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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.19 no.46 São Paulo set./dez. 2019

 

ARTIGOS

 

Uma reflexão sobre o atual fundamentalismo religioso a partir de Freud

 

A reflection on the current religious fundamentalism from Freud

 

Una reflexión sobre el actual fundamentalismo religioso desde Freud

 

Une réflexion sur le fondamentalisme religieux actuel de Freud

 

 

Thiago Araújo Oliveira

Mestre em Psicologia, graduado em Filosofia e formado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Psicopedagogia Institucional e Clínica pela Faculdade Venda Nova do Imigrante. Possui formação em psicanálise pela Ato Escola de Psicanálise; thiagoaraujool@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Este estudo teórico parte da pergunta sobre a possibilidade de ler as atuais manifestações do fundamentalismo religioso a partir da noção freudiana da pulsão de morte. Tem como objetivo refletir sobre esse fenômeno religioso, expressivo na atualidade, por meio do aporte teórico da psicanálise. Elaborado através de pesquisa bibliográfica, o artigo relaciona abordagens de alguns estudiosos do fundamentalismo com a teoria psicanalítica e, sobretudo, com o pensamento de Freud acerca da religião. O estudo resulta numa compreensão de que a intransigência, a intolerância e a violência, que caracterizam o comportamento de alguns grupos fundamentalistas, constituem formas de expressão e de atuação da pulsão de morte na religião.

Palavras-chave: Fundamentalismo; Pulsão de morte; Religião; Psicanálise; Freud.


ABSTRACT

This theoretical study starts from the question about the possibility of reading the present manifestations of religious fundamentalism from the Freudian notion of the death drive. Its objective is to reflect on this religiousphenomenon, currently expressive, through the theoretical contribution of psychoanalysis. Elaborated through bibliographical research, the article relates approaches of some scholars of the fundamentalism with the psychoanalytic theory and, mainly, with the thought of Freud on the religion. The study results in an understanding that the intransigence, intolerance and violence, which characterize the behavior of some fundamentalist groups, constitute forms of expression and action of the death drive in the religion.

Keywords: Fundamentalism; Death drive; Religion; Psychoanalysis; Freud.


RESUMEN

Este estudio teórico parte de la pregunta sobre la posibilidad de leer las actuales manifestaciones del fundamentalismo religioso a partir de la noción freudiana de la pulsión de muerte. Tiene como objetivo reflexionar sobre ese fenómeno religioso, expressivo en la actualidad, por medio del aporte teórico del psicoanálisis. Elaborado a través de investigación bibliográfica, el artículo relaciona abordajes de algunos estudiosos del fundamentalismo con la teoría psicoanalítica y, sobre todo, con elpensamiento de Freud acerca de la religión. El estudio resulta en una comprensión de que la intransigencia, la intolerancia y la violencia, que caracterizan el comportamiento de algunos grupos fundamentalistas, constituyen formas de expresión y de actuación de la pulsión de muerte em la religión.

Palabras clave: Fundamentalismo; Pulsión de muerte; Religión; Psicoanálisis; Freud.


RÉSUMÉ

Cette étude théorique part de la question sur la possibilité de lire les manifestations actuelles du fondamentalisme religieux à partir de la notion freudienne de pulsion de mort. Son objectif est de réflé-chir à ce phénomène religieux, actuellement expressif, à travers l'apport théorique de la psychanalyse. Elaboré àpartir de recherches bibliographiques, cet article relate les approches de certains érudits du fondamentalisme avec la théorie psychanalytique et, surtout, avec la réflexion de Freud sur la religion. L 'étude aboutit à une compréhension du fait que l'intransigeance, l'intolérance et la violence, qui caractérisent le comportement de certains groupes fondamentalistes, constituent des formes d'expression et d'action de la pulsion de mort en religion.

Mots-clés: Fondamentalisme; Pulsion de mort; La religion; Psychanalyse; Freud.


 

 

A atual emergência e militância do fundamentalismo religioso

Um dos fatos mais alarmantes do século XX foi o levante de uma religiosidade militante conhecida como fundamentalismo. Surgido entre as grandes tradições religiosas, esse fenômeno se apresentou como uma reação contra a cultura secular e científica, nascida no Ocidente e, depois, alastrada para outras partes do mundo.

O termo fundamentalista foi utilizado, inicialmente, por protestantes norte-americanos que, no começo do século XX, passaram a se identificar dessa forma para se distinguirem de outros cristãos considerados liberais, que estariam distorcendo a doutrina cristã ao absorverem valores da modernidade. Os fundamentalistas traçaram então o objetivo de retornar aos fundamentos da religião, através da interpretação literal da Bíblia e da defesa de certas doutrinas consideradas imutáveis. Atualmente, a palavra fundamentalista é também aplicada, de modo generalizado, a movimentos radicais em outras religiões, além do cristianismo (Oro, 1996).

Armstrong (2001) explica que a aplicação do termo fundamentalismo a segmentos religiosos diferentes pode ser um tanto quanto equívocada, devido às peculiaridades de cada grupo. A autora diz, no entanto, que, apesar desses grupos possuírem fortes diferenças, guardam também algumas semelhanças significativas, seguindo determinado padrão, o que justifica qualificá-los como fundamentalistas. Para essa autora, trata-se de grupos religiosos que cultivam uma espiritualidade combativa e que surgem e se organizam como reação a alguma crise na sociedade. Travam conflitos contra inimigos, cujas políticas e crenças são vistas como contrárias à religião. Interpretam esses conflitos como uma guerra espiritual entre as forças do bem, do qual são representantes, e do mal, identificado com o mundo secular e sua cultura alheia à religião. Diante das tendências seculares do mundo moderno, os fundamentalistas sentem um medo visceral: temem o aniquilamento da religião e de sua influência na sociedade. Por esse motivo, procuram fortificar sua identidade ameaçada, por meio do resgate de doutrinas e práticas do passado. Normalmente, essas doutrinas e práticas são extraídas de um livro considerado sagrado, no qual se acredita encontrar, claramente, a verdade e a vontade de Deus, através de uma leitura literal. Devido à sua oposição para com a sociedade secular, os fundamentalistas fecham-se enquanto grupo, evitando contaminar-se com aquilo que consideram pecado e perversão do mundo moderno. Dessa forma, criam uma contracultura. Apesar de sua mentalidade conservadora e de seu apego ao passado, eles absorveram, em seus planos de ação, o racionalismo pragmático da modernidade e, com isso, elaboram sua ideologia e traçam métodos modernos para difundi-la, servindo-se dos avanços técnico-científicos, sobretudo os meios de comunicação social. Sob a liderança de líderes carismáticos, lutam por fazer valer os fundamentos da fé, tentando ressacralizar um mundo cada vez mais cético.

A partir da década de 1970, os movimentos fundamentalistas assumiram uma forte militância política, buscando interferir diretamente nas várias instâncias dos governos e nos diversos setores da vida social. Ganharam força a ponto de pretenderem introduzir, novamente, sua visão de mundo e sua moral conservadora na sociedade. Armstrong (2001) sugere que essa nova ofensiva fundamentalista resulta do caos da década de 1960, quando o mundo assistiu a mudanças culturais significativas, que geraram uma crise para os valores tradicionais sustentados pelas religiões institucionalizadas. Como exemplo dessas transformações, citam-se a liberal cultura jovem que se disseminou, a revolução sexual e o surgimento de frentes de defesa dos direitos dos homossexuais, dos negros e das mulheres. Toda essa efervescência dos anos 1960 parecia instaurar uma crise, ao abalar as próprias bases culturais da sociedade. Naquele contexto, muitos secularistas pensaram que a religião perderia, definitivamente, sua importância na política e no tecido social como um todo (Armstrong, 2001).

A reação fundamentalista, porém, a partir da década de 1970, causou uma grande surpresa. As campanhas de reconquista, desencadeadas pelos fundamentalistas, mostraram que a religião estava longe de ser uma força falida. Grupos religiosos reacionários fizeram a religião sair do ocultamento e mostraram que ela tinha uma imensa força para atrair grande parte da sociedade moderna e influir no mundo da política. Com a nova ofensiva religiosa, deflagrada a partir de então, delineou-se uma forte polarização das sociedades. Ao encerrar-se o século XX, a divisão entre religiosos e secularistas se acentuou ainda mais. Eles não falavam a mesma linguagem nem partilhavam as mesmas ideias. Ao contrário do que alguns pensadores modernos imaginavam, a religião não desapareceu e, em alguns círculos, tornou-se mais militante ainda. Atualmente, "fundamentalistas judeus, cristãos e mulçumanos continuam reagindo furiosamente às tentativas de privatizar ou suprimir a religião e acreditam que a resgataram do esquecimento" (Armstrong, 2001, p. 403).

Essa nova efervescência religiosa propicia também extremismos bastante nocivos para a sociedade. Haja vista os horrores que, em nome da religião, são perpetrados em várias partes do mundo e noticiados pelos meios de comunicação social. Terroristas bradam suas convicções de fé em nome das quais, friamente, aniquilam suas vítimas, consideradas hereges. E não se deve imaginar que o homicídio em nome da crença seja a única forma de expressão do extremismo fundamentalista. Assiste-se também a uma proliferação de novas igrejas e a um pulular de expressões religiosas, onde a manipulação e a dominação de ideias são evidentes. Tendências fundamentalistas podem encontrar vazão, e de fato encontram, em qualquer denominação religiosa, desde as mais antigas instituições até as novas formas de expressão do sagrado.

Levadas pelo fundamentalismo, as pessoas podem ser capazes de chegar ao máximo da intolerância, a ponto de encarar seu diferente como um inimigo a ser eliminado. Elevando sua concepção de mundo ao patamar de verdade absoluta, o crente fanático se torna incapaz do convívio pacífico com a diversidade cultural e religiosa presentes na humanidade. Grupos se alienam aos discursos arrebatadores de líderes religiosos, capazes de incitar seus sectários ao ódio em nome de uma causa religiosa. Apoiado em sua crença, um terrorista chega ao ponto de buscar o martírio na forma de homem-bomba, transpondo os limites do princípio do prazer e desafiando a angústia diante da própria morte. O sentido para essas ações geralmente é buscado em promessas religiosas de compensações depois da morte, num paraíso divino onde todos os desejos serão plenamente satisfeitos (Rocha, 2014). Essa realidade, tão presente no mundo atual, causa mal estar e suscita questionamentos sobre qual fundo psicológico sustenta e propicia essas atitudes.

Dentre as várias possibilidades de lidar com esses questionamentos, pode-se levar em conta as contribuições do pensamento freudiano. Na obra de Freud, não se encontra abordagens específicas sobre o fundamentalismo religioso, mas sobre a religião de modo geral. Contudo, a crítica de Freud à religião, sua abordagem a respeito da formação e do funcionamento de grupos e sua compreensão sobre o dinamismo pulsional que move os indivíduos e a coletividade humana podem fornecer um aporte teórico útil para a tentativa de compreender o modo como surgem e como funcionam os atuais fenômenos religiosos.

 

Perspectivas freudianas sobre a religião

Freud, com seu ateísmo declarado, insere-se na herança do pensamento iluminista. Para ele, existe um conflito insuperável entre a religião e a racionalidade científica, de tal modo que, "quanto maior é o número de homens a quem os tesouros do conhecimento se tornam acessíveis, mais difundido é o afastamento da crença religiosa". (Freud, 1927/2006e, p. 47). Esse conflito se deve ao fato de que toda ciência busca a compreensão de seu objeto e, no caso da crença religiosa em deus, o pensamento científico a concebe como mais um objeto a ser pesquisado e compreendido (Kyrillos & Rosário, 2016). De outro lado, a religião possui a convicção de que a fé remete a uma realidade que não se circunscreve ao âmbito da racionalidade humana, mas ultrapassa-a, sendo pretensão descabida reduzi-la aos moldes de um objeto da ciência. Essa postura pode ser encontrada num importante representante do cristianismo primitivo, chamado Quinto Setímio Florêncio Tertuliano1, que propôs uma máxima que se tornou célebre no pensamento cristão: Credo quia absurdum (Creio porque é absurdo). Freud (1927/2006e) diz que, com essa frase, esse teólogo africano "sustenta que as doutrinas religiosas estão fora da jurisdição da razão - acima dela. Sua verdade deve ser sentida interiormente, e não precisam ser compreendidas" (p. 37).

A concepção de Freud sobre a religião está presente em vários de seus textos, nos quais podemos encontrar abordagens diretas sobre esse assunto ou alusões a ele: Atos obsessivos e práticas religiosas (1907/2006a), Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna, 1908, Uma lembrança de Leonardo da Vinci, 1910, Totem e tabu (1913/2006b), Psicologia das massas e análise do ego (1921/2006c), Uma neurose diabólica do século XVII , 1923, O futuro de uma ilusão (1927/2006e), Uma experiência religiosa, 1928, Dostoievsky e o assassinato do pai, 1928, Mal estar na civilização (1930/2006f), A questão de uma Weltanschauung – Conferência XXXV de Novas sequencias de lições de introdução à psicanálise (1933/2006g) e Moisés e o monoteísmo (1938/2006h).

Em Atos obsessivos e práticas religiosas - onde encontramos o início da crítica freudiana à religião - Freud (1907/2006a) apresenta sua constatação de que os atos obsessivos e os ritos das cerimônias religiosas apresentam semelhanças quanto a seus objetivos: eles buscam colocar ordem em algo que está aparentemente desordenado. Em ambos, os atos devem ser realizados da maneira mais escrupulosa possível, seguindo leis rigorosas. Caso essas leis sejam infringidas ou negligenciadas, um drama é despertado na consciência do obsessivo e do religioso. A conclusão que Freud (1907/2006a) chega é que, tanto o piedoso quanto o obsessivo experimentam um sentimento de culpa inconsciente. Essa culpa precisa ser apaziguada pela repetição ritualística de atos, cujo escopo é reordenar o que foge ao imperativo interno de uma ordem não conseguida totalmente pelo sujeito. Destarte, Freud (1907/2006a) reconhece, na neurose obsessiva, o correlato da formação de uma religião.

Em O futuro de uma ilusão, escrito vinte anos mais tarde, Freud (1927/2006e) continua sua abordagem sobre a religião, considerando-a uma "neurose obsessiva universal da humanidade". Afirma ainda que, "tal como a neurose obsessiva das crianças, ela surgiu do complexo de Édipo, do relacionamento com o pai" (p. 52). Propõe que a religião deriva do sentimento de desamparo que a criança vive e de sua necessidade de proteção dos pais. Essa situação de desamparo não fica restrita ao período da infância, mas prolonga-se ao longo da vida adulta, gerando, portanto, a necessidade de um pai protetor, projetado na figura de um deus providente. Neste divino onipotente, o homem vai então buscar suprir a falta que experimenta no âmago de seu próprio ser.

Essas vinculações não são difíceis de encontrar. Consistem na relação do desamparo da criança com o desamparo do adulto, que a continua, de maneira que, como era de esperar, os motivos para a formação da religião que a psicanálise revela agora, mostram ser os mesmos que a contribuição infantil aos motivos manifestos. (Freud, 1927/2006e, p. 32)

Freud (1927/2006e) considera duas realidades que causam ao homem o sentimento de debilidade diante da vida: a natureza e o destino. A primeira apresenta-se com uma força inexorável. Por mais que o ser humano tente dominá-la com suas técnicas e seus conhecimentos, jamais terá capacidade suficiente para prever, por exemplo, todas as catástrofes naturais ou fugir dos efeitos danosos que acarretam. As forças naturais se apresentam como realidades indomáveis, causando medo e insegurança à humanidade desde suas origens. Por isso, um dos objetivos da civilização é unir os homens, para que, conjuntamente, possam enfrentar os perigos da natureza ou pelo menos se protegerem deles. Já o destino diz respeito ao fato de que o homem nunca terá total controle sobre o curso de sua existência. Está sempre exposto à incerteza quanto aos rumos de sua vida e defrontando-se com constantes frustrações e sofrimentos que a realidade lhe impõe, sem que possa fugir totalmente deles.

Freud (1927/2006e) então diz que a reação humana diante dessas duas forças impessoais e implacáveis foi a de atribuir-lhes as características que a criança, no momento de seu desamparo, percebia em seus pais. A criança imaginava os cuidadores como seres onipotentes, diante dos quais experimentava um sentimento ambivalente de temor e amor ao mesmo tempo. O primeiro ser ao qual a criança devotou toda sua afeição foi a mãe, que se lhe apresentou como aquela que poderia salvá-la na sua situação de desamparo total. Mais tarde, a função de proteção é atribuída ao pai, por se apresentar mais forte e mais capaz de oferecer o amparo necessário. O pai, no entanto, era também uma figura temida, dado que, no Complexo de Édipo, a criança o vê como rival, pelo fato de ela direcionar seu desejo sexual para o mesmo objeto sexual dele: a mãe. O pai que apresenta a ameaça de castração, caso a criança não renuncie a seus desejos libidinosos pela mãe, é, portanto, alguém temido, mas também alguém amado, pois é nele que o infante encontra a possibilidade de amparo.

Nessa função [de proteção] a mãe é logo substituída pelo pai mais forte, que retém essa posição pelo resto da infância. Mas a atitude da criança para com o pai é matizada por uma ambivalência peculiar. O próprio pai constitui um perigo para a criança, talvez por causa do relacionamento anterior dela com a mãe. Assim, ela o teme tanto quanto anseia por ele e o admira. (Freud, 1927/2006e, p. 32)

Freud (1927/2006e) sustenta que essa atitude da criança para com a figura paterna emprestou suas principais características para que o homem primitivo personificasse as forças impessoais da natureza e do destino. Essas duas realidades foram então imaginadas como seres pessoais e o homem passou a nutrir, por elas, seus maiores medos e pavores. Mas, se se tornaram seres dignos de temor, passaram a ser também concebidos como entidades das quais se podiam esperar proteção e favores, diante dos reveses da vida. Desse modo, continua o pensamento de Freud (1927/2006e), os homens criaram os deuses como personificações das forças naturais e como modo de explicar os fenômenos que escapavam da sua capacidade de compreensão. A estes seres divinos, passou-se a tributar cultos, oferecer sacrifícios de propiciação e dirigir súplicas.

Como já sabemos, a impressão terrificante de desamparo na infância despertou a necessidade de proteção - de proteção através do amor -, a qual foi proporcionada pelo pai; o reconhecimento de que esse desamparo perdura através da vida tornou necessário aferrar-se à existência de um pai, dessa vez, porém, um pai mais poderoso. (Freud,1927/2006e, p. 39)

A religião, portanto, e sua ideia de um ou vários deuses seria, para Freud, resultado da confluência do desamparo infantil perdurado durante a vida adulta e do sentimento ambivalente para com a figura paterna durante o Complexo de Édipo, que também se faz presente, de modo inconsciente, na atual configuração psíquica do homem maduro. Por isso, "um homem de dias posteriores, de nossos próprios dias, comporta-se da mesma maneira [que os homens primitivos]. Também ele permanece infantil e tem necessidade de proteção, inclusive quando adulto; pensa que não pode passar sem o apoio de seu deus." (Freud, 1938/2006h, p. 142).

A religião é colocada, por Freud (1927/2006e), nos rol das ilusões. A ilusão, para ele, está intimamente vinculada a um desejo. No caso da religião, ela se vincula justamente ao profundo desejo de amparo e de justiça, que se faz presente em todo ser humano. Diante das incertezas e das injustiças presentes, o homem anseia por algo que venha satisfazer sua necessidade de proteção e sua sede de justiça. A religião, com sua ideia de uma providência divina que zela pelo destino dos homens e com sua proposta de uma vida eterna - na qual serão compensadas as injustiças terrenas -, apresenta-se como uma ilusão criada para atender a esses desejos. Vale ressaltar que, para Freud (1927/2006e), "as ilusões não precisam ser necessariamente falsas, ou seja, irrealizáveis ou em contradição com a realidade" (p. 39). A ilusão, aliás, dispensa uma necessária correspondência com a realidade. Logo, a inferência a que Freud (1927/2006e) chega é que "podemos, portanto, chamar uma crença de ilusão quando uma realização de desejo constitui fator proeminente em sua motivação e, assim procedendo, desprezamos suas relações com a realidade, tal como a própria ilusão não dá valor à verificação" (p. 40).

 

A violência na religião

Na Conferência 32, Ansiedade e vida instintual, Freud (1933/2006g) retoma sua hipótese de que existem duas classes essenciais de pulsões: pulsões de vida e de morte; sendo estas últimas nomeadas, no referido texto, como "instintos2 agressivos, cuja finalidade é a destruição" (p. 105). Nessa dualidade pulsional, Freud (1933/2006g) insere a comum oposição entre amar e odiar; bem como a polaridade atração e repulsão, que a física demonstra no mundo inorgânico. Esse dualismo pulsional é apresentado como fundamento para a ambivalência de sentimentos própria do humano. Freud (1933/2006g) lembra que essa hipótese encontra rejeição pelo fato de que ela atribui ao homem uma pulsão agressiva, o que soaria como um sacrilégio, dado que essa maneira de conceber o ser humano contraria muitas suposições religiosas e convenções sociais. A crença de que o homem deve ser bom, ou pelo menos de boa índole, rejeita a ideia de que haja nele, constitucionalmente presente, uma pulsão de agressão. Mesmo que suscite controvérsias, o argumento freudiano continua "a favor de um instinto agressivo e destrutivo nos homens" (Freud, 1933/2006g, p. 106).

Em Totem e tabu, ao tratar da origem da religião e da moralidade, Freud (1913/2006b) apresenta sua ideia de que o deus de cada ser humano é formado à semelhança do pai: "a relação pessoal com Deus depende da relação com o pai em carne e osso e oscila e se modifica de acordo com essa relação" , "no fundo, Deus nada mais é que um pai glorificado" (p. 150). Essa maneira de Freud conceber as relações do crente com seu deus vincula-se às relações do filho com o pai no Complexo de Édipo. Se na situação edipiana o filho nutre pelo pai o sentimento ambivalente de amor e ódio, a mesma ambivalência se encontra na relação com o ser divino, substituto da figura paterna. Isso leva Freud (1913/2006b) a inferir que, através da criação de deuses como representantes paternos, a religião continua apresentando a ambivalência de sentimentos como uma de suas mais marcantes características. Amor e ódio estão, portanto, no cerne do sentimento religioso do crente para com a divindade e, por isso, não é sem motivo que essa mesma ambivalência pode assumir outras formas de expressão na relação do homem de fé para com outros homens. Por essa ambivalência de sentimentos, podem-se pensar as ocultas ou indisfarçadas contradições que se fazem presentes na religião que, em meio a seus discursos sobre a fraternidade e caridade, também chega a práticas agressivas e violentas, que assumiram variadas formas nos diversos contextos históricos e sociais. Ribeiro (2011) chama a atenção para o fato de que, embora as religiões sejam normalmente concebidas como portadoras de uma mensagem de paz, a realidade mostra que é mais comum o binômio: violência e religião. Este autor diz que "paz e religião parecem ser duas realidades de difícil convivência" (p. 583).

Kyrillos e Rosário (2016), desenvolvendo reflexões psicanalíticas sobre o paradoxo religião e violência, lembram que, durante a antiguidade, a violência se expressava nas relações de poder entre Estado e cidadãos, senhores e escravos, homens e mulheres. Na Idade Média, a violência estava presente na religiosidade, através, por exemplo, do movimento das Cruzadas, pelo qual a cristandade buscou expandir seu domínio, impondo-se aos que eram considerados inimigos da fé cristã. Na Bíblia, são abundantes as narrativas de eventos violentos, do Gênese ao Apocalipse: a expulsão de Adão e Eva do paraíso como sanção divina; o fratricídio praticado por Caim; o extermínio da humanidade narrado pelo episódio do Dilúvio; o castigo da incompreensão imputado aos homens, por pretenderam construir uma torre que atingisse o céu; as pragas que Deus enviou ao Egito; as guerras entre os israelitas e os povos que ocupavam a Terra Prometida; o pedido de vingança que, no Apocalipse, os mártires cristãos fazem a Deus contra os habitantes da terra; o Juízo Final, pelo qual os infiéis são punidos com castigo eterno. Esses relatos bíblicos, entre tantos outros, são narrativas permeadas de violência. Kyrillos e Rosário (2016) afirmam que esses episódios parecem ser "resposta a uma violência primeira, essencial, qual seja, a violência divina" (p. 117). Isso demonstra que o homo violens (homem violento) sempre esteve atuante na religião e por meio dela, desde os tempos primitivos. Na atualidade, essa violência mesclada ao sagrado pode ser mais questionada. Talvez porque hoje se tem novos meios para demonstrar o que antes permanecia mais oculto ou para denunciar o que era aceito de modo mais passivo. Por outro lado, surgem variadas formas de focalizar e tentar explicar o fenômeno da violência presente em diversos contextos e situações, dentre os quais figura também o contexto religioso (Ribeiro, 2011).

Em Psicologia de Grupo e Análise do Ego, Freud (1921/2006c) apresenta a tese de que o que mantém unidos os membros de grupos, multidões ou organizações estáveis - como a Igreja ou o Exército - são os laços libidinais na forma de uma sexualidade sublimada. Eros, ou pulsão de vida, seria então o responsável por unir os membros de um grupo e manter essa união. No próprio cerne de Eros, porém, encontra-se uma oposição que se manifesta no nível supra individual.

Freud (1921/2006c) diz que, nas antipatias e aversões que as pessoas sentem por aqueles que lhe são estranhos, pode ser reconhecido o narcisismo, ou o amor a si mesmo. Com base nesse narcisismo, os homens se mostram aptos, com muita presteza, a odiar e direcionar sua agressividade para os outros. Quando, no entanto, um grupo é constituído, a intolerância que os homens sentem pelos demais se desvanece, temporária ou permanentemente, dentro da formação grupal.

Enquanto uma formação de grupo persiste [seus membros] toleram as peculiaridades de seus outros membros, igualam-se a eles e não sentem aversão por eles. Uma tal limitação do narcisismo (...) só pode ser produzida por um determinado fator, um laço libidinal com outras pessoas. O amor por si mesmo só conhece uma barreira: o amor pelos outros, o amor por objetos. (Freud, 1921/2006c, p. 113)

Neste excerto, pode-se encontrar a referência ao narcisismo (amor por si mesmo) e ao amor objetal (amor aos outros). Ambos são, num nível próprio, expressões de Eros. O narcisismo, no entanto, apresenta uma cota de intolerância aos outros, pois leva o sujeito a um solipsismo e faz com que os outros tenham pouca ou nenhuma importância. Esse modo de funcionamento do narcisismo se dá devido ao fato de o próprio Ego ser tomado como objeto de amor. Em Eros, porém, há um movimento dialético pelo qual, ao mesmo tempo em que busca a ampliação das unidades e a preservação delas, essas duas tendências podem se opor. A integração num grupo mais amplo limita ou faz desaparecer a unidade individual. A manutenção da unidade individual, por sua vez, tende a exigir a diferenciação ou a oposição do um em relação ao todo. Exemplo disso é o laço erótico entre dois indivíduos que leva a unidade, assim formada, a se distanciar do grupo mais amplo ou até se opor a ele. De modo análogo, a formação de um grupo é acompanhada de sua diferenciação de outros grupos e, até mesmo, da hostilização por eles.

Por sua própria dinâmica, cada movimento de Eros implica numa resistência interna em relação aos elementos externos. Essa resistência aos elementos externos se deve simplesmente ao caráter contraditório da exigência de coesão em Eros. Nessa contradição, entra a pulsão de morte, pois a resistência ao diferente e ao externo e a tendência à diferenciação podem ser compreendidas como tendência à desagregação. Nessa dupla face do movimento pulsional, pode-se perceber a noção de ambivalência de sentimentos, pela qual Freud (1915/1974) chega a postular que até mesmo nas relações mais intensas e afetuosas entre os seres humanos sempre há uma quota de hostilidade, seja nos relacionamentos amorosos ou nas comunidades de interesses grupais e nacionais.

Percebe-se com isso que processos desencadeados pela atuação de Eros podem também se colocar a serviço da pulsão de morte, provocando, por exemplo, reações de hostilidade. Freud aponta como exemplo o caso das religiões que, ao mesmo tempo em que promovem a coesão interna pelo amor vivido entre seus membros, promovem também a intolerância em relação aos que não fazem parte do seu grupo de seguidores. "Fundamentalmente, na verdade, toda religião é, dessa mesma maneira, uma religião de amor para todos aqueles a quem abrange, ao passo que a crueldade e a intolerância para com os que não lhes pertencem, são naturais a todas as religiões" (Freud, 1921/2006c, p. 110).

Outro mecanismo, referido por Freud (1921/2006c), que funciona como colaborador para formação de grupos é a identificação. Nesse caso, ela resulta da transformação de um sentimento hostil primitivo num sentimento de companheirismo. Esse processo tem suas raízes na inveja infantil, que leva a criança a competir o amor de seus pais como direito do qual os demais devem estar excluídos. Como essa pretensão se revela impossível, forma-se uma atitude reativa: já que não se pode ser o único objeto do amor dos pais, que ninguém o seja! Todos devem estar excluídos do gozo desse privilégio. Todos devem se igualar.

Essa formação reativa é acompanhada da necessidade de que haja a presença, real ou imaginária, de alguém exterior ao grupo, cujo amor deve ser igualmente distribuído entre os membros que o compõem. Estabelece-se uma identificação recíproca que exige a posição de um líder, para o qual convergem as aspirações libidinais sublimadas. Dessa forma, a hostilidade mútua é vencida, pois todos amam o mesmo líder. Nas palavras de Freud (1921/2006c), "o laço mútuo existente entre os membros de um grupo é da natureza de uma identificação desse tipo, baseada numa importante qualidade emocional comum, e podemos suspeitar que essa qualidade comum reside na natureza do laço com o líder" (p. 117).

Esse líder pode ser substituído por um ideal partilhado pelos membros de um grupo, que serão agregados seguindo os mesmos caminhos da formação de um laço através de um sentimento comum com quem exerce a liderança.

O que resulta disso é a percepção de que a identificação vem funcionar como um intermediário entre Eros e a pulsão de morte, limitando a agressividade entre os membros do grupo e direcionando-a para o exterior deste. Esse direcionamento da agressividade - como representante da pulsão de morte -para o exterior do grupo foi trabalhado por Freud (1930/2006f) em O Mal Estar na Civilização. Nesse texto, o autor recorda o fato de que pulsão de vida e pulsão de morte estão intimamente relacionadas. Se um grupo é constituído e conservado graças à ação de Eros - que tem a função de integrar as unidades - há que se ter uma maneira de desviar para o exterior, da mesma formação grupal, o outro elemento pulsional que promove a desintegração, a pulsão de morte. Freud (1930/2006f) propõe então que o grupo exige um "escoadouro" (p. 118) para essa pulsão. Esse escoadouro seria outro grupo - frequentemente minoritário - para o qual a pulsão de morte será direcionada; enquanto Eros continua cumprindo sua tarefa unificadora no interior da formação grupal. Com essa noção, Freud entende o porquê de, ao longo da história da humanidade, muitas nações terem se formado e se sustentado à custa da dominação violenta e da agressão exercida sobre outros povos. Da mesma forma, os agrupamentos religiosos também se solidificam e se mantém coesos, direcionando sua fúria para outros grupos através de perseguições a hereges e guerras religiosas. Como foi o caso, por exemplo, da Igreja Cristã que, de inúmeras formas, perseguiu, por muitos séculos, os judeus e as seitas consideradas heterodoxas. "Quando, outrora, o apóstolo Paulo postulou o amor universal entre os homens como o fundamento de sua comunidade cristã, uma extrema intolerância por parte da cristandade para com os que permaneceram fora dela tornou-se uma consequência inevitável" (Freud, 1930/2006f, p. 119).

Em suas manifestações através da dominação, da agressão e da destruição, a pulsão de morte se nos apresenta como um elemento capaz de nos levar a uma compreensão mais acurada sobre a violência inerente às mais variadas formas de relacionamentos entre pessoas, grupos e povos. Imiscuído com seu opositor, Eros, faz-se presente inclusive onde se prega o amor, a concórdia e a salvação do ser humano, ou seja, no contexto religioso. Esse importante conceito da obra freudiana pode ser um instrumento teórico útil para se pensar a violência que se faz presente no discurso e na prática dos atuais grupos religiosos fundamentalistas. A intolerância religiosa e os confrontos desses grupos com a diversidade de crenças, valores e modos de vida, presentes na comunidade humana, demonstram que, mesmo em meio aos mais devotos discursos e atitudes, também se faz ouvir, às vezes de maneira sutil e camuflada, o rumor da pulsão de morte.

 

A necessidade pulsional que propicia e permeia o fundamentalismo religioso

A abordagem do fundamentalismo a partir dos textos de Freud e, principalmente, através de sua concepção sobre a pulsão de morte leva a considerar que, nesse fenômeno religioso contemporâneo, há algo que se repete na história humana: a necessidade neurótica de um pai forte que possa dirimir a sensação de desamparo sentida pelo homem, mesmo adulto. Essa necessidade, nomeada por Freud (1927/2006e) como neurose obsessiva da humanidade, pode levar o homem a reafirmar, de variadas formas e em diferentes épocas, que há um deus pai, sob cujo domínio e poder lhe apraz submeter-se e submeter também os outros. Essa reafirmação através da religião, nos tempos atuais, revela também o caráter repetitivo inerente à pulsão de morte, que permeia os modos de ser e de se impor do fundamentalismo religioso.

O estudo de alguns textos de Freud - nos quais ele tratou sobre a origem e os posteriores surgimentos da religião do deus único - mostra que a figura de um pai forte sempre retornou, de alguma forma, quando os homens sentiram a angústia provocada pela ausência dele. Em Totem e tabu, o autor ressalta que os filhos do chefe da antiga horda, depois de o terem assassinado, não suportaram viver sem sua autoridade paterna por muito tempo. Por isso, trataram de forjar um substituto para ele, através de um totem. No culto a esse totem, que posteriormente ganhou traços humanos até ser divinizado, Freud (1913/2006b) identificou a primeira forma em que a religião se manifestou entre a humanidade, precisamente com o intuito de resgatar o pai assassinado. Em Moisés e o monoteísmo, Freud (1938/2006h) considerou o surgimento das grandes religiões monoteístas como uma forma de "retorno do reprimido" (p. 98), isto é, o ressurgimento do antigo pai tirânico da horda primitiva. Essas formas de retorno do pai, numa figura divina, podem ser relacionadas com a proposta de O Futuro de uma Ilusão, segundo a qual a necessidade de um pai protetor levou os homens a criarem um deus (Freud, 1927/2006e). A partir dessas ideias de Freud, é possível compreender - numa perspectiva psicanalítica - que o surgimento de movimentos religiosos fundamentalistas, no final do século XIX e início do século XX, trouxe à tona uma nova afirmação de um deus pai todo-poderoso e exigente, sob cuja autoridade a sociedade deve se submeter novamente e cujos mandamentos devem voltar a ser obedecidos, conforme pensam os fundamentalistas.

Em Moisés e o monoteísmo, Freud ainda destacou que os filhos revoltosos desejaram matar o pai da horda primeva porque ele lhes impunha penosas renúncias pulsionais (Freud, 1938/2006h). Era preciso, portanto, que o pai morresse, a fim de que os filhos pudessem satisfazer seus mais prementes desejos. A morte desse pai significaria a autoafirmação dos filhos. Analogamente, uma das exigências da modernidade - diante da qual o fundamentalismo despontou como reação - era o desaparecimento de Deus, a fim de que o ser humano pudesse se afirmar em suas potencialidades enquanto ser racional. "É preciso que Deus morra para que o homem viva" (Fabro citado por Martinetti, 1995, p. 84), defendiam os humanistas declaradamente ateus. A morte desse pai que, na Idade Média, imperava por meio de um poder religioso institucional com pretensões absolutistas, foi solenemente celebrada por intelectuais, filósofos, sociólogos e cientistas, que viram no declínio da religião a oportunidade para o soerguimento do homem.

Outro ponto convergente com a descrição feita por Freud sobre o assassinato do pai da horda é que, num primeiro momento, o poder paterno foi substituído por um poder matriarcal, depois que os filhos se reuniram no clã fraterno. Esse poder matriarcal, porém, logo perdeu sua força. Na modernidade também, o antigo deus das religiões tradicionais teve seu lugar temporariamente assumido por uma deusa: a Razão. Esta viria a se impor como questionadora dos ditames, dos valores e das convicções que constituíam a ordem religiosa estabelecida pelo deus-pai-único. Contudo, essa deusa logo demonstrou seus limites quando, no alvorecer da pós-modernidade, percebeu-se que a luz da racionalidade científica não fora capaz de propiciar à humanidade uma vida mais ética e um convívio humano mais pacífico. Haja vista as grandes guerras, que trouxeram ao mundo tanto temor e insegurança na primeira metade do século XX. Freud (1915/1974) mesmo reconheceu uma frustração diante das expectativas relacionadas ao progresso científico quando, em Reflexões para os tempos de guerra e de morte, ele ressalta que "A própria ciência perdeu sua imparcialidade desapaixonada; seus servidores, profundamente amargurados, procuram nela as armas com que contribuir para a luta contra o inimigo" (p. 311).

Conforme se pode verificar no texto de Freud (1938/2006h), os irmãos parricidas - que se associaram no primitivo clã totêmico - sentiram-se, num primeiro momento, vitoriosos e fortes por terem sido capazes de sobrepor-se ao pai. O ódio que sentiam por ele foi satisfeito por meio de seu assassinato. Por outro lado, a ausência desse pai trouxe aos filhos a saudade, pois também o amavam. A falta dele tornou-se angustiante. Essa situação da ausência de um pai divino, que domina tudo, pode também ser percebida no momento do surgimento do fundamentalismo religioso no final dos tempos modernos. No terreno movediço deixado pela modernidade, fez-se sentir a insegurança pela falta dos antigos valores morais e pelo descrédito das religiões monoteístas históricas, que tiveram seus dogmas questionados e começaram a experimentar uma perda maciça de fiéis. Esse declínio da religião pode ser compreendido como o declínio do pai. Foi diante dessa situação que despontou o fundamentalismo religioso, trazendo de novo a figura de um deus forte, poderoso, com uma palavra inquestionável contida num livro sagrado e que se impõe através de uma moral bem definida, exigindo renúncias pulsionais, apontando o caminho certo para seus filhos e hostilizando tudo e todos que se opõem a seus preceitos sagrados.

O pulular de novos segmentos religiosos, com atitudes absolutistas e espalhando-se de modo virulento por toda parte, pode também ser compreendido na perspectiva da necessidade que se impõe, novamente, de um pai tirânico. Com seu poder irresistível, ele mostrou, mais uma vez, sua face severa e intransigente no fundamentalismo, combatendo a modernidade e o liberalismo que se atreveram a questionar seu poder e sua sabedoria divina. Se os modernistas e liberais derrubaram o pai do seu trono ao atacarem os fundamentos da religião, ele agora é novamente entronizado pelo surto religioso atual e tenta impor-se na vida social e política, através da militância fanática de grupos religiosos. Afinal, uma das pretensões fundamentalistas é, justamente, que a religião possa comandar novamente os destinos da sociedade, impondo sua moral e combatendo a diversidade constitutiva da comunidade humana. Nesse sentido, vale lembrar que, para Freud (1938/2006h),

os fenômenos religiosos só podem ser compreendidos segundo o padrão dos sintomas neuróticos individuais que nos são familiares - como o retorno de acontecimentos importantes, há muito tempo esquecidos, na história primeva da família humana - e de que eles têm de agradecer exatamente a essa origem seu caráter compulsivo, e de que, por conseguinte, são eficazes sobre os seres humanos por força da verdade histórica de seu conteúdo. (p. 72)

Conforme o pensamento freudiano, o homem tende a se portar como "um animal de horda, uma criatura individual conduzida por um chefe" (Freud, 1921/2006c, p. 131). Seguindo essas indicações de Freud, pode-se perceber que também no meio fundamentalista "o grupo nos aparece como uma revivescência da horda primitiva" (p. 134), pois é guiado por líderes religiosos que se apresentam como investidos de um poder dado por Deus e aos quais os fiéis devotam uma irrestrita admiração e subserviência. Se, conforme Freud (1921/2006c) afirma, "o homem primitivo sobrevive potencialmente em cada indivíduo e a horda primeva pode mais uma vez surgir de qualquer reunião fortuita" (p. 134), pode-se então inferir que o fundamentalismo conta com uma disposição pulsional do ser humano, da qual pode se valer para ajuntar sectários. Freud ainda observa que "na medida em que os homens se acham habitualmente sob a influência da formação de grupo, reconhecemos nela a sobrevivência da horda primeva" (p. 134).

 

Considerações finais

A partir dessas considerações, pode-se inferir que a pulsão de morte - com seu caráter repetitivo - mostra-se atuante no fundamentalismo religioso e nele encontra ampla vazão, pois essa forma de religiosidade traz novamente à tona a figura de um pai divino intolerante, que pretende impor seus preceitos sagrados a todos, de modo intransigente e até mesmo violento. Enquanto "instinto de domínio e vontade de poder" (Freud, 1924/2006d, p. 181), a pulsão de morte demonstra sua ação na busca que alguns setores fundamentalistas têm feito por poder político e influência na sociedade. Enquanto pulsão de destruição, ela se faz presente na hostilidade dos segmentos fundamentalistas para com os setores seculares e os diversos modos de crer e estilos de viver, não tolerando nada que destoe do que é considerado como verdade absoluta, interpretada na leitura literal do livro sagrado. Nesse contexto, a construção de inimigos potenciais, imaginários ou concretos, pode ganhar a força de uma paranoia, desencadeando atitudes de perseguição e de desconfiança para com os que estão fora do grupo reunido pela fé.

Em diversos contextos e épocas da história da humanidade, a busca por transcendência se mostrou como um forte anseio do ser humano. Diante da nova tentativa de imposição religiosa por parte de segmentos fundamentalistas, urge pensar se a busca de transcendência pode ter alternativas que não sejam, necessariamente, o culto de um deus pai tirânico, que pode gerar também filhos intolerantes e violentos. Uma transcendência que seja capaz de considerar e acolher a imanência da condição humana, marcada pela diversidade e pela ânsia de liberdade.

 

Referências

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Recebido em: 12/09/2018
Aprovado em: 21/03/2019

 

 

1 Nascido em Cartago, por volta do ano 160 da Era Cristã, Tertuliano foi o primeiro escritor de renome na patrística latina. Trata-se de um protagonista da comunidade cristã africana do século II. Suas obras e seu pensamento tiveram grande influência sobre teólogos e escritores cristãos posteriores.
2 A palavra instinto aparece como tradução do vocábulo alemão Trieb, na Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Neste artigo, porém, é utilizada a palavra pulsão, fora das citações literais. O termo pulsão vem de uma tradição francesa, sobretudo, lacaniana. Mas seu uso também não é consensual entre os atuais tradutores dos escritos de Freud.

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