condição de viver para a morte.

 

O "envolvido" como "inimigo ficcional": criminalização e extermínio de adolescentes e jovens do sexo masculino

A violência urbana no Brasil tem se intensificado nos últimos anos, atingindo, em 2016, a marca de 30,3 mortes para cada 100 mil habitantes, em sua maioria adolescentes e jovens (Cerqueira et al., 2018). Neste cenário, Ceará e Fortaleza aparecem como o Estado e a capital do Brasil com maior Índice de Homicídios na Adolescência (IHA), conforme Melo e Cano (2017).

Barros e Benício (2017) consideram que essa expressão da dinâmica necropolítica se ampara em processos de criminalização de adolescentes e jovens, que, no cenário cearense, tem na produção da figura do "envolvido" um de seus emblemas. Assim, sustentamos que a sujeição criminal, categoria trabalhada por Misse (2010, 2014, 2015), é um dos processos de operação da necropolítica no Brasil.

Para Misse (2014), a sujeição criminal consiste em um processo por meio do qual há a disseminação de uma expectativa negativa sobre indivíduos e grupos, que os considera propensos a cometerem violências e passa a constituir seus modos de subjetivação. Para Misse (2014), a discriminação atua seletivamente sobre características associadas a esses indivíduos considerados perigosos, tais como a cor da pele, roupas, modo de andar, origem social, tatuagens, etc., produzindo o sujeito criminoso antes do crime. Tais processos de sujeição criminal implicados nas trajetórias de adolescentes e jovens periferizados se dão pela intersecção de marcadores de raça, gênero e classe que os produz como inimigos internos (Batista, 2003) e como emblemas da necropolítica (Barros, Paiva, Rodrigues, Silva & Leonardo, 2018).

Para Mbembe (2017), a produção do inimigo nas tramas da necropolítica, fundamental no que ele chama de "sociedade da inimizade", desumaniza corpos considerados "desimportantes", o que justificaria seu extermínio. Entendido aqui como um operador psicossocial necropolítico que garante a eficácia das técnicas de fazer morrer, o medo em relação ao inimigo é reestruturado permanentemente, de modo que "somos assombrados por espectros difusos. O suspeito, o bandido pode ser qualquer jovem que ande de camisa aberta, use boné, bermuda, chinelos e, principalmente, que seja negro (...) E, para conter essa turba, técnicas de vigilâncias são implementadas e desejadas" (Bento, 2018, p. 14). Segundo Mbembe (2017), com base na percepção de uma ameaça permanente, as sociedades contemporâneas são permeadas por técnicas de vigilância. Aliada à reprodução do sentimento de terror, "as democracias liberais continuaram a fabricar espantalhos destinados a meter-lhes medo" (Mbembe, 2017, p. 84). Então, podemos dizer que o que amalgama o medo, a criminalização e o extermínio são os processos de sujeição criminal.

Inserida em um amplo debate sobre sujeição, a sujeição criminal envolve processos de subjetivação. Butler (2017), ao dialogar com Foucault (1995), trata a sujeição como um processo que consiste em, ao mesmo tempo, tornar-se subordinado pelo poder e se tornar sujeito. O poder não é apenas aquilo ao qual o indivíduo faz oposição, mas, também, aquilo que o constitui como sujeito.

Entendemos que a sujeição criminal está inserida na maquinaria de produção do que Guattari e Rolnik (2013) chamam de subjetividade capitalística, que tem o silenciamento, a culpabilização e a segregação como suas funções de sujeição. Para Barros et al., (2018), do ponto de vista psicossocial, a sujeição criminal de adolescentes e jovens periferizados pode conectar e potencializar essas funções de sujeição, contribuindo para a produção de tais segmentos como inimigos internos (Mbembe, 2017). Sustentamos, ainda, que a produção ficcional desse inimigo no contexto brasileiro atual rearranja a associação dessas juventudes ao "mito das classes perigosas", que é legitimada pela disseminação da ideia de que estamos em guerra, pela banalização da tortura e pela militarização das forças de segurança como salvação (Coimbra, 2001).

No Ceará, conforme Barros e Benício (2017) e Barros et al., (2018), a produção psicossocial da figura do "envolvido" é um exemplo de como se atualizam localmente processos de sujeição criminal. No contexto local em destaque, são chamados de "envolvidos" aqueles adolescentes e jovens a quem se atribui uma inserção nas dinâmicas do mercado de drogas ilícitas. Não obstante, a condição fantasmática desse enquadramento acaba por se expandir a um amplo espectro de adolescentes e jovens negros, pobres e habitantes das margens urbanas, que, por essas marcações, são considerados virtualmente criminosos, sendo factível ou não seu "envolvimento" (Barros, Acioly, & Ribeiro, 2016).

Conforme Paiva (2018), muito antes das facções criminosas existirem no estado do Ceará, havia gangues que disputavam territórios periféricos e as mortes nessas localidades já eram encaradas publicamente por representantes das forças de segurança como "acerto de conta entre bandidos", naturalizando-as.

Um determinado perfil de jovem (do sexo masculino, negro e morador da periferia) é tido como grande responsável pela violência. Contudo, esse é o perfil de jovem que mais tem sido vitimado pela violência letal. Em 2016, os jovens do sexo masculino representaram 94,6% dos 33.590 jovens assassinados no Brasil, sendo os homicídios de jovens entre 15 a 19 anos correspondentes a 56,5% de óbitos para o sexo masculino (Cerqueira et al., 2018). Ao apresentar as taxas exorbitantes de homicídios de jovens do sexo masculino, chamam atenção para a discrepância entre homicídios de indivíduos negros e não negros: enquanto houve uma diminuição de 6,8% na taxa de homicídios para não negros, verificou-se a elevação de 23,1% na taxa para pessoas negras.

Segundo Barros e Benício (2017, p. 39), em relação à violência letal, que atinge sobretudo segmentos específicos da população, há "um deslocamento psicológico-moral na trama da violência urbana, fazendo com que a culpa seja sempre do morto, desumanizando e transformando em "anormal", além de uma maquinaria de guerra que ceifa e julga essas vidas como "desimportantes". Ainda que o adolescente tenha cometido atos infracionais, culpabilizá-lo por sua morte é desresponsabilizar o Estado e tomar sua vida como descartável. Ante uma distinta distribuição do direito à vida, Bento (2018) apresenta a noção de necrobiopolítica com base no entendimento de que necropolítica e biopolítica são tecnologias de poder relacionadas e articuladas.

Ao propor essa noção de necrobiopoder, Bento (2018), fazendo uma articulação dos estudos de Judith Butler, Michel Foucault, Achille Mbembe e Giorgio Agamben, problematiza como o Estado participa fundamentalmente da distribuição desigual do direito à vida, apontando que o engendramento de identidades abjetas é a engrenagem principal dessa dinâmica de produção e gestão da morte que atinge, sobretudo, populações negras. O necrobiopoder refere-se a "um conjunto de técnicas de promoção da vida e da morte a partir de atributos que qualificam e distribuem os corpos em uma hierarquia que retira deles a possibilidade de reconhecimento como humano e que, portanto, devem ser eliminados e outros que devem viver" (Bento, 2018, p. 7). Dessa maneira, a produção de vidas vivíveis e o engendramento de vidas matáveis são formas indissociáveis de uma governamentalização neoliberal que articula disciplina, biopolítica e necropolítica (Bento, 2018).

Para que essa necrobiopolítica aconteça, essas "vidas" abjetas são fabricadas como descartáveis. Segundo Butler (2017) corpos abjetos são aqueles que não possuem uma existência legítima e qualificada como importante.

De acordo com Mbembe (2017), "a democracia de escravos" se caracteriza pela sua bifurcação em duas ordens: uma comunidade de semelhantes, orientada pela ideia de igualdade, e uma ordem de não-seme-lhantes, aqueles regidos pela desigualdade, que não têm direito a ter direitos. Essa desigualdade e a lei que a estabelece e ampara se funda no preconceito de raça. Ao discutir a produção do inimigo ficcional, Mbembe (2017) critica uma política, exercida não apenas pelo Estado, que distingue cidadãos, aqueles pertencentes ao grupo de semelhantes, dos não-semelhantes, privilegiando a separação e a luta contra o inimigo.

Andrade e Andrade (2014) afirmam que a associação do indivíduo negro à criminalidade está presente no imaginário coletivo e nas dinâmicas da vida cotidiana. De acordo com Coimbra (2001), no final do século XIX e início do século XX, pregava-se a superioridade branca, o aperfeiçoamento da raça e um posicionamento contra os negros e mestiços, a maior parte da população pobre brasileira. O discurso hegemônico, reforçado pela mídia, era o de que nas "periferias pobres" residia a violência, a criminalidade e o banditismo, associando pobreza e periculosidade. Tal discurso é ainda presente nos dias de hoje (Paiva & Oliveira, 2015), sendo um dos aspectos moventes das engrenagens necropolíticas nas margens urbanas brasileiras.

Mbembe (2017) ressalta que a escravatura de negros é um dos primeiros exemplos de experiência biopolítica, sendo as colônias a representação do lugar onde é exercido um poder à margem da lei. O escravo é mantido vivo, mas em um estado de lesão, em uma violenta condição, na forma de uma "morte-na-vida" (Mbembe, 2017, p. 124). Sua figura resultaria de uma tripla perda: a perda de um lar, a perda de direitos do corpo de cada um/uma e a perda de um estatuto político, tal como os sujeitos "envolvidos", que não são vistos como "cidadãos". Esses sujeitos, personificações locais da sujeição criminal, assemelham-se à imagem mbembeana dos "escravos contemporâneos". Sendo a necropolítica movida pelo racismo colonial, a produção do sujeito "envolvido" é, assim, uma das condições simbólicas de aceitabilidade e naturalização de racismos institucionais, bem como do extermínio de juventudes negras nas periferias.

Desse modo, a necropolítica expressa na criminalização e extermínio de adolescentes e jovens supostamente "envolvidos" demonstra que a lógica colonial se perpetua em nossa sociedade. Adolescentes e jovens negros e moradores das periferias se tornam alvos preferenciais de uma multifacetada lógica punitiva, cuja expressão maior tem sido a violência letal. Segundo Misse (2010), representações de "periculosidade", "irrecuperabilidade" e "crueldade" participam de processos de (des)subjetivação que buscam justificar o extermínio de sujeitos criminalizados.

 

Encarceramento em massa e suas implicações para mulheres negras

O Brasil possui a 3ª maior população carcerária do mundo e, em 2016, chegou a mais de 700 mil presos/as (Borges, 2018). Esse hiperencarceramento tem afetado em maior proporção a população jovem (55% do total) e negra (64% do contingente prisional) e, além disso, tem colocado o país como um dos lugares que mais encarceram mulheres no mundo (Borges, 2018; Rodrigues, 2006). Entre 2000 a 2016, o número de mulheres presas aumentou em 656%, o que representa sair de 6 mil mulheres privadas de liberdade em 2000 para 42 mil presas até junho de 2016 (Ministério dos Direitos Humanos, 2018).

A política de guerra às drogas tem sido uma das principais responsáveis pelo aumento tanto do encarceramento quanto das políticas militarizadas e ostensivas no campo da segurança pública, evidenciando a relação entre as vicissitudes do campo da segurança pública e do sistema prisional. Desde a implantação da Lei nº 11.343/06, conhecida como Lei de Drogas, o encarceramento tem aumentado e afetado as mulheres de forma intensa, já que 62% das detenções de mulheres estão relacionadas aos crimes relativos ao tráfico de drogas, enquanto que, na população masculina, a porcentagem é de 26% (Borges, 2018).

Borges (2018) também endossa que a guerra às drogas é o pano de fundo para que o dispositivo do encarceramento em massa mantenha elementos fulcrais do regime escravista na contemporaneidade, a despeito da formalização da abolição da escravidão. À título de exemplificação, a autora lembra que, no Brasil, em 1990, existiam 90 mil pessoas privadas de liberdade, já em 2016, havia 726.712, sendo fruto de reordenamento sistêmico racista a partir de 2006 com a Lei de Drogas.

O encarceramento, e não só os homicídios, devem ser visto como uma das práticas institucionais fundamentais no genocídio da população negra (Borges, 2018). Nessa discussão, ressaltamos que, no mesmo período em que a população pobre, sobretudo negra, teve acesso a algumas políticas sociais e milhares de famílias não viviam mais em condição de pobreza extrema, essa mesma população também passa a ser o alvo de políticas criminais mais ostensivas (Borges, 2018). Esse mecanismo punitivo mantém ativo o processo de hierarquização racial brasileiro, sendo a "guerra às drogas" um de seus mais contundentes instrumentos. No século XIX, essa subalternização foi justificada pelo racismo científico, que afirmava, sobretudo a partir do determinismo biológico, que as raças se diferenciavam de acordo com características anatômicas. À título de exemplo, o crânio de pessoas negras era falsamente alargado e comparado ao crânio de um chimpanzé, enquanto o de pessoas brancas era considerado normal, justificando assim uma inferioridade entre as raças (Carneiro, 2011).

Com fundamentos no colonialismo e no racismo, há uma seletividade penal que tem se configurado articuladamente à política de drogas. Essa passou por um reordenamento a partir da nova Lei de Drogas ao tornar o tráfico crime hediondo (Borges, 2018). Como destaca Souza (2015, p. 10) "o controle penal sobre o tráfico de drogas [...] define espécie de tipo ideal de repressão e de gestão do sistema penal nacional, particularmente em relação às mulheres". Em relação às privações de liberdade de mulheres, o Ceará ocupa a 6ª posição no ranking geral nacional, sendo a taxa de aprisionamento de 40,6 para cada 100 mil mulheres (Ministério da Justiça, 2018b). As presas jovens (18-29 anos) representam 56% da população carcerária e a taxa de cor negra chega a ser de 94%, que, em sua maioria, estão privadas de liberdade respondendo por crimes relativos ao tráfico de drogas, 58%. Apontamos, não obstante, que a guerra às drogas se configura como uma guerra contra a mulher negra, visto que essa política afeta de forma distinta as mulheres por meio de uma seletividade penal a partir de marcadores raciais e de gênero (Chernicharo, 2014).

Como efeito dessa intersecção entre marcadores raciais e de gênero, há uma grande diferença no número de mulheres brancas e negras privadas de liberdade, conforme mostra a disposição carcerária já apontada. As marcas desiguais de gênero se fazem presentes quando, por exemplo, as mulheres são vistas pelas organizações criminosas como mais fracas para exercerem cargos importantes simplesmente por serem mulheres (Barcinski & Cúnico, 2016).

A construção desigual dos gêneros e das raças, que maximiza a precarização dos corpos femininos, além de estar presente nas dinâmicas do tráfico, também constitui processos de sua criminalização (Souza, 2015). A seletividade no sistema de justiça criminal opera por vias interseccionais, em especial das relações entre raça, classe, gênero e geração, pois o perfil que tem prevalecido nas prisões brasileiras é o de jovens negras e moradoras de periferias. Nesse sentido, a interseccionalidade é vista, aqui, como produtora de experiências de múltiplas opressões que atingem de diferentes formas a população, fabricando vivências e, logo, subjetividades diversas. Para Crenshaw (2002), pensar de forma interseccional é enxergar como as opressões sociais circunscrevem de forma singular essas mulheres, e não somente perceber um perfil específico na prisão, mas problematizar como as relações de poder operam no cotidiano dessas jovens de forma simultânea para manutenção das formas de dominação.

Ainda a partir de um olhar interseccional, podemos perceber o encarceramento em massa como reflexo de políticas desiguais e uma estratégia de manutenção de hierarquizações raciais ligada a um projeto necropolítico de gestão da vida e da morte de corpos descartáveis (Borges, 2018). Tal hierarquização racial refere-se às diferentes formas de manutenção da supremacia branca, da subalternização da população negra (Carneiro, 2011, Santos & Silva, 2018) e da conservação das desigualdades de gênero.

Ao fazer uma leitura histórica sobre o encarceramento feminino nos Estados Unidos, Angela Davis (2018) aponta semelhanças entre o sistema prisional e a escravidão, visto que ambos têm o racismo como estrutural e estruturante. Nessa mesma direção, Borges (2018) salienta que a escravidão manteve ativa a economia brasileira durante séculos e que o aumento de pessoas presas mostra o quanto o encarceramento continua rentável.

Sustentamos aqui que a problemática do aumento exponencial do encarceramento feminino evidencia que a produção ficcional do inimigo, trabalhada por Mbembe (2017) e já discutida no tópico anterior no tocante a adolescentes e jovens rotulados de "envolvidos", também está perversamente implicada nas trajetórias de mulheres negras. Estas, pois, também são (des)subjetivadas como inimigas, de modo a reiterar seu silenciamento, que se configura como o próprio retrato da colonialidade (Kilomba, 2016, Spivak, 2010). Para corpos e territorialidades que encarnam a figura ficcionalizada do inimigo, direcionam-se sobretudo práticas ostensivas de segurança e políticas penais, em detrimento de políticas garantidoras de direitos (Borges, 2018).

No Brasil, as diferenças das ações do Estado pelo dispositivo de guerra às drogas - que, na prática, constitui-se como guerra a determinadas populações - têm distribuído intangibilidades a certos corpos no que Bento (2018) chama de necrobiopolítica à brasileira. Não obstante, para Borges (2018), a necropolítica não atinge as mulheres somente a partir de assassinatos e encarceramento em massa, pois também passa

por outros âmbitos do sistema como negação de acesso à saúde, saneamento, políticas de autonomia dos direitos sexuais e reprodutivos, a violência sexual e doméstica, super exploração do trabalho, notadamente doméstico, estas violências vão, também, se sofisticando e tomando contornos cada vez mais complexos, modificando-se do controle para o extermínio necropolítico. (Borges, 2018, p. 22)

No contexto de colonialidade tardia (Mbembe, 2017), essa distribuição hierarquizada do reconhecimento de humanidade implica maximizar a precarização de certos corpos a partir de sua racialização. Assim, esse operador conceitual também permite mapear técnicas de fazer morrer presentes na situação de mulheres presas em penitenciárias sob o disfarce de crise carcerária, tais com comida estragada, impossibilidade de cuidados de saúde, superlotação, pessoas presas sem sentença, dentre outras estratégias (Bento, 2018).

Não só as favelas, como também as prisões, podem ser vistas como "zonas de morte" produzidas nas malhas do necrobiopoder. Sobre o sistema penitenciário, Rodrigues (2006) destaca que esse sistema sempre foi caracterizado pela superlotação e a falta de investimento público. As condições precárias têm sido um efeito perverso, ou seja, se trata de um projeto necropolítico da aniquilação de vidas descartáveis. A intensificação e criminalização da população jovem, negra e pobre reforça esse sistema de descarta-bilidade. No Ceará, o maior número de presas no sistema penitenciário refere-se àquelas que ainda não foram julgadas (Ministério da Justiça, 2018). Nesse cenário, essas condições perversas intensificaram-se com a expansão de facções no estado, a maior parte delas fortalecida no interior dos presídios, exercendo poderes sobre a vida e a morte nas margens urbanas (Barreira, 2018).

De acordo com Mbembe (2017), o estabelecimento do necropoder (regimes de terror) e da necropolítica (subjugação da vida ao poder da morte) são as formas pelas quais os inimigos ficcionais recebem o status de mortos-vivos. O encarceramento apresenta-se como uma face da necropolítica ao atualizar esses corpos racializados como mortos-vivos, tendo como efeitos a aceitabilidade e banalização da tortura e das demais violações que as populações privadas de liberdade vivenciam.

Ou seja, apesar de conquistas importantes nos últimos anos, houve uma forte repressão política para a manutenção de uma sociedade desigual no Brasil (Borges, 2018). Podemos citar o encarceramento em massa, os homicídios, a criminalização da pobreza, a perpetuação do mito das classes perigosas, entre outras, como estratégias de sua continuidade, que têm aguçado a relação entre raça, crime e violência. Como Mbembe aponta, a democracia liberal moderna, em sua construção, não abdicou do colonialismo e do imperialismo, mas convive com essas estruturas de dominação e se sustenta por meio delas. Em torno dessa racionalidade, o encarceramento em massa e as demandas crescentes por punição, seletivamente aplicadas às populações negras, é exemplo dessa relação entre democracia neoliberal e colonialismo (Mbembe, 2017).

 

Morte de mulheres nas tramas da violência urbana

No Ceará, mudanças relativas à dinâmica da violência urbana vêm afetando o cotidiano de várias mulheres. De 2016 para 2017, houve um aumento de praticamente 200% nos registros de homicídios de meninas no Ceará e, especialmente na capital do Estado, houve um aumento de mais de 400% nesse mesmo período (Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídio do Ceará [CCPHC], 2018).

No entanto, o que observamos no campo das produções acadêmicas sobre o tema das dinâmicas da violência urbana, no Brasil, é uma ênfase na vitimização de jovens e adultos do sexo masculino e uma ausência de produção no que se refere a como esses processos também vêm circunscrevendo o cotidiano e a vida de mulheres (Pasinato, 2011).

Segundo Segato (2014), no que diz respeito ao "feminicídio", é possível identificar dois tipos amplos dentro dessa categoria, sejam eles: aqueles que podem ser relacionados a uma motivação de ordem pessoal e aqueles que são impessoais, não podendo ser relacionados à esfera da intimidade como desencadeadora. O primeiro tipo é a forma mais comum de pensar a violência letal contra a mulher, que é relacionando-a ao campo doméstico, da intimidade e dos afetos, o segundo, no entanto, remete a um tipo de agressão e extermínio de mulheres em que a motivação dessas ações não pode ser encontrada no campo da intimidade. Esse segundo tipo de feminicídio, a autora chama "Femigeno-cídio", posto suas aproximações com a categoria "genocídio" (Segato, 2014). Nesses casos, as agressões são direcionadas às mulheres em contextos impessoais, onde não há possibilidade de estabelecer uma relação de intimidade entre a vítima e seu algoz (Segato, 2014). Essas agressões são direcionada às mulheres, justamente pelas mulheres fazerem parte de uma categoria social ampla, no caso, o gênero (Segato, 2014).

Nesse sentido, um dos acontecimentos importantes de 2018, que nos provoca nesse debate, foi a "Chacina de Cajazeiras", a maior chacina do Estado até então, uma vez que, das 14 vítimas letais, 8 eram mulheres, apontando para novas tramas no que diz respeito à violência urbana (Negreiros, Quixadá, & Barros, 2018). Por um lado, não há qualquer evidência de que essas mortes ocorreram, de forma determinante, por conta do gênero, o que não se encaixa à forma mais corriqueira de pensar essa questão, como aponta Segato (2014). Por outro, as explicações que circulam acerca da chacina enquadram-se nos moldes de violência que matam jovens negros, invizibilizando como as dinâmicas da violência urbana vêm fazendo das mulheres suas vítimas.

O aumento do número de mortes de mulheres, contudo, não se dá isoladamente nos últimos anos. Além do encarceramento feminino, já apontado no tópico anterior, observamos a espetacularização da violência letal pela circulação de vídeos nas redes de comunicação, que exibem mulheres sob tortura e mortas por grupos que disputam o mercado ilegal de drogas e armas, conhecidos popularmente por facções, já apontando que os corpos feminizados figuram como territórios de disputa entre agências masculinistas, em que a mutilação desses corpos representa a rendição do grupo inimigo/facção rival (Segato, 2014). Tal como observamos na problemática do encarceramento em massa, o assassinato atinge mais fortemente determinadas mulheres na cidade, evidenciando operações de femi-geno-cídio.

Destarte, o cenário que se apresenta, especialmente no que se refere aos últimos três anos, coloca à mostra uma dinâmica muito complexa, e ainda de difícil apreensão, acerca das novas formas de relação entre violência urbana e violência contra a mulher, e de que maneiras a vida de mulheres vêm sendo circunscritas nessas tramas. Esses últimos anos têm posto em destaque que o crescimento do número de mortes femininas, à nível percentual, supera as masculinas, aguçando o debate no campo da segurança pública e afastando-se de uma discussão no campo doméstico, lugar usual, como explicitado anteriormente, quando se discute violência contra a mulher (Pasinato, 2018). O argumento que lançamos aqui é o de que essa rede onde a morte e o encarceramento de mulheres podem ser colocados implica um rearranjo das formas de sujeição e subalternização das mulheres ligadas à herança colonial e patriarcal da sociedade ocidental.

Nesse sentido, a necropolítica (Mbembe, 2017) parece ser uma interessante chave de análise no que diz respeito ao debate acerca do aumento do número de mortes de mulheres em Fortaleza. Aqui é possível fazer uma articulação entre essa tecnologia de poder que produz e gerencia a morte, fabricando uma figura descartável (o inimigo ficcional), e o debate de Butler (2015) sobre vidas não passíveis de luto.

Butler (2015) discute, por meio dos fenômenos das guerras contemporâneas, nossos modos de regulação dos afetos, a partir de enquadramentos seletivos da violência. Segundo a autora, uma vida não tem como ser considerada perdida, se não for, em primeiro lugar, considerada viva. Portanto, se existem vidas que não são enquadradas desde o começo como sendo vivas, elas nunca poderão ser vividas ou perdidas de fato. Essas prerrogativas nos indicam que enquadramos algumas vidas como vivas e outras como não-vivas, de modo que se faz necessário nos indagarmos sobre quais são os mecanismos de poder pelos quais a vida é produzida (Butler, 2015).

Por exemplo, reportagens veiculadas pelas "grandes mídias" - tais como as do O Povo, Diário do Nordeste, Veja, entre outras - sobre o aumento do número de mortes de mulheres no Estado, produzem a figura da "mulher envolvida" para justificar seu assassinato. A reportagem publicada no dia 7 de março de 2018 no site oficial da revista Veja, intitulada "Três mulheres são torturadas, mortas e decapitadas em Fortaleza", enfoca que essas três mulheres que foram mortas faziam parte (ou eram simpatizantes) de uma facção rival à de seus algozes (Estadão Conteúdo, 2018).

Assim, a morte dessas mulheres justificar-se-ia, no discurso da reportagem, pela sua suposta criminalização, a partir da ideia de seu envolvimento com facções criminosas, mesmo que seus familiares neguem tal envolvimento (Estadão Conteúdo, 2018). O discurso que, antes de mais nada, levanta suspeição sobre a mulher vítima de violência, retratando-a como potencial "envolvida", mostra como a criminalização e culpabilização são funções de sujeição que se conectam nas tramas do femi-geno-cídio.

De acordo com Butler (2015), para que o "ato de reconhecer" possa ser realizado, é preciso que haja condições/normas que permitam esse reconhecimento. A fim de questionar essas condições, Butler (2015) aponta que devemos olhar para elas como operações de poder que montam um certo enquadramento. O debate, portanto, desloca-se da esfera individualizante para as operações de poder que tornam certos sujeitos mais facilmente reconhecíveis que outros (Butler, 2015).

Se a condição de ser reconhecido precede o próprio reconhecimento, uma questão importante para pensarmos a morte de mulheres nas malhas da necropolítica é a comoção: como essa estrutura do enquadramento produz, regula ou inibe a comoção pública frente a esses episódios? Voltando à "Chacina das Cajazeiras", em meio às manifestações sociais crescentes dos movimentos feministas na América Latina, em especial àquelas que gritam por "ni una a menos", a morte de oito mulheres na chacina teve repercussão relativamente restrita aos seus familiares e aos segmentos que militam no campo dos direitos humanos no estado, apontando a dificuldade em perceber como as desigualdades de gênero vêm se construindo em espaços não convencionais, no caso das tramas da violência urbana (Pasinato, 2018).

Esse episódio é emblemático, no âmbito local, aos modos a partir dos quais as tramas necropolíticas enquadram a mulher negra e periférica como matável: todas as mulheres que aparecem sendo torturadas e, muitas vezes mortas, nos vídeos que estão circulando nas redes de comunicação, no que se refere às disputas faccionais no Ceará, moram em regiões que apontamos como periféricas e são preponderantemente negras. Ou seja, processos de racialização e generificação estão implicados na maximização da vulnerabilidade de mulheres periferizadas. Seu extermínio ilustra a lógica perversa na qual há vidas dignas de luto, visto que, desde o começo, a sua perda foi temida, e há vidas cuja aniquilação sequer é sentida como uma perda.

Como um desdobramento na discussão mbembeana, Sagot (2013) tem articulado esses cenários ao que chama de "necropolítica de gênero", noção que pode ajudar na análise das implicações das novas configurações das dinâmicas da violência em Fortaleza no cotidiano de mulheres inseridas em suas margens urbanas. A necropolítica de gênero indica "uma instrumentalização generalizada dos corpos das mulheres, constrói um regime de terror e decreta a pena de morte para algumas" (Sagot, 2013, p. 6, tradução nossa). Apontamos o femi-geno-cídio como um instrumento de operação necropolítica que visa o extermínio de determinadas mulheres, posto que a rede de violência circula com maior intensidade nos corpos das mulheres negras e moradoras das regiões enquadradas como periféricas. Indicamos tal operação como a atualização de uma sociedade patriarcal e racista que exacerba uma masculinidade violenta que tem, como sua expressão máxima de domínio e controle, a destruição do corpo feminino (Sagot, 2013).

 

Considerações finais

Conforme trabalhado por Mbembe (2017), a necropolítica opera a partir da produção ficcional do inimigo e da destituição do estatuto político de certas existências descartáveis no contexto neoliberal. Vimos neste artigo que, no Brasil, uma das principais personificações desse inimigo ficcional são adolescentes e jovens negros e negras, pobres e habitantes das periferias, (des)subjetivados como matáveis. Adolescentes e jovens negros criminalizados e exterminados sob a pecha de "envolvidos", mulheres encarceradas e adolescentes assassinadas nas tramas da violência urbana guardam em comum o fato de se constituírem como identidades abjetas na articulação de tramas necropolíticas e biopolíticas (Bento, 2018). Como tecnologia de extermínio, a necropolítica implica uma incidência subjetiva, isto é, opera e espraia-se pela produção de desejos de aniquilação de corpos racializados e perpetuação de práticas punitivo-penais e discursos de ódio que colaboram com a manutenção da criminalização, do controle, da vigilância ostensiva, da segregação e da exclusão de populações negras e periféricas.

A necropolítica, na condição de uma engrenagem simbólica e econômica que fabrica formas de narrar-se, modos de subjetivação e formas de performar os gêneros e interações sociais, tem fabricado corpos que devem viver e corpos marcados para morrer. Há a fabricação de sujeitos matáveis e sujeitos morríveis, isto é, daquelas cujas vidas não são vistas como importantes, não sendo passíveis de luto. Assim, o projeto necropolítico não ocorre somente pela ação de matar, mas também pela de deixar morrer. O "deixar" morrer corresponde, aqui, a práticas e políticas de "fazer" morrer que o Estado reitera (Bento, 2018), com ilustração: as maiores taxas de homicídios em Fortaleza ocorrem em territórios tidos como "assentamentos precários" (CCPHC, 2018); bem como o encarceramento em massa, com elevados números de presos e presas provisórios/as, superlotação e denúncias de torturas (Ministério da Justiça, 2018).

Destacamos também que a necropolítica no Brasil, exemplificada pelo encarceramento feminino, opera atualizando os processos de sujeição/criminalização/inferiorização/objetificação dos corpos das mulheres, sobretudo negras e pobres, sendo a guerra às drogas um de seus importantes dispositivos (Souza, 2015). Podemos citar, então, o encarceramento em massa como um dos principais exemplos de política ativa, sistemática e racional de "fazer morrer" as vidas construídas como matáveis pelo mesmo Estado que "faz viver" vidas reconhecidas como "vivíveis". Vidas vivíveis e vidas matáveis são, deste modo, formas indissociáveis de governamentalização, que articulam disciplina, biopolítica e necropolítica (Bento, 2018).

Uma vez que a desigualdade de gênero e a violência atingem mais fortemente a população negra e pobre, é imprescindível uma discussão interseccional de raça, classe e gênero. Pensar de forma inter-seccional é refletir sobre os diversos modos de dominação e marcadores de desigualdades que envolvem a condição de ser mulher negra no Brasil, fundamental para entender a dinâmica da violência urbana e para a criação de estratégias de enfrentamento à violência e ao hiperencarceramento/internação de adolescentes (Ribeiro, 2016).

A partir dessas novas montagens entre as tecnologias de poder, questionamos-nos: de que forma a psicologia pode participar desse debate? Compartilhamos da proposta das autoras Nascimento e Coimbra (2015) de que a Psicologia exerça uma noção de análise de suas implicações, analisando seus referenciais institucionais e colocando em debate o lugar e saber-poder que ocupa na História, em vez de se cristalizar em posições tidas como "científicas". A partir disso, seria possível pensar, inventar e criar outras formas de atuação, aliadas aos movimentos de resistência e luta que essas juventudes vêm produzindo.

As discussões sobre a necropolítica e as formas de expressão dessa tecnologia no Brasil que foram abordadas neste artigo convocam a psicologia a problematizar o estatuto ontológico de certas vidas, desmontando arranjos, sentidos e conjuntos de forças que as tornam matáveis, bem como a produção de subjetividades tolerantes e aderentes tanto à volúpia punitivo-penal quanto ao extermínio propriamente de existências desumanizadas. No limite, o tema da necropolítica convoca-nos a inventar novos modos de subjetivação.

 

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Recebido em: 21/11/2018
Aprovado em: 21/03/2019

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